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A POLÍCIA E OS NEGROS EM PORTO ALEGRE NO INÍCIO DO SÉCULO XX

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A POLÍCIA E OS NEGROS EM PORTO ALEGRE NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Cláudia Mauch Universidade Federal do Rio Grande do Sul claudia.mauch@ufrgs.br O texto aborda dois aspectos das relações entre a polícia e a população negra: a construção dos negros como principais alvos da vigilância policial a partir do último quartel do século XIX, e a presença de grande número de negros na polícia. Na primeira parte analiso a presença de negros na polícia de Porto Alegre na República Velha e na segunda como os registros de prisões efetuadas por essa mesma polícia evidenciam seu papel fundamental na construção de negros e negras como suspeitos preferenciais. O trabalho também explora as dificuldades e possibilidades de análise de fontes que tendem a silenciar a cor dos policiais, enquanto os registros de prisões são explícitos quanto à cor e descrições físicas racializadas dos negros e pardos detidos, revisitando fontes de trabalhos anteriores e incorporando pesquisas recentes de outros historiadores que permitem ampliar e aprofundar as reflexões.

Palavras-chave: polícia; policiais negros; pós-abolição; fontes policiais; prisões correcionais

Esse trabalho analisa a presença de negros na polícia nas primeiras décadas do século XX, época em que já se encontrava em curso o processo de rotulação dos brasileiros pobres e negros como suspeitos preferenciais de crimes e desordens, no qual as polícias desempenharam papel destacado. Podemos localizar a construção dessa rotulação em várias instituições brasileiras no período que se estende de meados do século XIX a meados do XX, e que segue sendo atualizada dando suporte a práticas policiais cotidianas do presente e cujo desdobramento mais trágico, entre muitos, é a quantidade de jovens negros assassinados anualmente pelas polícias, como mostram os dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.1 A criminalização dos negros e

1 Conforme dados do Atlas da Violência 2019, 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre

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pobres no Brasil tem sido há décadas objeto de atenção da historiografia e das ciências sociais, e não cabe nesse texto recuperar toda essa produção. Nesse trabalho, o objetivo é mostrar como a relação da polícia com os negros vai além do aspecto repressivo analisado naquela produção, dentre as quais se incluem minhas pesquisas. Aqui trata-se da situação aparentemente paradoxal de uma polícia do início do século XX que prendia mais negros que brancos formada por muitos agentes negros, o que aliás se evidencia no nosso tempo presente e gera questões importantes sobre identidade racial entre policiais hoje (SANSONE, 2000 e 2002; NASCIMENTO, 2014 e 2015). O trabalho na polícia, assim como em outras profissões fardadas, pode ter sido alternativa de cidadania para negros no pós-abolição. Nesse sentido, o texto analisa dois aspectos das relações entre a polícia e a população negra: a construção dos afro-brasileiros como suspeitos preferenciais e principais alvos da vigilância policial a partir do último quartel do século XIX, e a presença de grande número de negros na polícia. O trabalho também explora as dificuldades e possibilidades de análise de fontes que tendem a silenciar a cor dos policiais, enquanto os registros de prisões são explícitos quanto à cor e descrições físicas racializadas dos negros e pardos detidos, revisitando fontes de trabalhos anteriores e incorporando pesquisas recentes de outros historiadores e historiadoras que permitem ampliar e aprofundar as reflexões. Na primeira parte analiso a questão dos negros na polícia de Porto Alegre na República Velha e na segunda como os registros de prisões efetuadas por essa mesma polícia evidenciam seu papel fundamental na construção dos negros e negras como suspeitos preferenciais. Por fim, levanto algumas questões a partir de estudos sobre o tempo presente e como podem ampliar o escopo de perguntas para os historiadores da polícia no pós-abolição.

Negros na polícia

Em vários locais do Brasil desde as décadas finais do Império e na República Velha as forças policiais provinciais/estaduais e municipais expandiram seus efetivos e acabaram por incorporar muitos negros e pardos, de modo que podem ter se constituído em alternativa de trabalho para estes.

morrem mais assassinadas e sofrem mais assédio do que as brancas; policiais negros, embora constituam 37% do efetivo das polícias são 51,7% dos policiais assassinados. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A violência contra negros e negras no Brasil. 2019. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/a-violencia-contra-negros-e-negras-no-brasil/. Acesso em: 27/02/2020.

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A farda militar, que se confundia com a das polícias uniformizadas, carregava um estigma vinculado às práticas violentas de recrutamento do período imperial e às suas funções de controle social. Para além do suprimento de soldados, no século XIX o recrutamento forçado representava importante papel no sistema de justiça criminal brasileiro. Segundo BEATTIE (1999), as prisões, tanto as de antigo tipo quanto as pretensamente modernas, estavam longe de desempenhar as funções a elas definidas pelo Código Criminal de 1830, de modo que um largo espectro de crimes, da vadiagem e desordem aos delitos contra propriedade, eram punidos com o envio para o Exército ou Marinha. Os recrutadores usavam métodos violentos, e o envio para as forças armadas era notoriamente visto como meio de correção dos indesejáveis locais (RIBEIRO, 2004). Nesse contexto, a farda policial não carregava o mesmo peso negativo que a militar, tendo assumido para muitos negros o caráter de salvo conduto, disfarce ou alforria provisória, como algumas pesquisas já demonstraram (CHALHOUB, 1990; MOREIRA, 1995). Em São Paulo, dos indivíduos que se engajaram no Corpo Policial da Província entre 1868 e 1889, metade não eram brancos (qualificados principalmente como morenos, pardos, pretos e caboclos). Alguns eram escravos que se passavam por livres e então acidentalmente incluídos, mas quando descobertos eram imediatamente expulsos. Para ROSEMBERG (2009, p. 116-127), o Corpo Policial da Província de São Paulo constituiu-se como importante “lugar para os não-brancos” nas décadas finais da escravidão, na medida em que manteve portas abertas para libertos e “trabalhadores nacionais”, indivíduos cujas oportunidades no mercado de trabalho que então se formava eram muito restritas. No Rio Grande do Sul da segunda metade do século XIX, para os pobres livres, e mesmo para escravos, o engajamento no Corpo Policial da Província era uma forma de escapar ao recrutamento forçado no Exército e na Armada. Conforme MOREIRA (1995), o alistamento na polícia era dos males o menor, pois apresentava a vantagem de permitir aos recrutados ficar na Província e, a partir de 1873, no próprio município de origem.

Assim, no período pós-abolição o engajamento nas polícias pode ter se se constituído como alternativa de trabalho para os homens negros e pardos em Porto Alegre (FLORES, 2016; MAUCH, 2017), mesmo que tal trabalho fosse mal pago e desprestigiado. A reorganização da polícia municipal sob a República, com a ampliação dos efetivos, abriu postos de trabalho no serviço de policiamento. Entre 1890 e 1928 a população da cidade quadruplicou (de 52 para 234 mil habitantes) e, embora não tenha acompanhado esse crescimento, o número de policiais variou entre 250 e 500 ao longo

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desse período (em 1900 havia 1 policial para 303 habitantes, em 1928 a proporção estava em 1 para 574). Embora formalmente o regulamento da Polícia Administrativa, que existiu entre 1896 e 1928, colocasse uma série de requisitos a serem preenchidos pelos voluntários (saber ler e escrever, idade mínima e máxima, comportamento exemplar etc.), na prática os critérios de engajamento demostraram ser bastante elásticos e envolver relações clientelistas. Como os salários eram baixos e as condições de trabalho duras, a grande maioria dos recrutados eram homens pobres que sobreviviam como jornaleiros, trabalhadores sem ofício definido ou ex-soldados (MAUCH, 2017).

A principal fonte sobre a composição da polícia local, apesar de trazer dados pessoais passíveis de tratamento quantitativo, não menciona entre tais dados as cores dos policiais. Como os brasileiros constituem a grande maioria dos registros nos 22 códices da Matrícula Geral da Polícia Administrativa de Porto Alegre (Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho), não há como saber quantos deles eram negros ou se existia alguma preferência velada dos recrutadores por brancos. Mas outro tipo de informação presente nesse mesmo conjunto de documentos ajuda a desenhar o quadro da diversidade racial na polícia local. Dentre os mais de doze mil registros de policiais pesquisados, em 35 foram anexados retratos, a partir dos quais foi possível identificar seis negros e vários que aparentam não ser brancos (MAUCH, 2017, p. 309-320). Estes talvez fossem designados como “pardos”, “indiáticos” ou “mulatos”, termos que junto com “negro” são encontrados em outras fontes produzidas pelas polícias locais.

Na tentativa de contornar o “silêncio da cor” nos registros de pessoal da polícia, foi feita uma pesquisa na Matrícula Geral dos Enfermos que ingressavam na Santa Casa de Misericórdia, uma das poucas fontes seriadas disponíveis do período onde a cor do indivíduo internado ou atendido no hospital era colocada junto a outros dados com nome, idade, profissão, nacionalidade e enfermidade. Essa fonte permitiu o cruzamento da categoria ocupacional policial com o dado sobre cor, suprindo uma importante lacuna na investigação sobre o perfil dos policiais (SCHEFFER, MAUCH e PASSOS, 2017).

Em virtude da enorme extensão desses registros, a pesquisa foi feita com uma amostra nos códices da Matrícula Geral dos Enfermos que cobriam ingressantes no hospital nos anos de 1910-1911, 1915-1916, 1920-1921 e 1925-1926. Foram transcritos os dados dos indivíduos que continham uma ocupação relacionada com forças policiais ou forças militares: policial, agente (termo utilizado à época para se referir ao policial municipal: agente da Polícia administrativa), agente policial, inspetor, praça, guarda, guarda municipal, militar, Brigada Militar, entre outras denominações relacionadas. Foi

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a percepção da grande quantidade de registros de atendimento de militares que levou à incorporação destes no banco de dados da pesquisa, a fim de permitir uma comparação entre as cores das “profissões fardadas”. Depois da aplicação de uma série de filtros, foram obtidos 365 casos. Embora presente em todos os códices, o campo “cor” foi aquele em que a forma de registro se apresentou mais variada. A maioria dos códices registrava as cores dos enfermos por extenso (branca, preta, parda, “mixta”, morena, indiática, oriental ou asiática), porém em alguns códices havia apenas a inicial das cores (“m”, “p”, “b”), o que impossibilitou de confirmar se nos casos com a letra “m” esta representava moreno, mulato ou misto e se a letra “p” representava pardo ou preto, por exemplo.

Havia a expectativa de encontrar uma grande proporção de negros entre os enfermos com profissão policial. No entanto, os dados colhidos na amostra indicaram que a proporção de brancos na polícia local era consideravelmente maior do que a proporção de negros, pardos e mistos. Considerando os nomes que deram entrada na Santa Casa, foram encontrados 240 policiais brancos e 72 negros, pardos e mistos, ou seja, os registrados como brancos totalizaram 76,9% dentre os policiais. A amostra de profissões militares constitui um interessante termo de comparação, uma vez que se supunha que os componentes das forças militares e policiais tivessem origens étnicas e sociais semelhantes. Mas nos militares a proporção entre brancos (52%) e não brancos (47,9%) mostrou-se bem mais equilibrada (SCHEFFER, MAUCH e PASSOS, 2017, p. 89-92).

Em trabalho sobre e presença e as experiências de negros nas polícias de Porto Alegre no final do século XIX, Giane FLORES (2018) chegou a resultado contrário no que se refere às cores dos policiais de Porto Alegre a partir da Matrícula dos Enfermos. Tendo pesquisado a mesma fonte em período anterior (1888 a 1894) e com uma metodologia diferente (separação de todas as ocorrências de policiais no intervalo de tempo, e não somente amostragem), Flores encontrou uma prevalência de negros, somando os brancos apenas 31,5% da amostra. As diferenças nas metodologias das pesquisas dificultam comparações, mas não impedem que se proponha algumas hipóteses explicativas para o aparente declínio na proporção de negros e pardos na polícia de Porto Alegre desde o período estudado por Flores. A partir de 1896-97 ocorreram modificações na estrutura da polícia local que podem, junto com as transformações mais gerais no mercado de trabalho, ter gerado o reposicionamento do serviço policial nesse mercado. Além disso, o afluxo de imigrantes europeus e seus descendentes para a capital do Rio Grande do Sul alterou a proporção de brancos e negros na população trabalhadora da cidade, e a concorrência com imigrantes pode ter aumentado a pressão sobre os brancos

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pobres “nacionais”, que passavam a buscar a polícia como alternativa de trabalho (muitas vezes eventual), deslocando os trabalhadores negros e pardos para outras ocupações.

Enfim, enquanto novas pesquisas quantitativas não forem feitas, a proporção entre trabalhadores brancos e negros na polícia em Porto Alegre no início do século XX é incerta. Mas outras fontes qualitativas mais esparsas como registros policiais de vários tipos, inquéritos, fotos, e imprensa indicam que havia muitos negros na Polícia Administrativa de Porto Alegre ao longo da República Velha.

As imagens abaixo mostram duas charges que tinham por objetivo criticar comandantes da Polícia Administrativa, mas mostram policiais negros entre os seus subordinados. Na primeira imagem, publicada no jornal Gazetinha na época em que a Polícia Administrativa estava sendo organizada, temos o Coronel Louzada (conhecido como Louzadinha porque era baixinho) à frente de um bando de maltrapilhos armados de vassouras e espadas, alguns com cachimbos na boca. Dentre os maltrapilhos, no mínimo alguns são negros. Ou seja, a “nova polícia” era ruim porque, além de um comandante mal escolhido, era composta por pobres e negros.

Imagem 1: Charge de 1896 publicada em Gazetinha

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No segundo caso, a crítica da revista Kodak se dirigia ao major Orlando Motta e ao uso excessivo da força por seus subordinados no policiamento do carnaval de 1913. Dentre os cinco policiais representados, pelo menos dois são negros desenhados com lábios exageradamente grossos.

Imagem 2: Charge de 1913 publicada na revista Kodak.

Fonte: Kodak. Porto Alegre, 15/02/1913. (Biblioteca Pública do Estado). Imagem gentilmente cedida por Alice Dubina Trusz.

Nas fontes policiais, as referências a agentes negros aparecem de forma fragmentada. Observou-se que muitos não eram brancos ou porque foram identificados como negros, pardos ou mulatos em depoimentos prestados em inquéritos administrativos, relatórios da Polícia Judiciária e registros de ocorrências, ou ainda porque sua cor foi em algum momento de conflito utilizada como ofensa e fator depreciativo de sua autoridade. Insultos como “negro”, “negro bandido”, “caboclo sem-vergonha” eram tanto usados por policiais quanto contra eles, muitas vezes colocando em dúvida se um policial negro tinha autoridade para repreender ou prender brancos.

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Negros presos pela polícia

A análise do policiamento cotidiano por meio de registros de ocorrências indica que o governo republicano conseguiu ao longo da República Velha efetivar alguma forma de vigilância no espaço urbano, pois as fontes mostram policiais presentes em diferentes espaços e momentos da vida da cidade: nas ruas, nos locais de lazer, nas festas populares, nos bares, vizinhanças humildes, nas eleições etc. O policial fardado passou a fazer parte da paisagem urbana, e sua atividade comumente caracterizada como “fazer prisões”. De fato, a maior parte da atividade policial registrada eram as prisões contravencionais, por meio das quais os policiais recolhiam das ruas os indesejáveis a partir de critérios discricionários. O Código Penal de 1890 estabeleceu duas categorias de delitos: os crimes (furto, roubo, homicídio etc) e as contravenções, os chamados “crimes sem vítima”, tais como desordem, embriaguez, ofensas à moral e vadiagem, que previam a detenção por 24 horas e possibilidade de processo judicial para os reincidentes. As contravenções mostram com clareza os objetivos de inibir a ociosidade e obrigar as classes populares ao trabalho formal, e foi na repressão delas e nos crimes contra propriedade que o policiamento cotidiano se organizou.

O número de prisões efetuadas pela polícia de Porto Alegre mostra que as detenções correcionais por desordem, embriaguez e ofensas à moral – isoladas ou combinadas – e para averiguações, constituem a esmagadora maioria dos motivos das prisões registradas, oscilando entre 85 e 90% do total de detenções, que alcançava uma média em torno de 3500 por ano (MAUCH, 2017, 169). Em linhas gerais, o processo é semelhante ao de outras cidades brasileiras do período, onde a polícia foi assumindo papel cada vez mais importante no controle sobre a população pobre por meio das prisões por motivos nem sempre definidos e que serviam para qualquer caso, como é o caso das “averiguações”, e a historiografia tem apontado como essas práticas se davam em detrimento do ciclo completo da punição (detenção-inquérito-processo), com graves consequências sociais e institucionais (TEIXEIRA, SALLA, MARINHO, 2016). Nesse sentido, o trabalho de Bóris FAUSTO (1984) foi um dos primeiros a apontar para o desequilíbrio entre o grande número de presos correcionais e o número relativamente menor de contraventores levados à Justiça, o que foi confirmado em trabalhos posteriores como os de BRETAS (1997) e SOUZA (2009).

Mas a análise detalhada dos registros de prisões mostra mais claramente quem era o alvo das detenções. Em uma investigação em dois livros de registros de prisões da área central e mais populosa da cidade entre 1897 e 1909, Luciano Anezi mostrou que, além

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de terem ocupações de trabalhadores pobres, 63% das pessoas detidas eram pretas, pardas ou com outras designações de cores diferentes da branca, enquanto estima-se que menos de um terço da população do município fosse afrodescendente nessa época (ANEZI, 2020). O trabalho de Anezi também evidenciou o racismo embutido nas descrições físicas diferenciadas para negros e brancos. Enquanto os qualificados como brancos não tem descrições físicas detalhadas no registro (o branco aparece naturalizado como cor “universal”), as dos negros são bastante racializadas, como neste exemplo trazido pelo autor: “Negro baixo, rosto quase oval, nariz chato, boca grande, lábios grossos, cabelo preto de carapinha, barbado apenas no queixo, tendo bigode escasso, apenas abundante nas extremidades, tem o braço direito quebrado” (ANEZI, 2020, p. 32).

Esse tipo de descrição física racializada não poupava os policiais, assim como visto nas imagens acima. Um deles, preso por ter produzido ferimentos em um homem em 1897, 53 anos de idade, casado e analfabeto teve seus “sinais característicos” assim descritos: “mulato alto e gordo, cabeça chata, barba só no queixo, bigode escasso, têmporas proeminentes; nariz chato cabelo crespo preto, mãos pequenas e gordas” (Registro de prisões. 2ª Delegacia. Fundo Polícia, Códice 38. p. 12. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul).

Como salienta Marcus ROSA (2019), em muitos casos a cor silenciada nos documentos do pós-abolição é a branca, na medida em que quando a imprensa ou a polícia queriam se referir aos negros, a cor sempre antecedia o nome da pessoa, quando não o substituía. O jornal produzido por negros O Exemplo denunciava a disparidade do tratamento dado pelos jornais brancos aos negros, que quando cometiam algum delito ou mesmo eram vítimas de violências tinham sua cor vinculada ao nome, levando os leitores a acreditarem numa tendência daqueles para o crime (ROSA, 2019, p. 231).

O racismo, associado a ecos da criminologia lombrosiana e à lógica da suspeição generalizada sobre o povo, especialmente o povo de pele escura, se infiltrou nas instituições policiais desde o início do período republicano, e se reproduz desde então.

A questão do silenciamento da cor nas fontes oficiais brasileiras nos períodos finais da vigência da escravidão e no período pós-abolição contribuiu durante certo tempo para a invisibilização dos trabalhadores negros dentro da historiografia (RIOS e MATTOS, 2004). Por outro lado, a história social do trabalho também sempre teve dificuldade em ver os policiais como trabalhadores, o que pode ser explicado pelos vínculos dessa atividade com a imposição da ordem tal como pensada pelas classes

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dominantes. Segundo EMSLEY (2000, p. 89), enquanto a história social dos anos 1960 procurou reconhecer os rostos na multidão e resgatar os artesãos e “perdedores” da revolução industrial da “enorme condescendência da posteridade” (expressão de E. P. Thompson), os policiais, quando apareciam nessas histórias, continuaram tão sem nome e sem rosto quanto tinham sido as multidões antes dos trabalhos de Georges Rudé. Normalmente explicados apenas como instrumentos da burguesia no controle social, eram poucas as pesquisas que tomavam os policiais como trabalhadores, embora suas origens fossem nas classes trabalhadoras não especializadas. Os policiais têm muito em comum com outras categorias de trabalhadores, mas é a especificidade das suas tarefas que levou os historiadores a terem precaução em reconhecer, e analisar, o policial como um trabalhador. Conforme EMSLEY, apesar de suas origens, o policial é um soldado raso de infantaria do lado da ideologia dominante de qualquer sociedade, sendo isso o que o distancia de algumas categorias de trabalhadores, em relação às quais é a manifestação física da opressão (2000, p. 110). Quando se trata de relações raciais em sociedades como a brasileira, as questões levantadas pelo historiador britânico se complicam.

Os policiais negros foram portanto duplamente invisibilizados pela historiografia. Apesar disso, hoje sabemos que as forças policiais eram geralmente formadas por homens pobres sem instrução e sem ofício definido, muitos dos quais eram negros (ROSEMBERG, 2008; MAUCH, 2017; FLORES, 2018), e que podem ter representado uma das alternativas buscadas por homens negros para o exercício de um trabalho “respeitável”, distanciando-os do mundo da desordem que se tentava impor a eles no pós-abolição e aproximando-os dos direitos de cidadania. Conforme SANSONE (2002, p. 518), os empregos de uniforme historicamente tem sido veículo importante de mobilidade social para afro-brasileiros, num processo onde raça e classe são estreitamente interligadas. Mas as pesquisas do autor, e de outros que abordam o tema dentro das polícias militares, como NASCIMENTO (2014; 2015), se referem a períodos mais recentes. Quando analisamos períodos de formação das polícias, como é o caso desse trabalho, as possibilidades de ascensão social por meio do trabalho policial parecem ser mais reduzidas. Ao desprestígio e baixos salários somava-se o racismo, de forma que provavelmente a maioria dos policiais negros se mantinha nos níveis inferiores das corporações. Mesmo assim, não se pode descartar que ao vestir a farda de policial muitos trabalhadores negros, dentre eles grande número do ex-soldados, vislumbrassem uma possibilidade de participar do mundo da ordem, se diferenciando da figura do “vadio” e participando de redes clientelistas dentro do aparato estatal, e assim construir seus espaços

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numa sociedade onde novas relações econômicas, políticas e sociais se configuravam e se racializavam.

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