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Teoria dos atos de fala

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Academic year: 2021

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Neste capítulo vamos apresentar o conceito de atos de fala, que está relacionado ao estatuto dos enunciados utilizados cotidianamente nas in-terações entre os falantes. Procuraremos expor de forma simplificada os fundamentos da análise dos atos de fala, conforme formulados por dois filósofos britânicos: J. L. Austin e John Searle. Segundo esses pensadores, os enunciados produzidos pelos falantes podem ser divididos em dois grupos. Há, por um lado, aqueles que são utilizados como forma de rep-resentação de alguma coisa do mundo, seja esse mundo real ou fictício, pouco importa se o que se afirma sobre esse mundo seja falso ou verda-deiro. Mas há, por outro lado, enunciados que não têm esse caráter de representação e que não são nem falsos nem verdadeiros. Trata-se de enunciados que se caracterizam por serem formas de realização de ações. Austin e Searle mostram que há determinados tipos de ações que são re-alizadas pela fala: cumprimentar, despedir-se, prometer, pedir, mandar, advertir, desculpar-se, entre muitas outras.

Pretendemos, inicialmente, apresentar o conceito de atos de fala, most-rando sua contribuição para a compreensão sobre o funcionamento das línguas. Procuraremos também mostrar as dificuldades que limitam o uso desse conceito como instrumento de análise da linguagem em uso.

A seguir, procuraremos aprofundar um pouco a apresentação do con-ceito de atos de fala. Iniciaremos focalizando a análise que Austin faz de um conjunto de verbos usados tipicamente para realizar atos de fala: os verbos performativos1. Prosseguiremos discutindo o desdobramento dos

atos de fala proposto por Searle. Para ele, não basta considerar a inten-ção que o falante tem de realizar determinadas ações pela linguagem. É necessário distinguir a simples produção de um enunciado (ato locu-cionário ou locucional), a intenção com o que o falante produz esse enun-ciado (ato ilocucionário ou ilocucional) e as conseqüências que a produção do enunciado acarreta (ato perlocucionário ou perlocucional).

1 Trask (2004, p. 227) apresenta a seguinte definição de enunciados e verbos performativos: “PERFORMATIVO (performative) – um

enun-ciado que é por si só um ato de fazer algo; um enunenun-ciado comum, como Estou indo para o cinema, não pode ser facilmente considerado como um ato de fazer algo; proferir esse anunciado não constitui uma ida ao cinema. Mas alguns outros enunciados são diferentes. Dizer

Prometo comprar para você um ursinho de pelúcia, por si só, constitui um ato de prometer comprar um ursinho de pelúcia, e nada mais

é exigido para completar (não confundir com cumprir) a promessa. Um enunciado desse tipo é chamado um enunciado performativo

(explícito), e um verbo que se presta a esse uso, no caso prometer, é um verbo performativo.

Teoria dos atos de fala

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O conceito de atos de fala:

origem, contribuições para a Lingüística e limites

O conceito de atos de fala foi formulado inicialmente pelo filósofo britânico J. L. Austin, em um conjunto de conferências publicadas em 1962 com o sugestivo título How to Do Things with Words (Como Fazer Coisas com Palavras)2. Nesse

tra-balho, Austin chama a atenção para os limites de uma abordagem que considere que as frases produzidas em uma língua qualquer sejam formas de representa-ção da realidade e que possam ser avaliadas simplesmente como verdadeiras ou falsas. Ele mostra que um grande número de frases produzidas usualmente pelos falantes não fazem representações do mundo, mas são formas pelas quais os falantes realizam determinadas ações.

A formulação de Austin foi posteriormente retomada por outro filósofo britânico, John R. Searle, no livro Speech Acts: an essay in the philosophy of

langua-ge (Atos de fala: um ensaio de filosofia da lingualangua-gem)3, obra na qual aprofundou o

tratamento dos atos de fala, sobretudo pela discussão das conseqüências que a produção de determinados tipos de sentença desencadeia.

Antes desses estudos, os enunciados eram tomados como afirmações sobre um determinado estado de coisas. Por exemplo, uma afirmação como (1) é uma forma de representação de um determinado mundo (seja real ou não) e será considerada verdadeira se corresponder ao que acontece nesse mundo:

(1) O gato subiu no telhado.

Uma frase como essa contém tipicamente a representação de elementos do mundo. Há seres (gato, telhado) e um desses seres (o gato) executa uma deter-minada ação (subir) que afeta o outro ser (o telhado). O falante que enuncia essa frase representa lingüisticamente um evento (o gato subiu no telhado) e sua frase será verdadeira se o gato tiver efetivamente subido no telhado no mundo representado, caso contrário, será falsa.

Mas nas interações correntes entre os falantes, há vários tipos de proposições que não se restringem a uma representação de situações do mundo. Para iniciar a discussão, observe os seguintes enunciados:

(2) Pedro continua solteiro.

2 Estamos utilizando a edição francesa do livro – Quand Dire c’est Faire – publicada em 1970. Há também uma edição brasileira: AUSTIN, John

Lang-shaw. Quando Dizer é Fazer. Palavras e ações. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

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(3) Pedro continua solteiro? (4) Pedro, continue solteiro!

(5) Tomara que Pedro continue solteiro.

Considerando que um falante use esses enunciados em contextos apropria-dos, podemos observar que há diferenças entre o tipo de ação que ele realiza em cada caso. Na frase (2), há uma asserção, uma afirmação sobre determinado estado de coisas, análoga ao exemplo (1) comentado acima. Já ao enunciar a frase (3), o falante não faz uma afirmação (verdadeira ou falsa) sobre a realidade, mas formula uma pergunta. Ao enunciar a frase (4), ele faz um pedido, dá uma ordem, faz uma sugestão. Na frase (5) manifesta uma vontade.

Esses exemplos simples mostram que, ao falar, os indivíduos executam atos diversos, esses atos são chamados de atos ilocucionários por Austin e Searle. Os exemplos anteriores (1) a (5) seriam representativos de alguns desses atos:

afir-mar, perguntar, pedir, manifestar um desejo.

Além dos que foram exemplificados, poderíamos identificar vários outros. Searle (1984, p. 35) aponta os seguintes: afirmar, descrever, advertir, observar,

comentar, solicitar, ordenar, pedir, criticar, pedir desculpas, censurar, aprovar, cum-primentar, prometer, contrapor-se, exigir, alegar. Além desses, basta pensar um

pouco para aumentar bastante a lista.

Sintetizando, podemos adotar a seguinte conceituação de atos de fala: Ato de fala (speech act) – uma tentativa de fazer alguma coisa simplesmente falando. Há uma quantidade de coisas que podemos fazer, ou tentar fazer, apenas falando. Podemos fazer uma promessa ou uma pergunta, ordenar ou exigir que alguém faça alguma coisa, fazer uma ameaça, dar nome a um navio, declarar duas pessoas marido e mulher, e assim por diante. Cada uma dessas coisas é um ato de fala específico. (TRASK, 2004, p. 42)

É interessante observar que a definição de Trask não caracteriza os atos de fala como “fazer algu ma coisa simplesmente falando”, mas como “uma tentativa de fazer alguma coisa simplesmente falando”. O que ele procura destacar com essa definição é que não basta alguém fazer um pedido, dar uma ordem, dizer que alguém está nomeado ou demitido. Para tanto são necessárias várias condições relacionadas às circunstâncias em que a frase é produzida e aos interlocutores.

Tomemos a conhecida frase usada nas cerimônias de casamento: “Eu vos de-claro marido e mulher.” Esse enunciado tem o poder de transformar o estatuto

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da relação entre duas pessoas, alterando substancialmente os direitos e deveres entre os noivos e do novo casal perante a sociedade. No entanto, para que a frase produza tais resultados, é necessário que ela seja pronunciada por alguém investido da autoridade para tal – um padre – no interior de uma cerimônia reli-giosa altamente convencional. É necessário também que seja precedida da con-cordância explícita dos noivos em aceitar as condições do estatuto de casados que passarão a assumir daí em diante.

As condições específicas que tornam válido um ato de fala são chamadas de condições de felici dade. Trask (2004, p. 42) define nos seguintes termos as condições de felicidade:

Na maior parte dos casos, não faz sentido perguntar se um enunciado que constitui um ato de fala é verdadeiro ou falso. Enunciados como Arrume seu quarto; Você me emprestaria uma caneta; Prometo comprar um ursinho de pelúcia para você; e eu vos nomeio cavaleiro, dom Eurico não têm valor de verdade, mas podem ser mais ou menos adequados às circunstâncias ou, como também se diz, podem ser mais ou menos felizes. Um enunciado como Arrume seu quarto! é um enunciado infeliz se a pessoa não tiver autoridade sobre a outra, e um enunciado como Eu vos declaro marido e mulher não surte efeito a menos que tenham sido preenchidas uma série de condições. Assim como se diz que os enunciados podem ser mais ou menos felizes, as condições exigidas para que um ato de fala tenha sucesso são freqüentemente chamadas condições de felicidade.

O conceito de atos de fala é muito interessante e esclarece o funcionamento de aspectos relevantes do uso da linguagem. No entanto, a incorporação desse conceito para os estudos lingüísticos traz uma série de dificuldades. Uma é a complexidade inerente à interpretação do conjunto de condições necessárias para a realização de qualquer ato de fala. Além da complexidade da interpre-tação das condições de felicidade, estas apresentam diferenças consideráveis entre uma cultura e outra.

Outra dificuldade encontrada no uso dos atos de fala é a ausência de uma correspondência regular entre as formas lingüísticas e os atos de fala que real-izam. Observe o enunciado (6):

(6) Você tem horas?

Embora esse enunciado tenha a forma de uma pergunta, o falante está fa-zendo um pedido, tanto que se a resposta for simplesmente “Tenho”, esta será considerada uma resposta inadequada e não cooperativa.

Suponha que o gerente de uma empresa faça a seguinte pergunta a um funcionário:

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É evidente que o ato de fala realizado não é uma pergunta. Considerando a relação hierárquica entre o gerente e o funcionário e o contexto de trabalho em que a pergunta foi feita, ela é interpretada como uma ordem. Se a mesma pergunta fosse feita por um colega de trabalho, ela seria interpretada como um pedido.

Essas dificuldades de interpretação e a necessidade de uma análise cuidado-sa das circunstâncias em que cada enunciado é produzido tornam pouco produ-tivo o uso da teoria dos atos de fala para as análises lingüísticas.

As enunciações performativas

Conforme Austin (1970, p. 40) aponta, é possível reconhecer em qualquer língua casos em que a enunciação de certas frases corresponde à realização de ações. Veja alguns exemplos:

(8) Eu batizo este barco com o nome de Rainha Elizabeth.

(9) Se o Flamengo ganhar o jogo no domingo, prometo que vou pagar meia dúzia de cervejas.

(10) Deixo para meu irmão a coleção de discos dos Beatles.

(11) Por este instrumento de procuração, nomeio José da Silva meu rep-resentante junto à Receita Federal.

Os verbos utilizados nesses exemplos têm a propriedade de realizarem ações, por isso foram chamados por Austin de performativos. Como se faz uma promes-sa? Dizendo “eu prometo”. Como se faz uma nomeação? Dizendo “eu nomeio”.

Mas não é qualquer uso do verbo prometer que constitui o ato ilocucionário de fazer uma promessa. Para tanto, é necessário que a forma seja usada na primeira pessoa, no tempo presente e na voz ativa (AUSTIN, 1970, p. 26). Caso contrário, o enunciado que contêm esse verbo passará a ser um enunciado comum, que faz a representação de um evento ocorrido no mundo. Compare as frases (8) a (11) com as correspondentes (8’) a (11’):

(8’) Pedro batizou o barco com o nome de Rainha Elizabeth.

(9’) Antônio prometeu pagar meia dúzia de cervejas se o Flamengo gan-har o jogo no domingo.

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(10’) Cláudia deixou para seu irmão a coleção de discos dos Beatles. (11’) Fernando da Silva nomeou José da Silva seu representante junto à

Receita Federal.

Esses exemplos confirmam o que afirmamos anteriormente: a análise dos atos de fala deve levar em conta tanto as formas lingüísticas empregadas quanto um conjunto de condições adicionais; ou seja, a realização dos atos de fala leva em conta, por um lado, a escolha de determinadas formas lingüís ticas e, por outro, as condições pragmáticas do seu uso. É o atendimento das condições de felicidade que faz com que o falante seja ou não bem-sucedido ao realizar ações com a linguagem.

Tipos de atos de fala

Em seu estudo sobre os atos de fala, Austin mostra também que é possível distinguir três níveis em qualquer ato de fala:

Ele inicia pela distinção de três aspectos do ato que consiste em fazer qualquer coisa pela fala: há o ato locucionário (a produção de sons que pertencem a um vocabulário e a uma gramática, e aos quais são ligados um “sentido” e uma “referência”, ou seja, uma “significação”, no sentido clássico do termo); o ato ilocucionário (produzido ao dizer qualquer coisa, e que consiste da manifestação de como as palavras devem ser compreendidas naquele momento – as mesmas palavras podem ser compreendidas como um conselho, uma ordem etc.); e o ato perlocucionário (produzido pelo fato de dizer qualquer coisa, ou seja, o ato dá lugar a efeitos – ou conseqüências para os outros ou para a própria pessoa). (AUSTIN, 1970, p. 28)

Essas distinções são incorporadas e reelaboradas no estudo de Searle, como veremos a seguir.

Atos locucionários

O reconhecimento de que o falante produz um ato locucionário é o primeiro estágio da análise dos atos de fala. Trata-se do reconhecimento de que ele se utiliza de uma seqüência de palavras que constituem frases bem-estruturadas na língua utilizada.

Com o reconhecimento desse primeiro nível para a análise dos atos de fala, Austin (1970) e Searle (1981) colocam em evidência que a primeira condição para que um enunciado possa ser reconhecido como um ato de fala é o fato de ser produzido segundo as convenções de uma língua natural em todos os seus níveis: fonologia, sintaxe, semântica. Antes de se atribuir ao enunciado

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produzi-do por um falante uma intenção e de analisar suas conseqüências, é necessário reconhecer que ele é constituído por frases compreensíveis na língua usada pelos interlocutores.

Atos ilocucionários

Como comentamos acima, os atos ilocucionários correspondem às ações que os falantes pretendem realizar quando produzem os enunciados. Os atos ilocu-cionários correspondem à realização de ações como pedir, cumprimentar,

prome-ter, exigir, desculpar-se, censurar etc. Veja alguns exemplos:

(12) Por favor, traga-me um cinzeiro. (pedido)

(13) Não entre agora, aguarde o chamado da atendente. (ordem) (14) Boa tarde! (cumprimento)

(15) Se você tirar boas notas vai ganhar uma bicicleta no Natal. (promessa) (16) Cuidado, o rio é muito fundo. (advertência)

(17) É proibido fumar aqui, você poderia ir para a área de fumantes? (or-dem)

Para que um ato ilocucionário seja bem-sucedido é necessário que atenda às condições de felicidade. Searle procura sistematizar as condições para que alguns atos ilocucionários de ocorrência freqüente sejam bem-sucedidos. Vamos sintetizar a seguir alguns exemplos de condições de felicidade associadas a esses atos, a partir dos esquemas apresentados em Searle (1984, p. 88-90):

Ato de pedir

 – o ato de pedir corresponde a uma ação a ser realizada no futuro pelo ouvinte. Uma primeira condição é a sinceridade do pedido: o falante quer que o ouvinte realize a ação solicitada. Outra condição é que o falante acredite que o ouvinte esteja em condição de realizar a ação so-licitada e que este realmente possa fazê-lo. O pedido é uma tentativa que o falante faz de conseguir que o ouvinte realize a ação solicitada.

Ato de perguntar

 – há dois tipos de perguntas, as reais e as de exame. Nas perguntas reais, o falante quer saber (descobrir) a resposta; nas perguntas de exame, o falante quer saber se o ouvinte sabe. Uma primeira condição para que o ato de perguntar seja bem-sucedido (no caso da pergunta real) é que o falante seja sincero, que queira realmente obter a informação.

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Outra condição é que o falante não saiba a resposta. A pergunta é uma tentativa de obter a informação.

Ato de aconselhar

 – o ato de aconselhar corresponde a um ato futuro do ouvinte. Uma condição para que o conselho seja bem-sucedido é que o falante tenha alguma razão para acreditar que o ato beneficiará o ouvinte. Outra condição é que o falante assume que o ato sobre o qual se dá o aconselhamento é de grande interesse para o ouvinte. Ao contrário do que se poderia supor, aconselhar não é uma espécie de pedido. Aconsel-har alguém não é tentar conseguir que ele faça algo de forma análoga ao pedido. Aconselhar é dizer a alguém o que é melhor para ele.

Ato de agradecer

 – o ato de agradecer remete a um ato passado realizado pelo ouvinte. Esse ato beneficia o falante e este sabe disso. Uma condição para que o agradecimento seja bem-sucedido é a sinceridade do falante, que este seja efetivamente grato ao ouvinte pelo ato. O agradecimento é uma expressão de gratidão ou apreciação.

Ato de avisar

 – o ato de avisar remete a um evento ou estado futuro. Uma condição para que o aviso seja bem-sucedido é que o ouvinte acredite que o evento ocorrerá e que não é do seu interesse. Outra condição é a sinceri-dade do falante, que acredita que o evento sobre o qual recai o aviso não é do interesse do ouvinte. Avisar é como aconselhar e não como pedir. Não é necessariamente uma tentativa de fazer com que alguém proceda de modo a evitar o evento ou estado, mas que esteja preparado para as conseqüências que virão.

Esses são alguns dos atos ilocucionários que Searle analisa. É interessante observar que em todas as análises um dos componentes fundamentais das condições de felicidade é a sinceridade do falante. Toda a análise dos atos ilocu-cionários tem a sinceridade como um dos seus pilares. Para que esse modelo de análise fosse adotado por outras comunidades de fala diferentes dos britânicos, seria necessário um estudo preliminar para avaliar quais seriam as normas de interação vigentes para cada grupo. As diferenças culturais podem levar à for-mulação de condições bem diferentes associadas aos atos ilocucionários.

Atos perlocucionários

Finalmente, um terceiro nível proposto por Searle (1984, p. 37) para a análise dos atos de fala é o perlocucionário:

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Se considerarmos a noção de ato ilocucionário é preciso também considerar as conseqüências ou efeitos que estes têm sobre as ações, pensamentos ou crenças dos ouvintes. Por exemplo, ao sustentar um argumento, podemos persuadir ou convencer alguém; se o aviso de qualquer coisa, posso assustá-lo ou alarmá-lo, pedindo alguma coisa, posso levá-lo a fazê-la; informando-o posso convencê-lo (esclarecê-lo, edificá-lo, inspirá-lo, fazê-lo tomar consciência). As expressões em itálico designam atos perlocucionários.

O conceito de ato perlocucionário formulado por Austin e Searle não recebe na obra desses autores o mesmo destaque que o ato ilocucionário. A análise desse último tipo de ato de fala implica em um estudo mais aprofundado sobre as formas de interpretação dos atos de fala produzidos pelos falantes.

Para fazer esse estudo, seria necessário em primeiro lugar fazer um levanta-mento dos atos ilocucionários e das possíveis conseqüências desses atos para os ouvintes, ou seja, seria necessário elaborar uma tabela de correspondência entre os dois conjuntos de atos de fala:

Ato ilocucionário Atos perlocucionários correspondentes

Avisar Assustar, alarmar...

Informar Esclarecer, edificar, inspirar, fazer tomar con-sciência...

Prometer Criar expectativas...

Etc... Etc...

Nem Austin nem Searle se dedicam ao aprofundamento do conceito de atos perlocucionários. É significativa a conclusão que Trask (2004, p. 42) apresenta sobre a incorporação desse conceito aos estudos de pragmática mais recentes:

Austin distinguiu inicialmente três aspectos de um ato de fala: o ato locucionário (ou ato de dizer alguma coisa), o ato ilocucionário (aquilo que você está tentando fazer, com sua fala) e o ato perlocucionário (o efeito daquilo que você diz). Hoje, porém, o termo ato de fala é freqüentemente usado para denotar especificamente um ato ilocucionário e o efeito de um ato de fala é sua força ilocucionária.

A conclusão de Trask mostra como os estudos recentes de pragmática incor-poram o essencial da teoria dos atos de fala, sem dar a mesma importância a algumas distinções menos relevantes formuladas pelos filósofos britânicos.

Conclusão

Os estudos sobre os atos de fala que sintetizamos neste capítulo têm como um de seus pressupostos nucleares a concepção dos interlocutores como

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indi-víduos sinceros e cooperativos. Essa representação pode ser resultado de uma visão idealista da sociedade elaborada pelos filósofos britânicos na década de 1960. Ou pode ser resultado da observação dos valores do grupo social com que esses intelectuais conviveram na época em que propuseram suas análises.

Essa mesma concepção dos falantes está presente também na proposta de máximas conver sasionais formuladas por outro filósofo britânico, H. P. Grice, contemporâneo de Austin e Searle. Tra balhos posteriores que analisam questões relacionadas às interações sociais fazem uso das descobertas sobre as ações verbais presentes nos estudos desses filósofos, mas incorporam outros conceitos, como o de ideologia, por exemplo, que resultam em uma visão menos ingênua dos falantes e das ações realizadas ao falar.

Texto complementar

Teoria dos atos de fala

(FIORIN, 2002, p. 141-186)

A Pragmática, tal como a conhecemos hoje tem início quando Austin começa a desenvolver sua teoria dos atos de fala. Até então, a Lingüística pensava que as afirmações serviam para descrever um estado de coisas e, portanto, eram verdadeiras ou falsas. Uma afirmação como O céu é azul de-screve o estado do firmamento e, portanto, o falante pode verificar se ela é verdadeira ou falsa, no momento em que é usada. Austin vai mostrar que a Lingüística se deixava levar por uma ilusão descritiva, pois é preciso distinguir dois tipos de afirmações: as que são descrições de estados de coisa, a que ele vai chamar constativas e as que não são descrições de estados de coisa. São essas que lhe interessam. Toma, então, certos enunciados na forma afirma-tiva, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz aafirma-tiva, com as seguintes características: a) não descrevem nada e, por conseguinte, não são nem verdadeiros nem falsos; b) correspondem, quando são realiza-dos, à execução de uma ação. A essas afirmações vai chamar performativas. Quando se observa uma frase como Ordeno que você saia daqui, verifica-se que o ato de ordenar se realiza, ao se enunciar a afirmação. Por outro lado, uma ordem não é verdadeira nem falsa, ela pura e simplesmente realiza-se.

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São muitos os exemplos de performativos: Declaro aberta a sessão;



Aceito (resposta à pergunta

 Aceita essa mulher como sua legítima esposa?,

na cerimônia de casamento);

Prometo que a situação não vai ficar assim; 

Lamento que isso tenha ocorrido; 

Eu te perdôo. 

É preciso observar mais uma coisa sobre os performativos: para que a ação correspondente a um performativo seja de fato realizada, é preciso não somente que ele seja enunciado, mas tam bém que as circunstâncias de enunciação sejam adequadas. Um performativo pronunciado em circun-stâncias inadequadas não é falso, mas nulo, ele fracassou. Assim, por exem-plo, se o irmão da noiva e não o noivo diz aceito, na cerimônia de casamento, o performativo é nulo, porque quem realizou o performativo não é aquele que, nessa circunstância de enunciação, deve realizá-lo. Por isso, Austin vai estudar as condições de felicidade (sucesso)4 e fracasso dos performativos,

ou seja, as circunstâncias de enunciação que fazem com que um performa-tivo seja efetivamente realizado.

As principais condições de sucesso de um performativo são:

a enunciação de certas palavras em determinadas circunstâncias tem, 

por convenção, um determinado efeito. Portanto, as pessoas e as cir-cunstâncias devem ser aquelas convenientes para a realização do enun-ciado em questão. Por exemplo, se um faxineiro, e não o presidente da Câmara, diz Declaro aberta a sessão, o performativo não se realiza, porque o faxineiro não é a pessoa que pode executar a ação de abrir a sessão; por outro lado, se o presidente declara aberta a sessão sozinho no seu gabinete, o performativo não se realiza, porque não está sendo executado nas circunstâncias apropriadas para sua realização;

a enunciação deve ser executada corretamente pelos participantes. O 

uso da fórmula incorreta torna nulo o performativo. Assim, no batismo, é preciso usar a fórmula correta, para que o performativo se realize. Se o padre diz Eu te perdôo em lugar de Eu te batizo, o batismo não ocorre;

4 A expressão “condições de felicidade” do performativo não é uma boa denominação em português. Seria melhor dizer “condições de sucesso”. No

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a enunciação deve ser realizada integralmente pelos participantes. 

Assim, quando um performativo exige outro para ser realizado, é necessário que os dois sejam realizados para que haja sucesso. Por ex-emplo, quando alguém diz Aposto dez reais como vai chover, para que o ato de apostar tenha sucesso, é preciso que o outro aceite a aposta, enunciando a aceitação.

Há duas outras condições para o sucesso dos performativos, que são de natureza diferente, são as que fazem do performativo um ato puramente verbal, vazio. Quando sua enunciação exige que o falante tenha certos sen-timentos ou intenções, é preciso que ele tenha de fato esses sensen-timentos ou intenções. Quando alguém diz Quero exprimir-lhe meus pêsames, sem que sinta nenhuma simpatia pelo pesar do interlocutor, ou Prometo que virei, sem ter nenhuma intenção de vir, o performativo realiza-se, mas não terá sucesso, ou seja, realizar-se-á verbalmente, mas não efetivamente. A promessa será feita, mas o que se prometeu não será realizado; os pêsames serão dados, mas efetivamente o falante não sente nenhum pesar. Por outro lado, na se-qüência dos acontecimentos, o falante que executou um performativo deve adotar o comportamento implicado pelo ato de enunciação. Assim, quando o falante que diz Prometo que virei não vier, a promessa não será efetivada. Ela permanece um puro ato verbal.

Na verdade, do estrito ponto de vista da realização dos performativos na enunciação, as três primeiras condições são mais importantes, porque sua ausência implica que nem sequer se reconheça que o performativo se realizou no ato de enunciação.

Como já foi dito, Austin põe em xeque a ilusão descritiva, quando mostra que há afirmações que descrevem estados de coisas e que podem ser verda-deiras ou falsas – as constativas – e afirmações que não descrevem nada, mas pelas quais se executam atos, que podem ser felizes ou infelizes, ter sucesso ou fracassar – as performativas. Os constativos são verdadeiros se existe o estado de coisas que eles descrevem, e falsos em caso contrário. Os perfor-mativos têm sucesso quando certas condições são cumpridas, e fracassam quando não o são. Em Eu jogo futebol, o fato de jogar independe de minha enunciação; em Eu me desculpo pelo que ocorreu, o fato de desculpar-se de-pende de minha enunciação.

Até agora, estamos trabalhando com performativos indicados por verbos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa na forma

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afirmativa. Assim, Desejo que você venha jantar comigo é um performativo porque a ação de desejar se realiza, no ato de enunciar. Nas outras pessoas, nos outros tempos, nos outros modos, não haveria performativos, mas constativos. Com efeito, quando se diz Ele ordena que ele saia ou Eu ordenei que ele saísse, o que temos são constativos que descrevem a realização de um performativo por uma terceira pessoa ou por mim mesmo num tempo passado. No entanto, a questão não é tão simples assim. Há performativos que se realizam de maneira diferente dos que vimos mostrando até agora. Observem-se os exemplos:

Proibido fumar; 

Os senhores estão autorizados a falar em meu nome; 

Os alunos foram advertidos de que os que não fizerem matrícula na 

data determinada perderão sua vaga.

Nesses casos, realizam-se os performativos da proibição, da autorização e da advertência, sem que sejam utilizadas as formas proíbo, autorizo e advirto. Poder-se-ia então pensar que o modo, o tempo e a pessoa não bastam para saber se um performativo existe, mas que certas palavras, como proibido,

autorizado, advertido, seriam necessárias para que eles se realizassem.

En-tretanto, pode haver performativos sem que apareçam no enunciado pala-vras relacionadas ao ato a ser executado e, ao mesmo tempo, podem estar presentes no enunciado palavras correspondentes ao performativo, sem que ele se realize. Assim, em Curva perigosa, existe um performativo de ad-vertência, mas em Você tinha mandado o aluno ficar quieto não há performa-tividade, apesar da presença do termo mandado.

Austin abandona a idéia de que possa existir um teste puramente lingüís-tico para determinar a existência do performativo e volta à própria definição do performativo, ou seja, ele é a realização, ao enunciar, de um ato pelo fal-ante. Quando se observam enunciados como Saia e Ordeno que você saia. Eu

virei amanhã quer dizer Prometo que virei amanhã. É proibido fumar significa Eu proíbo fumar, pois existe alguém que é responsável pela proibição. Assim,

um enunciado será performativo quando puder transformar-se em outro enunciado que tenha um verbo performativo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa. Os enunciados que não contêm um verbo performativo na pessoa, no tempo, no modo e na voz indicados serão chamados performativos implícitos; os que têm o verbo na forma mencio-nada serão denominados performativos explícitos. [...]

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Estudos lingüísticos

Leia o trecho a seguir, que é parte de uma crônica em que João Ubaldo Ribeiro relembra episódios relacionados ao exame vestibular “do seu tempo”, quando os candidatos eram submetidos a uma prova oral diante de uma platéia.

O verbo “for”

(RIBEIRO, 2000, p. 20)

[...]

Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas.

A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas 10 linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada.

Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra “for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

− Esse “for” aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me en-carou sorridente.

− Verbo for. − Verbo o quê? − Verbo for.

(15)

− Eu fonho, tu fões, ele fõe − recitou ele, impávido. − Nós fomos, vós fondes, eles fõem.

[...]

A partir dos elementos fornecidos pelo autor nessa crônica, identifique:

1. Qual é o ato ilocucionário realizado pelo professor quando se dirige ao can-didato com a frase: Esse “for” aí, que verbo é esse?

2. Quais são as condições de felicidade para a realização desse ato ilocu-cionário?

(16)

3. Qual é o ato ilocucionário realizado pelo professor quando se dirige ao can-didato com a frase: Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

4. Quais são as condições de felicidade para a realização desse ato ilocu-cionário?

5. Qual é o ato perlocucionário realizado a partir da frase do professor:

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Referências

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