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Análises sobre as condições de possibilidade para a incorporação do diagnóstico de transtorno bipolar no escopo da psiquiatria infantil

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Análises sobre as condições de possibilidade para a

incorporação do diagnóstico de transtorno bipolar

no escopo da psiquiatria infantil

ANA CAROLINA WELTER

1*

SANDRA CAPONI

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Vivemos em uma sociedade em que imperam as tecnologias, globalizada, onde se estabelecem novas formas de organização do cotidiano das pessoas e das cidades, desde o trabalho até as relações interpessoais. Neste contexto, nos deparamos com um problema e um fenômeno crescente, o da medicalização da vida (AGUIAR, 2004), de forma que aspectos fundamentais do ser humano, como nascimento e morte, sexualidade, adormecer e despertar, elementos da perso-nalidade como o humor, timidez, insegurança, encontram-se sob a égide deste fenômeno. É intrigante o fato de que poucos momentos da vida não entrem no amplo leque da medicalização e passem despercebidos deste processo (CAPONI, 2012; CONRAD, 2007).

Ao direcionamos o olhar para infância, fica evidente que a psiquiatrização de comportamentos disformes pode se iniciar já nos os primeiros anos de vida, visto que tornou-se mais frequente o tratamento com medicamentos psicotrópicos em crianças antes mesmo do ingresso no sistema escolar propriamente dito. Este processo, que já vinha se delineando nos DSM III e IV, ganhou mais força a partir do DSM-5, que apagou as fronteiras entre diagnósticos infantis e adultos. Assim, legitima-se o diagnóstico de transtornos antes reservados aos adultos já na in-fância, assim como o contrário, diagnosticar adultos com transtornos antes tidos como infantis, em adultos, como o TDAH (CAPONI, 2016). É aqui que nos dete-mos sobre o campo da medicalização da infância, um problema que para esta

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Uni-versidade Federal de Santa Catarina.

* O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-co e TecnológiCientífi-co – CNPQ (bolsa de doutorado) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (bolsa doutorado sanduíche).

2 Orientadora. Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

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pesquisa tem uma importância crescente, uma vez que nos referimos a seres em que o desenvolvimento tanto físico quanto psíquico ainda não foram finalizados.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da As-sociação Americana de Psiquiatria (APA) considera o Transtorno Bipolar um diag-nóstico grave, porém comum, um dos transtornos de humor mais diagnosticados na comunidade, ao lado do Transtorno Depressivo Maior. É considerado por este manual como uma ponte entre os diagnósticos de depressão e a temida esqui-zofrenia, responsável pelas mais elevadas taxas de suicídios entre os transtornos mentais, além de sérias prejuízos no funcionamento social, pessoal ou profissio-nal, muitas vezes com a necessidade de hospitalizações para prevenir danos a si e aos outros. O Transtorno Bipolar I, sua forma mais clássica, é caracterizada por um episódio de mania, com sintomas de humor anormalmente elevado ou irri-tável, com duração de pelo menos uma semana, e ainda outros sintomas como grandiosidade, necessidade de sono diminuída, aumento da necessidade de fala, envolvimento excessivo em atividades prazerosas porém com alto potencial de causar dano (APA, 2014).

A prevalência da bipolaridade atualmente é estimada em 6,4% da população mundial ao considerar todas as suas variações. Atualmente falar de bipolaridade tornou-se algo corriqueiro, ao nos referirmos à descrição da personalidade de uma pessoa, ou para explicar certos comportamentos indesejáveis (APA, 2014; LEADER, 2015). No entanto, esta já foi considerada uma condição muito rara, constituindo apenas um punhado daqueles internados nos asilos psiquiátricos do século XIX, e muito pouco reconhecidos até a década de 1980 (HEALY, 2008).

A partir de 1976 começam a aparecer alguns ensaios sobre os possíveis sin-tomas do transtorno bipolar na infância, mas é somente no ano de 1995 que se verifica um aumento do número de casos nos EUA, e crianças passaram a receber diagnósticos de transtorno bipolar. Como consequência, o efeito do en-quadramento em uma categoria psiquiátrica requer, segundo o pensamento da psicobiologia, a necessidade de prescrições de medicamentos psicotrópicos que têm a finalidade de corrigir sintomas e comportamentos, provocados por um entendimento biológico sobre desequilíbrios químicos no cérebro que precisam ser devolvidos à normalidade pela ação de tais medicamentos que atuam so-bre receptores cerebrais. Medicamentos como estabilizadores do humor como lítio, carbamazepina, ácido valpróico, e antipsicóticos atípicos como risperidona, quetiapina e outros anticonvulsivantes como a lamotrigina foram prescritos a crianças, inclusive com idade pré-escolar, resultando em verdadeiros coquetéis de drogas, com sérios efeitos adversos que podem resultar, inclusive, em morte súbita. Até então, o diagnóstico de transtorno bipolar em crianças era pratica-mente impensável, de forma que era aceitável que em raros casos poderia haver início dos sintomas, como um episódio depressivo ou maníaco a partir de mea-dos ao final da adolescência. Em um estudo conduzido nos EUA pela análise de hospitalizações de crianças diagnosticadas com transtorno bipolar, verificou-se que em 1996 a taxa de internação era de 1,3 a cada 10.000 crianças

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hospitali-zadas, enquanto que em 2004 esta taxa subiu para 7,3 a cada 10.000 crianças hospitalizadas (BLADER; CARLSON, 2007). Com o aumento de casos, o discurso veiculado pela mídia, pela indústria de medicamentos e pela própria psiquiatria era de que as pesquisas científicas estavam começando a provar que o transtorno bipolar poderia começar muito cedo e que a prevalência seria maior do que se havia suposto (HEALY, 2008; WHITAKER, 2010).

Segundo Robert Whitaker, esta nova possibilidade diagnóstica na infância foi possível, em grande parte, pela prescrição de estimulantes e antidepressivos para o tratamento de crianças diagnosticadas com TDAH, depressão, entre outros, originando um transtorno iatrogênico induzido pelos medicamentos. Segundo dados levantados em sua pesquisa, a maioria das crianças diagnosticadas com transtorno bipolar primeiramente são diagnosticadas com outro transtorno, sen-do o TDAH um sen-dos exemplos mais marcantes. O tratamento preconizasen-do para crianças diagnosticadas com transtorno bipolar são antipsicóticos atípicos como a risperidona e estabilizadores do humor (WHITAKER, 2010). Estes medicamentos tem sérios efeitos adversos, como aumento expressivo de peso; problemas renais, da tireóide e cardíacos; cansaço, dores de cabeça, náusea, tremores, hiperglice-mia entre muitos outros. Mais recentemente, a eletroconvulsoterapia (ECT) vol-tou a ser utilizada como possibilidade terapêutica, sendo amplamente promovida como resposta aos pacientes que não respondem aos tratamentos convencionais com medicamentos (DESSEILLES; PERROUD; GROSJEAN, 2017; GEORGE, 2010).

O problema que se coloca aqui é levantado por diversos autores, como Ro-bert Whitaker (2010), que advoga quanto a uma epidemia de transtornos mentais provocada justamente pelo uso de medicamentos psiquiátricos. O autor demons-trou (utilizando-se em grande parte de pesquisas provenientes da Medicina Base-ada em Evidências – o padrão ouro da pesquisa científica médica), o crescimento acelerado do modelo biológico organicista que rege até a atualidade um paradig-ma de cuidado baseado em medicamentos psicotrópicos. Ao investigar acerca de pesquisas e estudos científicos realizados na área da psiquiatria sobre o uso crôni-co de medicamentos psicrôni-cotrópicrôni-cos, evidenciou o surgimento do que chamou uma “epidemia de doenças mentais incapacitantes” (p. 29), com origem precisamente nos efeitos iatrogênicos dos medicamentos utilizados no seu tratamento.

O discurso hegemônico da psiquiatria biológica quanto à etiologia, o diag-nóstico e o tratamento de transtornos mentais é amparado por um paradigma de cuidado centrado em medicamentos psicotrópicos, que contribui para a emergên-cia de quantidades cada vez maiores de diagnósticos (WHITAKER, 2010). Joanna Moncrieff (2013) alerta para o fato de que o modelo de ação dos medicamentos psicotrópicos aceito atualmente é aquele centrado na doença, ou seja, veicula-se a ideia de que atuam sobre desequilíbrios químicos no cérebro. Entretanto, este modelo não foi comprovado cientificamente, de forma que sua aceitação é fruto de uma ação combinada de interesses profissionais, comerciais e políticos, e de-fende que é necessário reavaliar as bases sobre as quais estes medicamentos são utilizados. A hipótese que levantam autores como Peter Breggin (2008), Joanna

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Moncrieff (2013) e Robert Whitaker (2010) é que, efetivamente, medicamentos psicotrópicos mais frequentemente do que se gostaria de acreditar, agravam ou causam transtornos psíquicos.

Em um artigo publicado no site da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos, afirma-se que um estudo epidemiológico na Universidade do Rio Grande do Sul encontrou uma prevalência de 7,2% de trans-torno bipolar em uma amostra de 500 crianças (PALMA, 2019). Agora, crianças muito pequenas, com apenas 1 e 2 anos de idade (GLOVINSKY, 2002) começam a preencher critérios diagnósticos para um transtorno bipolar, e recebem tratamen-tos com psicofármacos que se baseiam em evidências de tratamentratamen-tos em adultratamen-tos, visto que são muito poucas as pesquisas envolvendo crianças e o tratamento com psicofármacos (BLADER; KAFANTARIS, 2007). A partir deste contexto apresenta-se a pergunta principal desta pesquisa: A partir de quais eventos e com base em que tipo de argumentos atualmente é possível falar em uma explosão de diagnósticos de transtorno bipolar em crianças, uma doença mental que até pouco tempo atrás era considerado raro até mesmo em adultos e que requer, segundo o modelo bio-logicista da psiquiatria um tratamento com psicofármacos?

São muitos os fatores que colaboram e colaboraram para o status quo da sociedade no que concerne aos movimentos relacionados à medicalização, aqui mais precisamente enfatizada a medicalização e a psiquiatrização da infância, problematizada nesta tese a partir do transtorno bipolar infantil. Assim, o objeti-vo deste trabalho está centrado na verificação dos argumentos e das condições de possibilidade para a incorporação do diagnóstico de transtorno bipolar no escopo da psiquiatria infantil.

Este trabalho é um extrato da tese da autora, onde a hipótese que se pretende demonstrar é que, um dos fatores que promoveu a incorporação do transtorno bipolar como uma possibilidade diagnóstica para crianças, derivou de um efeito iatrogênico decorrente do tratamento de crianças com diversas condições pree-xistentes (TDAH, depressão, transtornos de ansiedade, entre outros) ou com com-portamentos desviantes, com psicofármacos (como estimulantes como o metilfe-nidato, antidepressivos e ansiolíticos), desencadeando uma série de agravamentos e novos sintomas, que possibilitaram, segundo a lógica psiquiátrica, o enquadra-mento em um novo diagnóstico. Desta forma, pergunta-se: é possível pensar a bipolaridade infantil como resultado de uma iatrogenia psicofarmacológica?

Retomando a crítica através do conceito de medicalização, onde problemas normais do cotidiano passam a ser vistos e tratados como doenças (CONRAD, 2007), colocamos a posição de autores que consideram que a grande maioria das crianças diagnosticadas com TDAH ou outros transtornos ligados ao com-portamento, não apresentam qualquer desequilíbrio químico no cérebro, mas respondem a ambientes tanto escolar, como familiar e social problemáticos (BRE-GGIN, 1991; BRZOZOWSKI; CAPONI, 2012). Se aceitarmos a hipótese de que es-tas crianças inicialmente não apresentavam transtornos mentais, mas resposes-tas

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normais frente a situações difíceis, nos deparamos com um problema ainda maior, uma iatrogenia psicofarmacológica a partir de um problema causado não pela criança, mas pela sociedade.

A psiquiatria desempenha um papel central na produção da medicalização, se apresentando como provedora de um serviço para a comunidade, a partir de uma suposta obrigação social que faz com que disponha de seus saberes e tecnologias para ajudar a “organizar a sociedade”. Desta forma, esta disciplina da medicina, que agiu e age sobre os indivíduos, deixa marcas profundas que moldam o saber e agir das pessoas e instituições, com seus métodos e jogos de força (FOUCAULT, 2002).

Historicamente esta forma de atuar ocorreu também no Brasil, com a pres-crição comportamentos, como as recomendações matrimoniais do psiquiatra Ju-liano Moreira para a prevenção da sífilis, invocando princípios morais que deve-riam reger o matrimônio em prol do bem coletivo da saúde (VENANCIO, 2004). Segundo Lima (2015), em sua análise de periódicos de psiquiatria e psicanálise, na já década de 1970 havia um alinhamento da Revista de Psiquiatria Clínica “no

sentido de ampliar a inserção da psiquiatria na orientação do cotidiano das cida-des” (LIMA, 2015, p. 42). Atualmente estas práticas seguem vigentes no Brasil,

como se verifica com projetos de prevenção de problemas mentais na sociedade a partir da infância, por meio de uma mídia persuasiva, na tentativa de treinar pais e professores, verificando-se um “superdimensionamento do poder de solução dos

fatos da vida” (LIMA; DE CAPONI, 2011, p. 1328). Este processo se baseia no

ar-gumento maior que se explica por evitar a cronificação de patologias mentais, realizado por uma intervenção nos pequenos desvios de conduta, de forma que “seria possível multiplicar a lista de problemas que se transformaram em objeto de intervenção psiquiátrica até incluir a quase totalidade dos assuntos humanos” (CAPONI, 2012, p. 15).

A psiquiatria contemporânea estabeleceu as fronteiras entre o normal e o patológico baseando-se em sintomas para o estabelecimento dos diagnósticos a partir do DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais). Utilizando-se da medicina baseada em evidências e da explicação biológica para os transtornos mentais, se instaurou segundo alguns autores, a partir dos anos 1980 com a publicação do DSM-III, em uma época de crise da hegemonia psi-quiátrica nos EUA (AGUIAR, 2004; MAYES; HORWITZ, 2005). Entretanto, não é possível explicar a psiquiatria descrevendo uma cronicidade de eventos, onde se suporia que uma melhor tecnologia substituiria práticas antigas e que perderam seu valor, dando lugar à psiquiatria como a vemos nos dias atuais. Pelo contrá-rio, a psiquiatria é o resultado de forças que são diferentes entre si, atuando não somente neste saber/espaço como também de forma mais ampla na sociedade. O resultado dessas relações de força dá lugar à emergência de práticas e sabe-res. Desta forma, de acordo com o método genealógico foucaultiano, não se trata de algo como uma verdadeira natureza da psiquiatria biológica que estaria ali, esperando para ser descoberta (AGUIAR, 2004). Caponi (2012) concorda com

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este pressuposto quando aborda e genealogia do conceito de degeneração na história da psiquiatria, afirmando que existem condições de possibilidade para a emergência de saberes e conceitos, que entram no escopo da história, da socio-logia e da política, sofrendo influência dos diferentes contextos.

Segundo Foucault, é impossível pensar a história da psiquiatria dissociada da história da medicina, isto porque é a partir da segunda que a primeira encontra sua legitimidade, mesmo que os modos de diagnóstico sejam absolutamente diferenciados. O autor, em O Poder Psiquiátrico, mostra as aproximações e dis-tâncias destas duas disciplinas, afirmando que a psiquiatria não surgiu como uma especialidade no interior da medicina (FOUCAULT, 2006). Porém, é através da relação para com a disciplina médica no que tange ao hospital, a anatomopato-logia e o nascimento da clínica, que a legitimidade e o prestígio da psiquiatria são estabelecidos. Assim, há diferenças entre hospital e asilo, assim como nas práticas clínicas e estratégias terapêuticas e de diagnóstico (CAPONI, 2012).

É neste cenário que nos encontramos com as questões da medicalização da vida. Segundo Conrad (2007), este conceito repousa na ideia de um processo, de acordo com o qual problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como tais, adquirindo o status de doenças e distúrbios. Este processo possui uma importância social relevante, considerada uma transformação com tendên-cia crescente. Outros autores contemporâneos como Horwitz e Wakerfield (2007), apontam para o mesmo problema, onde comportamentos antes considerados normais passam a ser tratados como patologias que devem receber tratamento farmacológico, de forma que a psiquiatria ignora a distinção do que é um so-frimento normal e o que se trata de um transtorno comportamental, ou seja, a distinção entre o normal e o patológico.

A fim de trazer mais dados para a problematização, enfatizamos a conhecida ‘virada maníaca’ induzida por substâncias ilícitas e medicamentos antidepressi-vos, estimulantes ou outros tratamentos para o transtorno depressivo, como a eletroconvulsoterapia. Neste contexto, o paciente em tratamento antidepressivo é acometido por um episódio maníaco ou hipomaníaco precipitado pelo medi-camento ou eletrochoque. Este fenômeno aparece no DSM-5, que enfatiza uma urgência em realizar a diferenciação entre o diagnóstico de transtorno bipolar e aquele induzido por uso de substâncias, isto porque, segundo o manual, existe uma reposta fisiológica esperada ao medicamento de sintomas maníacos, não podendo estes serem referenciados para um diagnóstico de transtorno bipo-lar. Entretanto, não há um código para referenciar transtorno bipolar induzido por antidepressivos, como existem para outras drogas, como por exemplo álcool (F10.14); alucinógeno (F16.14); sedativo, hipnótico ou ansiolítico (F13.14); anfe-tamina (ou outros estimulantes) (F15.14); cocaína (F14.14); outra substância (ou substância desconhecida) (F19.14) (DSM-5, 2013, p. 142-143).

Existe uma ressalva importante no DSM referente ao uso de antidepressivos e o diagnóstico de transtorno bipolar, evidenciando uma tendência a preferir o diagnóstico do que atribuí-lo aos efeitos fisiológicos do medicamento:

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Uma exceção importante ao diagnóstico de transtorno bipolar e transtorno relacio-nado induzido por substância/medicamento é o caso de hipomania ou mania que ocorre após uso de medicamento antidepressivo ou outros tratamentos e persiste além dos efeitos fisiológicos do fármaco. Essa condição é considerada indicadora de transtorno bipolar real, e não de transtorno bipolar e transtorno relacionado induzido por substância/medicamento. Da mesma forma, os indivíduos com epi-sódios maníacos ou hipomaníacos evidentes induzidos por eletroconvulsoterapia que persistem além dos efeitos fisiológicos do tratamento são diagnosticados com transtorno bipolar, e não com transtorno bipolar e transtorno relacionado induzido por substância/medicamento (APA, 2014, p. 144). (grifo nosso)

Verifica-se a preferência por utilizar o diagnóstico de bipolaridade, corrobo-rando a ideia de persistência do transtorno. No entanto, não se realiza nenhuma problematização quanto à possibilidade de iatrogenia de antidepressivos e outros tratamentos físicos. Em um livro intitulado “Manuel du bipolaire” (DESSEILLES; PERROUD, GROSJEAN, 2017), dirigido a pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar ou que acreditam estarem acometidas pelo transtorno, a orientação é de que, se houver história familiar de transtorno graves ou história pessoal de sinto-mas semelhantes à mania ou hipomania, deve-se proceder ao diagnóstico e não atribuir o estado do paciente a um problema originado pelo medicamento.

Quanto ao diagnóstico de transtorno bipolar no DSM-5, considerado um transtorno grave, até mesmo uma ponte entre a depressão e a esquizofrenia, os critérios para o diagnóstico em crianças são altamente flúidos, de forma que os contornos com eventos normais da infância são borrados: “felicidade, tolice e ‘estupidez’ são normais no contexto de ocasiões especiais; se esses sintomas são recorrentes, inadequados ao contexto e além do esperado para o nível de desen-volvimento da criança, podem satisfazer o critério A” (APA, 2014, p. 127).

Para os fins deste trabalho, nos deteremos sobre os discursos da psiquiatria biológica sobre os transtornos mentais da infância quanto à etiologia, o diag-nóstico e o tratamento dos ditos transtornos, com enfoque mais preciso sobre o paradigma de cuidado centrado em medicamentos psicotrópicos. Desta forma, esta tese pretende situar em uma perspectiva histórica os momentos que possibi-litaram o surgimento do Transtorno Bipolar Infantil, sua aceitação e multiplicação dos diagnósticos observados atualmente a partir de estudos epidemiológicos.

Para responder às questões desta tese, teremos como marco teórico os con-ceitos baseados na medicalização da vida segundo Peter Conrad, por conta da relação entre a fluidez do diagnóstico de transtorno bipolar e pelo apagamento de fronteiras promovido pelo DSM-5, entre os diagnósticos de crianças e adultos, assim como pela disseminação da quantidade de crianças diagnosticadas.

A noção de iatrogenia clínica será essencial pois há relações estreitas com os episódios maníacos, isto porque desde a década de 1970 é conhecida a vira-da maníaca provocavira-da por substâncias exteriores ao corpo, como drogas ilícitas como a cocaína e outros estimulantes, assim como medicamentos como antide-pressivos e psicoestimulantes como o metilfenidato.

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Estes dois conceitos se inter-relacionam com o conceito de risco de Michel Foucault, que desenvolve uma compreensão mais ampla a partir da noção de risco, biopolítica e governamentalidade. Estas três vertentes nos ajudarão a pro-blematizar o diagnóstico do transtorno bipolar na infância a partir do discurso hegemônico que enfatiza a necessidade da identificação precoce dos sintomas, de forma que o diagnóstico de bipolaridade pode ser visto como um dispositivo da sociedade de segurança.

Os caminhos percorridos se deram em quatro etapas. Primeiramente, a partir de uma perspectiva genealógica, foram percorridos os caminhos históricos do diagnóstico do transtorno bipolar adulto, que serviram de apoio para entender quais eventos puderam marcar o surgimento do diagnóstico de bipolaridade na infância. Em seguida, seguindo a abordagem histórica, verificou-se o papel dos medicamentos, principalmente o lítio e o ácido valproico, como possibilitadores da solidificação do diagnóstico tanto em adultos como em crianças. O papel da mídia também é aqui analisado por seu papel intrincado com o aparecimento da terapia medicamentosa. A terceira etapa traz uma problematização dos efeitos adversos dos medicamentos normalmente utilizados no tratamento do transtor-no bipolar infantil e da implicação da virada maníaca como possibilitadora de precipitação de episódios maníacos, baseando-se em autores como Robert Whi-taker, Peter Breggin e Joanna Moncrieff. Por fim, a quarta etapa parte de uma problematização do diagnóstico de transtorno bipolar infantil, explorando suas fragilidades epistemológicas, com base em autores como Sandra Caponi, Michel Foucault, assim como os demais autores já citados neste texto.

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