• Nenhum resultado encontrado

cemitério e a cidade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "cemitério e a cidade"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

PAISAGEM E PATRIMÔNIO CULTURAL:

um diálogo entre o

cemitério e a cidade

ALMEIDA, MARCELINA G.

Universidade do Estado de Minas Gerais. PPGD

Av Presidente Antonio Carlos, 7545 8º andar, São Luiz,Belo Horizonte/MG, Cep. 31270-010 almeidamarcelina@gmail.com

RESUMO

Reconhecendo que todo ambiente terrestre pode ser compreendido como uma paisagem, pretende-se nesse artigo analisar os significados incorporados pelo Cemitério do Bonfim incorporado à cidade de Belo Horizonte. Inaugurado no final do século XIX, o cemitério é parte integrante do projeto que resultou na construção da nova capital do Estado de Minas Gerais. O planejamento da nova cidade se enquadra ao modelo de urbanização e ordenação do espaço que se consagrava no mundo ocidental, naquela ocasião. Neste sentido, a capital era a concretização e tradução das transformações urbanas experimentadas, em várias cidades, no mundo, naquela ocasião e, no caso particular do espaço fúnebre, sua inserção na topografia, na paisagem construída da metrópole era uma resposta ao pensamento urbano do contexto. Deste modo, considera-se a necrópole belo-horizontina como uma paisagem cultural ou antrópica, ou seja, expressa em sua configuração, localização e acervo, um espaço significativo da atividade humana. São estas questões que serão apontadas neste diálogo entre o cemitério, a cidade e a paisagem do qual fazem parte e ajudam a compor o cenário urbano e suburbano da cidade que se cristaliza em múltiplas histórias reais e imaginárias.

(2)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

INTRODUÇÃO

A proposta desse artigo é refletir sobre a compreensão do Cemitério do Bonfim como uma paisagem cultural, inserido no tecido urbano da capital belo-horizontina e nele incorporando significados e sentidos singulares para entendimento da história da cidade, bem como ampliando o debate para os debates que estão sendo construídos no tocante à categoria paisagem.

O texto foi construído tomando como base metodológica a análise bibliográfica pertinente aos temas: paisagem, paisagem cultural e o cemitério, bem como a pesquisa de campo, no tocante a identificação das características do espaço cemiterial.

Estruturalmente, o texto se encontra articulado em três tópicos, o primeiro deles, intitulado “Paisagem e paisagem cultural” apresenta uma breve conceituação do entendimento que se possui acerca do termo paisagem e seu desdobramento como paisagem cultural; o segundo nomeado como “O cemitério” destaca a história da necrópole mineira e destaca sua articulação com a cidade e finalmente no terceiro e último tópico denominado “Paisagem cultural e Cemitério” são estabelecidos o debate e entrelaçamento entre os dois conceitos e sua aplicação na realidade analisada.

São esses os direcionamentos do artigo que pressupõe ser possível articular o sentido da espacialidade ocupada pelo Cemitério do Bonfim no contorno que ocupa, na cidade de Belo Horizonte, os significados e importância que ocupa a partir de sua história, tradição, acervo e sua integração como paisagem cultural.

Paisagem e paisagem cultural

O conceito de paisagem tem sido apropriado e debatido por diversas áreas de conhecimento tais como as artes, geografia, arquitetura, ecologia, arqueologia e história. De acordo com o geógrafo Rafael Winter Ribeiro, esse múltiplo uso apresenta algumas peculiaridades e afirma:

Embora haja um pequeno denominador comum, cada uma dessas disciplinas se apropria do temo de maneira diferenciada, conferindo a ele significados bastante diversos. [...] cada uma dessas disciplinas apresenta internamente correntes de pensamento que tratam do conceito de paisagem, teórica e metodologicamente, de maneiras bastante distintas. Tudo isso torna a noção de paisagem extremamente polissêmica e alguns críticos negam mesmo seu valor como um conceito científico em função de sua polissemia e subjetividade. (Ribeiro, 2007, p.14)

(3)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

E assim, conscientes do caráter plural, complexo e múltiplo do conceito e de suas aplicações, procura-se encontrar uma definição e compreensão possível para a palavra. Entende-se que a paisagem, estando relacionada ao ambiente natural ou ao ambiente construído, está intimamente ligada às relações que se estabelecem com o ser humano e a sociedade na qual se situa.

Compreende-se que paisagem se relaciona com o visual, com o espaço e o visível e absorve, em sua gama de significados elementos que perpassam pelos aspectos naturais e culturais e ao mesmo tempo interrelacionando com temporalidades, deslocando e interagindo com elementos que atravessam o presente, se estruturam no passado e projetam-se para o futuro. A paisagem, qual seja, expressa marcas e registros que, como já foi considerado, podem ser naturais ou culturais, construídos a partir da interferência humana. Entende-se que todo o ambiente terrestre pode ser considerado uma paisagem e aqui nos interessa refletir, um pouco mais, sobre a paisagem cultural.

Paisagem cultural

É comum entre os estudiosos considerar a premissa de que coube ao geógrafo norte-americano Carl Ortwin Sauer (1889-1975), pesquisador na Escola de Berkeley situada na Califórnia, a cunhar o termo cultural landscape (paisagem cultural), tendo desenvolvido suas reflexões acerca da interações e transformações que o homem provoca no ambiente e na paisagem que habita. As reflexões foram traduzidas em sua obra intitulada The

Morphology of Landscape ( Morfologia da paisagem), datado de 1925. (Costa e Gastal,2010;

Weissheimer,2012)

Os estudos realizados por Sauer apontam os caminhos para a constituição da geografia cultural, valorizando e atentando para a importância das relações entre o homem e o ambiente, destacando inclusive a necessidade de se compreender que, na cadeia de alterações e transformações, o elemento humano é o último que promove as alterações mais significativas e contundentes na superfície habitada do planeta Terra. E é nesse contexto que emerge, com toda força o conceito de paisagem cultural.

Sobre essa questão pesquisadora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Naiconal, IPHAN, Weissheimer (2012, s/p) considera:

Desde a primeira definição de paisagem cultural proposta por Carl Sauer no início do século XX [...] e até o presente, muitos foram os conceitos utilizados para definir ou mesmo polemizar sobre a relação estabelecida entre o homem e o planeta Terra. No seu âmbito acadêmico-científico, a evolução do conceito de paisagem cultural (ou mesmo o seu total esvaziamento)

(4)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

continuará, provavelmente, sendo alvo de discussões, ressignificações, novos estudos e de variadas propostas de aplicação.

Ou seja, a conceituação e compreensão do significado do termo paisagem cultural alimentam discussões e debates tanto no que tange à definição precisa, bem cooomo sua relação e conexão com as dimensões plurais a que pode se referir. A pesquisadora destaca, então, a aplicação do termo na prática patrimonial e afirma:

[...] a partir do lançamento da Portaria 127/09, a Paisagem Cultural Brasileira passou a ser definida como uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. (Weissheimer,2012, s/p)

Sob seu ponto de vista a conceituação apresentada no texto da chancela para a paisagem brasileira, embora ampla e destituída de categorizações para o quê se entende por paisagens culturais, agora no plural, tem o mérito de permitir a inclusão de espaços, territórios e paisagens as mais diversas e inseridas em contextos diversos à possibilidade de serem reconhecidas como paisagens culturais. E é nesse sentido e no curso desse debate que se pretende inserir a paisagem cemiterial e de modo particular, o Cemitério do Bonfim.

O Cemitério

Belo Horizonte nascida na virada do século XIX apresentou-se como uma proposta nova em relação a tudo aquilo que havia sido o Arraial do Belo Horizonte, local escolhido entre tantos outros e sobre o qual foi erguida a nova capital. Esta proposta perpassou pela composição estilístico-arquitetônica das ruas e prédios, bem como o perfil de seus moradores que além de serem novos e modernos, como a cidade, deveriam possuir novos hábitos e comportamentos naquilo que se relacionava ao convívio social. E neste convívio inclui-se a morte e consequentemente o cemitério.

Concebida dentro dos pressupostos republicanos a rejeição aos valores tradicionais de feição colonial eram a tônica e nesse sentido o hábito de sepultar os mortos nos adros dos templos foi terminantemente proibidos e novos espaços foram a eles destinados. As medidas tomadas pela Comissão Construtora da Nova Capital de Minas Gerais no tocante à desativação dos sepultamentos eclesiásticos foram orientações significativas para a efetivação do projeto que culminou na construção da capital. Em relatório redigido em 1894, um membro da Comissão, considerava:

Na frente [Matriz] fica-lhe um cemitério, fechando um pequeno adro, de 10 metros em quadro, cuja terra empapassada de óleo humano e entremeada de ossos, está accusando a excessiva quantidade de cadáveres, que tem recebido, em desmarcada proporção com sua capacidade. Ahi a abertura de uma cova tórnara-se um espetáculo à desoccupados curiosos para triste contemplação de quatro ou cinco ossadas juntas, ao que poz logo termo a

(5)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

Commissão construindo um cemitério provisório em logar afastado, pouco depois de sua installação (LEAL, 1895, p.13)

Vale acrescentar que esta decisão já havia sido determinada através da Lei Imperial de 1º de outubro de 1828, mas não tinha se concretizado efetivamente até então. As normas da Comissão Construtora possuíam significados simbólicos especiais: era a civilização dos costumes. E o Cemitério do Bonfim nasceu como parte desse projeto civilizador. Nele pode-se antever a mentalidade moderna /burguesa que norteou os princípios fundadores da capital, através da avaliação de sua arquitetura, do artista-artesão que nele trabalharam e especialmente da arte tumular que nos permite enxergar signos e símbolos que revelam a contradição as facetas diversas da sociedade na qual se insere.

No final dos oitocentos o Arraial do Belo Horizonte, antigo Arraial do Curral Del Rei1, era uma simples aldeia, cuja paisagem era composta por ruas tortuosas cobertas pela poeira vermelha ou pela lama pegajosa e escorregadia, dependendo das intempéries do tempo. Delineando estas ruas era possível visualizar pequenas casas coloniais espalhadas desordenadamente em torno da antiga Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, prédio mais importante da localidade, para onde convergia toda a vida cultural do pacato arraial. Era o ponto de referência para quem nele chegava.

Assim pode-se constatar no depoimento de Alfredo Camarate (1840-1904), arquiteto-engenheiro português, colaborador das atividades desenvolvidas pela Comissão Construtora da Nova Capital, que em 1894, escreveu:

Ao cabo de quatro horas de viagem, muito parecida com as que devem fazer as tartarugas, divisamos a povoação de Belo Horizonte, incrustada numa mata verde - negra e densíssima dentre a qual emergiam os campanários da igreja, construída nas primitivas simplicidades da arquitetura. (CAMARATE, 1985, p.33)

Ao redor da igreja se iniciou a povoação da região situada ao sopé da Serra do Curral, sendo, portanto no entorno da Matriz se constituiu o arraial, interiorizando a presença do templo na vida cotidiana dos habitantes, caracterizando-se como intensa e necessariamente mediadora dos eventos e sentimentos que ali afloraram.

O templo religioso transfigurava-se como o local onde as pessoas se reuniam não apenas para os fins religiosos, mas questões relativas à política, sociedade e economia eram ali tratadas. Afinal uma característica comum às igrejas da no contexto colonial mineira era

1 A capital mineira foi inaugurada com o nome “Cidade de Minas”, entretanto desde o final do século XIX, o Arraial onde foi construída a capital era conhecido como Arraial do Belo Horizonte e, mesmo depois da construção e inauguração da cidade, o nome de batismo não encontrou recepção favorável que o incorporasse.

(6)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

congregar os fiéis ao seu redor, zelar e vigiar suas vidas em todos os sentidos. Na Matriz se realizavam os registros da Guarda Nacional, da compra e venda de terras, hipotecas, pagamentos de dívidas. Cuidava-se da vida dos habitantes da localidade, bem como de sua morte. Controlava a vida cotidiana dos habitantes da pequena aldeia zelando pela vida religiosa: a Quaresma, a Semana Santa, as procissões, a Queima de Judas, os batizados, casamentos, os pequenos e grandes festejos particulares e cotidianos e especialmente da morte. Era na Matriz que se realizavam os sepultamentos, ou seja, à Igreja cabia o cuidado pela vida e pela morte de seus fiéis.

Apesar da prática dos sepultamentos nos espaços sagrados, comuns na Idade Média, ter sido modificada na Europa desde a segunda metade do século XVIII, no Brasil este costume persistiu durante muito tempo. Os sepultamentos no interior dos templos são mantidos até 1831 aproximadamente e apenas no final do século XIX, principalmente nos grandes centros urbanos, este comportamento foi completamente extirpado da vida social.

À época da transferência e construção da nova capital mineira essa questão deveria estar incorporada ao novo projeto que se configurava com a construção da nova cidade e da inserção dos novos comportamentos. As decisões da Comissão estavam em concordância com o espírito da época, especialmente no projeto em andamento que era a construção de uma cidade moderna e além do mais somava se à precariedade com que os mortos eram tratados. É o que se pode perceber no depoimento de Camarate datado de 1894. Ele afirma:

Há só uma coisa que me constrange e comove, no meio de toda esta lufa-lufa necessária, para fazer surgir, do nada uma capital que deve trazer, desde o nascedouro, todos os resultados benéficos das conquistas deste século - é que, de há dois meses para cá, vejo enterrarem - se, numa cova que mal daria, em tamanho, para o corpo de um recém-nascido, cadáveres, sobre cadáveres; desenterrando - se os crânios dos antigos posseiros, ainda trazendo pedaços de pele pegados ao osso, e isto acompanhado do nauseabundo cheiro de cadáveres mal curtidos, de profanações (que não são outra coisa) com os crânios rolando pela terra onde todos pisam; essa terra que dá ingresso ao Templo de Cristo, que entre todos os respeitos que pregou, também pregou o respeito pelos mortos!Afirmam - me que aquele cemitério improvisado fica numa zona que terá forçosamente de ser aterrada e talvez que, por esse motivo o dr. Aarão Reis não entendeu necessário arremeter contra este costume antigo do povo da localidade.Mas, que demônio! Antes de Belo Horizonte ser escolhido para servir de alicerce, para a Nova Capital do Estado de Minas, já era uma localidade sujeita à administração e jurisdição do Brasil; onde, de norte a sul, sempre vi respeitar os que passam e que ficam!Sei que este tristíssimo episódio que, nestes últimos tempos se tem repetido cinco ou seis vezes, pode perfeitamente ser lançado à conta do passado de Belo Horizonte; mas eu, em todo o caso, protesto contra ele, como cristão e como homem e protesto, com a indignação sincera, de quem lhe dói a alma ou o coração de ver, na quietação e repouso da eterna vida, repetir - se essa constante luta dos humanos e que se define singela e eloqüentemente, nesta frase popular: 'tira - te, para que

(7)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

me ponha!' Parece que, em Belo Horizonte, a luta pela vida se prolonga, continua e emenda, na luta pela cova!(Camarate, 1985, p.79-80)

Camarate alardeava indignado contra o tratamento dado aos mortos no Arraial do Belo Horizonte se posicionava como homem de outro tempo e representante de outra cultura. Seu zelo e preocupação em relação aos modelos de civilização e civilidade o faziam condenar aquele tipo de sepultamento onde não se respeitava a individualidade e sequer as regras médico-higiênicas que, na Europa de onde viera, já vinha se tornando uma prática há algum tempo.

Acerca destas questões relacionadas à história do urbanismo, Jean-Louis Harouel (1990) analisando o contexto europeu considera os séculos XVII e XVIII como o apogeu do urbanismo clássico que influenciará os períodos vindouros. Ele aborda os ideais urbanos que caracterizam as mentalidades naquela ocasião, tais como a recusa do gigantismo urbano, calcado no desejo de controle sobre o crescimento das cidades; os imperativos da circulação através de ruas retas e largas destinadas à comunicação e higiene urbana, pois era necessário que o ar, fluido vital, estivesse sempre salubre e purificado. Outra necessidade imperiosa se refere aos locais como ‘matadouros’, curtumes, fundições de gordura, prisões e hospitais afastados para além do espaço urbano. Neste rol também se encaixam os cemitérios, pois outro ideal urbano é a separação entre vivos e mortos. Ele afirma:

Por volta do final do Antigo Regime, a opinião pública não tem mais dúvidas quanto à existência de uma relação direta entre a mortalidade e as exalações provenientes dos cemitérios urbanos e das sepulturas internas às igrejas. Tanto nas pequenas cidades quanto nas capitais, o cemitério torna - se o ‘bode expiatório no qual se cristaliza o medo das doenças e das contaminações’. É certo que o estado de muitos cemitérios não pesa muito a seu favor. Exíguos, sobrecarregados, mal - conservados, geralmente abertos ou mal fechados, o que possibilita que freqüentemente animais venham ali pastar e até cachorros e porcos desenterrem cadáveres, em alguns casos depósitos de imundícies, constituem uma área de lazer para as crianças, um local de encontro para os amantes, um espaço onde os tecelões secam as lãs ou mesmo uma verdadeira via de comunicação. O cemitério é propriedade, portanto, ao menos tanto dos vivos quanto dos mortos, o que aumenta, acredita - se, o risco de contaminação. Em 1776, o rei proíbe os sepultamentos dentro das igrejas e determina a transferência dos cemitérios insalubres para fora das aglomerações urbanas. Mas a aplicação dessa determinação encontra muitas dificuldades, até mesmo rebeliões, pois a maioria do povo continua fiel à mentalidade tradicional herdada pela Idade Média que se baseia numa grande familiaridade com a morte e os mortos. Apesar dessas oposições, assiste - se a numerosas transferências de cemitérios nos últimos anos do Antigo Regime. (Harouel,1990,p.66)

Será contaminado pelas transformações e discussões que se pautavam na Europa desde o setecentos que Camarate irá se expressar ao referir-se à situação dos mortos no Arraial do Belo Horizonte, mas se ele parecia descrente em relação à interrupção do costume, acabou

(8)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

se enganando, pois algum tempo após seu protesto, era criado o cemitério provisório e canceladas, definitivamente, a inumação no adro da velha Matriz. (Almeida,2007)

O cemitério provisório foi preparado pela Comissão Construtora da Nova Capital nos terrenos que hoje estão situados aos fundos do Orfanato Santo Antônio, na confluência das atuais Ruas dos Tamoios e São Paulo. Lá foram realizados desde sua instalação até inícios de 1897, 285 (duzentos e oitenta e cinco) sepultamentos. Este cemitério foi desativado assim que concluídas as obras do cemitério definitivo. (Almeida,2007)

Belo Horizonte nasceu com essa epígrafe: ordem, progresso e civilidade, tendo sido na época batizada com o nome de 'Cidade de Minas'. O propósito de construir a capital em tempo recorde foi cumprido, pelo menos nas aparências, pois obras estavam inacabadas e projetos vitais estavam, apenas, no papel. Apesar de tudo a capital trazia em si uma gama de expectativas e revelações, era o fruto concretizado das transformações que o país vivia naquele final de século. A instauração do regime republicano e a idéia de uma nova nação se cristalizavam na concepção daquele novo espaço urbano. Para promover a mudança foi composta uma Comissão de Estudos que tendo o engenheiro civil Aarão Reis (1853-1936) na chefia, se encarregou de analisar e indicar, dentre os diversos sítios concorrentes, qual deles prestaria à construção de uma cidade que primasse pela absorção e revelação de todo o progresso e conforto que o século XIX preconizava.2

Apresentando relatórios que denotavam suas concepções político-ideológicas que tinham no positivismo seu alicerce, especialmente na ideologia de que a indústria e a ciência eram o signo do futuro e assim a lógica, a matemática eram as respostas para os problemas da humanidade, Aarão Reis submeteu ao Congresso sua avaliação na qual indicava a Várzea do Marçal em primeiro plano, seguido do Arraial do Belo Horizonte. Numa votação apertada o Congresso Mineiro optou pelo Arraial do Belo Horizonte e assim teve início à construção da nova capital. 3

2

Aarão Leal de Carvalho Reis nascido no Pará e falecido no Rio de Janeiro era engenheiro, arquiteto e urbanista. Estudou na Escola Central do Rio de Janeiro (Escola Politécnica) onde obteve os títulos de engenheiro - geógrafo, bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas e engenheiro civil. Foi professor, jornalista, ocupou cargos públicos importantes, além de defender idéias republicanas e positivistas. Em 1895 pediu exoneração do cargo que ocupava na Comissão Construtora da Nova Capital, sendo substituído por Francisco Bicalho.

3

As localidades concorrentes eram Juiz de Fora, Barbacena, Várzea do Marçal, Paraúna e Arraial do Belo Horizonte.

(9)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

A capital mineira planejada e construída entre os anos de 1894 e 1897 é um caso singular para se compreender o processo de modernização urbana em fins do oitocentos. Especialmente porque este processo insere-se contexto internacional, dos debates e dos projetos de reformulação e reordenação do espaço das cidades que se veiculava naquele momento. Arte e técnica são os motores do impulso progressista e modernizador. Para os engenheiros, técnicos e planejadores da cidade foi, basicamente, o universo europeu através das reformas operadas nas cidades de Paris e Viena. Desse modo desde a planta até as construções, o planejamento e delimitação de características eram criteriosamente pensados, pois a ordenação era o princípio, havia lugar para tudo, especialmente os equipamentos necessários no perímetro urbano. Os espaços estavam demarcados e planejados. A organização da cidade impunha aos seus moradores os lugares e os espaços que deveriam ocupar. A grande avenida contornava, delimitando até onde a modernidade urbana deveria alcançar. Camada protetora que abrigaria em seu interior a tão sonhada e feérica cidade com suas ruas desenhadas à régua e compasso, prédios previamente concebidos adotando modelos arquitetônicos e estéticos que pudessem com sua carga simbólica revelar os novos tempos.

Fig. 1 Planta Geral da Cidade de Minas

Fonte: APCBH

Dentro desse novo contexto o arraial desapareceu sob o pó das picaretas em contínuo e laborioso empenho para concretizar os desenhos das pranchetas. E neste mundo de

(10)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

transformações a morte será afastada do centro urbano da capital. Cidade de espaços definidos, todos os habitantes, inclusive os mortos, tiveram seu lugar demarcado na nova capital de Minas Gerais.

As determinações da Comissão Construtora em relação à configuração da cidade são questões significativas para se entender a concepção urbana almejada. Para aqueles que a haviam projetado existia um objetivo claro de tudo controlar e isto se percebe no depoimento de Arthur Azevedo (1855-1908) , jornalista que em visita à capital no início deste século se espantou com a ausência de elementos, lugares, objetos e até seres humanos que pudessem prestar um depoimento do passado. Ele afirma, ao passear pelas ruas da cidade no ano de 1901, que nela faltava a “vetustez”: “[...] era novo, novinho em folha, tudo quanto eu via: as ruas, as casas, os próprios habitantes, pois é raro encontrar ali pessoas velhas”. (Azevedo,1982,p.179) O projeto construtivo da capital mineira pressupunha a renovação, a instauração daquilo que se considerava moderno. Para isto era importante a definição na planta da cidade dos lugares adequados a cada equipamento urbano.E neste sentido que o cemitério municipal foi concebido ocupando um terreno com área aproximada de 170.036 (cento e setenta mil e trinta e seis) metros quadrados, num local conhecido como “Menezes”, distante 650 (seiscentos e cinquenta) metros do perímetro urbano. O local era alto e arejado, de solo seco e argiloso-arenoso, tendo em sua proximidade uma pedreira o que facilitaria a construção.

A localização estratégica do cemitério na planta e paisagem da cidade fornece os subsídios para compreendermos as atitudes mentais da época: deveria ser amplo, arejado, a céu aberto, ocupando espaço suficiente para expansão e absorção dos mortos que a cidade dos vivos, naturalmente iria produzir, sem, contudo perder o caráter de modernidade sob a qual era engendrada.4

Os cantos e recantos da cidade relatam uma cidade nova a ser descoberta. O Cemitério do Bonfim muito revela acerca da vida social, cultural e política da capital.Erguido fora do perímetro urbano o cemitério absorve em seu projeto e concepção o imaginário da cidade a que estava destinado servir. Na realidade abarcava também suas características estilísticas e arquitetônicas. Para isto a equipe de arquitetos e desenhistas da Comissão Construtora da

4

Embora tenha sido inaugurado no final do século XIX, 1897, a regulamentação do cemitério público foi processada através do Decreto nº 1368, datado de 05 de março de 1900, com a aprovação do então Presidente do Estado, Dr. Francisco Silviano de Almeida Brandão (1848-1902).Dividido em 06 capítulos o decreto determina as condições de uso, dimensões, características das sepulturas, enterramentos, transporte de cadáveres, administração do espaço, dos valores a serem cobrados, dentre outras orientações.

(11)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

Nova Capital elaborou plantas e projetos que definiam os aspectos básicos do local, desde o portão principal, casa do zelador e necrotério. Trabalharam nos projetos o eminente José de Magalhães (1851-1899) chefe da seção de arquitetura da mencionada Comissão, além de outros profissionais talentosos que deixaram seu registro em vários espaços da capital mineira.5

Fig. 2 Detalhe de um túmulo do Cemitério do Bonfim e ao fundo a Serra do Curral e a cidade de Belo Horizonte

Fonte: Zé Rocha

O século XIX trouxe os cemitérios à topografia das cidades, inaugurando novas atitudes e comportamentos do homem perante a morte. E estas mudanças se configuram no Cemitério do Bonfim como parte do projeto republicano-positivista dentro do qual a capital mineira foi idealizada e erguida o cemitério representou sob certos aspectos rupturas significativas em uma sociedade tradicionalmente calcada na religião.

5

O Museu Histórico Abílio Barreto guarda em seu acervo os projetos do Cemitério Municipal. Assinam e supervisionam estes projetos, além do já mencionado José de Magalhães, Hermano Zickler, Hermillo Alves, Aarão Reis, Edgard Nascentes Coelho, Pedro Cunha Macedo, Bernardo Figueiredo e Francisco Bicalho.

(12)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

Até a década de 40 o cemitério foi o único cemitério da capital, deste modo, todos eram nele sepultados. Apresenta-se então uma primeira noção de democracia da morte, entretanto se o cemitério encerra todas as classes sociais, revela que as hierarquias eram também mantidas no espaço da morte. Esta manutenção pode ser percebida desde a localização da sepultura, o tipo de material usado na construção do túmulo, dimensão, bem como os ornamentos.Seu traçado arquitetônico obedece à concepção geométrica da cidade. É composto por 54 (cinquenta e quatro) quadras divididas entre duas alamedas principais e diversas ruas secundárias

Fig. 3 Vista alameda principal do Cemitério do Bonfim, ao fundo a imagem do Sagrado Coração de Jesus.

(13)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

O Cemitério do Bonfim é um local pleno de significações que se inserem no campo das crenças, superstições, lendas e verdades. Assim como os prédios, praças e ruas, o cemitério é um lugar imprescindível em toda e qualquer sociedade. É possível ao recuperar a história do cemitério, perceber elementos que determinaram a composição estilística do centro urbano da capital e que acabou por ali se estender. A composição dentro da qual se ergueu a metrópole belo-horizontina se repete na composição da cidade dos mortos. O cemitério é uma paisagem dentro de outra paisagem.

Paisagem cultural e cemitério

A partir do entendimento do conceito de paisagem cultural como o resultado evidente da interação complexa entre a sociedade e os meios naturais, é possível compreender o espaço cemiterial e, em particular, o Cemitério do Bonfim como uma paisagem com essas características.

De acordo com Costa e Gastal (2010, s/p):

[...] a paisagem cultural apresenta-se sob a forma de um sistema. Os objetos que existem juntos na paisagem existem em inter-relação. Constituem uma realidade como um todo que não é expressa pela consideração das partes componentes separadamente. Sua estrutura e função são determinadas por formas integrantes e dependentes, portanto a paisagem apresentaria uma qualidade orgânica.

Ou seja, a paisagem resulta da combinação de diferentes elementos que perpassam pelas questões naturais, biológicas e antrópica, humanas, culturais. A paisagem cultural traduz as transformações e as interações que se estruturam sobre a paisagem natural e assim, a construção da capital mineira e, consequentemente o Cemitério do Bonfim se enquadram nessa compreensão.

A paisagem urbana e cemiterial possuem características funcionais e simbólicas, revelando a transferência de elementos que se perpetuam através das gerações, das crenças, dos modos de agir, dos valores que se constituem e dos saberes que podem emergir a partir dessas paisagens. Tanto a configuração planejada da capital e sua repetição no espaço cemiterial destacam-se como paisagens culturais, merecem a atenção por traduzirem, através de sua história, uma complexa e ao mesmo tempo sutil relação do homem com o meio ambiente natural e, ao simultaneamente, destacam as redes que se constroem a partir de sua inserção e interferência no espaço natural.

(14)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

A cidade cresce, modificam suas ruas, arquitetura, comércio, implica a construção de redes de sociabilidade, abriga sentimentos, emoções, exalta o convívio coletivo, mas torna-se espaço do privado, da violência, do perigo, enfim, a paisagem urbana é um constante e insistente mudar e se transformar. O mesmo se aplica à paisagem do cemitério, pois nele, a despeito das diferenças óbvias, abriga as emoções, os sentimentos e as redes de relações, eventualmente, constituídas na cidade dos vivos.

Nessa perspectiva e diante de tudo que foi exposto entende-se que há o diálogo e enlace entre as paisagens que se configuram na cidade e no cemitério. São paisagens culturais.

REFERÊNCIAS

ABALOS, Iñaki. O que é a paisagem? Arquitextos, ano 05,maio/2004. Disponível em: <

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.049/572/pt> Data de acesso: 02 de

agosto de 2016.

ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Morte, Cultura, Memória: Múltiplas Interseções – Uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados nas cidades do Porto e Belo Horizonte. 2007. 404 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.

___. cemitério do Nosso Senhor do Bonfim:controle e ordenação da morte nos primórdios da capital mineira.Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, nº 1, v. 1,1ª ed, p. 26-58. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noticia.do?evento=portlet&pAc=not&idConteudo=10617 7&pIdPlc=&app=salanoticias > Data de acesso em: 15 de maio de 2016.

AZEVEDO, Arthur. Um passeio a Minas. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, Ano XXXIII, 1982.

CAMARATE, Alfredo (pseud. Alfredo Riancho) Por Montes e Vales. Revista do Arquivo

Público Mineiro. Belo Horizonte, Ano XXXVI, 1985.

COSTA, Luciana de Castro Neves e GASTAL, Susana de Araújo. Paisagem Cultural: Diálogos entre o Natural e o Cultural. Anais do VI Seminário de Pesquisa em Turismo do

Mercosul. Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 9 e 10 de julho de 2010. Disponível

em: <

<http://www.ucs.br/ucs/tplVSeminTur%20/eventos/seminarios_semintur/semin_tur_6/gt03/ar

quivos/03/Paisagem%20Cultural.pdf> Data de acesso: 02 de agosto de 2016.

Decreto nº 1368 de 05 de março de 1900. Regulamento do Cemitério Publico Prefeitura da

Cidade de Minas. Cidade de Minas: Imprensa Official do Estado de Minas, 1900.

FIGUEIREDO, Vanessa Gayego Bello. O Patrimônio e as Paisagens: novos conceitos para velhas concepções? Paisagem e Ambiente: Ensaios. Nº. 32, São Paulo, p. 83-118, 2013. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/paam/article/download/88124/91004> Data de acesso: 02 de agosto de 2016.

(15)

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO

LEAL, Fábio Nunes. O Arraial do Bello Horizonte. In: Commissão Constructora da Nova

Capital.Revista Geral dos Trabalhos.Publicação periódica, descriptiva e estatística feita com autorisação do Governo do Estado sob direção do Engenheiro Chefe Aarão Reis. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & C. 1895. V. I.

MELLO, Ciro Flávio Bandeira de. A Noiva do Trabalho Uma Capital Para a República. In: DUTRA, Eliana de Freitas. (org.) BH Horizontes Históricos. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1996.p.41

RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultura e Patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007. WEISSHEIMER, Maria Regina. Paisagem cultural brasileira: do conceito à prática. Fórum

Patrimônio. Belo Horizonte, V.5, n.2, jul./dez. 2012. Disponível em:

<http://www.forumpatrimonio.com.br/seer/index.php/forum_patrimonio/article/view/116 >

Referências

Documentos relacionados

A democratização do acesso às tecnologias digitais permitiu uma significativa expansão na educação no Brasil, acontecimento decisivo no percurso de uma nação em

Logo, o presente trabalho tem como objetivo geral propor metáforas de interação com o usuário para ferramentas CASE baseadas na tecnologia touch-screen.. Assim, com o

Focamos nosso estudo no primeiro termo do ensino médio porque suas turmas recebem tanto os alunos egressos do nono ano do ensino fundamental regular, quanto alunos

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

segunda guerra, que ficou marcada pela exigência de um posicionamento político e social diante de dois contextos: a permanência de regimes totalitários, no mundo, e o

São eles, Alexandrino Garcia (futuro empreendedor do Grupo Algar – nome dado em sua homenagem) com sete anos, Palmira com cinco anos, Georgina com três e José Maria com três meses.