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AGEMIR BAVARESCO A FENOMENOLOGIA DA OPINIÃO PÚBLICA. A teoria hegeliana

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Academic year: 2021

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AGEMIR BAVARESCO

A FENOMENOLOGIA DA OPINIÃO PÚBLICA

A teoria hegeliana

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SUMÁRIO

ABREVIAÇÕES ... 3

INTRODUÇÃO ... 4

1-OESPÍRITOSUBJETIVO:ACONSCIÊNCIAPRIVADAEPÚBLICADEOPINAR ... 8

1.1 - A consciência do ob-jeto público ... 9

a) O ato de opinar na consciência imediata ... 12

b) A percepção contraditória da coisa pública ... 16

c) O entendimento do jogo de forças do fenômeno público ... 17

1.2 - Da autoconsciência privada para a autoconsciência pública ... 19

a) A autoconsciência desejante imediata: a tendência privada ... 20

b) O combate entre o interesse privado e público na autoconsciência reconhecedora ... 21

Observação: A dialética do privado e do público ... 25

c) A autonomia universal: a afirmação do público ... 30

1.3 - A razão universal ou a consciência pública ... 31

a) A autoconsciência racional ativa: a contradição da ação privada ... 33

b) A ação individual que se torna pública ... 34

2-OESPÍRITOOBJETIVOOUAGÊNESEDOESPÍRITOPÚBLICO ... 38

a) O espírito ético: a contradição entre a esfera privada e a esfera pública ... 40

b) As contradições da cultura na instituição do espírito público burguês ... 46

c) A liberdade absoluta ou a falta de liberdade da mediação e da opinião ... 60

d) A constituição da consciência da opinião pública no interior da esfera pública burguesa... 61

e)Do “ninho de contradições” kantianas à ação moral do burguês... 70

f) O princípio da “publicidade” e a consciência dialética ... 80

3-ACONSTITUIÇÃODAOPINIÃORELIGIOSA... 86

3.1 - As contradições da linguagem religiosa ... 87

3.3 - A consciência religiosa e a opinião comunitária ... 90

4-OSABERDIALÉTICODAOPINIÃOPÚBLICA ... 94

4.1 - O caminho da consciência da opinião para o conceito ... 94

4.2 - O saber da opinião pública ou a estada da consciência no negativo ... 102

5 -A OPINIÃO PÚBLICA E AS TRANSFORMAÇÕES DASESTRUTURAS SOCIAIS E POLÍTICAS ... 105

a) A dialética do público... 105

b) As duas consciências ou as opiniões opostas ... 107

c) Da cultura discutida à cultura consumida ... 110

d) Do Estado constitucional liberal ao Estado social ... 112

CONCLUSÃO ... 115

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APRESENTAÇÃO

Agemir Bavaresco não é nenhum principiante em estudos hegelianos. Já em 2001 publicou na Coleção Philosophia da LPM um livro notável sobre a “Teoria Hegeliana da Opinião Pública” em que trata sobretudo da liberdade de opinião – a liberdade formal de opinar; a liberdade subjetiva de opinar; e a liberdade pública de opinar. Esse livro teve uma Apresentação elogiosa de Bernard Bourgeois, um dos maiores hegelianos na atualidade.

Agora, prosseguindo suas pesquisas sobre a opinião pública em Hegel, apresenta-nos esse novo estudo sobre “A Fenomenologia da Opinião Pública”, tema que já antecipara no livro anterior, na sua seção final.

Na minha opinião, Agemir Bavaresco dá uma contribuição de grande mérito para aos estudos hegelianos entre nós. Felizmente, com a multiplicação de cursos de doutorado em filosofia no Brasil, começam a aparecer estudos de valor sobre a filosofia hegeliana, superando uma tradicional exclusão que pairava sobre o pensamento de Hegel. Pode-se concordar com a opinião, que se tornou proverbial, sobre a obscuridade do pensamento hegeliano. Mas que grande filósofo tem essa clareza didática ou jornalística que se cobra de nosso filósofo do século 19, em pleno clímax do idealismo alemão? De fato, essa famosa obscuridade não é nada que um estudo cuidadoso não possa superar.

Os livros de Agemir Bavaresco, que primam tanto pela fidelidade ao autor estudado, como pela clareza de sua exposição, estão aí para demonstrar o que afirmamos. Isso, é claro, não vai mudar muito o panorama das críticas a Hegel, a maioria delas a partir de uma má compreensão, ou mesmo incompreensão radical do pensamento hegeliano. Como está na moda ser contra a razão, claro que Hegel tem de estar fora de moda, pois ele não fez outra coisa na sua imensa obra do que procurar a razão - essa razão ampliada de que fala Merleau Ponty, “mais compreensiva do que o entendimento”; “Hegel inaugura a tentativa de exploração do irracional e sua incorporação a uma razão ampliada que continua sendo a tarefa de nosso século” (Sentido y sinsentido, p. 23).

No presente livro, Bavaresco dedica-se a uma análise minuciosa desse “fenômeno” que é a opinião pública. E segue um caminho surpreendente:

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“revisita” a Fenomenologia do espírito de Hegel para captar, nas figuras ali expostas, o surgimento desse fenômeno. Partindo do início, ou seja da “Certeza

sensível ou o Isto e o opinar” ( pois com Labarrière toma opinar como equivalente

de “Meinen”) segue todas as figuras da Fenomenologia , consciência, consciência-de-si e razão, detectando a presença da opinião em cada um desses momentos. No “Espírito que é um mundo” faz uma exposição competente do surgimento da opinião pública no mundo moderno. Depois, encontra a opinião pública na Religião, inclusive na Religião revelada. E enfim, no Saber absoluto, e onde se podia imaginar que opinião tinha-se eclipsado ante a “Ciência”, a opinião pública comparece em lugar de destaque.

No capítulo final “A opinião pública e as transformações das estruturas sociais e políticas” Bavaresco faz uma síntese muito interessante da história da opinião pública nesses últimos séculos; aqui os autores de referência são Marx, Stuart Mill e Habermas. Termina dizendo que “a teoria hegeliana da opinião pública demonstra que em todas as transformações socio-políticas a categoria da contradição anima o processo da consciência, afim de fazer emergir a “forma crítica” do saber dialético da opinião no interior de todo conteúdo público”. Enfim na Conclusão tem esta frase esclarecedora de todo o itinerário de seu livro: “A passagem da consciência da opinião simplesmente à consciência da opinião pública, exige a descrição da experiência do público enquanto tal. A consciência da opinião pública é ligada à consciência do espírito público”.

Achei que a tarefa de “apresentar” o livro de Bavaresco exigia que percorresse, embora de modo sumário, os temas de que tratava. Claro que isso não dá uma idéia justa deste trabalho. O livro apresentado tem uma riqueza muito grande de análises, de reflexões penetrantes que partem da base do pensamento hegeliano, mas que vão bem além. Na verdade, o autor demonstra a cada passo que não é um simples comentador, mas também um filósofo, que tem luz própria e um pensamento pessoal, e que dele se podem esperar muitos estudos para

enriquecer a bibliografia filosófica brasileira.

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ABREVIAÇÕES

Enc Enciclopédia das Ciências Filosóficas [trad., B. Bourgeois]

Trad. I: t. I / A Ciência da Lógica Trad. III: t. III / A Filosofia do Espírito

FD Princípios da Filosofia do Direito [trad., R. Derathé]

FE Fenomenologia do Espírito [trad. Labarrière-Jarczyk].

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INTRODUÇÃO

O fenômeno da consciência de opinar quer mostrar a experiência da

consciência privada e pública e a passagem à objetivação que se traduz nas figuras históricas do espírito. O fenômeno da opinião torna-se histórico nas diversas figuras da cultura burguesa no século XVIII. Nesta, aqui, se estabelecem relações contraditórias entre um sujeito burguês face a um ob-jeto público institucionalizado por ele mesmo. A consciência fenomenal carrega a contradição no seu percurso fenomenológico, da mesma maneira que a consciência contraditória das figuras históricas na esfera pública burguesa. Isso nos leva a concluir que a experiência da consciência privada e pública corresponde à matriz lógica da opinião pública, isto é, a contradição.

Na Fenomenologia do Espírito, Hegel descreve o processo da consciência do sujeito que entra em relação com o mundo como um ob-jeto, que ele se dá. O desenvolvimento da consciência e a experiência que esta aqui faz, enquanto relação contraditória entre sujeito e ob-jeto fazem aparecer o fenômeno da opinião num percurso lógico da consciência que se torna um saber dialético, criando no espaço público as condições da afirmação da opinião pública, enquanto tal.

O desenvolvimento do espírito público no século XVIII institucionaliza as estruturas sociais da esfera pública que compreende, de um lado, a esfera privada da intimidade familiar e a sociedade civil, enquanto lugar das trocas de mercadorias e do trabalho social. De outra parte, formou-se uma esfera pública literária, que inclui o mercado dos bens culturais e a expressão da opinião pública. Esta de seu lado funda a esfera pública política. Existe uma dialética do privado e do público, que se manifesta na instituição do espírito público burguês e, no interior deste espírito, constituiu-se a opinião pública.

O percurso lógico da consciência da opinião torna-se o percurso histórico da opinião pública, e a gênese do espírito público encontra-se descrito na formação histórica da esfera pública burguesa, a partir dos contextos históricos próprios do desenvolvimento alemão, francês e inglês no século XVIII e início do século XIX. Na Alemanha, formou-se uma esfera pública crítica de discussão, de dimensão restrita, reunindo um público composto sobretudo de cidadãos e de

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burgueses. O aumento do número de leitores que aí se constata, corresponde à produção de obras, de revistas e de jornais, a multiplicação de editoras e de livrarias, à criação de bibliotecas de empréstimo e sobretudo de sociedades de leitura. A Revolução francesa é o catalisador de um movimento de politização da esfera pública impregnada de literatura e da crítica de arte. Constata-se na França e outros lugures, uma politização da vida social, o impulso da imprensa de opinião, a luta contra a censura e pela liberdade de comunicação pública. Na Inglaterra é o processo de formação de classes, de urbanização, de mobilização cultural e de emergência de novas estruturas da comunicação pública.

A experiência da consciência visa tornar a forma conforme o conteúdo. Todo o percurso fenomenológico da consciência consiste no esforço para superar o dualismo que constitui sua contradição mais íntima. Com efeito, a consciência de opinar faz também a mesma experiência, na medida em que ela quer tornar sua forma adequada a seu conteúdo. Todo o problema da consciência da opinião pública é que ela tem um bom conteúdo - “a verdadeira tendência da realidade, o espírito substancial” - mas lhe falta a forma. Esta , diz Hegel, exterioriza-se de um modo imediato e recolhe, portanto, todas as contingências do mundo e as exprime através de proposições gerais. É por isso que a consciência de opinar tem necessidade de unir esta cisão que a atravessa desde o início até o fim de seu percurso; dito de outro modo, é necessário mediatizar sua forma, para que ela possa exprimir com verdade o conteúdo da opinião pública. O conteúdo, de seu lado, tem necessidade da forma para aceder a uma manifestação verdadeira e assim chegar a reconciliação de sua forma e de seu conteúdo, segundo sua determinação própria, enquanto saber dialético. A opinião pública, enquanto contradição imediata, passando pelo processo de mediação, pode aceder à sua verdade, enquanto unidade contraditória, isto é a mediação de sua contradição permanece na oposição de seus termos. E isso é, ao mesmo tempo, seu defeito mas também sua virtude, pois sua impaciência fenomenológica se torna efetiva à proporção em que ela se mediatiza na “via crucis do conceito”, isto é no seu movimento lógico.

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1 - O ESPÍRITO SUBJETIVO: A CONSCIÊNCIA PRIVADA E PÚBLICA DE OPINAR

A lógica vivida pela consciência no seu primeiro momento é a experiência do ob-jeto como um “aqui” que é a vida imediata do povo; enquanto “coisa” é a percepção das contradições no interior da totalidade pública; e o “fenômeno” é compreendido pelo entendimento como a dialética das forças em relação entre os grupos que formam a vida pública. A opinião pública segue aqui a lógica da consciência, que é o ato de opinar, a percepção e o entendimento imediato do fenômeno público. Ela dirige-se para o ob-jeto público. Ela é um saber que estabelece juízos em relação ao mundo, às estruturas e às instituições gerais. É a consciência subjetiva que se refere ao exterior; e, depois de ter percorrido o caminho do ob-jeto ela volta-se sobre si para tornar-se uma autoconsciência.

Se o momento da consciência consiste no ato de opinar, face ao mundo que, está aí como um ob-jeto, agora a autoconsciência tem diante de si uma outra autoconsciência. A lógica da opinião pública no momento da autoconsciência é a luta das opiniões. As opiniões estão opostas nas autoconsciências e também no combate das autoconsciências que sustentam as opiniões e os interesses diferentes e diversamente opostos. No interior do público, afirmado como universal, a opinião surge como um saber contraditório das autoconsciências divididas pelos desejos ou os interesses, segundo as pessoas, os grupos, os estados ou classes da sociedade.

O momento da razão é aquele da síntese dos degraus anteriores. A razão retoma as experiências já feitas, não para recair ainda uma vez no começo do processo, mas para o penetrar racionalmente. A razão tomou o ob-jeto da consciência e o fez seu. Ela se apropria do ob-jeto público que era um mundo já dado, fora da consciência. Depois, a razão toma o Eu da autoconsciência para o transformar em autoconsciência pública. Aqui, se opera a unidade dos dois momentos - consciência e autoconsciência - postos como consciência pública. Para chegar a esse momento, a razão começa por observar o mundo, as organizações sociais como postas fora, produzidas por ela e as instituições em si mesmas, a partir da categoria, pois esta é imediatamente a igualdade do Eu e do

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ob-jeto. A razão, enquanto observante retoma a experiência da consciência, não mais simplesmente para sentir o mundo, mas para apropriá-lo e assim determinar o conteúdo da categoria. A autoconsciência racional retoma a experiência da autoconsciência para determiná-la como a ação que suprassume a consciência subjetiva (o espírito subjetivo) em consciência objetiva - o espírito objetivo.

O percurso da consciência na Fenomenologia é a experiência da contradição entre o sujeito e ob-jeto. Ora, esse movimento da consciência é o movimento lógico que realiza a consciência da opinião pública. É por isso que se apresenta o caminho da consciência, a fim de desenvolver a fenomenologia da opinião pública.

1.1 - A consciência do ob-jeto público 1

A opinião pública tal como é definida por Hegel na Filosofia do Direito é uma contradição imediata. A fenomenologia do público começa seu percurso através dos momentos da consciência em sua contradição imediata. A consciência se determina, primeiramente, a partir do ob-jeto público. O espírito público - a ética, a cultura e a moral - é sentido, percebido e entendido pela consciência como um jeto exterior. A consciência constitui-se, primordialmente, a partir do ob-jeto público que a rodeia. Face ao mundo constituído em “público”, a consciência reage opinando publicamente. O ato de opinar vive a contradição de um mundo já dado e do sujeito que expressa sua opinião. Num primeiro momento a certeza sensível do ob-jeto público sobrepuja a consciência individual.

Kant, na Lógica 2, enumera três modos de assentimento: a opinião, a crença e o saber. Ele afirma que a opinião é um juízo “problemático”. É um juízo acompanhado da consciência de uma simples possibilidade. A crença é um juízo “assertórico”, pois ele é acompanhado da consciência da realidade. E o saber é um juízo “apodítico”, pois o juízo é acompanhado da consciência da necessidade.

1

. A palavra “ob-jeto” é a tradução de “Gegenstand”. Escolheu-se escrever essa palavra para assim marcar a diferença em relação a outra palavra alemã “Objekt”, que é habitualmente traduzida pelos especialistas por “objeto”. O objeto é estudado como tal na Lógica, enquanto que o ob-jeto designa na Fenomenlogia, o conteúdo que a consciência se opõe para aparecer a ela mesma. A consciência se opõe ou se ob-jecta (“Gegen-stand”) o mundo que se torna consciente. Ver Enc, t. III, B. Bourgeois, nota de rodapé nº 4, p. 99.

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Segundo Kant, a opinião é um assentimento fundado sobre um conhecimento que não é suficiente nem subjetiva e nem objetivamente, e ela pode ser considerada como um juízo provisório. É preciso começar por ter uma opinião antes de admitir ou de afirmar qualquer coisa. Nossos conhecimentos começam na maioria das vezes por ser opiniões. Temos um obscuro pressentimento da verdade, uma coisa nos parece comportar caracteres de verdade, isto é, nós pressentimos já sua verdade antes de conhecer com uma certeza determinada. Kant pergunta-se: qual é o domínio próprio da simples opinião? Evidentemente, diz ele, não é nas ciências que contém conhecimentos a priori - como é o caso da matemática, da metafísica ou da moral -, mas, é unicamente nos conhecimentos empíricos - como a física, a psicologia etc. No primeiro caso, é absurdo ter uma opinião a priori, pois na metafísica ou na matemática, ou bem se sabe, ou não se sabe. Portanto, somente os objetos de um conhecimento empírico podem ser matéria de opinião.

Na Crítica da Razão Pura, Kant retoma o mesmo assunto argumentando: “A crença, ou o valor subjetivo do juízo, em relação à convicção (que tem ao mesmo tempo um valor objetivo), apresenta os três degraus seguintes: a opinião, a fé e a ciência. A opinião é uma crença que tem consciência de ser insuficiente tanto subjetiva como objetivamente” 3. Nos juízos da razão pura, não há nenhum lugar para a opinião, pois eles não são apoiados sobre princípios da experiência, mas eles são a priori, porque o princípio da relação exige a universalidade e a necessidade e, por conseguinte, uma certeza completa, sem a qual aí não haveria mais caminho que levasse a verdade.

Para Kant, a opinião é um juízo problemático, insuficiente para chegar à ciência, ou à verdade, tanto subjetiva como objetivamente. Entretanto, ele admite que a maioria das vezes nós começamos a adquirir todos os conhecimentos a partir da opinião, se bem que o domínio próprio desta aqui é o conhecimento empírico e jamais o conhecimento a priori.

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Hegel, também, na Fenomenologia do Espírito começa o caminho da consciência em direção ao saber absoluto a partir do ato de opinar4. Diferente de Kant, Hegel não faz uma divisão entre um saber a priori e um saber a posteriori, dito de outro modo, o dualismo entre o sujeito e ob-jeto. Para Kant e Hegel, a opinião é importante como começo do conhecimento ou maneira de conhecer. Mas eles divergem quanto ao papel que a opinião ocupa no processo do conhecimento. No sistema kantiano, a opinião cai fora, não há lugar para a opinião, enquanto que, para Hegel, a opinião é incluída na consciência e salva pela mesma. A opinião faz parte da experiência da consciência e por ela a opinião é elevada à verdade do “público”.

O percurso do espírito, enquanto consciência é tornar o seu próprio fenômeno idêntico à sua essência, isto é, elevar a certeza da opinião até a verdade. A existência do fenômeno na consciência é a relação formal, e é apenas certeza; o ob-jeto é determinado somente de modo abstrato. O espírito, para elevar-se da certeza à verdade, passa por três degraus:

a) como consciência em geral, a relação é estabelecida com um ob-jeto como tal; b) como autoconsciência, a relação é com o Eu como seu próprio ob-jeto;

c) como a razão é a unidade da consciência e da autoconsciência, aqui o espírito intui o conteúdo do ob-jeto, enquanto ele mesmo é determinado em e por si 5. No primeiro degrau, a consciência estabelece imediatamente sua relação com o ob-jeto e aí já se encontra o começo do jogo de uma verdadeira mediação até a “infinitude”, no fim da dialética “força e entendimento”. O ob-jeto é determinado como ob-jeto imediato, isto é, como refletido nele mesmo de modo singular. Esta propriedade da consciência de se ligar ao ob-jeto pertence apenas à consciência sensível, que opina a partir do “isto”. A opinião pública tem como primeira tendência de ligar-se ao fenômeno público na sua singularidade. A consciência opina sobre o objeto público, e começa pelo

4 . Nós estamos de acordo com a tradução do verbo meinen por opinar, segundo

Labarrière-Jarczyk: “O verbo meinen, etimologicamente ligado ao substantivo Meinung, será aproximado do adjetivo possessivo mein; a fim de dar esse caráter subjetivo, nós optamos pela tradução “opinar” (termo tirado do velho francês), na medida em que se trata de um juízo que depende da opinião, isto é, sem justificação racional”. FE, Labarrière-Jarczyk. Nota de rodapé, nº 1, p. 75.

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imediato sensível e vê nele somente o aspecto singular. É a primeira experiência da consciência individual.

a) O ato de opinar na consciência imediata

A consciência, enquanto relação a si, contém somente as categorias que pertencem ao Eu abstrato, ao pensamento formal e que, em verdade, são as determinações do ob-jeto. A consciência sensível conhece esse ob-jeto como um ente público, uma coisa pública existindo, mas um ente público singular. A consciência sensível ou a certeza sensível é aberta e acolhe toda a realidade que a rodeia. Ela recebe tudo como seu conteúdo e por isso Hegel diz que ela é a mais rica em conteúdo, mas, ao mesmo tempo, a mais pobre em pensamentos, pois lhe fala a forma 6. A consciência sensível é a mais rica em conteúdo, porque é constituída de determinações dependendo do sentimento do público. Os sentimentos são materiais para a consciência, tais como uma substância que a alma na esfera antropológica experiementa como os sentimentos e os hábitos públicos de um povo. Quando a alma se reflete nela, então esta é o Eu. É a consciência sensível que se torna capaz de sentir-se e sentir o material público - os sentimentos e os hábitos públicos -. Ora, a consciência, nesse momento, sente que ela é um Eu e determina o material público como qualquer coisa de separado dela, isto é, como uma determinação que tem um ser público. Então, eu determino o ob-jeto da consciência sensível, eu determino o ob-ob-jeto público como ob-ob-jeto que se situa no exterior da consciência. Um ob-jeto público que é simplesmente sentido como singular, no espaço e no tempo, isto é, um aqui e um agora público que me são exteriores. Assim, é importante observar que a consciência sensível é diferente da consciência que percebe e da consciência, dependendo do entendimento, não simplesmente porque o ob-jeto chegue a mim por intermédio dos sentidos, mas a diferença determinante é que ob-jeto, que pode ser tanto um ob-jeto exterior público ou um ob-jeto interior privado, é um ob-jeto que tem uma única determinação do pensamento: a determinação que ele existe. E este ente é como

6

. “O conteúdo concreto da certeza sensível a faz aparecer imediatamente como o conhecimento mais rico, e mesmo como um conhecimento de uma riqueza infinita [...]. Esta certeza portanto dá-se ela mesma de fato para a verdade mais abstrata e [a] mais pobre”. FE, p. 147-148.

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exterior, como um outro subsistindo por si que me faz face, qualquer coisa de refletido em si, qualquer coisa de singular que me faz face enquanto eu sou singular e imediato. O conteúdo particular do público é qualquer coisa de sensível que desaparece. Ao contrário, a forma própria do sensível é a existência exterior do ente público; ele permanece disperso no espaço e no tempo e ele é tomado pela intuição. Para a consciência sensível, o conteúdo particular múltiplo das sensações é reunido num ente público fora do sujeito e conhecido como imediato e singular. Este ob-jeto público aparece na minha consciência e depois desaparece fora dela. A consciência o sente como um dado exterior, mas ela não sabe donde ele provém, nem qual é sua natureza, nem se ele é verdadeiro. Por conseguinte, a consciência imediata ou sensível, em relação ao conteúdo em e por si universal do público - o direito, a ordem ética e a religião - é uma forma inadequada, pois ela corrompe a forma necessária, eterna, infinita, interior toma uma figura finita, isolada, singular e exterior. A consciência singular é capaz somente de sentir, por exemplo, qualquer propriedade do Estado. Ela emite opiniões subjetivas em relação ao público 7.

A consciência sensível ou a certeza se exprime no ato de opinar. Vejamos seus momentos e suas experiências.

a) Primeira experiência: o objetivismo do saber. A consciência experimenta o ob-jeto como o essencial e o Eu como o inessencial. O ob-ob-jeto público existe, é o verdadeiro e a essência. É preciso, portanto, apreender esse ob-jeto público segundo a forma sob a qual a certeza sensível o conhece. A certeza sensível considera o ob-jeto como um “isso”, que se apresenta sob uma dupla forma: o “agora” e o “aqui”. O que é o agora? O agora é 1806, mas mais tarde é 1807. O aqui é Iena, mas depois o isso é Bamberg. A experiência que faz a consciência é que o “agora” e o “isso” são conservados, e ao mesmo tempo negados. Uma passagem se opera do singular ao universal, pois, o agora é o ano 1806 e o ano 1807 e ao mesmo tempo nenhum dos dois. O “isso” aparece como conservado e negado e elevado da particularidade à universalidade. “Um tal simples que é pela negação, nem isso nem aquilo, um não isso, e igualmente indiferente a ser isso que aquilo, nós o nomeamos um universal; o universal é portanto de fato o

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verdadeiro da certeza sensível” 8

. Esta afirmação do universal se localiza já no nível da linguagem que depende da mediação, enquanto que a opinião permanece ainda prisioneira de uma certeza singular. Para a opinião, o isso público persiste como um agora e um isso indiferente, pois ela não é capaz de se mediatizar ou de se universalizar. E o resultado desta primeira experiência é uma inversão, pois o ob-jeto se torna o inessencial e o Eu o essencial, contendo o universal.

b) Segunda experiência: o Eu imediato. A certeza sensível relaciona-se ao sujeito ou ao Eu. A experiência do Eu segue aqui o mesmo movimento que a precedente, e ela não desenvolve a universalidade do Eu. O agora é 1807, porque o Eu o experimenta como tal; o isso é Bamberg porque o Eu o vê. As duas verdades têm a mesma autenticação, isto é, o imediato do ver e a seguridade e a asserção no Eu. O “agora” e o “isso” desaparecem um no outro, mas o Eu permanece o mesmo, isto é, como o universal que mediatiza o isso, enquanto o agora e o aqui. Eu posso opinar sobre um Eu singular, mas eu não posso dizer sobre o que eu opino, porque quando eu digo este aqui, este agora, ou esse singular, eu digo todos os isso, todos os aqui, agora, singulares. O Eu singular diz o Eu universal, mas a opinião não é capaz de dizer o universal, pois ela opina somente sobre o imediato.

c) Terceira experiência: a certeza sensível como totalidade imediata. A essencialidade não está nem no objeto, nem no Eu. O ato de opinar é um inessencial, pois o ob-jeto e o Eu são dois universais nos quais o agora e o isso da opinião nem são, nem permanecem. Eles desaparecem no ato de opinar. A certeza total tenta manter, o ob-jeto e o Eu imediatos, além de sua oposição, mas de fato, esta relação imediata é um processo ou um movimento que passa pelo ato de indicar. “O indicar é, então, o movimento que anuncia isso que o agora é de verdade; a saber um resultado, ou uma multiplicidade de agora reunidos; e o indicar é o experimentar que agora é [um] universal” 9

. O agora e o isso são, portanto na verdade já um reflexo em si, que será o ob-jeto da consciência perceptiva. O saber imediato, no ato de indicar, passa num movimento em que a opinião a começar do aqui, chega através de muitos aqui a um aqui universal, da mesma maneira que o ano é uma multiplicidade de dias. Hegel conclui esta dialética da certeza sensível, dizendo que ela é a história simples do movimento e

8 . FE, p. 150. 9 . FE, p. 155.

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da experiência da consciência. A certeza sensível fixa-se na sua imediação inicialmente como ob-jeto, depois como sujeito. Agora, ela constata que neste ir-voltar ela é movimento. E o resultado desta dialética é a história da certeza sensível. A consciência sente a realidade de seu povo e o que são os costumes, os hábitos mais imediatos. A consciência simplesmente o sente como sentimentos naturais e se conhece como um movimento. A opinião expressa o mundo que lhe é um ob-jeto de modo imediato, pois é a consciência que está nascendo no interior de seu povo. A consciência começa a conhecer a vida de seu povo e ela situa-se no tempo e no espaço geográfico. A opinião do indivíduo toma o ob-jeto, que é a vida da comunidade como um “agora” situado num “aqui”, localizado no espaço. O indivíduo está aberto a toda a realidade ao redor, e isso é a universalidade sensível que é o público ou o povo do qual ele faz parte.

A experiência da consciência sensível é o movimento dialético entre o Eu e o ob-jeto. O ato de opinar da consciência realiza sua primeira experiência em direção ao ob-jeto público como qualquer coisa de essencial. A opinião considera inicialmente o ob-jeto como o verdadeiro, sente o espírito público como o essencial; mas depois a consciência inverte sua opinião e coloca na mesma o essencial ou o saber verdadeiro. Nesta experiência, o ato de opinar balança seja em direção ao ob-jeto seja em direção ao sujeito. A opinião é de fato o movimento de ir-voltar, que se fixa somente no imediato e no singular. O ato de opinar experimenta o ob-jeto público como um singular e não como um universal. O ato de opinar e o ato da linguagem têm o mesmo ob-jeto público, mas o primeiro o apreende, enquanto singular e individual e o segundo, como o universal. A opinião dirige-se ao imediato, que é inacessível à linguagem; e a linguagem indica já o universal e, quando a consciência toma o ob-jeto deste modo, ele não é mais o saber imediato, mas o ato de percepção.

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b) A percepção contraditória da coisa pública

O ob-jeto da consciência sensível torna-se um novo ob-jeto. O ob-jeto que era o isso torna-se um outro: uma coisa. A coisa é percebida como contento uma multiplicidade de propriedades; enquanto coisa singular e imediata se pode atribuir-lhe muitos predicados. O ob-jeto sensível torna-se uma diversidade de relações, de determinações de reflexão, de determinações lógicas - o singular múltiplo -, que são postas pelo sujeito que pensa, pelo Eu. A consciência começa a perceber o ob-jeto como mediatizado, refletido nele mesmo e universal. Agora, o ob-jeto tornou-se uma conexão de determinações sensíveis e de determinações de pensamentos. Mas esta conexão do singular e do universal é uma mistura contraditória. A contradição vem das coisas singulares da percepção sensível - que constituem o fundamento da experiência universal - e da universalidade que é sua essência. Ou, metafisicamente falando, a contradição é constituída em seu conteúdo pela substância e suas propriedades variadas, os acidentes 10. O ob-jeto da consciência não é qualquer coisa de fixo. Ele muda como a consciência mesma. Eis que o ob-jeto se torna uma coisa que é percebida como contendo múltiplas determinações. O “isso” que é a comunidade torna-se uma “coisa‟ para a percepção. Isso quer dizer que a comunidade não um todo uniforme. Ela é composta de indivíduos e de grupos que formam um complexo social. A consciência perceptiva toma a coisa nas suas contradições, pois ela descobre que o público é, ao mesmo tempo, um singular e um universal.

O ato de perceber parte da observação do espaço público como qualquer coisa de sensível e de singular, mas avança e faz progredir o sensível até conectá-lo com um universal. A consciência, enquanto percepção, começa a conhecer cada realidade isolada em sua verdade singular. Por exemplo, a esfera pública literária inclui nela uma conexão de relações e de mediações que se estabelecem entre os cafés, os salões e os clubes. A consciência sensível indica simplesmente as coisas, ela mostra a imediação do espírito público, enquanto que a percepção toma a articulação da coisa pública em sua contradição. Esta consciência está relacionada com circunstâncias de troca de bens culturais. Ela diz respeito aos intelectuais do

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século dito do “” que corresponde a uma opinião esclarecida, a qual combate a intolerância da sociedade nobre da Corte. É uma opinião esclarecida que ultrapassa o singular imediato, é capaz de perceber o público como universal, segundo uma contradição ainda insuficientemente mediada. Historicamente, esse fenômeno público pode ser relacionado à sociedade burguesa do século XVIII.

c) O entendimento do jogo de forças do fenômeno público

A consciência, enquanto percepção, constata que o ob-jeto é uma coisa pública contraditória. A percepção apreende a coisa pública como contraditória, e de seu lado, o entendimento toma o ob-jeto público como um fenômeno. A consciência, como entendimento, compreende o ob-jeto em sua dualidade: o entendimento enquanto faz face à força ou a dinâmica que compõe o ob-jeto, e o fenômeno que inclui nele um mundo suprasensível, isto é o mundo das leis que rege o dinamismo do ob-jeto. O jogo das forças 11 faz parte do fenômeno que Hegel tomou do conceito de força da física dinâmica 12 da época com seu jogo de atração e de repulsão; assim como a força positiva e negativa que compõe a eletricidade. O jogo das forças é, portanto, a interação de duas forças que surgem como independentes e, em seguida, tornam-se uma ação recíproca. A força, enquanto vontade social ou política, é o dinamismo das instituições públicas que se apresenta como fenômeno público. O entendimento faz a experiência do ob-jeto público como uma relação de forças em que se opera a dialética entre as

11 . “A força, tal como o entendimento a apreende na sua complexidade objetiva, exprime sua

universalidade na articulação de seus momentos constitutivos - o Um e o subsistir das matérias. Esses momentos, porque são os extremos de um movimento de reflexão, são aqui tratados segundo a economia do interior e do exterior; o entendimento fará a experiência de sua pressuposição mútua. Cada um dos momentos da força é ele mesmo uma força; a dialética coloca, portanto, agora em ação duas forças diferenciadas, em cada uma só é ela mesma através da outra. Isso se traduz fenomenologicamente por uma alternância das funções, sinal da identidade reflexiva dos termos portadores”. FE, Labarrière-Jarczyk. Nota de rodapé nº 1, p. 180-181.

12 . “Na primeira Lógica de Iena a relação da coisa à suas propriedades (percepção) corresponde à

relação da substância aos acidentes, a relação da força à sua exteriorização corresponde à relação de causalidade. A idéia de força exprime a impossibilidade de separar a causa e o efeito. Nós passamos, então, do substancialismo ao dinamismo”. FE, tomo I, trad. de Jean Hyppolite e a nota de rodapé nº 5, p. 111.

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instituições e os diferentes grupos sociais. As relações entre as forças sociais em sua contradição imediata são transformadas, e as leis que comandam a vida pública foram elaboradas. Dito de outro modo, o entendimento relaciona-se ao ob-jeto e o toma como uma lei. Esta aqui é a essência do fenômeno enquanto determinação do entendimento que é conforme ao interior ou a essência do ob-jeto. Para Hegel, a lei não é qualquer regra imóvel e morta. A lei que está no interior do fenômeno, diferencia-se e move-se como a vida. As partes e o todo estão numa unidade dialética viva. Ora, isso é a autoconsciência que é ao mesmo tempo consciência idêntica e diferenciada.

A consciência como o entendimento tem um conhecimento das leis e relaciona-se ao jeto público no qual o Eu encontra o duplo de seu próprio ob-jeto. O ob-jeto que está fora é semelhante ao ob-jeto que está no sujeito, assim é possível entrar já na autoconsciência como tal. Mas, a consciência, dependendo simplesmente do entendimento não pode ainda conceber a unidade presente na lei, isto é, determinar a diferença dialeticamente a partir de uma destas determinações, determinar sua oposição. Isso faz que esta unidade do entendimento seja qualquer coisa de morto e que não se harmonize com a atividade do Eu. Ao contrário, Hegel diz que no ser vivo, a consciência intui o processo da lei, isto é, a posição e a suprassunção das determinações diferentes. A diferença não é absolutamente fixa, pois a vida é um interior que se exterioriza, que medeia [ou metiatiza?] o imediato e o exterior; a vida é uma existência sensível, exterior e ao mesmo tempo absolutamente interior; o ser vivo é um existente material composto de exterioridade recíproca das partes mediadas umas com as outras; o singular ser vivo aparece suprassumido como ideal, isto é, como um momento e um membro do todo. A vida deve ser tomada como sendo seu próprio fim, que tem nele mesmo seu meio, uma totalidade na qual cada elemento diferenciado é, ao mesmo tempo, fim e meio. Ora, esta unidade dialética vivente - a consciência idêntica e diferenciada - é a autoconsciência 13.

Em nível de movimento do todo, a Fenomenologia, a “força e o entendimento” são um novo percurso do itinerário já feito nas duas dialéticas anteriores. Agora, o ob-jeto é suprassumido no universal e o resultado é a

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infinitude como a contradição pura e o movimento sem repouso. A consciência não se põe mais sob um modo ob-jetivo, mas como experiência de si, como um Eu que se reflete e se toma ele mesmo como ob-jeto: é a autoconsciência.

1.2 - Da autoconsciência privada para a autoconsciência pública 14

A experiência de toda consciência é que a consciência de um outro ob-jeto exterior a ela o encontra, de fato, como autoconsciência, isto é, o Eu conhece o ob-jeto na representação como seu. Existe uma primeira forma abstrata de autoconsciência que é representado como Eu = Eu: isso é a verdade abstrata, a idealidade pura. Na verdade, a autoconsciência abstrata é a primeira negação da consciência como tal, e neste sentido ela é a contradição de si mesmo. Esta contradição é suprassumida e posta na identificação da consciência e da autoconsciência. O processo da autoconsciência consiste nisso que eu me elevo à forma do Eu = Eu, isto é que o Eu seja capaz de reconhecer as instituições públicas como suas, de identificá-las ao Eu. Mais ainda, o Eu toma cada instituição como fazendo parte de seu sistema, o Eu e as instituições estando numa só e mesma autoconsciência. Então, o Eu se encontra ele mesmo no público e, ao inverso, a autoconsciência tem nela mesma o espírito público. Esta unidade do Eu e do ob-jeto público existe, inicialmente, de modo abstrato na autoconsciência

14 . Nós adotamos este termo “autoconsciência” seguindo a tradução feita por G. Jarczyk e P.-J.

Labarrière e a justificação precisa e sólida que eles dão e que nos citamos aqui: “No que diz respeito ao termo “autoconsciência”, pode-se afirmar que ele é largamente admitido em nossa língua. Falando em “Selbstbewusstsein”, Hegel entende designar o movimento pelo qual a “consciência”, realidade essencialmente dual, toma-se ela como objeto de seu saber; o movimento de reflexão pelo qual o “Eu” originário (o “Ich”, visado na sua qualidade de sujeito, como ponto de partida de um processo de sentido) retornou nele mesmo carregado de objetivação que se deu na linguagem ou no trabalho, e pode portanto ser nomeado um “Si” (um “Selbst”). Esta auto-tomada reflexiva do Eu como Si nos parece expressa o mais próximo pelo termo simples de “autoconsciência”, formada sobre o modelo bem francês de termos tais como “autodeterminação”, “automovimento”, (...) e uma multiplicidade de outros vocábulos que nos são familiares. Objetar-se-á que tal era já o sentido visado sob o termo complexo “consciência de si”, e que era inútil transgredir um hábito que parecia ter se imposto; mas eis o argumento a nossos olhos decisivo: Hegel sabe distinguir “Selbstbewusstsein”, com o sentido reflexivo que acabamos de evocar, e “Bewusstsein von sich” (ou “Bewusstsein seiner), que é preciso evidentemente tomar por “consciência de si”; ora essas últimas expressões, bem menos freqüentes mas empregadas cada vez mais de propósito, introduzem uma nuança de exterioridade marcada pela decomposição da palavra simples e sua articulação ao redor de um “de” que mantém uma dimensão de ob-jetividade não resolvida; em relação a “consciência de si”, “autoconsciência” é portanto requerido cada vez que esse vocábulo simples designa a identidade processual entre o Eu e o Si”. FE, Labarrière-Jarczyk. Apresentação, p. 55-56.

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imediata. A autoconsciência abstrata e a consciência são ainda duas coisas diferentes, pois elas não estão reciprocamente na igualdade. Na consciência existe a diferença do Eu e do outro lado a diversidade do mundo público. É a oposição do Eu e do mundo que impede a mediação verdadeira, e por causa disto a consciência é finita, isto é, não há acordo verdadeiro entre o Eu e o mundo. No caso da autoconsciência, a finitude exprime-se na sua identidade ainda abstrata com ela mesma, pois o Eu = Eu não é uma diferença posta ou efetiva. A cisão entre a autoconsciência e a consciência forma uma contradição interna na autoconsciência, pois ela contém em si uma realidade imediata e exterior oposta a uma interioridade sem diferença. A resolução desta contradição passa pelo desenvolvimento do Eu abstrato como diferença real, e por aí o sujeito unilateral se suprassume e se determina como um mundo público. E o processo inverso consiste em que o mundo público é interiorizado no sujeito, dito de outro modo o mundo é posto no Eu. Através desse processo a dependência que antes existia na consciência em relação ao mundo desapareceu. Assim a autoconsciência contém a consciência e seu mundo exterior ligados e dissolvidos nela mesma.

a) A autoconsciência desejante imediata: a tendência privada

A autoconsciência num primeiro momento é imediata, singular, idêntica a si mesma e, ao mesmo tempo, em contradição com o ob-jeto exterior. A autoconsciência é a certeza de si que se mantém em face de um ob-jeto como uma realidade desejada. A autoconsciência na sua imediação é um desejo contraditório, pois o ob-jeto exterior deve ser subjetivado. O desejo é a forma sob a qual aparece a autoconsciência na sua imediação singular. O desejo se determina aqui como uma tendência para o ob-jeto. Ele busca aí sua satisfação imediata, sem que esta tendência seja ainda determinada por meio do pensamento. Um ser que é idêntico a si tem nele mesmo a contradição interna e ao mesmo tempo, ele tende a suprassumir esta contradição. O ser não vivente não tem nenhuma tendência, pois lhe é impossível pode suportar a contradição, e, quando ele é afrontado a um outro diferente, ele se destrói. Ao passo que o ser vivo é dotado de tendência, pois a

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alma e o espírito são sempre portadores de contradição e o ser animado tem um

sentimento ou um conhecimento da contradição. A atividade do Eu põe o ob-jeto, isto é o sujeito sai de sua unilateralidade,

exterioriza-se e torna-se um ob-jeto. Ele dá à sua subjetividade uma objetividade social. O sujeito produz um ob-jeto e ele pode torná-lo subjetivo ou também consumi-lo. O sujeito consciente sabe que o ob-jeto social pode satisfazer seu desejo, que ele pode conformar-se a seu desejo e nisso ser-lhe idêntico. Há uma relação necessária entre o sujeito e ob-jeto social, pois o sujeito intui no ob-jeto sua própria falta, e através da consumo deste ob-jeto ele apropria-se dele. Assim a consciência desejante se satisfaz do ob-jeto que lhe é exterior e imediato, e por conseqüência este objeto se torna um ob-jeto satisfeito em seu desejo. O produto deste processo é o próprio Eu efetivo satisfeito em seu desejo. Mas, o desejo é um consumidor egoísta, e ele encontra sua satisfação num jeto singular. Ora, o ob-jeto singular é passageiro e como a consciência desejante é o desejo do singular, a satisfação não é jamais satisfeita e a cada desejo completado nasce um novo desejo. A relação da consciência desejante ao ob-jeto faz-se a partir do consumo egoísta. Nisso permanece a contradição subjetiva imediata - entre o sujeito universal e o ob-jeto singular - que leva sempre a um progresso infinito.

A autoconsciência imediata em seu lado exterior permanece presa entre o movimento do progresso infinito ou de uma alternância ao infinito entre desejo e satisfação na relação do sujeito e do ob-jeto. Ao contrário, o lado interior da autoconsciência realiza seu conceito, isto é, ela suprassume a contradição imediata do desejo, e nisso ela põe um objeto livre, como sujeito e que é portanto um outro Eu. Aqui, a consciência eleva-se acima do egoísmo do desejo e opõe-se a um outro Eu que lhe faz face.

b) O combate entre o interesse privado e público na autoconsciência

reconhecedora

A autoconsciência desejante tinha seu outro como um ob-jeto suprassumido, e, agora, a autoconsciência determina-se em face de uma oura autoconsciência a través de um processo de reconhecimento. Por este meio a

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autoconsciência singular começa a tornar-se universal, dito de outro modo, pública. O processo de reconhecimento começa de modo imediato. Duas autoconsciências põem-se uma em face da outra e o Eu intui-se ele mesmo no outro Eu imediato. Ele intui um outro Eu que é subsistente por si, defronte de seu Eu. O Eu é universal, pois ele não é limitado por nada, e é isso que constitui a essência comum a todos os homens.

O processo de reconhecimento é um combate, diz Hegel, pois cada autoconsciência deve ao mesmo tempo suprassumir 15 sua imediação e reconhecer o outro. Elas se reencontram nesta imediação de sujeitos naturais e corporais, que são os sujeitos abstratamente livres. Para superar esta contradição imediata natural, é necessário que se realize a verdadeira liberdade, isto é a identidade de si mesmo com o outro. Eu sou livre, quando o outro também é livre, e que ele seja reconhecido por mim como livre. Ora, esta liberdade que relaciona um ao outro reúne os homens de uma maneira interior, enquanto que a necessidade só produz uma aproximação exterior. A relação imediata e natural entre as duas autoconsciências as exclui uma da outra e as impede de ser livre. A liberdade exige que a autoconsciência se suprassuma na sua naturalidade; e ela coloca em jogo seus interesses singulares imediatos, tais como a vida que lhe é própria e a vida do outro. A autoconsciência pode desta maneira conquistar a liberdade. O

15

. Para a tradução do verbo “aufheben” e o substantivo “Aufhebung” ainda uma vez nós adotamos a tradução feita e justificada por Labarrière-Jarczyk. O verbo “aufheben” significa ao mesmo tempo: conservar, negar e elevar. Para ilustrar o sentido dos três verbos, os autores dão este exemplo: “O emprego doméstico corrente que inscreve o movimento “especulativo” na operação que consiste em conservar um alimento - um fruto por exemplo - fazendo-o passar por uma transformação, isto é, negando-o na forma imediata de seu subsistir e elevando-o de tal modo a um estado que permite precisamente sua “conservação”: “Konfitüre für den Winter aufheben” (“fazer conservas de compota para o inverno”). É em função desta primazia do positivo que o termo pôde ser retido para significar a essência da discursividade reflexiva”. Objeta-se às vezes que esta acepção vale somente no espaço lógico, e que ela não é acessível à consciência enquanto tal. Logo que, Hegel emprega os termos “aufheben” e “Aufhebung”, eles carregam a promessa desta completude positiva que advém à consciência, e por enquanto desconhecida, pois está “atrás de seu dorso”. Enfim, para a consciência, o “Aufhebung” tem, inicialmente, o sentido positivo de uma realização. Para provar esta argumentação ver a figura da Percepção in FE, p. 160-161. A escolha do vocábulo que exprime esta primazia do positivo e a justificação do uso deste neologismo está fundamentado pelos autores acima nomeados a partir da argumentação do filósofo canadense Yvon Gauthier: “Lógica hegeliana e formalismo”, in Diálogo. Revista canadense de filosofia, setembro, 1967, p. 152, nº 5. “Nós propomos, escreve ele, a tradução “suprassumir” e “suprassunção” para “aufheben” e “Aufhebung”. A derivação etimológica apoia-se sobre o modelo “assumir-assunção”. A semântica da palavra corresponde ao antônimo de “subsunção” que se encontra em Kant. A suprassunção define, portanto, uma operação contrária àquela de subsunção, que consiste a pôr a parte na e sob a totalidade; a suprassunção, a “Aufhebung”, designa o processo da totalização da parte. Ver sobre isto a Lógica de Iena. PE, apresentação, p. 57-60.

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combate é a condição para ganhar a liberdade, neste sentido que é preciso superar sua imediação na ordem da naturalidade.

O combate pelo reconhecimento é o combate pela liberdade pública. Hegel acrescenta que o combate levado ao extremo acentua o estado de natureza, em que os homens existem somente como indivíduos privados e se situam longe da sociedade civil e do Estado. No Estado, o homem é reconhecido publicamente. O combate pelo reconhecimento constitui um momento necessário no desenvolvimento do espírito público, mas este duelo não pode ser confundido com uma volta ao estado de natureza da humanidade, uma vez que no Estado moderno o reconhecimento foi inscrito nas instituições públicas.

A figura do senhor e o escravo, o combate pelo reconhecimento termina no primeiro momento de uma forma unilateral e desigual, pois o escravo prefere a vida e se mantém como autoconsciência singular, mas ele renuncia a ser reconhecido. De outro lado, o senhor é reconhecido pelo escravo, enquanto autoconsciência submissa. O combate do reconhecimento e da submissão a um senhor é o fenômeno do surgimento da vida em comum dos homens, isto é, da vida pública e portanto o começo dos Estados. A violência que, neste fenômeno, é o fundamento do reconhecimento das autoconsciências, não é o fundamento do direito. A violência pode ser um momento na passagem do estado de autoconsciência imerso no desejo privado para o estado de autoconsciência pública. É aí, diz Hegel, o começo exterior, ou o começo fenomenal dos Estados, não seu princípio substancial 16.

O combate entre o senhor e o escravo realiza uma suprassunção relativa da contradição, pois é somente a autoconsciência do escravo que suprassume sua imediação particular. De outro lado, o senhor mantém-se na naturalidade imediata. O escravo renuncia a sua vontade natural para entregar-se à vontade do senhor. O senhor não reconhece a vontade do escravo em sua autoconsciência, mas ele aceita somente ser cuidado por ele para conservar sua vitalidade natural. Assim, a identidade da autoconsciência dos dois sujeitos tomada um em relação ao outro é unilateral, pois ela é realizada somente pelo escravo. A diferença entre o senhor e o escravo faz com que o senhor suprassuma sua autoconsciência imediata, através

16 . Cf. Enc. § 433, Obs. Cf. Alexandre Kojève. Introdução à leitura de Hegel. Paris: Gallimard,

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do reconhecimento do serviço e do trabalho do escravo. E nisso o mestre intui o valor da autoconsciência singular do escravo. De seu lado, o escravo no serviço ao senhor suprassume, primeiramente, a autoconsciência imediata do desejo através de sua força de trabalho, e em segundo lugar ele suprassume sua vontade imediata interior. Ele realiza a exteriorização do desejo na produção e na elaboração do objeto e, ao mesmo tempo, no medo do senhor, começo da sabedoria e do processo que leva à autoconsciência universal ou autoconsciência pública.

O escravo que trabalha para o senhor, suprassume seu interesse privado exclusivo. O desejo imediato do escravo alcança a amplidão de um desejo público porque inclui em si o desejo do senhor. O escravo eleva-se acima de sua singularidade privada, de sua vontade natural, e neste sentido ele tem uma autoconsciência mais elevada que aquela do senhor, pois este permanece preso no seu egoísmo privado. O senhor intui somente no escravo sua vontade imediata e ele é reconhecido pelo escravo somente de uma maneira formal, por uma consciência sem liberdade. A sujeição do egoísmo do escravo é o modelo do começo da verdadeira liberdade do homem no sentido do interesse público. Há um momento necessário na formação de cada homem, de cada autoconsciência que é a suprassunção da vontade privada, a negação do sentimento de egoísmo através do hábito da obediência aos interesses públicos. Faltando a experiência desta disciplina que rompe o querer privado inconseqüente, ninguém torna-se livre, razoável e nem apto a comandar. A obediência servil forma somente o começo da liberdade, porque a autoconsciência do escravo como vontade privada natural submete-se à outra vontade privada contingente, à autoconsciência singular do senhor. A autoconsciência do senhor não é uma vontade sendo-em-e-por-si, isto é universal ou pública; de tal modo que as duas autoconsciências devem, ao mesmo tempo, negar sua vontade privada e afirmar sua vontade pública. O primeiro momento da liberdade pública passa pela negatividade da vontade privada egoísta e o segundo, pela afirmação positiva da liberdade pública enquanto tal. As duas autoconsciências realizam isso respectivamente em dois movimentos recíprocos: a autoconsciência do escravo se liberta da vida privada da casa do senhor e ao mesmo tempo de sua própria casa privada. Ele insere-se no público racional, isto é na universalidade do interesse público que engloba a particularidade dos sujeitos

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privados. Uma vez que a autoconsciência do senhor é levada a suprimir a comunidade que existe entre ele e o escravo que é uma comunidade resultante da necessidade e do cuidado tomado pela sua satisfação privada, ela é também levada a suprassumir sua vontade privada imediata. Assim o senhor reconhece esta supressão como o verdadeiro, e por conseguinte ele submete sua vontade privada natural à lei da vontade sendo-em-e-por-si, a lei da vontade do interesse público

17

. Esta luta pelo reconhecimento entre o senhor e o escravo ilustra a dialética entre a esfera privada e pública que pode ser verificada no domínio da sociedade e do Estado, em que a relação entre os dois termos torna-se complexo.

Observação: A dialética do privado e do público

A dialética do privado e do público opera-se, inicialmente segundo a diferença do privado/público, depois se dedica a lógica que opõe reflexivamente os interesses, os direitos e as relações nacionais e internacionais no processo do fenômeno da opinião pública.

1) A diferença entre o privado e o público caracteriza a representação das sociedades ocidentais que comporta um conjunto de mutações sociais, econômicas, políticas, ideológicas marcando a entrada destas sociedades na era da modernidade. Esta diferença implica de um lado, a esfera privada, fundada sobre a livre iniciativa individual e estruturada ao redor das relações interativas entre os indivíduos e os grupos; de outro, a esfera pública engloba as relações de autoridade e de coação e integra o conjunto das funções de direção e gestão da coletividade. Esta representação e esta organização social e política corresponde a aparição do Estado na Europa. A diferenciação do público e do privado situa-se no interior do pensamento liberal: o monopólio público contribui na eliminação da violência das relações sociais e o reconhecimento de uma zona de autonomia individual constitui um meio de proteção face ao poder.

Esta diferença entre privado/público remete à axiologias opostas: o público é ligado ao interesse universal e esse é o princípio de ordem e de totalização, que permite à sociedade de chegar a integração, de realizar sua unidade, pela

17 . Cf. Enc. § 430, p. 230 e Adição, p. 531; § 431, p. 230 e Adição, p. 532; § 432, p. 230 e Adição,

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ultrapassagem dos particularismos individuais e dos interesses categoriais. O privado é, ao contrário, ligado ao interesse particular e dá a cada um a possibilidade de perseguir a realização de seus próprios fins, garantindo sua autonomia, protegendo sua intimidade. A oposição que existe entre essas duas axiologias cria a tensão dialética donde a sociedade tem necessidade para existir. “Sabe-se que, na perspectiva hegeliana, há uma ligação intima do interesse geral e do interesse particular, que se implicam reciprocamente: a individualidade pessoal e os interesses particulares recebem, somente, seu pleno desenvolvimento na medida em que eles se integram eles mesmos ao interesse geral e são orientados para o universal; ao inverso, o universal supõe o interesse particular” 18

.

A diferença do privado/público traduz-se também por normas diferentes na gestão pública e na gestão privada - direito privado e direito público -, pois a administração pública não saberia referir-se aos mesmo preceitos ou dispositivos normativos de gestão que aqueles da empresa privada, e porque a gestão do interesse universal não pode ser governado pela única lógica do lucro.

A passagem entre o privado e o público rege-se pelas regras ou os rituais que permitem passar de um ao outro. Assim, para falar em nome do Estado, é preciso ser habilitado a faze-lo, obedecendo aos procedimentos de investidura instituídos para este efeito - os governantes e os funcionários são ligados ao Estado por um vínculo jurídico e sua autoridade é limitada por um estatuto -; o ato de votar, concebido como dispositivo ou meio de passagem do individual ao coletivo e de conversão do privado em público é a expressão da opinião individual que se transforma em opinião pública, participando na construção e na legitimação do poder.

A diferença do público/privado constitui portanto a representação coletiva ou o imaginário das sociedades e dos países ocidentais: o Estado pressupõe um processo de autonomização e de institucionalização em relação ao social, que passa pela construção de uma esfera pública distinta. Mas, esta diferença transbordou o contexto das sociedades modernas. Ela pode ser considerada como uma das categorias universais do pensamento e a difusão deste modelo estatal, nascido no ocidente, é transposto nas sociedades extra-ocidentais pela

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mundialização. É o caso das sociedades africanas e árabes-muçulmanas, onde se constata uma justaposição entre o modelo formal fundado, sobre a distinção público/privado e o modelo tradicional relegado ao informal, que ignora esta distinção. Ou ainda, nas sociedades saídas dos sistemas totalitários - a Rússia e a China - onde a distinção público/privado foi ignorado, pois o totalitarismo pretendia reunificar a sociedade segundo o dogma da unidade social a partir da idéia de consubstancialidade do Estado e da sociedade civil, onde aparece hoje uma esfera pública e um Estado, que ainda restam a ser construídos. Nestes casos e em muitos outros, constatam-se dificuldades de transposição do modelo público/privado nas sociedades extra-ocidentais, isso que ilustra que além de uma simples distinção, há uma relação de oposição dialética entre o público e o privado.

2) Da diferença público/privado, passa-se à oposição dialética, que estabelece a relação e a interpenetração dos sistemas de valores, dos dispositivos das leis e dos interesses. Assim, é da confrontação de todos os interesses particulares que sai o interesse universal; constata-se uma imbricação crescente dos dois ramos do direito, traduzido por um duplo movimento convergente de “publicização do direito privado” e da “privatização do direito público”, através da implementação das instituições de regimes mistos, situados a meio caminho entre o público e o privado e auxiliando a um e ao outro; face à concepção clássica das relações internacionais que fazia destas o monopólio dos Estados, ela é mais e mais colocada em questão pela emergência de novos atores na cena internacional e a transnacionalização em ação. A aparição de novos atores nas relações internacionais, não implica deixar de lado os Estados, que permanecem mais do nunca mediadores necessários e os principais atores da vida internacional.

“A nova relação que se esboçou entre o público e o privado não é tal que apague os pontos de referência axiológicos que marcam as diferenças entre as duas esferas. Sem dúvida, o interesse geral não é mais percebido como oposto aos interesses particulares, mas formado a partir deles e construído graças a mediação dos grupos de interesses sociais: mas esta evolução não significa que tenha perdido toda consistência própria; a passagem para a esfera pública introduz com efeito o elemento de arbitragem e de regulação indispensável, pelo qual afirma-se a especificidade do público” 19.

A esfera pública burguesa desenvolveu-se no interior das tensões que opunham o Estado e a sociedade e ao longo desta evolução ela permaneceu parte

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integrante do domínio privado. As estruturas de dominação feudal mantinham reunidos o processo de reprodução social e o domínio do poder político. É contra esse sistema que se operou a diferenciação entre o Estado e a sociedade e com a extensão das trocas comerciais, apareceu uma esfera do “social” rompendo as barreiras do feudalismo e tornando necessária uma autoridade administrativa. A formação dos Estados nacionais e territoriais concentrou o poder público acima da sociedade e esta se tornou um domínio privado. Mas esta tendência começou a inverter-se a partir do último quarto do século XIX, com a intervenção estatal, que provocou uma interpenetração progressiva do domínio público e do domínio privado. Este intervencionismo teve por origem o fato que os conflitos de interesses foram traduzidos em conflitos políticos logo que não foi mais possível de os regrar unicamente no plano da esfera privada. Pôde-se constatar entre o Estado e a sociedade a aparição de uma esfera social repolitizada que escapava à distinção entre “público” e “privado”. O Estado assumiu os negócios administrativos ordinários que, até lá, dependiam do setor privado, intervindo enquanto produtor e distribuidor, ocupou uma diversidade de novas funções que podem ser resumidas assim: ele desenvolve o papel de protetor, é o distribuidor de serviços sociais, é um gestionário da indústria, controla a economia, enfim preenche as funções de arbitragem 20.

Se, de um lado, assistiu-se a uma interpenetração ou mediação recíproca do Estado e da sociedade 21, de outro se operou, ao mesmo tempo, uma polarização progressiva da esfera social e da esfera privada. A família restrita separou-se do processo de reprodução social. A esfera da intimidade que, outrora, se localizava no centro da esfera privada tomada no seu conjunto, recuou à medida que esta perdia seu caráter estritamente privado. A vida privada dos burgueses da era liberal desenvolvia-se essencialmente na família - a casa - e no quadro de sua profissão - o domínio da troca e do trabalho -. Essas duas esferas, outrora estruturadas segundo o mesmo princípio, sofrem agora uma evolução que

20 . Cf. FRIEDMANN, W. Law and Social Change. Londres, 1951, p. 298 apud HABERMAS, J.

op. cit. p. 285.

21 . Cf. KERVÉGAN, J.-F. Hegel, Carl Schmitt.Capítulo IV: A mediação recíproca do social e do

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as opõe, a tal ponto que se pode afirmar que o caráter público do mundo do trabalho e da organização social aumenta ainda mais.

O modelo da esfera pública burguesa supunha uma separação entre domínio privado e domínio público, separação que implicava a pertença ao domínio privado da esfera pública mesma, constituída por pessoas privadas reunidas num público e que jogava um papel intermediário entre as necessidades da sociedade e do Estado. Mas na medida onde o domínio privado e público se interpenetram, esse modelo não é mais aplicável e vê-se aparecer uma esfera social intermediária que não é nem pública nem privada. Esta esfera intermediária existe lá onde se interpenetram os domínios estatizados da sociedade e aqueles, socializados, do Estado, sem a mediação das pessoas privadas. Pois esta mediação é agora realizada por outras instituições: inicialmente as associações que defendem seus interesses privados organizam-se coletivamente e assumem uma forma diretamente política; depois os partidos que, unidos aos órgãos do poder desde sua formação como durante seu desenvolvimento, estabeleceram-se acima da esfera pública donde eles eram outrora os instrumentos. Logo que os processos de exercício e de re-equilibragem dos poderes tem necessidade de uma decisão política, eles colocam diretamente em relação os aparelhos privados, as associações, os partidos e a administração pública 22.

A dialética do público/privado mostra a fluidez das relações sociais e políticas onde se joga toda a construção da opinião pública. E é lógico que a natureza da opinião pública seja o resultado de um debate permanente da dialética do público/privado, em que aparece, não uma realidade adquirida, mas um fenômeno, continuamente redefinido ao longo da evolução social, política e comunicativa. Enfim, a opinião pública é o produto da dialética do público/privado.

Observa-se, portanto, hoje, uma tendência persistente de interpenetração da esfera pública política e da esfera pública da sociedade civil, sem que sua autonomia seja negada, donde a autoconsciência universal constitui a afirmação mediada do público e do privado.

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