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História de vida e Consumo Uma proposição Metodológica para a Pesquisa do Comportamento do Consumidor

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História de vida e Consumo – Uma proposição Metodológica para a Pesquisa do Comportamento do Consumidor

Autoria: Eliane Bragança de Matos

Resumo

Muito se tem discutido sobre a pesquisa do comportamento do consumidor. Estas discussões ultrapassam, em muitos casos, decisões metodológicas e se centram na discussão do próprio campo. A pesquisa do comportamento do consumidor é visto por muitos pesquisadores como um campo multidisciplinar, com grande variedade e diversidade de temas de pesquisa, como avalia Sheth (1992). Apesar do rápido desenvolvimento do campo, ainda há discordâncias significativas sobre o que é a pesquisa do consumidor, quais os seus objetivos e como deve se diferir das disciplinas relacionadas. Como resultado, o campo parece ser bastante fragmentado e, até mesmo, dividido em algumas questões fundamentais (SIMONSON ET AL, 2001). Uma divisão bastante comum no campo da pesquisa do comportamento do consumidor se dá entre uma abordagem positivista, predominante na área, e uma abordagem interpretativista. Como resumem Pinto e Santos (2008) esta abordagem parte do princípio que os consumidores utilizam bens e serviços para dizer alguma coisa sobre si mesmos, para reafirmar suas identidades, para definir sua posição no espaço social, para declarar seu pertencimento a um ou outro grupo, para falar de gênero e etnia, para celebrar ou superar passagens, para afirmar ou negar suas relações com os outros ou para atribuir quaisquer outros significados. A partir destas constatações discute-se neste artigo a contribuição da história de vida, dentro de uma perspectiva interpretativista, como método de pesquisa do comportamento do consumidor. Para tanto, utilizou-se uma abordagem teórica com base no interpretativismo. Epistemologicamente a abordagem interpretativista é mais histórica e particularista em relação à pesquisa (BROWN et al., 2001), uma vez que entende-se o mundo de forma mais complexa e dinâmica, sem a pretensão de identificar e diferenciar causa e efeito, como na abordagem positivista. A história de vida tem como objetivo “a partir da totalidade sintética – que é o discurso específico de um indivíduo – reconstruir uma experiência humana vivida em grupo e de tendência universal” (MARRE, 1991, p. 89). Consiste na busca de conhecimento a partir da experiência do sujeito (BARROS; SILVA, 2002). É uma maneira de recolocar o indivíduo no social e na história. Inscrita entre a análise psicológica individual e a análise dos sistemas socioculturais, a história de vida permite captar de que modo os indivíduos fazem a história e modelam sua sociedade, sendo também modelados por ela (LAVILLE e DIONNE, 1999). Conforme Paulilo (1999), a história de vida pode ser considerada instrumento privilegiado para análise e interpretação, na medida em que incorpora experiências subjetivas mescladas a contextos sociais. Ela fornece, portanto, base consistente para o entendimento do componente histórico dos fenômenos individuais, assim como para a compreensão do componente individual dos fenômenos históricos, contribuindo extensa e intensamente para o conhecimento do comportamento do consumidor.

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“As pessoas comuns universalizam, através de suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem. Elas são exemplos singulares da ‘universalidade da história humana’” (SARTRE)

1.Introdução

Muito se tem discutido sobre a pesquisa do comportamento do consumidor. Estas discussões ultrapassam, em muitos casos, decisões metodológicas e se centram na discussão do próprio campo. A pesquisa do comportamento do consumidor é visto por muitos pesquisadores como um campo multidisciplinar, com grande variedade e diversidade de temas de pesquisa, como avalia Sheth (1992). Segundo Simonson et al (2001) os pesquisadores que adotam uma abordagem pós-moderna enfatizam a necessidade de distinguir a investigação do comportamento do consumidor de outras áreas e evitar a utilização relevante do foco na gestão como critério para a avaliação da pesquisa. Para Belk (1986), por exemplo, o comportamento do consumidor deveria ser uma disciplina em si mesma, com uma variedade constituinte de grupos, mas sem lealdade primordial de qualquer disciplina ou grupo de interesse existente. Ou seja, o comportamento do consumidor não deve ser uma especialidade do marketing, publicidade, psicologia, sociologia ou antropologia, nem a serva de negócios, governo, ou consumidores. Ao contrário, deve ser um campo de estudo viável, assim como as outras disciplinas são, com alguma relevância potencial de cada um destes grupos constituintes.

No entanto, apesar do rápido desenvolvimento do campo, ainda há discordâncias significativas sobre o que é a pesquisa do consumidor, quais os seus objetivos e como deve se diferir das disciplinas relacionadas. Como resultado, o campo parece ser bastante fragmentado e, até mesmo, dividido em algumas questões fundamentais (SIMONSON et al, 2001).

Uma divisão bastante comum no campo da pesquisa do comportamento do consumidor se dá entre uma abordagem positivista, predominante na área, e uma abordagem interpretativista. Para Hirschman (1986) o predomínio da abordagem positivista se deve à própria orientação da disciplina de marketing, focada na geração de resultados econômicos e de mercado para a empresa, sendo a pesquisa do consumidor um instrumento para a melhoria do conhecimento sobre o mercado e da gestão mais eficaz dos recursos. No Brasil, onde se tende a reproduzir as orientações norte-americanas na produção científica (FARIA, 2004), prevalece o predomínio da orientação positivista.

Segundo Casotti (1999) os anos 80 foram palco de muitos debates sobre as principais bases filosóficas e metodológicas para a pesquisa do consumidor e surgiram muitas alternativas para o conhecimento do consumidor como, por exemplo, a abordagem naturalista (BELK, WALLENDORF e SHERRY, 1989), a abordagem humanista (HIRSCHMAN, 1986), os métodos etnográficos (SHERRY, 1983), os métodos históricos (FULLERTON, 1987), a teoria crítica (DHOLAKIA, 1988), a semiótica (HOLBROOK e GRAYSON, 1986), o relativismo construtivista (PETER e OLSON 1983), o relativismo crítico (ANDERSON, 1986), dentre outros.

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Estes e outros estudos (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006; SLATER, 2002; MCCRACKEN, 2003) trouxeram uma visão do significado simbólico do consumo na sociedade atual, construindo e desenvolvendo uma perspectiva mais interpretativa do consumo. Como resumem Pinto e Santos (2008) esta abordagem parte do princípio que os consumidores utilizam bens e serviços para dizer alguma coisa sobre si mesmos, para reafirmar suas identidades, para definir sua posição no espaço social, para declarar seu pertencimento a um ou outro grupo, para falar de gênero e etnia, para celebrar ou superar passagens, para afirmar ou negar suas relações com os outros ou para atribuir quaisquer outros significados.

A partir destas constatações pretende-se discutir neste artigo a contribuição da história de vida, dentro de uma perspectiva interpretativista, como método de pesquisa do comportamento do consumidor. Para tanto, se iniciará a discussão com uma breve discussão sobre a abordagem interpretativa, partindo-se para a explicação do método da história de vida e concluindo-se com a contribuição do método para a pesquisa do comportamento do consumidor.

2. A abordagem interpretativista

Uma das premissas ontológicas do interpretativismo é a visão de ser social derivada da visão da natureza da realidade. Não existe uma única realidade, mas múltiplas e dinâmicas realidades e, neste sentido, os indivíduos criam sentidos e interagem ativamente a partir de suas relações com o mundo de forma a moldar seu ambiente (HUDSON e OZANNE, 1988). A visão paradigmática do interpretativismo, segundo Burrell e Morgan (1982), é a compreensão da natureza do mundo social no nível subjetivo, através da participação do observador.

Diferentemente do objetivo de previsão do comportamento prevalecente na visão positivista, dentro do interpretativismo o que se busca é a compreensão deste comportamento, visto como um processo e não um fim em si mesmo (ARNOULD e FISCHER, 1994). Neste sentido, não existe a interpretação, existe uma interpretação.

Esta interpretação (verstehen), para Weber, é apenas ferramenta metodológica para se conhecer a forma como os atores sociais interpretam o mundo objetivo, uma vez que a função essencial das ciências sociais é ser “interpretativa”, isto é, compreender o “significado subjetivo da ação social” (BURRELL e MORGAN, 1982).

Epistemologicamente a abordagem interpretativista é mais histórica e particularista em relação à pesquisa (BROWN et al., 2001), uma vez que entende-se o mundo de forma mais complexa e dinâmica, sem a pretensão de identificar e diferenciar causa e efeito, como na abordagem positivista. Ao invés de procurar leis determinísticas, os interpretativistas procuram determinar motivos, significados, razões e outras experiências subjetivas que são ligadas a tempo e contextos (MCCRACKEN, 1981; HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1982; HIRSCHMAN, 1986; BROWN, 1994; GOULDING, 1999).

O pioneirismo da adoção de uma abordagem interpretativa no campo da pesquisa do consumidor foi o estudo de Levy (1981) afirmando que os produtos são usados de forma simbólica. Outros estudos se seguiram a este como o de Holbrook e Hirschman (1982) que apontava para a insuficiência do modelo de processamento de informação para a explicação do fenômeno do consumo, o de Rook (1985) investigando os rituais urbanos de consumo e o de McCracken (1986), sugerindo uma leitura com base nos significados do consumo.

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A partir destas pesquisas novas metodologias e técnicas de pesquisa têm sido desenvolvidas e sugeridas na busca de estabelecer contribuições significativas no entendimento do consumo não mais numa perspectiva positivista gerencial, mas como fenômeno social profundo e abrangente.

Partindo-se desta premissa, pretende-se investigar como a história de vida pode ser uma alternativa de conhecimento do comportamento do consumidor.

3. História de Vida

A pesquisa em histórias de vida data do início do século XX, com a Escola de Chicago (EUA), quando os relatos biográficos passaram a assumir status de material de pesquisa sociológica. Desde então, as histórias de vida sofreram muito em seu desenvolvimento, em decorrência, principalmente, do predomínio da filosofia positivista nas ciências sociais, ocorrido após a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, o uso das histórias de vida mantinha-se atrelado à simples coleta de dados empíricos. No entanto, a partir da década de 1970 inicia-se uma utilização mais ampla do método, que passou a caminhar para um novo limiar epistemológico. Nesse novo patamar, as histórias de vida passam a não considerar apenas os indivíduos, e sim a análise sociológica de grupos. A experiência histórica do grupo é compreendida por meio das histórias singulares. Observa-se “uma ruptura importante para passar de uma leitura tradicional, ilustrativa ou realista das histórias de vida, para a captação e compreensão multidisciplinar e mais profunda das suas mensagens diversas oriundas da história de um grupo” (MARRE, 1991, p. 137).

A discussão sobre o status da História enquanto corrente epistemológica opondo, por um lado a ditadura da palavra escrita, que ate hoje contrasta com a fragilidade da palavra oral (BOM MEIHY, 1996), à visão da nova História livre de cânones rígidos, em que a história do presente, do cotidiano e da experiência individual adquiria significativa importância (JANOTTI, 1996), permitiram também o surgimento de muita discussão a respeito do status da história oral e, conseqüentemente, da história de vida. Alguns argumentam ser a história oral uma técnica; outros, uma disciplina; e outros, ainda, um método.

As gravações, transcrições e conservação de entrevistas e o aparato que cerca todos os tipos de registro, transcrição e organização de acervo são o foco principal dos que defendem a história oral como técnica (GODOI, BANDEIRA-DE-MELLO, SILVA, 2006). A defesa do status de disciplina, por sua vez, se centra na argumentação de que a história oral inaugurou técnicas especificas de pesquisa, procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos; esse conjunto, por sua vez, norteia as duas outras instancias, conferindo-lhes significado e emprestando unidade ao novo campo de conhecimento (FERREIRA e AMADO, 2001),

Na opinião de Ferreira e Amado (2001) a história oral é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar questões, formula as perguntas, mas não pode oferecer as respostas. São estas as bases que a definem, para as autoras, como um método de investigação, que apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho, tais como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um na pesquisa, as varias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o pesquisador relacionar-se com os entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho.

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Seja qual for a disciplina a que se recorra como base de elucidação teórica, o pesquisador encontrara nela os encaminhamentos para as suas questões, pois ela tem a capacidade de pensar abstratamente questões oriundas da prática, filtradas pelo método, produzindo conceitos que iluminam sua compreensão (FERREIRA e AMADO, 2001).

A história de vida tem como objetivo “a partir da totalidade sintética – que é o discurso específico de um indivíduo – reconstruir uma experiência humana vivida em grupo e de tendência universal” (MARRE, 1991, p. 89). Consiste na busca de conhecimento a partir da experiência do sujeito (BARROS; SILVA, 2002). É uma maneira de recolocar o indivíduo no social e na história. Inscrita entre a análise psicológica individual e a análise dos sistemas socioculturais, a história de vida permite captar de que modo os indivíduos fazem a história e modelam sua sociedade, sendo também modelados por ela (LAVILLE e DIONNE, 1999). Marre (1991) considera a história de vida em um sentido amplo, englobando tanto relatos orais como autobiografias escritas, longas entrevistas abertas e outros documentos orais ou testemunhos escritos. Segundo o autor, a história de vida, em sua faceta contemporânea, não foca sua investigação em sujeitos “atomizados” ou pouco relacionados entre si. Seu foco está na reconstrução da história estrutural e sociológica de determinados grupos sociais, na trajetória de um ou vários grupos sociais. “Nesse caso, a unidade de investigação não é nem uma autobiografia oral ou escrita, mas várias histórias de vida entrelaçadas e constitutivas das várias posições e itinerários da trajetória de um grupo” (MARRE, 1991, p. 108). Além disso, a história de vida apresenta uma leitura descontínua. O significado da experiência do grupo, expressa por meio dos relatos singularizados, não se apresenta de forma neutra ou objetiva. Segundo Frazier (1978) mecanismos de verificação do momento histórico devem ser utilizados, uma vez que as informações coletadas através dos métodos narrativos em geral, e pela história de vida em particular, tendem à parcialidade (SMITH; THOMAS, 2003). Para Costa (1997, p.8) “narrar é (re)construir verbalmente o presente, as lembranças e os desejos, é (re)elaborar a experiência individual no passado comum”

Pela narração de sua história, o sujeito se afirma como “existindo”. Ao contar sua história, o indivíduo pode “trabalhar” a sua vida, reconstruindo o passado, suportando o presente, embelezando o futuro. Reconstruir o passado significa mudar a relação com ele, re-significar sua existência, “remexer”, transformar. Contar a vida é um modo de ser re-fazer. Esse aspecto constitui importante faceta das histórias de vida, apresentando uma função de historicidade (Histoires de vie et choix théoriques, 1996, trad. p. 4). Para Gaulejac (2005), a função de historicidade significa a possibilidade de o indivíduo analisar e compreender os elementos que o constituem como sujeito histórico, reconstruindo sua relação com sua história. Para o autor, o homem é história, visto que tanto é produzido por ela, como também é produtor de sua própria história. Nesse sentido, as histórias de vida configuram-se como método rico e diversificado, cuja abrangência vai além da pesquisa, englobando intervenções, formação e terapia. Dessa forma, as histórias de vida são consideradas não apenas um método sociológico, mas também um método clínico, visto que os participantes são conduzidos a utilizar desse conhecimento para compreender melhor seu próprio destino.

No entanto, contar sua vida consiste em um encadeamento de recontares, de modo que fantasia e realidade, objetividade e subjetividade, lembrança real e lembrança transformada se misturam, tornando dubitável o que é verdadeiro e o que falso, sendo tal distinção não passível de vir da narrativa ela mesma. “O homem resiste a ver a realidade como ela é; ele ama travestí-la de acordo com seus desejos, com seus medos, com seus interesses ou sua

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ideologia” (Histoires de vie et choix théoriques, 1996, trad. p. 4). No entanto, se convém diferenciar real e imaginário, não se pode perder de vista que o imaginário é também a realidade e que este abre para uma possibilidade de sentidos, de significações, de direções e de explicações. Além disso, o que se busca em um relato de vida não é um espelho do social, e sim o modo como o indivíduo se apropria dele, projetando a sua subjetividade. Nesse sentido, ao pedir ao sujeito que conte a sua história, o que se busca é compreender o universo do qual ele faz parte, segundo seu ponto de vista, ou seja, da sua subjetividade em relação aos fatos sociais. Na história de vida, é o sujeito que ocupa o lugar central do que se conta. (BARROS; SILVA, 2002). Nessa discussão, Bosi acrescenta:

Qual versão de um fato é a verdadeira? Nós estávamos e sempre estaremos ausentes dele. Não temos, pois, o direito de refutar um fato contado pelo memorialista, como se ele estivesse no banco dos réus para dizer a verdade, somente. Ele, como todos nós, conta a sua verdade. Ser inexato não invalida o testemunho, diferentemente da mentira, muitas vezes exata e detalhista (BOSI, 2003, p. 66).

Além disso, destaca-se que não existe no método “a pretensão de demonstrar leis, de buscar a prova empírica de hipóteses teóricas ou encontrar causas últimas. O interesse é o conhecimento de uma situação ou objeto por meio de um saber que jamais é dado a priori, e sim construído na experiência cotidiana e na interlocução” (BARROS; SILVA, 2002, p. 136). Para as autoras é na especificidade de cada história que se encontra o “modo de trabalhar”. Senão, corre-se o risco de recolher o que o pesquisador deseja, e não o que foi construído na dinâmica existencial própria do entrevistado.

Para Gaulejac (2005) o método biográfico permite compreender o que há entre o universal e o singular, entre o objetivo e o subjetivo, entre o geral e o particular, entre o positivismo e o subjetivismo psicologizante. O material produzido pelas histórias de vida expressa as determinações sociais nas trajetórias individuais e a relação dos atores com essas determinações. Também permite compreender a relação entre o indivíduo produto da história e o indivíduo agente da historicidade.

As histórias de vida compreendem o tempo recomposto pela memória (GAULEJAC, 2005) e abordam sobre o tempo passado compreendido através do tempo presente (NEVES, 2001). Há também a distinção entre tempo vivido e tempo pensado. Este, relaciona-se às idéias, aos planos que ainda estão no imaginário do sujeito; aquele, às práticas vivenciadas. As idéias que surgem no nível do tempo pensado não devem ser desconsideradas; elas são o estado nascente do tempo vivido, na medida em que levam os indivíduos à prática. É importante observar nos relatos coletados “os momentos em que se começa a pensar determinadas idéias (tempo pensado), as que, mais tarde, transformar-se-ão em estratégias, práticas (tempo vivido)” (MARRE, 1991, p. 126).

Neves (2001) cita como importantes fontes de dados os depoimentos de histórias de vida, as entrevistas temáticas e as entrevistas de trajetórias de vida. Os primeiros constituem-se em depoimentos aprofundados que buscam reconstituir por meio do diálogo a história de vida do sujeito desde sua infância até os dias atuais. As entrevistas temáticas focam experiências ou processos específicos, ou podem constituir-se em desdobramentos dos depoimentos de história de vida. As trajetórias de vida são depoimentos de histórias de vida mais sucintos e menos detalhados. A autora ressalta também a complementaridade entre história de vida oral e pesquisa documental, ressaltando a importância desta como subsídio e informação à outra. Para Barros e Silva, as histórias de vida ajudam a ultrapassar os limites das histórias oficiais.

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Como ressalta Bosi (2003), história que se apóia apenas nos documentos oficiais “não pode dar conta das paixões individuais que se encontram atrás dos episódios” (BOSI, 2003, p. 15). Na análise das histórias, é importante perceber as influências recíprocas entre os diferentes registros da história do sujeito, entre os aspectos sociológicos e os aspectos psicológicos. O trabalho de interpretação das histórias de vida deve pautar-se, além do relato, nas situações concretas na qual os atores se encontram, na percepção dessa situação pelos indivíduos, à luz de teorias que o pesquisador introduz como referência de sua leitura das histórias (BARROS; SILVA, 2002). Bosi (2003) também destaca a importância de analisar não apenas as lembranças, mas também os esquecimentos.

Entrar na complexidade de uma vida é analisar o conjunto das influências, mais ou menos contraditórias, as quais o sujeito foi confrontado no curso de sua existência. Como ele se “fabricou” uma identidade própria a partir de sua identidade familiar e social [...]. Como ele foi produzido pelas múltiplas contradições que atravessaram a história de seu grupo de pertencimento, de sua família, de sua existência; contradições externas de seu meio de vida, mas igualmente contradições internas na medida em que ele interioriza o mundo do qual ele pertence (Histoires de vie et choix théoriques, 1996, trad. p. 4.)

4. História de vida na pesquisa do consumidor

Como se apontou anteriormente vários estudos têm guiado a pesquisa do comportamento do consumidor para uma abordagem interpretativista. Apoiado nesta perspectiva propõe-se a utilização da história de vida como método de conhecimento aplicado ao comportamento do consumidor.

Percebemos que o consumo carrega uma série de símbolos e significados que dificilmente seriam percebidos e analisados sem a utilização de um método qualitativo de pesquisa com orientação interpretativista. A realidade em que está inserido o consumidor e o vendedor é socialmente construída (ZINKHAM e HIRSCHEIM, 1992; CHUNG e ALAGARATNAM, 2001). A pesquisa interpretativa, portanto, é um processo emergente e, assim como as realidades percebidas sofrem mudanças, o desenho da pesquisa se adapta a estas mudanças. (SAUERBRONN e CERCHIARO, 2004).

Poder-se-ia argumentar que a pesquisa qualitativa, principalmente aquela que utiliza das entrevistas em profundidade resolveria o problema de conhecimento sobre o consumidor. Segundo Malhotra, estas “são entrevistas não estruturadas, diretas e pessoais, em que o respondente é instado por um entrevistador altamente qualificado a revelar motivações, crenças, atitudes e sentimentos sobre um determinado tópico” (MALHOTRA, 2001, p. 163) Como se vê, o alcance da pesquisa qualitativa através das entrevistas em profundidade é restrito e se atém a problemas específicos do comportamento. O que se propõe é uma análise mais abrangente e completa do comportamento do consumidor, que considere não somente a perspectiva das motivações, crenças, atitudes e sentimentos, mas que permita o entendimento do contexto social e histórico que derivam nestas.

Outro argumento em defesa da possibilidade de utilização da história de vida como método de pesquisa do comportamento do consumidor é o mesmo utilizado por Pinto e Santos (2008) na defesa do método etnográfico. “A inclusão e a “devida” análise do contexto (simbólico e

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natural) de produção dos discursos (text and talk) podem contribuir, e muito para a nossa compreensão do “comportamento humano” (HANSEN, 2006) em geral, e do ‘comportamento do consumidor’ de maneira específica” (PINTO e SANTOS, 2008).

Diferentemente da etnografia, entretanto, que permite, como afirma Barros (2007), identificar, contextualizando e descrevendo, a lógica cultural dos “pesquisados” em seu próprio contexto, incluindo os artefatos, rituais, lay-outs, decoração e uso de objetos, a história de vida aplicada ao âmbito do comportamento do consumidor permitiria identificar o contexto histórico e social que levou às escolhas do consumidor.

Conforme Paulilo (1999), a história de vida pode ser considerada instrumento privilegiado para análise e interpretação, na medida em que incorpora experiências subjetivas mescladas a contextos sociais. Ela fornece, portanto, base consistente para o entendimento do componente histórico dos fenômenos individuais, assim como para a compreensão do componente individual dos fenômenos históricos.

Este aspecto tem total consonância com a abordagem interpretativista requisitada pelos novos estudos e pesquisas do comportamento do consumidor, como se argumentou anteriormente. Por outro lado, o método da história de vida entendido a partir da dimensão de construção da temporalidade do pesquisado livraria a pesquisa do que Bourdieu (1986) chama de ilusão biográfica, o formatos diacrônico de narrativa, que tenta ordenar os acontecimentos de uma vida com começo, meio e fim, formando um conjunto coerente e estável.

Denzim (1984) distingue duas formas de temporalidade. O tempo ordenado como passado, presente e futuro ordenado como fator contínuo e o tempo interior, contínuo e circular, o tempo fenomenológico. O autor afirma que uma vida pode ser mapeada em termos de episódios cruciais de cujo manejo resultam os seus significados. E, contando delas, as pessoas contam mais do que uma vida, elas contam a vida de uma época, de um grupo, de um povo. Se o consumo adquire status de elemento central, aglutinador e diferenciador das esferas sociais, que iguala e diferencia os indivíduos como afirma Baudrillard (1991) é bastante lógico pensar a vida marcada por instantes e episódios cruciais de aquisição de objetos de consumo. Identificar momentos e tempos que mudaram os significados sociais, e consequentemente, o status social de uma pessoa a partir da aquisição do primeiro carro, ou do primeiro carro importado, dentro de um contexto simbólico e natural, pode dizer muito do comportamento do consumidor.

5. Considerações finais

A pesquisa do comportamento do consumidor tem enveredado por abordagens não-positivistas em uma série de estudos. Como afirma Simonson (2001) o comportamento do comprador oferece um excepcional e rico domínio para o estudo de uma vasta gama de fenômenos do mundo real que têm potencialmente importantes implicações teóricas.

Uma série de métodos e técnicas tem sido propostas e desenvolvidas para alargar e abranger a dimensão de entendimento do comportamento humano visto sob a ótica do consumo. Dentro desta perspectiva é que se propôs a história de vida como método adequado ao entendimento desta faceta humana. A pretensão, neste sentido, não é limitadora e exclusivista, mas colaborativa e abrangente, no sentido de possibilitar uma contribuição para o entendimento do

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construção de teorias substantivas sobre o comportamento de consumo, debaixo do guarda chuva ontológico da realidade enquanto uma construção social

A história de vida aplicada ao comportamento do consumidor, neste sentido, não deve fugir das recomendações de rigor e validação metodológica recomendadas a outros métodos de investigação e pesquisa. Desta maneira, os cuidados na condução da entrevista, da transcrição e análise das informações devem ser bem observadas.

No âmbito das representações e da produção de sentido, como pondera Paulilo (1999, p. 143), “as entrevistas são (devem ser) tratadas como encontros sociais, nos quais conhecimentos e significados são ativamente construídos no próprio processo da entrevista; entrevistador e entrevistado são, naquele momento, co-produtores de conhecimento. Participação, neste nível de interação, envolve ambos em um trabalho de produção de sentido, trabalho no qual o processo de produção de sentido é tão importante para a pesquisa como o é o sentido produzido”.

Em relação à transcrição das falas e narrativas, observa bem Queiroz (1988), a dificuldade de transformar o “indizível” em “dizível”. Considera a autora que a passagem da “obscuridade dos sentimentos para a nitidez do vocábulo” é um primeiro enfraquecimento da narrativa, uma vez que a palavra não deixa de ser um “rótulo classificatório” utilizado para descrever uma ação ou uma emoção. Lembra ainda que, assim como o desenho ou a palavra constituem uma reinterpretação do relato oral, o entrevistador, da mesma forma, reinterpreta aquilo que lhe foi narrado.

A análise das entrevistas, por sua vez, deve considerar não somente a análise do conteúdo como forma categorizante como pondera Bardin (1997), mas a análise da lógica do discurso, ou seja, na dinâmica da entrevista e nas figuras de retórica. Figuras de retórica, tais como o paradoxo e a metáfora são indicadores preciosos para a compreensão e interpretação do discurso.

Por fim, cabe a observação de Portelli (1997), de que cada entrevista é composta de um discurso único e singular, e que, portanto, deve ser considerada em sua totalidade. Esta singularidade, entretanto, não significa reducionismo, mas possibilidades de construção, validação e transformação de teorias quando cruzadas, comparadas e acrescentadas de outras informações coletadas com mesmos métodos, ou mesmo, com outros métodos complementares.

Investigar o comportamento do consumidor a partir da utilização do método de histórias de vida, como se propõe neste artigo, encontra, por fim, uma argumentação incontestável, a de que o marketing acontece no mundo social (ZINKHAM e HIRSCHEIM, 1992) e se as relações de consumo ocorrem dentro desta construção social, as possibilidades ontológicas de análise seriam, portanto, múltiplas (CHUNG e ALAGARATNAM, 2001),

O estudo do comportamento do consumidor lida, como afirma Casotti (1999) com gente e a tendência do ser humano em procurar dar significado à sua vida compartilhando linguagem, sinais e objetos simbólicos que conferem sentido à sua existência não pode ser dissociada de sua história.

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Referências

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