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Memória e discurso: reflexões sobre a trajetória do ensino de espanhol a. partir da análise de textos oficiais

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Academic year: 2021

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Memória e discurso: reflexões sobre a trajetória do ensino de espanhol a partir da análise de textos oficiais

Maria Cecília do Nascimento Bevilaqua (UERJ)

Apresentação

“Quem não se lembra da ênfase dada à gramática e à memorização de listas de vocabulários? E a crença nos métodos audio-visuais e audio-orais? Estas perspectivas e outras mais ainda estão presentes no cotidiano de professores. Elas contam nossa história, nossas constantes tentativas de vencer a tradição, desvendar o novo, pensar em soluções para problemas que ainda persistem, enfim, abrir janelas para o mundo de modo a estabelecer um diálogo atualizado com a realidade de nossos dias.”

Caetano Veloso.

Ao longo de nossa trajetória de formação e atuação profissional, desenvolvemos, por meio da realização de projetos de pesquisa, reflexões a respeito da memória do ensino de língua espanhola no Brasil. A partir da consideração de que o percurso do espanhol nas escolas do país apresenta singularidades, sendo marcado por períodos de ausências e retomadas e, em grande parte desconhecido devido à falta de conservação de registros, buscamos reunir elementos capazes de orientar a (re)construção de uma memória discursiva referente ao trabalho desse ensino. A motivação para o interesse pelo tema deve-se a dois fatores intimamente relacionados: a condição de professora do idioma e a participação de pesquisas na área de Lingüística Aplicada, o que nos impulsionou a adentrar no percurso de reflexão sobre a nossa própria prática profissional.

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Nessa perspectiva, este artigo visa a avançar nas discussões a respeito do tema. Ante a possibilidade de recorrer a contribuições oriundas de diferentes fontes, tais como relatos, campo da historiografia educacional, materiais didáticos e trabalhos acadêmicos dedicados ao tema, direcionamos nosso interesse para documentos oficiais, tendo em vista a relevância desses discursos como regulamentadores do ensino em diferentes momentos da história da educação brasileira.

Interessamo-nos, portanto, pelo estudo de textos tradicionalmente vistos como constituídos em situação externa ao trabalho de ensino stricto sensu, mas que garantem a circulação de sentidos atribuíveis a essa prática. Destacamos que o resgate de uma memória de ensino a partir do foco nesses documentos ganha respaldo no presente estudo de acordo com a perspectiva teórica por nós assumida, que privilegia a relação essencial que se estabelece entre o discurso e seu entorno (BAKHTIN, 1992). Nesse enfoque, trataremos mais especificamente do Decreto-Lei n. 4.244, de 9 de abril de 1942, a Lei Orgânica do Ensino Secundário, documento que inclui oficialmente o ensino de espanhol na grade curricular das escolas do país.

Com base no princípio de que toda atividade de linguagem está em interação permanente com as situações sociais no interior das quais é produzida, destacamos a importância de apresentar comentários relativos ao contexto político que possibilita a emergência da Lei Orgânica do Ensino Secundário. Cabe ressaltar que por meio da determinação da Lei, a educação ficou centralizada no Ministério da Educação, que decidia sobre quais línguas deveriam ser ensinadas, a metodologia e o programa a serem trabalhados em cada série. Nesse período, a língua espanhola foi valorizada como disciplina curricular, pois representava um modelo de patriotismo e respeito às tradições e história nacional (PICANÇO, 2003).

A partir dessas considerações e tendo em vista os limites deste estudo, nosso percurso consiste em abordar aspectos relativos ao contexto histórico em que

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se insere o texto oficial em questão, a fim de situar a proposta de ensino apresentada no documento.

O cenário político da Era Vargas e a sistematização da educação

As medidas implementadas no campo da educação durante o primeiro governo de Getúlio Vargas desempenham um papel crucial como participantes de um discurso mais amplo de legitimação política. Cria-se, à época, um ambiente propício ao surgimento de reflexões que estimulariam uma significativa reformulação do sistema educacional1. No momento de consolidação do conceito de nacionalidade e

identidade nacional, ganha espaço uma concepção de educação como via para o alcance dos ideais de “civilização” e “modernidade” (PICANÇO, 2003, p. 28). É dentro desse enfoque que consideramos as propostas de duas decisões governamentais que incidem diretamente sobre a estrutura do ensino secundário: a Reforma Francisco Campos e a Reforma Capanema, respectivamente nomeadas em alusão aos ministros que as encaminharam. Apresentamos, a seguir, um breve comentário a respeito da proposta veiculada em cada um desses textos.

A Reforma Francisco Campos (Decreto n. 19.890 de 18/04/1931) é pioneira no país por estabelecer as bases dos ensinos primário, secundário e superior. Subdividiu o ensino secundário nos cursos fundamental ou ginasial, com duração de cinco anos, e complementar, com duração de dois anos. Ao segmentar o ensino secundário em séries e atribuir-lhe um extenso currículo, promove uma mudança em seu perfil, visto que até então se caracterizava como simples preparatório para a universidade.

A Reforma Capanema (Decreto-lei n. 4.244 de 09/04/1942) segue muitas orientações apontadas pela Reforma de Campos, no entanto, inova em alguns

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Surge uma fechada definição de currículos e uma nova ênfase no ensino humanístico com relação ao técnico. Além do ensino complementar, subdividido em clássico e científico, surgem cursos profissionalizantes que, com foco diferenciado, buscavam atender a um público que não fosse seguir carreira universitária.

Cabe ressaltar que a Reforma do ministro Capanema manifestou notável interesse pela questão metodológica. Assim como o texto oficial de Francisco Campos, recomendava o uso do método direto, com ênfase na praticidade do ensino (LEFFA, 1999, p. 5). Em contrapartida, baseava-se na idéia de que o ensino deveria ultrapassar os aspectos instrumentais de modo a oferecer aos estudantes uma sólida cultura geral. A partir dessa ótica, o ensino de línguas estrangeiras, que ocupava à época um grande espaço na grade curricular, sofreria significativas transformações.

A principal mudança na área do ensino de línguas é a retirada do alemão do currículo oficial das escolas secundárias, devido ao interesse do governo em vincular os programas de ensino à questão nacionalista. Nesse contexto, o espanhol, considerado como idioma de grandes autores como Cervantes e Lope de Vega, apresentava as condições necessárias para substituir o alemão e, assim, figurar no cenário educacional ao lado do francês e do inglês (PICANÇO, 2003, p. 33).

No que diz respeito à referência ao espanhol na letra da Reforma do ministro Capanema, outro aspecto merece nossa atenção. O idioma foi incluído na área de Línguas juntamente com as disciplinas de português, latim, grego, francês e inglês. Cabe observar que, de acordo com a determinação da Reforma, o número de horas destinadas ao espanhol nas escolas era relativamente pequeno, dado que indica a pouca importância que seguramente era dada ao ensino do idioma no referido contexto.

Com esse breve histórico, observamos a caracterização de um panorama educacional peculiar, marcado pela imposição de decisões oficiais que atendem a interesses diversos (políticos, econômicos, culturais), de acordo com os desafios

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propostos à época. A atualização dessa memória possibilitou-nos a reconstrução de um cenário em que as línguas estrangeiras são compreendidas como participantes de uma formação humanística, quadro esse que permanece até meados do século XX (PICANÇO, 2003). Nesse processo, podemos verificar a emergência de sentidos constituídos historicamente a partir da identificação entre o ensino dessas disciplinas e a busca por um ideal de erudição.

A seguir, apresentamos comentários referentes à proposta de ensino apresentada na Lei Orgânica do Ensino Secundário.

Uma nova proposta para a educação

O quadro abaixo assinala os principais temas contemplados pela Lei Orgânica do Ensino Secundário, por meio da referência aos Títulos que a compõem:

a) Disposição geral da Lei Orgânica do Ensino Secundário

Título I Das bases de organização do ensino secundário Art. 1º a 9º

Título II Da estrutura do ensino secundário Art. 10 a 24

Título III Do ensino secundário feminino Art. 25

Título IV Da vida escolar Art. 26 a 68

Título V Da organização escolar Art. 69 a 85

Título VI Das medidas auxiliares Art. 86 a 90

Título VII Dos estudos secundários dos maiores de dezessete anos Art. 91 a 93

Título VIII Disposições finais Art. 94 a 96

Teceremos, a seguir, algumas considerações referentes aos dois primeiros títulos da Lei, considerações essas de fundamental relevância, a nosso ver, para o entendimento da proposta pedagógica privilegiada pelo documento.

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O Título I, “Das bases de organização do ensino secundário”, subdivide-se em quatro capítulos. Interessa-nos, especificamente, situar o leitor com relação ao conteúdo do Capítulo I, que apresenta as finalidades do ensino secundário. O artigo que corresponde ao capítulo expressa o seguinte:

Art. 1º O ensino secundário tem as seguintes finalidades:

1. Formar, em prosseguimento da obra educativa do ensino primário, a personalidade integral dos adolescentes.

2. Acentuar e elevar, na formação espiritual do adolescente, a consciência patriótica e a consciência humanística.

3. Dar preparação intelectual geral que possa servir de base a estudos mais elevados de formação especial.

A leitura do fragmento nos permite observar concepções de ensino que, de certo modo, emergem no texto da Lei. Verificamos, dessa forma, a valorização de uma formação que objetive não somente oferecer ao aluno certo preparo intelectual, mas também, formar seu “espírito” e “personalidade”. Assim, a escola cumpriria a finalidade maior de preparar o indivíduo para servir ao país. Compreende-se, nessa ótica, a importância de realçar determinada “consciência patriótica” e “humanística”.

Com relação ao Título II do documento, selecionamos o Capítulo III, que trata dos programas das disciplinas:

Art. 18. Os programas das disciplinas serão simples, claros e flexíveis, devendo indicar, para cada uma delas, o sumário da matéria e as diretrizes essenciais. Parágrafo único. Os programas de que trata o presente artigo serão sempre organizados por uma comissão geral ou por comissões especiais, designadas pelo Ministro da Educação, que os expedirá.

Na seção destacada, percebemos claramente a normalização do ensino na referência a programas organizados por comissões designadas pelo governo. A exigência de que os programas sejam “flexíveis” aponta, de certo modo, para uma visão de currículo como algo maleável, ou seja, passível a modificações de acordo com a necessidade de determinado contexto de ensino.

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Considerações finais

De acordo com o objetivo mais amplo de contribuir para uma maior visibilidade sobre a trajetória do ensino de espanhol no país, o enfoque desenvolvido neste estudo voltou-se para uma discussão acerca da proposta de ensino privilegiada no texto da Lei Orgânica do Ensino Secundário, responsável pela implantação oficial do espanhol no currículo das escolas brasileiras.

O posicionamento teórico-lingüístico aqui assumido considera a enunciação como referência fundamental para a constituição de sentidos dos fenômenos lingüísticos. Nessa perspectiva, buscamos apresentar comentários relativos ao contexto de produção em que se insere o texto oficial em questão, a fim ressaltar a relação essencial que se estabelece entre o discurso e seu entorno sociohistórico.

Ressaltamos o interesse de avançar nessas reflexões, tendo em vista o propósito de melhor compreender como se opera, no texto de legislação educacional, a construção de determinadas concepções de língua e do ensino/ aprendizagem de língua, nesse caso, do espanhol LE, as quais determinam a valorização ou não do idioma no cenário educacional e, desse modo, perfilam sua trajetória. Destacamos a pertinência desse enfoque para o alcance de uma maior visibilidade tanto sobre aspectos que marcaram o ensino de espanhol no passado como sobre questões que incidem na atual prática docente do idioma, que dialoga com um contexto histórico anterior.

Referências

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BRASIL. Lei orgânica do ensino secundário e legislação complementar. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955.

CELADA, M. T.; GONZÁLEZ, N. M. Los estudios de lengua española en Brasil. Anuario brasileño de estudios hispánicos, Madrid, n. 1, p. 35-57, 1990.

CHAGAS, R. Valnir C. Didática especial de línguas modernas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

GOMES, Angela de Castro. O primeiro governo de Vargas: projeto político e educacional. In: MARIGALDI et al. (Orgs.). Educação no Brasil: História, cultura e política. Bragança Paulista: EDUSF, 2003.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.

PICANÇO, D. C. de L. História, memória e ensino de espanhol (1942-1990). Curitiba: Ed. da UFPR, 2003.

Nota

1 De acordo com Picanço (2003, p. 20), alguns intelectuais que questionavam o modo de

conduzir o sistema de ensino no governo anterior ocuparam importantes cargos administrativos no país, o que possibilitou a realização de uma reforma no âmbito educacional.

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