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A poesia da rua que brota o mundo

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Academic year: 2020

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Luciana Sacramento Moreno1 (UNEB)

RESUMO: O artigo tece análise sobre a concepção de literatura que permeia os poemas e textos em prosa poética presentes nos livros Colecionador de pedras e Literatura, Pão e Poesia, do escritor Sérgio Vaz. O autor se inclui na cena contemporânea brasileira, no movimento literário designado de Literatu-ra Periférica. Pensar tal produção, pelo viés da análise literária, se constitui em empreendimento signi-ficativo, porque a produção acadêmica em torno desta literatura tem se dedicado mais a questões so-ciológicas do que literárias e visa, além de promover a leitura de tais obras, fomentar a discussão sobre os espaços literários em que esses textos são escritos, considerando o seu contexto de produção. Por isso, trilhou-se o percurso metodológico da pesquisa bibliográfica. O referencial teórico que lastreia esta discussão, no que se refere aos estudos da literatura brasileira contemporânea, referenda-se em Lajolo (2001), Resende (2008), Dalcastgné (2012), Nascimento (2009), Reyes (2013), Barthes (1978) e Candido (2000).

Palavras-chave: literatura; periferia; contemporâneo; Sérgio Vaz.

NA TORRE DE BABEL: REFLEXÕES SOBRE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂ-NEA E A ESCRITA DE SÉRGIO VAZ

Marca a produção literária contemporânea o autocentramento. Marisa Lajolo (2001) caracteriza esta escritura forte presença da metalinguagem e da autorreferên-cia. Nesta, o escritor aborda seu fazer poético, a literatura, e modula termos espe-cíficos da escrita. Tal presença confirma-se na poética do escritor mineiro, radicado em São Paulo, Sérgio Vaz, de forma recorrente. A intertextualidade, outro fator de distinção importante nesse tempo, também aparece de forma reincidente na poética de Vaz.

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Já Beatriz Resende (2008) aponta a produção literária contemporânea como fér-til. Indica que os escritores do presente são “uma espécie de performer” (Resende 2008: 16) e “publicam como possível” (Resende 2008: 17), não esperando legitimação nem dos espaços elitizados do saber nem do mercado editorial. E constata: “novas vozes surgem a partir de espaços até recentemente afastados do universo literário” (Resende 2008: 17). Aspectos relacionados à produção literária de Sérgio Vaz, que escreve, promove e recita em saraus, criando suportes para além do livro, de publica-ção de sua literatura, como muros, camisetas, postais etc.

Fala-se também que a produção literária contemporânea no Brasil, revela uma co-existência plural, sem exclusões (resende 2008: 18). Ou melhor, uma Torre de Babel, em que o convívio da diversidade não vira tragédia, mas constrói novas possibilida-des de ser, estar e intervir no mundo. Deflagra, possibilida-desta maneira, a presença de espaços de produção distintos, como também de autores, linguagens, suportes etc.

Todavia, para Dalcastgné (2012), este não é um cenário tranquilo, até porque, ao contrário do que parece “o campo literário brasileiro ainda é extremamente ho-mogêneo” (Dalcastagné 2012: 7). assim, apesar da consciência da ampliação de terri-tórios, a presença de novas vozes tem causado desconforto neste espaço turbulento e disputado, que é o da literatura. Ou como declara Vaz: “alguns sábios não estão gostando nada de ver a palavra bonita beijando gente feia” (2012: 47), realizando uma provocação, para depois relativizar, ironicamente, as noções de sábios e feios.

Por fim, a presença das tecnologias de informação e comunicação como cami-nhos que oportunizam a visibilidade das escritas emergentes e seu consequente de-bate, como também a abertura do mercado impresso, através do barateamento dos custos de produção do livro são destacado por Schollhammer (2011). Outra presença na literatura de Sérgio Vaz, o uso da internet e redes sociais como espaço de divulga-ção de sua escrita e uma inserdivulga-ção no debate social contemporâneo, sem permitir que tal engajamento, o dissocie do subjetivo e de certa introspecção.

SÉRGIO VAZ E A CONSTRUÇÃO DE UMA LITERATURA PERIFÉRICA

Nesse emaranhando de discussões sobre a literatura brasileira contemporânea, deflagra-se, a partir do final dos anos 90 do século XX, viés fértil de criação literária a emergir no âmbito das culturas da periferia. Sabemos que historicamente, a literatu-ra bliteratu-rasileiliteratu-ra é marcada por autores que, ao tliteratu-ratarem de questões como a pobreza ou sobre as produções culturais das classes populares e/ou desfavorecidas economica-mente, fazem issosem terem conhecido estes espaços “desde dentro”, ou melhor, sem terem nascido ou residido nestes lugares. É óbvio que aqui não se discute o méri-to de tais produções literárias. Todavia, se questiona o silenciamenméri-to das vozes sobre a periferia, produzidas pelos sujeitos oriundos destes territórios.

Por isso, estudar textos da literatura brasileira contemporânea cujos autores fa-lam, a partir de sua inclusão em contextos periféricos, é ação significativa, que

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obje-tiva visibilizar estas obras literárias, trazendo-as para o centro do debate. E urge ser empreendida, especialmente se a intenção investigativa não se limitar ao valor socio-lógico desta produção, pois do “ponto de vista literário, ela oferece novos desafios no contexto da história da literatura brasileira: pelo conteúdo, pela forma, pela lin-guagem e, sobretudo, pelo lugar de enunciação” (Reyes 2013: 15). Assim, a intenção aqui é tecer uma análise literária dos poemas e da prosa poética, presente nos livros

Colecionador de Pedras e Literatura, Pão e Poesia, do escritor Sérgio Vaz para

compre-ender, através do recorrente uso da metalinguagem, qual concepção de literatura emerge destes textos.

Assim, faz-se necessário compreender o termo periferia para, a partir disso, situar a literatura que será objeto de reflexão neste artigo. entende-se aqui periferia como comunidades, situadas em territórios (espaços geográficos), que são historicamente silenciadas, invisibilizadas e marginalizadas pelas elites e, por consequência disso, a tais espaços é legada uma organização urbana deficitária. corroboramos com a defi-nição de Reyes que entende periferia como o espaço:

onde se concentra a classe trabalhadora que faz funcionarem as cidades; os excluídos, os marginalizados, as pernas e os braços ignorados de um dos países mais desiguais do mundo. (...). lá a violência é coisa de todos os dias (...). Mas é também espaço de camaradagem solidária (...). E espaço também de luta, resistência, consciência, rebeldia, organização, esperança. (reyes 2013: 14) Destas localidades provém uma literatura que brota em chãos marginalizados e continua a vicejar, evidenciando uma mudança em relação ao acesso ao texto literá-rio e a formação do gosto de leitura. Outrora, pairava a compreensão de que a leitura literária constituía-se em prática pertencente exclusivamente a grupos cuja formação leitora encontra-se consolidada e em que o acesso ao livro é mais amplo. Atualmente, observa-se que autores e leitores periféricos constroem soluções criativas de aproxi-mação deles mesmos à leitura literária, dessacralizando tal ação e a incluindo vasta-mente em seus cotidianos. Para hollanda:

Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. (2009: 4)

Assim, práticas de leitura e escrita passam a ser disseminadas como importante instrumento de construção identitária, inserção social, ampliando as funções da lin-guagem artística e da produção literária em espaços antes considerados desautori-zados.

Reyes (2013) problematiza a literatura periférica como insólita, certamente por ser gestada e desenvolvida em espaços tradicionalmente considerados inusitados,

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quando se fala em escrita literária. Para além disso, afirma a literatura aí fomentada como combativa, rebelde e criativa; assim, define esta como: “uma literatura de au-torrepresentação, com uma dimensão política e social importante – a enunciação de realidades invisibilizadas, feita por setores sociais que historicamente têm tido um acesso mínimo à palavra escrita” (Reyes 2013: 14).

Por fim, mas ainda na tentativa de compreensão deste fenômeno literário, consi-deramos a concepção de vaz pontual e definitiva, porque ao indicar que a literatura grega é a feita pelos gregos, nos sinaliza com objetividade que a Literatura Periférica é a feita por pessoas que moram na periferia e é produzida por homens e mulhe-res cuja visão de mundo é construída neste território. Concluindo com picardia para aquele que questiona indignado ao poeta, se quem nasceu em bairro nobre não pode escrever literatura periférica, este responde: “Pode (...). só que não vai ficar bom” (Vaz 2015).

O POEMA DE TERNO E GRAVATA DESFILA AGORA SEM CAMISA: CONCEPÇÕES DE LITERATURA NA ESCRITURA DE SÉRGIO VAZ

Definir literatura tem sido empreendimento recorrente para os estudiosos do tema, todavia, parece que a única concepção a que se chegou é de que esta noção é sempre plural, vinculada aos anseios de um determinado tempo e lugar. Sobretudo porque “Um texto pode vir a ser ou deixar de ser literatura ao longo do tempo” (La-jolo 2001: 13).

Para assegurar a existência deste objeto social é indispensável, pelo menos, a pre-sença de quem escreve e de outro que leia este escrito, além de meios para promover o acesso do leitor àobra literária. Todavia, a arte literária exige, para ser legitimada como tal, que “canais competentes” proclamem “um texto ou um livro como litera-tura” (Lajolo 2001: 18).

Nos textos dos livros Colecionador de Pedras e Literatura, Pão e Poesia, Sérgio Vaz lembra aos seus leitores, de forma incisiva, que literatura é arte, talvez para dissociá-la de uma disciplina meramente escodissociá-lar ou de algo que só passeia nos espaços onde o saber encontra-se sacralizado. Para sérgio vaz, há duas concepções de literatura: “uma sisuda, inatingível, feita para deleite somente dos letrados, ‘bem nascidos’ in-telectuais, acadêmicos; já a outra abre tanto os braços para atingir a diversidade que nem é chamada de literatura. Esta se confunde com a própria vida.” (Vaz 2011: 165).

A primeira ideia de literatura está encastelada nos espaços privilegiados de poder e acesso aos bens culturais e artísticos. a outra se faz na rua e se configura não no livro apenas, mas na vida cotidiana das pessoas. Esta é,para o autor, a literatura pe-riférica, uma literatura implicada com o seu tempo e as demandas políticas, sociais, culturais e artísticas das populações excluídas socialmente no Brasil.

O poeta situa este último conceito de literaturaa partir da questão da identificação entre leitor, texto e contexto histórico. Para compreendê-la nem sempre se fazem

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necessários os conhecimentos escolares, linguísticos ou enciclopédicos. Ela pode até se reportar a tais saberes, no entanto, sempre parte de uma relação que não é da ordem da compreensão estrutural, científica, detalhista de cada fragmento do texto, mas é da relação de reconhecimento entre o leitor e a visão do mundo expressa pelo autor, ou melhor, da possibilidade do leitor enxergar-se no texto literário.

a forma aguerrida em que o poeta defende a literatura periférica opõe-se a visão de que para se aproximar do texto literário é preciso municiar o leitor de recursos e aprendizagens próprias da língua ou da teoria literária. Porque nos textos de Sérgio Vaz exorta-se uma aproximação pelo viés do diálogo entre texto e autor, ou seja, se o texto trata de aspectos próprios da realidade do leitor, utilizando uma linguagem próxima deste universo, os leitores compreenderão a máxima “literatura é vida” e não temerão manuseá-la, porque, ao deixar de ser objeto sagrado, os leitores não a estarão profanando, mas apenas usufruindo de um direito humano e reivindicando um legado histórico que a eles pertence. Vale ressaltar que esta perspectiva de Vaz não se restringe a sua concepção de literatura periférica, mas vale para o que se con-vencionou chamar de cânone.

Entretanto, nos versos de Vaz, a literatura periférica, diferente da literatura eleita como canônica, evoca toda sorte de emoções humanas, inclusive as consideradas como ordinárias ou impróprias. Tudo cabe em tais textos literários, pois eles abarcam a diversidade, enunciando tanto o local e o próximo, quanto o universal e o distante. Esta literatura usa termos e linguagens do cotidiano de homens e mulheres periféri-cas. Nela, o pobre nunca se vitimiza nem acredita nos discursos que o inferiorizam. Ainda que venha alguém dizer “que ‘não pode’” (Vaz 2011: 165), insistem e combatem a proibição pela via da desobediência, pois escrevem “sobre essas coisas, dos dias que doem e dos dias que não doem” (Vaz 2011: 165). Nesta queda de braço, a poesia periférica, não se submete, nem é subserviente ao erudito. Pelo contrário, a escrita periférica não se curva; ela é altiva, orgulhosa de si, do seu lugar, das suas escolhas.

Num poema de apenas três versos, o escritor declara “Não faço poesia, / jogo fu-tebol de várzea/ no papel” (Vaz 2013: 123). Nele, o poeta realiza a máxima associação da sua literatura à periferia ao metaforizá-la com uma das práticas culturais que mais caracterizam tais espaços urbanos brasileiras: o futebol de várzea. Este condensa em si o amadorismo (que tanto pode ter a acepção de uma prática não profissionalizada, quanto da posição de apreciador, amante de algo) com uma organização própria, diferente da sistematizada por confederações ou clubes e, talvez, por isso, mais es-pontânea, criativa. Relaciona tais aspectos à liberdade de sua criação literária, à não-vinculação a um paradigma ou tradição e também indica que sua produção tanto do lado de quem atua (o escritor) quanto do espaço de onde emerge (a periferia) não conta com estrutura pré-estabelecida, nem apoios dos espaços de legitimação do saber.

Tal verso evoca o futebol, considerado patrimônio representativo do Brasil e co-nhecido internacionalmente pelos seus êxitos. Nele, os grandes jogadores profissio-nais são, em maioria, homens, jovens, negros, oriundos das periferias que iniciam

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suas carreiras e relação de afeto pelo futebol nas várzeas dos bairros populares deste país.

O futebol e a poesia, considerados na literatura de vaz, como paixões e, neste caso, sinônimos, aproximam-se pelo caráter surpreendente que trazem em si. configuram-se como epifanias, porque revelam de maneira inesperada, quaconfiguram-se divina, configuram-sentidos implícitos. Na superfície, trazem uma aparente mesmice, todavia “os personagens parecem que sempre são os mesmos, mas não são, e ninguém, quase nunca, sabe o final” (vaz 2011: 88).

A poética de Vaz adverte aos leitores que esta literatura, a que não é periférica, dorme em “lençóis de seda” (Vaz 2013: 153) e é responsável pelo afastamento e re-ceio de os leitores a ela mesma sobretudo quando ignora os fatos sociais, não se en-volvendo na problemática de seu tempo. Além disso, opta por se aproximar somente daqueles que detém o poder político e econômico e se instala nas estruturas especí-ficas desses grupos sociais. esta, em vez de criar possibilidades de acesso a produção literária, a torna inacessível para a maior parte dos leitores, sobretudo, para aqueles que não circulam nos espaços socialmente privilegiados. Lugares que no contexto brasileiro, historicamente, têm fornecido livre acesso apenas para as elites e excluído as populações periféricas. como vaz declara no texto Literatura das Ruas: “A litera-tura é uma dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Frequenta os casarões, bibliotecas inacessíveis ao olho nu e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços” (Vaz 2011: 35).

Para candido, literatura é “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramá-tico em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura” (Candido 2004: 179). Por isso, pensar nessa manifestação artística é aceitar que ela não é pro-duzida apenas em espaços eleitos como letrados, mas está presente nas sociedades humanas, de tempos e lugares diversos. Tal posicionamento confirma a consolida-ção da literatura periférica. Todavia, para legitimá-la é preciso que o sistema literário, sustentado pelo tripé autor, obra e público, seja visibilizado. Certamente, por esta razão a autorreferência é constante na poética de vaz, pois confirmar a noção de literatura que alicerça este movimento é também validar suas estratégias de escrita, autorizar-se como escritor e fidelizar leitores que se identifiquem com a tônica desta literatura.

Desta forma, Vaz dialoga com a poesia engajada, ao defender a escritura como uma prática implicada com as coletividades, como um instrumento de intervenção no mundo e de luta a favor de uma sociedade mais justa e igualitária. A literatura periférica, portanto, não silencia nem compactua com os problemas que envolvem a realidade. Ela é ferramenta de luta que “desperta” os adormecidos (Vaz 2011: 45) e os mobiliza a enxergar com profundidade o contexto social que os circunda e suas ma-zelas, podendo provocá-los a agir de uma forma transformadora, em prol da ruptura de paradigmas e da criação de outras ordens de pensamento e ação.

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Em seu “Manifesto da Antropofagia Periférica”, intertexto com o “Manifesto An-tropofágico”, de Oswald de Andrade, Sérgio Vaz declara sua poética como contrária a arte que serve ao capitalismo e aos ideais de consumo forjados nesse sistema. So-bretudo, aqueles que criam modelos hegemônicos e excludentes de acesso aos bens materiais e imateriais e tornam os que não possuem os objetos de compra como prisioneiros deles, pela via do desejo. Além disso, declara-se contrário a uma arte que não nasce da criação livre, mas segue parâmetros pré-fabricados e, por isso, reducio-nistas, destruindo a possibilidade de o leitor sentir-se provocado, confrontado, mobi-lizado pela produção artística. Estas fazem algo que para o poeta contraria a própria natureza da arte, pois conformam “o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nascem da múltipla escolha” (Vaz 2011: 50).

No seu manifesto, o poeta repete o verso: “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza” (Vaz 2011: 50), como se quisesse convencer seus leitores a se questionarem sobre quem está por detrás do texto literário, qual autor, sua ideolo-gia, contexto de produção de sua obra, interesses mercadológicos enviesados na sua publicação e divulgação. Fomenta tal provocação não para silenciar tais textos, mas para compreendê-los como parte de um todo mais amplo que se constitui em teia, a partir das múltiplas ligações entre autor, obra e leitor.

Neste espaço do confronto direto, também cabe a esperança, porque a partir do fenômeno da literatura periférica em que os autores começam as escrever sobre as “quebradas”, a se aproximar dos leitores das periferias brasileiras, ressignificando suas concepções de leitura e literatura, já começam a aparecer boas novas, pois o acesso aos livros é ampliado, os leitores começam a compreender como direito a aproximação com o texto poético. Então, acontece a revolução, no sentido das trans-formações radicais das práticas de leitura literária e da alteração da concepção do leitor enquanto agente social. a este fenômeno, o poeta opta por chamar de o “Mi-lagre da poesia”.

Pelo fazer poético e pela criação de espaços de divulgação da leitura e da litera-tura, o poeta inclui na sua poesia a constatação de que a inserção de tais práticas no cotidiano das populações periféricas propiciou tanto para os escritores quanto para os leitores, que vivenciam este espaço social e político, além da aproximação com a literatura, antes vista como sagrada/ inacessível, uma ressignificação da visão destes em torno dela. A literatura que era “tratada como uma dama pelos intelectuais, hoje vive se esfregando pelos cantos dos subúrbios à procura de novas emoções” (vaz 2011: 45).

Neste contexto, se “é no interior da língua que a língua deve ser combatida, des-viada” (Barthes 1978: 17), Sérgio Vaz, poeta que se autodenomina vira-lata da lite-ratura, utiliza em sua poesia os mesmos termos que servem para excluir homens e mulheres periféricos do acesso aos bens culturais e ao poder político, intelectual e econômico. Todavia, não confirma o uso vigente. ele os subverte, brincando com os sentidos dos mesmos, não para aniquilá-los ou bani-los, mas, sobretudo para ampliar seus significados e retirar deles a inferiorização, tratada como imanente. Ou melhor, faz o jogo barthesiano de combater pelo desvio do sentido. Assim, o que nomeia as

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estéticas tradicionais da arte literária, excluindo outras práticas que não correspon-dam ao modelo eleito como canônico, vira matéria prima para construção de outras lógicas e saberes na literatura periférica escrita por Vaz.

Em fragmento do texto que dá título ao livro Literatura, Pão e Poesia, o escritor, inicialmente, aparenta confirmar a idéia da periferia como espaço de violência gene-ralizada, mas frustra positivamente seus leitores ao trazer outra perspectiva, esta menos comum, sobre o espaço periférico. Tal insubordinação confirma a diminuição da tensão entre leitores e a leitura literária, porque declara:

A periferia nunca esteve tão violenta: pelas manhãs, é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatrocentas páginas. Jovens traficando contos, adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Dei-lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada por uma semana. (Vaz 2011: 47)

Todavia, como esta mudança situa-se num espaço de poder excluído e silencia-do historicamente, a cena da literatura periférica gera conflitos e insatisfações para aqueles que, sempre privilegiados, ainda não aprenderam a dividir as possibilidades de aproximação aos bens culturais.

Outro aspecto reincidente na poética de Sérgio Vaz é a idéia de que o texto li-terário, apesar de atrelado ao seu tempo, também pode ser atualizado pelo leitor, quando ao acessar um texto já conhecido, renova-o no ato da leitura, descobrindo outros sentidos, ou quando se aproxima de um texto de outro momento histórico e dá sentido a ele a partir de seu tempo presente. Por isso, o poema “tem o peso da eternidade” (Vaz 2011: 29).

Assim, a poesia esconde (e revela) uma perspectiva que abarca em si o equilíbrio entre acomodação e enfrentamento, historicidade e individualidade, delineando-se ora a partir da ética, ora a partir da estética. Nela convivem o açúcar e a pólvora (Vaz 2013: 42); o silêncio e a voz (vaz 2013: 56). No entanto, quando se faz necessário es-colher entre os dois pólos, a opção é pela denúncia e o enfrentamento, pois a poesia que “é bipolar: ora com um sorriso no rosto, ora com uma pedra na mão” (Vaz 2011: 133), confirma-se como aquela que, sobretudo, “cospe bala” (vaz 2013: 56).

Em outra via, no texto, a voz poética inquieta-se com o poeta que não se envolve com as problemáticas do seu entorno e não usa seu fazer poético para intervir no mundo. afirma estes como cúmplices de todas as mazelas sociais que acometem o presente, sobretudo, porque gastam sua poesia na ocultação indiferente da realida-de que nos circunda. Rejeita, portanto, o literato que opta por uma “renuncia ao poe-ma pobre / pra dormir / com a ripoe-ma rica / que cobra upoe-ma fortuna/ pra gozar” (Vaz 2013: 154). Denuncia o poeta que “dorme na seda” e indica seu próprio lugar de fala, sem associá-lo a precariedade e ao esdrúxulo. Pelo contrário, vê nele singular metáfora de beleza: a “rosa molhada” (Vaz 2013: 153).

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O poeta periférico não cultua o belo nem a perfeição da forma. Também não busca em seu fazer poético o sucesso individual, o reconhecimento como célebre. Ele é um desterrado, um fora do lugar. Este sim, o verdadeiro marginal, “o gauche na vida”, o solitário que se esgueira na escuridão e “trafega pela madrugada/ tecendo sombras miúdas/ para o abrigo da solidão” (vaz 2013: 152), afirma vaz, parafrasenado o Poema

de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade. Ser poeta é enxergar, neste

contex-to, o que os demais não vêem. Mais do que isso, é se sentir provocado a visibilizar aqueles que são silenciados. E, obviamente, ser capaz de ver é um fardo que o impul-siona, praticamente de maneira obrigatória, a agir. Esta visão o aproxima da epígrafe do Ensaio sobre a cegueira de saramago: “se podes olhar, vê. se podes ver, repara”.

A escritura é, portanto, ato solitário, incompreendido. O poeta escreve, mas sabe que não mobilizará necessariamente todos que o lêem. escreve por uma necessidade interior. Seus leitores são aqueles que não necessariamente o ouvem, ele toca sua “canção para os surdos” e para aqueles que, a revelia de seu próprio desejo, se intro-metem em sua poética. a escrita é catártica. ela ressignifica de maneira imperativa a existência e, através dela, no ato de dizer o mundo pela palavra literária, o poeta liberta a si e aos seus leitores, pois afirma: “solto meu poema/ para os olhos curtos,/ de longa duração,/ e mudo se faz o problema” (Vaz 2013: 148).

Na poética de Vaz, os humanos são a própria poesia que não coaduna com a per-feição estética, porque se ergue no cotidiano, através dele e o usando como matéria prima. a literatura assim está presa a realidade, todavia, não a realidade “fotográfi-ca”, mas ao real, impregnado pela visão de mundo do poeta. “É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista, ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real” (Barthes 1978: 18).

Vale ressaltar que poesia é produção humana que usa o tempo presente como substância. A poética para Vaz é da ordem do ordinário, do comezinho. Não se faz a partir dos grandes fatos ou feitos heróicos. ela se presentifica em todos os fragmen-tos que compõem a realidade. Basta que a visão de mundo do poeta a capte e este seja arrebatado “pela forma diferente de olhar as coisas” (VAZ 2011: 161). Ressalte-se que como a poesia depende deste olhar do poeta e este muda de acordo com o con-texto social e cultural do autor e suas subjetividades, ela é sempre provisória. Como nos evoca José Paulo Paes, em seu Convite:

As palavras (...) quanto mais se brinca

com elas mais novas ficam. Como a água do rio que é água sempre nova.

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Nos versos de Vaz, a Literatura tem efeitos mais mobilizadores entre os humanos do que qualquer acontecimento, por sua capacidade de afastar o leitor de sua reali-dade e conduzí-lo a outras experiências de vida pela via da palavra. O texto literário, ao evidenciar o real, o faz de maneira singular, pois ao exigir do leitor entrega, silên-cio, solidão, promove para ele uma apreciação mais reflexiva e vasta do que existe no mundo e do que ainda pode ser inventado.

Desta maneira, o efeito da poesia confirma que a leitura literária pode abrir mais possibilidades críticas da vivência prática de algo, porque a experiência poética mo-biliza o leitor, provoca-o, o retira de seu lugar de existência costumeira, o faz imergir em outras possibilidades de existência humana. assim, “um poema é o beijo que che-ga antes da boca” (Vaz 2011: 175). Ou seja, algumas vezes, (talvez este seja o maior perigo da literatura), ainda que sem o toque carnal dos lábios, a palavra literária é capaz de traduzir com mais encantamento e verdade experiências da vida, como a amorosa, por exemplo.

Para sérgio vaz, o poema é personificado, ele tem o poder de chegar ao outro hu-mano e mobilizá-lo. O poema é metonímia da própria linguagem. Ele é instrumento de intervenção e tanto pode seduzir, quanto convencer ou incitar a agir no mundo. Por isso, para confirmar seu caráter de aproximação, de acessibilidade, o poema nun-ca é, especialmente no nível da escolha da linguagem, de difícil compreensão ou com palavras complicadas. Ele é sempre marca do cotidiano, personagem da vida ordiná-ria que transita “bem moleque – traquina”. Pode até ser vulgar, no sentido de sua presença ser recorrente, mas ele nunca se fantasia em preciosismo. Por mais usual que seja, reveste-se da sinceridade singular “desses mimados/ que dormem no colo/ e choram quando sentem saudades” (Vaz 2013: 76-77).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LITERATURA COMO A “PALAVRA DA RUA”

Ao diferenciar a literatura presente na “prateleira de biblioteca” daquela que pro-vém da “palavra da rua”, declara que a primeira é estática, inatingível; encontra-se ausente nos bairros periféricos. a segunda é móvel, flexível, em trânsito. Para acessá-la não é preciso informações, formações, conhecimentos específicos, mas apenas es-tar na vida. Também não é preciso “carteira profissional”, pois o escritor periférico, ainda que profissional da escrita, é sempre um amador, pois além de não ter neces-sariamente uma formação acadêmica, e fazer da rua e dos livros sua maior escola, é alguém que se relaciona com o texto literário pela via do afeto e não está preso a parâmetros pré-estabelecidos por uma escola literária, por exemplo, pois compre-ende o fazer poético, como ação criativa, apesar de elaborada, que nasce de forma singular, subjetiva. A poesia periférica, dentro dos poemas de Vaz é adjetivada como livre, sadia, perspicaz, sagaz, leve, combativa, reativa, forte.

Nos textos, Vaz relativiza a centralidade da literatura como arte sempre direcio-nada para o bem, para a erudição. Questiona uma visão hegemônica da literatura. expõe como contradição a associação da literatura como prática sempre

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transforma-dora, que leva ao melhoramento humano. Pois afirma que quando ela provém dos opressores, será veículo de opressão também. A literatura que liberta está implicada, portanto, com ideais de liberdade, democracia, igualdade, porque “A palavra livre nos torna livres. Livre, entendeu?” (Vaz 2011: 164).

A literatura, outrora compreendida como inatingível, nos lembra Vaz, atualmente, beija os pés dos leitores, aproxima-se deles, insinuando ser feita da mesma matéria que é feita a vida. Assim, a literatura que andava “de terno e gravata, proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas, hoje, anda sem camisa, feito mo-leque pelos terreiros, comendo miudinho na mão da mulherada” (Vaz 2011: 45). Isto confirma a declaração de Barthes que “o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro” (Barthes 1978: 19), por isso, a mesma literatura que serviu (e infelizmente ainda serve) para consagrar as exclusões linguísticas, sociais, culturais também pode mover outros saberes e instaurar diferentes possibilidades de compreensão do mun-do.

É nesta vibração que os textos presentes nos livros Colecionador de Pedras e

Litera-tura, Pão e Poesia, do escritor sérgio vaz, pela via do autocentramento, afirmam uma

compreensão em torno da literatura que visa ampliar as noções dos leitores sobre a mesma, especialmente, esta que é escrita por homens e mulheres das “quebradas” brasileiras. A idéia é tornar o campo literário um terreno fértil para fazer brotar cada vez mais textos, autores e leitores criativos, inovadores, com uma linguagem plural e tratando de temas que vão do “beco ao belo”.

OBRAS CITADAS

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. ______. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

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novem-bro de 2016.

The poetry of the street that springs the world

ABSTRACT: This article aims to analyze or analyze the concept of literature that permeated the poems and texts in poetic prose, present us livros “Colectorador de pedras” and “Literatura, Pão e Poesia”, by writer Sérgio Vaz. This will include a contemporary dinner, not a literary dinner, des-ignated as peripheral literature. Think such production, hair viés gives literária analysis, it was con-stitui em empreendimento emprendimento and visa to promote reading of these works, as well as to promote to expand two literary spaces in which these texts are produced. For isso, trilhou-se or methodological route of bibliographic research. Or theoretical referential that ballast this dis-cussão not referring to the studies of contemporary Brazilian literature referenda-se em Lajolo (2001); Resende (2008) and Dalcastgné (2012). To think about Literature produced in the Brazil-ian peripheries, as referencias são Nascimento (2009) and reyes (2013). Finally, for a reflection on the specificities of the literary text, we alicerçamos em Barthes (1978) and cândido (2000). KeY WOrDs: literature; periphery; contemporary; sérgio vaz.

Referências

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