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Faoro e o leitmotiv tipicamente brasileiro: as confusões entre público e privado

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Tathiana Senne Chicarino

Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as

confusões entre público e privado

Graduada em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2010). Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde participa como pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP), atuando principalmente nos seguintes temas: mídia, cultura política, democracia, liderança política e ciberpolítica. Resumo

O presente artigo pretende a partir do livro

Os Donos do Poder de Raymundo Faoro (2000),

retomar a discussão sobre o patrimonialismo, a formação do patronato político, e os obstáculos que eles apresentaram à construção de um Estado moderno, e, portanto, à própria configuração do capitalismo brasileiro.

Faoro (2000) sustenta que ao longo de seis séculos o Estado brasileiro se fez autônomo em relação à sociedade civil, pois possuía um objetivo central: a realização dos interesses particulares de seus dirigentes, do patronato, ou estamento político. Desta forma, a máquina pública foi transformada em patrimônio pessoal, o leitmotiv tipicamente

brasileiro.

A longa permanência do capitalismo politicamente orientado de cunho tradicional e patrimonial foi possível porque conseguimos combiná-lo com o capitalismo moderno, criando uma dupla pauta de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno caminhando juntos. Este processo modernizador terá consequências na estrutura de poder, no grupo monolítico de domínio e no imaginário social, impedindo a mudança, estimulando o associativismo vertical em detrimento ao associativismo horizontal e não fomentando a formação de uma cultura cívica.

Palavras -Chave

Raymundo Faoro; Patrimonialismo; Estamento Político; Capitalismo.

Abstract

This article seeks from the book The Power Owners

Raymundo Faoro (2000), back to the discussion about the formation of patrimonialism and political patronage, and the obstacles they had to build a modern state, and thus the very configuration of Brazilian capitalism.

Faoro (2000) sustain that over six centuries the Brazilian state became autonomous in relation to civil society, for he had a central goal: the realization of the interests of its leaders, employers, or political establishment. Thus, the government machinery has been transformed into personal wealth, the

leitmotiv typically Brazilian.

The long stay politically oriented capitalism and traditional stamp sheet was possible because we can combine it with modern capitalism, creating a dual agenda of development, with the archaic and modern walking together. This modernizing process will have consequences in the power structure in monolithic group and domain in the social imaginary, preventing change, stimulating associative vertical over the horizontal associative and not encouraging the formation of a civic culture.

Keywords

Raymundo Faoro; Patrimonialism; Political Estate; Capitalism.

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1. Introdução

Faoro é sem dúvida um dos maiores intérpretes da realidade brasileira, sem desconsiderar os aspectos socioculturais e o comportamento prático, mas enfatizando a feição institucional, ele parte do estudo sobre patrimonialismo e os obstáculos presentes na construção de um Estado moderno, para poder compreender a formação do patronato político e a configuração do capitalismo brasileiro.

No clássico livro Os Donos do Poder (2000)

o autor nos aponta que muito do “atraso” do país se deve a uma herança ibérica transplantada desde a colonização. Tendo como influência significativa Max Weber, Faoro sustenta que ao longo de seis séculos o Estado brasileiro se configurou como autônomo em relação à sociedade, privilegiando a racionalidade burocrática em detrimento da racionalidade moderna e legal, mas o autor vai além do pensamento weberiano quando diz que este mesmo Estado precede a sociedade civil, que não lhe é somente apartada. Esta autonomização se desenvolverá a partir de um objetivo central que é a realização dos interesses particulares de seus dirigentes, ou do estamento como o autor conceitua, transformando a máquina pública em patrimônio pessoal.

Simon Schwartzman na obra Bases do Autoritarismo Brasileiro (2007) sintetiza bem a

realidade brasileira, tendo como base o pensamento de Faoro:

(...) conheceríamos um sistema político de cooptação sobreposto ao de representação, uma sociedade estamental igualmente sobreposta à estrutura de classes, o primado do Direito Administrativo sobre o Direito Civil, a forma de domínio patrimonial-burocrática e o indivíduo como um ser desprovido de iniciativa e sem direitos diante do Estado” (SCHWARTZMAN, 2007, p.43).

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Para Schwartzman (2007) o indivíduo no Brasil não tinha iniciativa ou direitos ante o Estado, e se, eles não eram representados da forma mais simples, uma forma articulada e autônoma era impensável. Diremos então, que esta é uma característica constitutiva do capitalismo brasileiro, definido como capitalismo de Estado, ou politicamente orientado. De acordo com Faoro (2000) esta estrutura sobreviverá a tudo e a todos, criando um capitalismo sem o ethos capitalista e a ética calvinista, mas sob a onipresença do Estado

patrimonial.

2. A origem do patrimonialismo

O primeiro Estado Nacional a surgir foi Portugal, e, de forma simplificada, as razões desta vanguarda vão, de uma realeza mais forte a um feudalismo mais centralizado, fatores que resultaram no progressivo enfraquecimento dos senhores feudais. Antevendo esta derrocada, parte da burguesia, especialmente a burguesia mercantil, se alia ao Poder Real, transformando este no principal condutor do processo de desenvolvimento do Estado-Nação, porém, o sucesso desta aliança virá, sobretudo da cooptação nobiliárquica, ou, de uma estratégia domesticadora de oferecimento de cargos com status de nobreza

que perduraria por séculos e que seria exportada à América portuguesa.

Formado o tripé “Coroa, burguesia, Estado Nacional”, ungido pelo mito edênico do paraíso terrestre (BUARQUE, 2000) e reforçado pela marca da guerra, a empresa marítima buscará no expansionismo territorial a sedimentação de seu poderio e a subordinação da economia. Esta acumulação primitiva de terras, nos alerta Faoro (2000) dará início a confusão entre o que é um bem público e o que é um bem privado, ou à forma de dominação conhecida como patrimonial.

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Além disso, fornecerá subsídios para a formação do estamento nobiliárquico através da concessão de terras, combinando dois fundamentos em si contraditórios: o da soberania da posse da terra e o da dependência ante o Poder Real, tudo isso selado pela lealdade. O resultado será uma grande capilarização dos agentes reais no território português, cuidando de algo que era ao mesmo tempo seu e do rei.

O marcante traço territorialista de Portugal terá também, influências significativas em seu ordenamento jurídico, não podendo se filiar à

Common Law, ou direito do costume da terra; e

também sem construir um conjunto de normas que lhe seja endógeno. Foi adotada a Constituição de Diocleciano, como Estatuto de Ordem Pública -

dando o caráter político e instituindo uma vasta camada de funcionários públicos - e o Código de Justiniano, como Estatuto regulador das relações

privadas, sendo que este afirmava o poder ilimitado do imperador, e consequentemente reforçava o patrimonialismo.

Segundo terminologia de Faoro (2000), a esses fundamentos sociais e espirituais se somará a tendência mercantil da monarquia portuguesa, e, juntos construirão o Estado patrimonial e com ele uma nova ordem social, o capitalismo politicamente orientado. Um capitalismo de Estado diferente do capitalismo dos países que tiveram uma revolução burguesa clássica, pois tanto em Portugal quanto na América portuguesa, a burguesia fora sufocada e cooptada, ela não terá um papel eminentemente revolucionário como a história mostrou e Marx eternizou no Manifesto Comunista (MARX, 2002).

Reforçando o argumento da importância da predisposição comercial de Portugal, Faoro (FAORO, 2000, p.36) ressalta que foi esta peculiaridade histórica que acelerou o aparecimento do sistema patrimonial, contrário à ordem feudal,

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pois, se não existiam as evidências empíricas na superestrutura, estas levavam à incerteza da existência do feudalismo na infraestuturai Faoro (2000) trará ainda para contrastar com a teoria marxista, a diferenciação de Maquiavel (1976) sobre dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial, no último o monarca é o senhor do comércio e da riqueza territorial, e estende sobre os súditos uma rede patriarcal diferente dos direitos e deveres fixamente determinados como no feudalismo.

Não ter tido um feudalismo chamado “autêntico”, que tivesse revolvido as entranhas da sociedade, fez com que a Península Ibérica desconhecesse as relações capitalistas em sua íntegra, sem a articulação entre sociedade e Estado. Portugal ficou refém dos avanços tecnológicos de outras nações, especialmente, França e Inglaterra, pois, não havia reinvestimento ou acumulação. O patrimônio português servia para manter a administração colonial, e esta é uma das principais teses de Faoro (2000), a de que toda renda gerada pela terra era destinada à geração e conservação de um estamento burocrático de caráter fidalgo. Esta tese desfaz ainda ao nó górdio da manutenção por Portugal de um domínio colonial tão vasto e rico a despeito de não seguir princípios racionais modernos. A resposta está em quanto maior o patrimônio real, maior era a incorporação de pessoas ao estamento, e, portanto, maior era a capilaridade de Portugal na colônia, “todos são a sombra do rei”, de um poder monocéfalo que se desdobrava nos rincões tropicais.

Vale ressaltar que, se a estrutura patrimonial levou à estabilização da economia e do entreposto colonial, por outro lado, impediu o florescimento da burguesia e com ela o capitalismo industrial. Como já dissemos, o Brasil vivenciou um capitalismo orientado de cunho tradicional, e embora utilizasse formas do capitalismo moderno,

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racionalidade técnica e dispersões liberais, não possuía o seu espírito, ou o ethos capitalista segundo

a teoria weberiana.

No texto Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1981) Weber procura confirmar

a hipótese de que a representação religiosa, especialmente a dos calvinistas, e a conduta econômica por eles exercida foram no Ocidente uma das causas do desenvolvimento do capitalismo. Embora existissem fenômenos capitalistas em civilizações orientais, as características específicas do capitalismo ocidental – busca do lucro combinado com a burocratização, o primado do Direito racional e o protagonismo do indivíduo – só floresceram quando o espírito do capitalismo e a vocação religiosa se encontraram. A ética protestante sugere que se deve desconfiar dos agrados deste mundo, a riqueza em si constitui um grande perigo, o ideal é trabalhar dia após dia, acumulando lucro e reinvestindo no que não foi consumido. Permitindo o desenvolvimento dos meios de produção, a aquisição econômica deixa de ser um meio de satisfazer somente as necessidades básicas do homem e passa a ser um dos princípios orientadores do capitalismo. Os calvinistas viviam o comportamento ascético de alheamento do mundo e como eles não sabiam se seriam salvos ou condenados, procuravam sinais no mundo que indicassem sua escolha. É assim que algumas seitas terminaram por ver no êxito econômico uma prova da escolha de Deus, eram os predestinados.

Este ethos capitalista, este comportamento

ascético voltado para a acumulação não ocorria entre os católicos, pois eles não percebiam a sociedade dos homens na terra como um fim em si, mas, de forma teleológica esperavam o Segundo Advento, ou o Paraíso, que de certa foi encontrado na América portuguesa. O historiador Caio Prado Júnior (1970), seguindo a mesma vertente de

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Sérgio Buarque (2000), dirá que a ocupação dos trópicos será estimulada pelos imensos territórios à disposição, o colono virá somente se for o dirigente, contando com outra gente que trabalhe

para ele, revelando a aversão ibérica ao trabalho manual.

3. O estamento: Leviatã Social

É interessante notar o uso que Faoro (2000) faz da história, pois se por um lado ele a usa intensamente, recuperando os antecedentes históricos como a formação do Estado-Nação português, e suas heranças para a América portuguesa, por outro lado, ele cria uma teoria a-histórica sobre a formação do patronato brasileiro, algo se manterá imutável diante dos desdobramentos do mundo (SCHWARTZMAN, 2003). E para compreender esta paralisia Faoro (2000) tenta escapar do determinismo historiográfico rompendo com um postulado marxista que considera o feudalismo uma etapa necessária na linha da história, mas que por outro lado, vê a origem do patrimonialismo brasileiro já nos primórdios coloniais, quando Portugal transplanta sua estrutura de dominação à América portuguesa, tendo o estamento como ferramenta de poder.

De acordo com Faoro (2000) o estamento é diferente das classes, pois teria de ser uma categoria econômica, e não somente política, mas ao contrário é o estamento que sustenta a classe pelo fiscalismo. Vale ressaltar, porém que isso não exclui as relações de poder, enquanto capacidade de agir, de produzir efeitos, de determinar comportamentos, de forma intencional ou interessada, neste caso, as relações se fundamentam e se legitimam no que Weber (2005) chamou de um tipo de dominação tradicional, baseado na tradição, com o aparato administrativo de tipo patriarcal formando a rede

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que irá sustentá-las.

O estamento segundo Faoro (2000) seria então, uma organização político-administrativa, uma corporação de poder, estruturada numa comunidade, ou seja, o “Estado-maior da autoridade pública”. Este grupo se torna árbitro da nação e das classes sociais, regulador da economia e proprietário da soberania nacional, atua em nome próprio e para tanto, usa indiscriminadamente os instrumentos oriundos de sua posse do Estado. Falar que o estamento é uma elite ou classe política para Faoro (2000) é pleonasmo, pois haverá sempre uma minoria governando ou tendo isso como objetivo. Ser uma minoria governante não significa, pois ter autonomia, e, esta é uma qualidade fundamental do estamento.

José Murilo de Carvalho (2010), no entanto, vai discordar de Faoro quanto ao que seja a classe dirigente imperial (segundo terminologia do próprio autor), para ele, não se trata de um estamento,

(...) mas de uma elite política formada em processo bastante elaborado de treinamento, a cujo seio se chegava por vários caminhos, os principais sendo alguns setores da burocracia, como a magistratura. (...) O segredo da duração dessa elite estava, em parte, exatamente no fato de não ter a estrutura rígida de um estamento, de dar a ilusão de acessibilidade, isto é, estava em sua capacidade de cooptação de inimigos potenciais (CARVALHO, 2010, p. 151).

Acrescenta ainda que a classe dirigente também

(...) não era máquina moderna de administrar, pois o sistema industrial de produção que levou a racionalização administrativa para dentro dos modernos Estados capitalistas ainda não se estabelecera entre nós” (CARVALHO,

2010, p.164).

Porém, se considerarmos o texto de Weber (1978) Feudalismo e Estado Estamental, veremos que o

estamento estaria baseado em relações de piedade, e não em relações contratuais como no feudalismo; sendo assim, o estamento poderia coexistir com o capitalismo, a despeito da hierarquização e da pessoalidade, pois o estamento não é casta já que não possui a sua rigidez e nem classe, é um corpo homogêneo estratificado, formando uma teia de relacionamentos que constitui um determinado poder e influi em determinado campo de atividade. O estamento tivera origem no que Weber (1978) denominou “patrimonialismo”, essa forma de dominação política tradicional poderia evoluir para formas modernas, como o patrimonialismo burocrático-autoritário, combinando aspectos racionais e irracionais. O estamento portanto, além de não ser rígido, não pode ser identificado com o pré-capitalismo, pois não terá um caráter necessariamente transitório, mas muitas vezes permanente em uma economia patrimonial onde o prestígio e a honra ocupam papel destacado, por isso o mecanismo da cooptação nobiliárquica terá resultados tão eficientes.

Se, ao definir o patronato político brasileiro como sendo de ordem estamental, e usando conceitos como patrimonialismo e burocracia racional-legal o autor se aproxima de Max Weber, por outro lado, ele se afasta substancialmente Marx, principalmente quando sustenta a autonomia do estamento político burocrático. Faoro relendo Marx dirá que para este o bonapartismoii ou o cesarismo apresenta apenas uma autonomia aparente, visível somente na superestrutura. De fato, em O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte (2006) Marx vai,

confirmando a clássica tese de que “O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir

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os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX, 2002, p.42) dizer que as políticas, ou as ações do Executivo coincidem com os interesses da classe dominante, e mais, o Golpe de Estado na França de Napoleão III não fora obra de um indivíduo, mas das circunstâncias e condições geradas pela luta de classes. Faoro (2000) ao contrário, defenderá o estamento como um poder político que não era exercido nem para atender aos interesses das oligarquias rurais, nem a incipiente burguesia, mas em causa própria, “(...) por um grupo social cuja característica era, exatamente, a de dominar a máquina política e administrativa do país, através da qual fazia derivar seus benefícios de poder, prestígio e riqueza” (SCHWARTZMAN, 2003, p. 209). Simon Schwartzman (2003) em seu artigo Atualidade de Raymundo Faoro, contará que a

contribuição do jurista-sociólogo

“(...) vai além da utilização dos conceitos weberianos e da interpretação que deu ao sistema político brasileiro: ela consiste, fundamentalmente, em chamar a atenção sobre a necessidade de examinar o sistema político nele mesmo, e não como simples manifestação dos interesses de classe, como no marxismo” (SCHWARTZMAN, 2003, p. 209).

Faoro (2000) dirá ainda que tanto Marx quanto Engels não previam a assimilação da burocracia pelo estamento, sendo a primeira apenas um formalismo do Estado. Já na realidade brasileira, não impera a burocracia, a camada profissional que assegura o funcionamento do governo e da administração no ideal do Estado racional-legal, mas o estamento político, que se faz árbitro dos conflitos entre as classes. Sua autonomia se manifesta através de certos objetivos, sendo um dos principais a centralização territorial e política. O estamento burocrático comanda o ramo civil e militar e também provê oportunidades de ascensão

política através da cooptação nobiliárquica e posteriormente, através da concessão de empregos públicos.

Por ser uma realidade peculiar, retomaremos alguns eventos políticos significativos para poder compreender a evolução do estamento político no Brasil.

4. Recuperando a história

Desde a colonização, foi forte a presença da continuidade e da permanência, traços de nossa cultura política. É relevante salientar, portanto, que não vivenciamos uma revolução nos moldes clássicos, não houve mudança na estrutura fundiária e menos ainda na democratização do poder, e é neste ponto que a continuidade fica mais evidente, nos donos do poder, ou no estamento político.

O capitalismo liberal, ou capitalismo manchesteriano desenvolveu-se no Brasil de forma derivada, perpassado pelo hibridismo de sua estrutura e de suas instituições. As fases do seu desenvolvimento foram superpostas, não encontraram aqui uma sociedade homóloga à sua prática e ideologia, mas um Estado anacrônico que até o Império era predominantemente agrário em base econômica latifundiária e escravista.

Caberia então às elites utilizarem o liberalismo à sua maneira, de modo a não levar à balcanização, mas em prol da manutenção e expansão do território, essa característica ibérica estaria acima da livre iniciativa e da descentralização política, e, portanto da própria ideologia liberal, que ficaria para ser concretizada no futuro, fazendo com que a prática do liberalismo fosse retrógrada em relação à realidade brasileira, abafando os interesses privados e inibindo a livre iniciativa (VIANNA, 1996).

A democracia liberal de orientação estrangeira, era contrária aos interesses da

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oligarquia, e aqui tomou outras formas; a ideologia a ser criada não priorizava a democracia representativa, mas sim uma forma elitista de ação política, tendo o Estado como principal ator. Era como se fosse descoberta uma forma de convívio entre as instituições liberais e o sistema patrimonial de origem ibérica.

Esse convívio ou mudança pela via da acomodação, Faoro (2000) vai identificar especialmente no comportamento e nas atitudes da Coroa portuguesa, do Exército e também da classe dominante, por exemplo, quando a queda do Gabinete Liberal de Zacarias de Góes em 1868 inaugura um processo de intenso dissídio entre a Coroa e o Exército. A Coroa tentava conter o liberalismo, ao passo que se espalhava a contrariedade quanto ao uso indiscriminado do Poder Moderador, a famosa frase “o rei reina, mas não governa” será usada por progressistas e liberais, e posteriormente exacerbada pelos republicanos que farão intensa pregação contra a monarquia. O Partido Republicano agrupará grande parte dos fazendeiros dissidentes, especialmente os do oeste paulista. Estes, que outrora eram um dos sustentáculos do Império, agora não viam mais vantagem na artificial titulação nobiliárquica, o benefício visualizado por eles estava agora no discurso federativo. A Coroa tenta ainda em seus últimos suspiros esvaziar essas reivindicações federativas reinantes empreendendo a centralização política e descentralização administrativa, essa tentativa de aproximação dos municípios e com as províncias protegerá a unidade política, mas a medida será tomada tarde demais.

A sociedade começa a se desmistificar, dirá Faoro (2000). A sociedade de classes começa a surgir, e suportes como a burguesia agrária e o Exército – chamado por Faoro de o principal aparelho centralizador, depois de aniquilada a

Guarda Nacional – entram em colapso, além disso, a abolição da escravatura trata de lhe desferir o último golpe, afetando o estamento político que sobrevivia das divisas oriundas do crédito cedido à agricultura comercial, a classe dominante estava fragmentada e absorvida em ideias e posicionamentos diferentes dos do Império.

A despeito de sua aproximação com a classe média – já que com o passar do tempo os filhos das oligarquias concentram-se cada vez mais nas carreiras do Direito, e o oficialato ao contrário, passa a ter sua origem, sobretudo de famílias militares e de rendas modestas – e da tomada de um discurso democrático com a tese do cidadão de farda, a instauração da República

pelo Exército não trouxe consigo a soberania popular ou a representação social e política, mas o poderio regional, especialmente dos Estados mais abastados com o exacerbamento do mandonismo privado. Cabe ressaltar que se a oligarquia persistiu a esta mudança social, o mesmo ocorre com o estamento, que não finda, somente dispersa.

Assim, mesmo com a República e a tentativa de descentralização do poder não houve a ampliação da cidadania, o Estado republicano passou a não impedir a atuação das forças sociais, mas a favorecer as mais fortes, no estilo spenceriano, como nos ensina Carvalho (2006), com o liberalismo como instrumento de consolidação do poder.

Faoro (2000) dirá que a soberania popular só existirá como farsa, não traduz a vontade “de baixo para cima”, mas sempre de cima, de um estamento burocrático que num movimento pendular confunde o espectador, variando sua aparência, ora liberal, ora democrático, e outras, autoritário.

5. Viagem redonda: estamento permanente?

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De forma exortativa, no último capítulo de

Os Donos do Poder, Faoro (2000) utiliza a metáfora

da Viagem Redonda, para dizer que de Dom João a Getúlio Vargas passaram-se seis séculos, mas algo se manteve intacto, a ser, o capitalismo politicamente orientado. Esta estrutura político-social se viabiliza pelo tipo de domínio conhecido como patrimonial exercido pelas mãos do estamento que, se no início era aristocrático, depois passa a ser burocrático. Contudo, isso não significa dizer que a estrutura é estática, imóvel, mas que a mudança se deu ao longo dos séculos pela acomodação, ou seja, existe a renovação, porém, ela carrega coercitivamente os mesmos valores e tradições de antes, com uma homogeneidade de consciência, de ideologia, de visão de mundo, a mudança não é, portanto, estrutural. Faoro (2000) vai salientar que a permanência da estrutura exige a mudança interna e o ajustamento externo, e se a elite conseguir controlar o ritmo e o alcance da mudança poderá impedir a ruptura, afastando as consequências imprevistas.

O patrimonialismo não gerou uma burguesia capaz de ir contra o status quo, ou fazer a revolução,

mas uma elite predatória ligada ao estamento, e se durante esses seis séculos houve momentos de crise, de mudança de direção, não houve, contudo, mudança de domínio, como no conceito gramsciano (COUTINHO, 1999), as pessoas podem mudar, mas a orientação permanece. E Faoro (2000) vai seguir o mesmo raciocínio quando diz que essas mudanças não ocorreram sem conflitos, mas ao receber o impacto das novas forças sociais se opera a estratégia de cooptação, de amaciamento, de domesticação, de incorporação dos valores, num caráter de compromisso, podando-se o “fermento revolucionário” – clássica caracterização de Florestan Fernandes acerca do liberalismo.

A legitimidade do patrimonialismo,

portanto, vai se assentar na tradição, combinando continuidade e estabilidade, e isso servirá a Faoro não somente para identificar a origem do patronato político brasileiro, mas também para entender como se deu esse caminho, que no Brasil foi via Estado; o ator a moldar a fisionomia do chefe de governo e a regular as relações sociais. O chefe por meio do Estado vai tutelar os interesses particularistas, dando um tom pessoalista às normas, vai acolher sem intermediários o cidadão e os desvalidos em um braço, e no outro a apática e parasita burguesia. Essa ambiguidade dirá Faoro (2000), será uma característica significativa neste tipo de domínio. Dirá ainda, que o chefe não será um mito carismático, um herói, ou legitimado por um governo constitucional-legal, já que as leis tendem a configurar-se de acordo com a demanda do estamento, mas será o bom príncipe como D. João I, D. Pedro II e Getúlio Vargas.

Em se tratando da figura de Getúlio Vargas, conhecido como o “Pai dos pobres”, essa lógica operará com especial clareza, pois ele vai empreender uma política de bem-estar social num momento onde as massas emergiam ao procênio do desenvolvimento industrial e urbano e a concessão de direitos será uma forma de arrefecer as reivindicações e os possíveis surtos revolucionários, processo conhecido como populismo. Porém, é importante ressaltar que, embora a manipulação das massas tenha sido um ingrediente ímpar na estratégia populista, ela foi também um modo de expressão das insatisfações das massas e, ao mesmo tempo, uma forma de estruturação do poder para os grupos dominantes.

Para Faoro (2000) as massas confundirão o político com o taumaturgo, com o ilusionista, que ao invés de agir, salva, e mais uma vez Getúlio Vargas e o nacionalismo que florescerá após a Revolução de 30 serão paradigmáticos para

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compreender esse fenômeno, a ser, o messianismo que permeia a cultura política brasileira. Getúlio Vargas e o estamento que ele representava significavam a esperança de um mundo novo, um mundo em compasso com os valores e teorias tidas como universais, ou seja, correspondia a um verdadeiro processo civilizatório permeado por um bovarismoiii colonizado, mas a modernização que correspondente a esse processo não desvanece o patrimonialismo político, ao contrário, dá sobrevida à elite política estamental numa ordem estatal centralizada. Nas palavras de Werneck Vianna (2011) “(...) a Revolução de 1930 consistiria, pois, em um retorno às raízes patrimoniais, obedecendo ao movimento oculto das estruturas” (VIANNA, 2011, p.04).

6. Modernização e modernidade: cultura política imutável?

A longa permanência do capitalismo politicamente orientado de cunho tradicional foi possível porque conseguimos combiná-lo com o capitalismo moderno, criando uma dupla pauta de desenvolvimento, com o arcaico e o moderno caminhando juntos. Para compensar essa diferença de ritmo, a mudança social se dará por saltos, o que favorecerá o estamento, pois permanecerá o mesmo grupo monolítico de domínio, um grupo capaz de impor um destino comum a homens heterônomos.

Sobre o conceito de mudança social, vale a pena resgatá-lo do livro de Florestan Fernandes,

Mudanças Sociais no Brasil (2008).

Neste o sociólogo vai chamá-lo de uma noção genérica, podendo ser aplicada a quaisquer espécies de alterações no sistema social, independente das condições de tempo e espaço, podendo ser, portanto, progressiva ou regressiva, e é a esta qualidade que depende a caracterização

do desenvolvimento social. Porém, o ritmo da mudança não é homogêneo a todas as esferas culturais e institucionais de uma dada sociedade, o que pode gerar um desequilíbrio variável da integração delas entre si, com atritos e tensões, algo típico em sociedades marcadas pela dualidade estrutural (FERNANDES, 2008).

Esta dualidade estrutural é o modo como o Brasil consolida o seu Estado burguês de Direito, não com o capitalismo politicamente orientado precedendo o capitalismo moderno, mas agindo ao mesmo tempo. Esta temática é trabalhada por Faoro no texto A questão nacional: a modernização

(1992) onde ele coloca a seguinte reflexão: se a realidade brasileira indica que a secular estrutura patrimonial não foi extinta, ou, não cumpriu a etnocêntrica lei geral do desenvolvimento histórico com o pressuposto de que as nações que estão nas últimas posições devem se adaptar ao ritmo mundial, há que se questionar sobre qual seria a “pista natural do desenvolvimento” do Brasil e, somente quando for desvendado o leito por onde ela corre, poderemos trilhar o caminho de um país moderno e não modernizador, sem atalhos ou saltos, pois eles “estão cheios de atoleiros de autocracias” (FAORO, 1992, p.08). O desenvolvimento para Faoro (1992) começa com a descoberta desta pista, que conteria um eco hegeliano na medida em que se faz como devenir, como atualização, negando a “(...) hipótese do encadeamento de modernizações e da própria modernização como via de desenvolvimento” (FAORO, 1992, p. 02).

Para tanto, Faoro (1992) fará a distinção entre modernidade e modernização. A primeira comprometeria em seu processo a sociedade em geral, todas as classes e não só as dominantes, com a revitalização e por vezes remoção de papéis sociais, não dependendo de comandos externos para se realizariv. Já a modernização, ao contrário da

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modernidade, não seria o desenrolar da lei natural do desenvolvimento, mas a instauração de uma política de mudança social implementada por um grupo condutor, através da ideologia ou coerção, e não como expressão da sociedade civil.

O processo modernizador tão próprio do Brasil geraria um tempo circular, ou a lógica do conservar-mudando de Vianna (1996). As estruturas permaneceriam intactas ante as mudanças, e o imaginário social acerca das relações de poder, ou cultura política se manifestará contra as ideologias opostas, os interesses divergentes, afeita à conciliação e à internalização do conflito. Nossa revolução burguesa será dominada pelo andamento passivo, “(...) e por esta natureza passiva do caminho, o sistema de orientação racional pode coexistir com a ordem patrimonial, criando para a burguesia a possibilidade de extrair vantagem tanto do moderno quanto do atraso” (VIANNA, 2011, p.06).

Nosso particularismo privatista será antípoda à formação de uma cultura cívica, de um associativismo horizontal como na ética protestante, as soluções virão de um associativismo vertical, através da mendicância estatal.

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i Superestrutura é uma categoria usada na tradição marxista para indicar as relações sociais, jurídicas, políticas, e as representações da consciência (costumes, ideias) que complementam a estrutura. Infraestrutura é a base material, as forças econômicas.

ii Bonapartismo é uma forma de governo ou de uso do poder onde há a subordinação do Legislativo ante o Executivo por uma figura carismática.

iii Bovarismo é uma visão romantizada da possibilidade de se passar de uma condição negativa, para outra considerada ideal.

iv Faoro explica este processo através do exemplo hegeliano para o desenvolvimento, usando a metáfora do desenvolvimento de uma planta, que não se faz por uma força externa, mas a partir de seu germe, que a contém de modo ideal, e não uma direção superior, um enxerto, desenvolvendo assim, a planta (FAORO, 1992, p. 07).

Notas

Faoro e o LEITMOTIV tipicamente brasileiro: as confusões entre público e privado

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