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Bíblia e Ecumenismo Reflexões para um Diálogo

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Academic year: 2021

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Tânia Mara Vieira Sampaio**

Resumo: no contexto celebrativo da vida de Haroldo e de sua contribuição para a leitura

bíblica latino-americana, este ensaio é uma proposta de diálogo fundamental entre os que podem assumir sua marca identitária sem perder a escuta da iden-tidade do outro. As muitas tradições de fé podem e precisam encontrar-se no cotidiano de luta pela vida e não no âmbito das questões institucionais. A into-lerância fica muito próxima de dogmas, já o diálogo se aproxima da renovação e aliança por uma vida digna para todos.

Palavras-chave: Diálogo. Ecumenismo. Bíblia.

A

s expressões e vivências de fé construídas durante o nosso caminhar indicam que cada pessoa tem buscado uma possibilidade de diálogo ecumênico e inter-religioso. Há um conjunto de ações e reflexões que, apesar de parece-rem simples e óbvias, deveriam ser repetidas como caminho necessário. Creio que para iniciarmos qualquer diálogo é fundamental reconhecer que há diferença entre os interlocutores, que há uma identidade particular e distinta das partes e que diálogo implica escuta e reflexão sobre a fala e experiência da outra pessoa e não mera superposição ou supressão de ideias.

Nesse contexto dialógico encontro sintonia com a experiência e escritos de Haroldo Reimer. Leituras e releituras bíblicas foram oferecidas às pessoas nos tempos em que ele se dedicou a contribuir sistematicamente para a Teologia e para as Ciências da Religião no Brasil e América Latina. No momento, outras con-tribuições à construção do conhecimento estão tendo o privilégio de contar

BÍBLIA E ECUMENISMO REFLEXÕES PARA UM DIÁLOGO*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 19.10.2015. Aprovado em: 05.11.2015.

** Doutorado em Ciências da Religião. Universidade Católica de Brasília. Docente no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Física. E-mail: tsampaio@ucb.br

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com sua companhia, seus saberes e sabores. Bem-vinda seja a pluralidade de espaços nos quais podemos atuar! Haroldo seja feliz em sua nova trajetória! O diálogo ecumênico e inter-religioso é um desafio que requer constantes indagações

sobre nosso lugar nas tradições em que construímos a experiência religiosa. Esta contribuição apresenta o lugar de onde falo que é o do olhar indagador à nossa tradição bíblica cristã e suas possibilidades de aproximações novas e de revisões de leituras consagradas.

UM JEITO DE O CORPO APRESENTAR-SE AO DIÁLOGO

Há um conjunto de disponibilidades convidativas ao diálogo, que por se apresentar como inter-religioso, além de ecumênico, não poderá ser pensado como diálo-go apenas entre cristãos de diferentes denominações e tradições. O que preci-samos então como ponto de partida? Entre algumas possibilidades de caminho está a sensibilidade para falar e para ouvir. É preciso que haja a abertura para compartilhar, mas também é necessário deixar-se interrogar pelo diferente; que a gente considere as perguntas e falas da outra pessoa muito em sério, para revisitar o que já sabemos e aquilo que acreditamos.

É fundamental alimentar o desejo do novo em nossa experiência. É preciso assumir o lugar de onde falamos e de onde escutamos. Falamos e entramos em diálogo a partir de nossa experiência. Muitos e muitas de nós, aprendemos a experiência de fé na tradição cristã, protestante, evangélica ou católica romana e é desse lugar concreto que saímos ao encontro do outro para o diálogo.

Sem dúvida, esse caminho exige que consideremos nossa visão e experiência de Deus como uma possibilidade de aproximação do Mistério, não a única – ainda que para nós seja verdade e faça sentido para nossa experiência. A consciência da parcialidade de nossa experiência diante da totalidade do Mistério de Deus é fundamental para o diálogo. Reconhecer essa dimensão de localização da ex-periência nos permite estar com o ouvido aberto; o coração, os olhos, o corpo pronto para perceber a beleza da pluralidade de nossas experiências diante do Mistério. Nem sobre, nem do Mistério, mas acima de tudo, em atitude apren-dente: diante de.

Há uma diferença importante a ser mencionada neste início de conversa, trata-se da di-ferença entre o diálogo inter-religioso e o diálogo inter-fé. Há o diálogo entre as lideranças das estruturas e das matrizes de nossas tradições religiosas (que seria o diálogo inter-religioso). E há o diálogo das diferentes experiências de fé que muitas vezes ocorrem por motivos concretos de nosso cotidiano. Um diálogo que começa não a partir de uma conversa propriamente sobre religião – o

que eu acredito e o que você acredita, mas por questões bem concretas se trava a experiência da luta pela vida, da luta pela terra, pela saúde, pela educação,

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pela creche, pela moradia, pela preservação do meio-ambiente. E, nesse chão, nos descobrimos como pessoas que agradecem a Deus pelas conquistas, que pedem a Deus força e companhia. E, nesse momento, quando começamos a rezar e a orar, percebemos que as pessoas dão distintos nomes a Deus, expres-sam seu pedido e sua gratidão de um jeito diferente (a partir de referenciais de tradição distintos), têm rituais, símbolos variados para dizer da companhia do transcendente no cotidiano.

A experiência, portanto, do diálogo inter-fé acontece nas lidas cotidianas e muitas ve-zes não é acompanhada pelas estruturas religiosas, pelas lideranças religiosas das tradições nas quais nos localizamos e fazemos nossa experiência de sen-tido e fé.

Um elemento importante a frisar é que para acontecer o diálogo inter-religioso é pre-ciso que a gente perceba que nossa verdade, a verdade de fé, que é importante para minha experiência, para a tradição de onde venho, não é a única verdade. Ela não é a verdade absoluta e imutável. A experiência humana e religiosa responde às questões de seu tempo e contexto. Estamos desafiados a um mo-vimento de abertura, de sensibilidade ao outro.

A Teologia pode, assim como fez ao longo da história, aprender muito com o diálogo e a abertura de horizontes. Várias áreas do conhecimento humano estão fazendo a pergunta pelas mudanças em seus paradigmas. Estão percebendo que suas formu-lações de verdade são instáveis, provisórias e precisam ser alteradas. A Física, que era tão rígida, há anos formulando verdades imutáveis e absolutas está abrindo-se para a perspectiva das incertezas e provisoriedades em suas for-mulações. Hoje em dia estão nos dizendo que mesmo os objetos que parecem estáticos (como uma rocha, por exemplo) não os são. Dizem que dentro dela há um movimento das pequenas partículas. Ora, se a rocha está em movimento e é dinâmica, imaginem a experiência humana diante de Deus. Não poderia ser diferente.

O físico Ilya Prigogine (1996, p. 31), em seu livro O fim das certezas, faz uma nova formulação das leis da natureza dizendo que esta “não se assenta em certezas, como as leis deterministas, mas avança sobre possibilidades”. Se não mais podemos nos assegurar nas certezas antigas, estamos em um momento no qual se pode “avançar sobre possibilidades”. Estamos sendo instigados a viver um tempo de possibilidades ao fazer a experiência do diálogo inter-religioso: isto é vamos assumir esse tempo como um “tempo de possibilidades”. Não há como afirmar, senão provisórias e incertas certezas.

Importa considerar que nosso aprendizado sobre Deus (isto é, a Teologia) é um dis-curso humano, um jeito humano, em linguagens disponíveis nas culturas e saberes de uma sociedade e que, por conseguinte, não podem ter a pretensão de saber tudo sobre Deus. A Teologia não pode fechar a fala sobre Deus ou a

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revelação sobre Deus. O discurso teológico é menor que o transcendente em quem cremos, ou não é?

As linguagens são precárias, às vezes frágeis para captar toda a experiência de fé que fazemos por isso as verdades que nos alimentam conseguem aproximar-se do transcendente, mas não resumi-lo às nossas formulações. Insistir em proprie-dade da verproprie-dade absoluta sobre Deus, a partir de uma tradição de fé, corres-ponderia a fazer sucumbir Deus às nossas possibilidades.

Um exemplo da precariedade de nossas linguagens sobre Deus na tradição cristã está nas representações culturais conhecidas com as quais identificamos a ação de Deus junto a nós. As imagens conhecidas de pai, pastor, senhor, rei, príncipe da paz, todo-poderoso, entre outras são representações de Deus com as pala-vras, as linguagens, os gestos e os símbolos conhecidos em nossa cultura, são símbolos de força encontrados na matriz masculina da humanidade. Em meio a essa habitual maneira de pensar em Deus, a Teologia inaugurou a pergunta pela imensa concentração nessas imagens masculinas para falar de Deus, o que fez surgir na pesquisa bíblica a possibilidade de encontrar outras maneiras e repre-sentações, por exemplo, femininas e maternas, chamando Deus de mãe (Oséias 11, Salmos 131), Deus como a mulher da moeda perdida (Lc 15), entre outras. Embora se possa reconhecer que houve uma abertura de padrões, culturalmente identi-ficados com o masculino, para outros identiidenti-ficados com o feminino para falar de Deus, vale reconhecer que isso não é suficiente, pois seguimos falando de uma imagem que recupera os símbolos humanos para falar de Deus. Esse é um limite nosso. Há que buscar outras linguagens que confiram ao Mistério sua amplitude incapaz de caber em nossos códigos de percepção e elaboração da experiência de estar no mundo (SAMPAIO, 1999).

ABERTURA E DIÁLOGO PODEM ESPELHAR-SE NO PLURALISMO DO PRIMEIRO TESTAMENTO

Na história narrada no primeiro testamento há elementos fundamentais para nós, cristãos e cristãs, que desejamos o diálogo ecumênico e inter-religioso. Refiro-me à ne-cessidade de descobrir na Bíblia um rosto mais plural de Deus. É importante podermos reconhecer que essa visão única, absoluta, monoteísta de Deus, não acontece no relato bíblico desde o começo da experiência de formação do povo. O discurso único sobre Deus é uma construção sacerdotal pós-exílica. É depois do exílio babilônico, lá pelo quarto século A.C. que se começa a orga-nizar uma Teologia, isto é um jeito de falar de Deus único, fechado, normativo no qual não cabe mais a pluralidade de jeitos de falar e de viver a experiência de Deus que existiam na vivência anterior fortemente presente no primeiro testamento.

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Olhar para a história de formação do povo de Israel nos ajuda, pois Javé, era um dos nomes para falar de Deus no primeiro testamento, reunia uma pluralidade de

Javés, uma pluralidade de concepções de Deus. Havia imagens, jeitos de apro-ximação de Deus muito distintos, antes do momento em que os sacerdotes passaram a dizer “a verdade” sobre Deus.

Na história de construção do povo, seria muito importante perceber que o eixo, do processo de formação do povo chamado Israel, não é a religião única em Javé. O elemento forte e comum a todos é o fato de serem hebreus (hapirus), isto é, grupos sociais empobrecidos e fugidos dos pesados tributos e trabalhos força-dos do Egito e das cidades-estado em toda a Palestina. Hebreu não é sinônimo de judeu, nem de israelita. Hebreu é uma categoria social para identificar os

lascados daquelas terras. Hapirus/hebreus não é identificação, portanto, de uma etnia, mas sim, de uma categoria social. Há uma pluralidade étnica, cul-tural, econômica, religiosa na origem desse povo. O ecumenismo religioso e de outras ordens é parte da experiência do povo da Bíblia.

Dentre os muitos grupos sociais se podem identificar um grupo de pastores seminô-mades que vinha do norte da Palestina e que tinha uma experiência e fala de Deus muito diferente de outros grupos, tinham ritos para celebrar o seu Deus. Era o Deus da companhia, que era celebrado nos altares de pedra que se er-guiam em torno dos poços de água – algo fundamental para pastores nômades. Temos outros grupos de empobrecidos, lascados, sofridos desse tempo, que são os trabalhadores da terra, agricultores que estavam tendo problemas por causa dos impostos que lhes eram cobrados. Esse grupo não conseguia mais trabalhar na terra e pagar o imposto pesado, fugiu para as montanhas. A estes se juntaram outros grupos que estavam ao sul, nas barbas do Faraó, debaixo do poder opressor egípcio e formularam em seu êxodo uma experiência de enfrentamento da escravidão na qual os vários grupos empobrecidos da época se reconheceram. Amalgamando anos mais tarde, uma história de lugares co-muns, diversidades e pluralidades que se interpenetram, para compor a vida e também a religião.

O povo de Israel, quando se forma, surge de uma mistura de etnias, de uma variedade de experiências de luta por sobrevivência (pastores do norte e do sul), cam-poneses das montanhas com novas técnicas de agricultura, escravizados ao sistema egípcio que enfrentam o faraó (isto é, o centro do poder), outros gru-pos que vão percebendo que sua melhor alternativa é juntar-se a esse grupo de resistência que está surgindo com força.

Javé, portanto era um dos jeitos, um dos nomes de Deus no primeiro testamento e era entendido pelos diferentes grupos sociais de maneira muito diversificada, dependendo da experiência de cada grupo. Para os grupos nômades, os cui-dadores de rebanhos que viviam de um lado para o outro, Deus era o Deus do

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caminho. Os altares se construíam ao redor das fontes de água. Javé dos gru-pos sedentários, agricultores fixos na terra tinham montes fixos de adoração (como o monte Sinai conhecido com Moisés e seu sogro). Grupos de campo-neses empobrecidos que fugiam para as montanhas para sobreviver longe dos impostos pesados dos governos reais da época, tinham uma visão de Deus da partilha e da queima das sobras da produção durante as festas de colheita. Todo o excedente, toda a sobra da produção anterior era comida e bebida, por isso pães sem fermento. A Páscoa de Ex. 12 é a junção das tradições de nôma-des pastores com sua ceia do cordeiro e as tradições de cultivo da terra com os pães sem fermento e as ervas amargas.

Nesse processo de formação do povo de Israel, não havia judeu. Não havia uma raça, uma etnia única e escolhida. Admitir esse dado histórico, como processo mui-to tardio na experiência de Israel, é um dos ponmui-tos fundamentais para o diálo-go ecumênico e inter-religioso.

A formação desse povo traz a marca da resistência a um sistema econômico, político e religioso opressor. Assim, no primeiro testamento, o ecumenismo, ou o diálo-go na diferença está na sua base. E o ecumenismo é mais que uma questão de religião. Pois são forças de organização das sociedades humanas que não se separam: política, economia, cultura e religião.

No eixo da luta pela vida, no eixo da resistência, esses grupos sociais, semelhantes no empobrecimento, começam a juntar suas religiões, suas celebrações, seus símbolos, seus cantos, seus ritos, suas histórias de famílias (seus quarups e

ancestros) como raízes de onde brotam a fala acumulada sobre o Mistério que os transcendem.

O Deus de rosto único, monoteísta e controlado só aparece de maneira forte e, pareci-do com o que temos ainda hoje, quanpareci-do o sacerdócio é instituípareci-do e a religião vai se concentrando no templo. Nesse momento, Deus está preso no santo dos santos. Tem rosto único. Os seres humanos comuns, aqueles que não são sacerdotes só podem se aproximar de Deus, conhecê-lo e terem sua benção se passarem pelos sacerdotes e seus ritos sacrificiais, o que implica pagar e pagar muito caro. A pluralidade de jeitos de dizer e de se aproximar de Deus no primeiro testamento ficou perdida depois que o sacerdócio e o templo pas-saram a ser os únicos lugares para nos dizer quem é Deus e como podemos nos aproximar dele.

JESUS E OS ENCONTROS DO COTIDIANO A EXIGIR UMA ATITUDE DE ABERTURA

Em sintonia com a dinâmica plural do primeiro testamento precisa-se perce-ber Jesus. Ele vem numa tradição de confronto com o templo e com

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essa lógica dos sacerdotes que controlam a vida do povo. Jesus enfrenta esse jeito de fazer a mediação de Deus e seu povo. Esse jeito de fazer Teologia. Ele rompe com o sacrifício e com o templo. Jesus cura e perdoa pecados nas ruas, nas casas, nas montanhas, no meio dos doentes, das mulheres impuras, quebra com esse jeito único e normativo de dizer da ação e benção de Deus.

Seria muito importante que a gente percebesse nesse Jesus, em sua atitude de curar e perdoar pecados no meio da rua, nas casas onde se abrem telhados, nas casas onde se juntam para comer, nas montanhas onde se juntam para conversar e conviver, o confronto aberto à estrutura religiosa de seu tempo e tradição. Je-sus perdoa pecados e cura. Duas possibilidades e expressões de fé que estavam aprisionados nas mãos dos sacerdotes e que só podiam acontecer no templo. Deus estava trancado lá no santo dos santos e quando o sacerdote abria a possibilidade

de Deus sair desse lugar para abençoar o povo, o povo precisava primeiro pa-gar um sacrifício para que o sacerdote fizesse a mediação da benção.

Jesus traz a presença de Deus para o meio da rua, para o meio da casa, para o barqui-nho. Traz Deus com a sua cura, com a sua possibilidade de estar presente e abençoar a vida do povo. Daquele povo que era tido como impuro porque era doente, porque as mulheres tinham hemorragias que não cessavam, porque eram estrangeiros, porque eram os desfavorecidos ou filhos das prostitutas. Essa gente, que precisava pagar um sacrifício muito gordo – era boi gordo mesmo – para poder ter perdão dos pecados, benção de Deus, proximidade de Deus – Jesus tira de letra. Tira o sacrifício, o templo, tudo isso da jogada e traz para o meio da rua o Deus que estava trancado no santo dos santos.

Mas apesar do enfrentamento que Jesus faz de sua própria tradição, ele será profun-damente instigado a um processo de abertura para além das revisões internas em sua tradição. Jesus é questionado em seu exclusivismo aos judeus pela mulher cananéia (Mt 15,21-28). Ela diz que não precisa do pão, do banquete dos filhos. As migalhas que caem debaixo da mesa são suficientes. E Jesus reconhece a grande fé desta mulher.

Uma mulher estrangeira que diz que quer se aproximar dele porque precisa da cura para a sua filha, recebe uma dura resposta dele. Jesus responde a ela de seu lugar no mundo, um judeu, um ser humano dentro da sua tradição e experiência de fé e diz que veio para os filhos, não podendo abrir mão desse lugar. Ele é profun-damente questionado por essa mulher: “Não preciso do pão que está na mesa para os filhos, bastam as migalhas que caem debaixo da mesa”. É uma mulher estrangeira, do lugar da sua fé, ela chama Jesus a um processo de abertura, de diálogo para além da tradição de onde vinha: um diálogo inter-fé. A vida é acolhida e salva no movimento de abertura e diálogo!

E muitos serão os estrangeiros com quem Jesus estabelece o diálogo (aqui temos todo um questionamento à concepção exclusivista de eleição que se constrói depois

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do exílio e muitas vezes em nossos dias por alguns grupos de cristãos e de ou-tras tradições de fé). Encontramos no segundo testamento Jesus conversando com a Samaritana, falando do Samaritano, misturando-se com os estrangeiros, tendo sua própria tradição de fé interrogada e interpelada por esse movimento. Jesus de Nazaré tem olhos, mãos, ouvidos, corpo, paladar aberto e sensível para as

pessoas que o acompanham. Ele se aproxima mais do Deus da companhia do primeiro testamento do que da construção teológica que o representou como rei, messias, senhor, obscurecendo a religião do pão e do peixe, do Jesus do ca-minho. Tal construção teológica, que irá predominar na história da Igreja, data do período em que o cristianismo passou a ser religião oficial do estado ro-mano. Precisamos voltar a encontrar o Jesus humano, o Jesus da história coti-diana em profundo diálogo com mulheres e homens, com doentes e sãos, com gente simples do povo e alguns líderes de algumas instituições, com crianças e velhos, com empobrecidos e ricos. Encontrar o Jesus das relações e que morre assassinado pelo enfrentamento que fez ao poder econômico-político-religio-so que significava o grupo sacerdotal e o templo nesse momento da história. Assim, podemos entender que Jesus mais se parece com a fragilidade e vulnerabilidade

do corpo da criança de Isaías 9 e do início dos evangelhos de Mateus e Lucas do que com o rei que se enfatizou depois. Com essa compreensão teológica podemos enfrentar uma lógica sacrificial que ainda persiste na leitura da mor-te de Jesus reforçando uma religião da resignação à mormor-te e ao martírio em nossos dias. Reforçando a lógica da atual economia de mercado que propõe o

sacrifício necessário ao povo e leva-o à morte diariamente por falta de comi-da, moradia, saúde, educação, acesso ao lazer e ao prazer.

Parece-me importante para esse diálogo ecumênico, inter-fé, que façamos o caminho dos primeiro e segundo testamentos. O caminho da abertura que percebemos nesse rosto muito mais plural de Deus e de Jesus, para que nós, do lugar da tradição cristã, nos sintamos seguros para nos abrirmos ao diálogo e aprender-mos das outras tradições.

A EXPERIÊNCIA DO DIÁLOGO ENTRE TRADIÇÕES DE FÉ DISTINTAS

Se conseguirmos, como cristãos e cristãs, perceber a pluralidade de Deus no primeiro testamento, poderemos entrar em diálogo e comunhão com outras experiên-cias de Deus que se organizam em outras tradições de fé. Se pudermos voltar às muitas histórias da bíblia e perceber que elas, apesar de estarem escritas, passaram muitos séculos sendo guardadas na memória. Contadas de pais e mães para filhos e filhas. Como em nossas festas de família, nas quais há his-tórias de tios e avós que são sempre lembradas e nos dão a sensação de raízes, de sustentação e unidade.

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As tradições indígenas brasileiras e latino-americanas e as afro-brasileiras e afro-latino-ame-ricanas são tradições de fé preservadas pela oralidade. Oralidade e gestualidade, ri-tos fundamentais para a vivência da experiência religiosa. Esse encontro de tradições nos traria uma riqueza muito grande. Um pequeno exemplo seria abrir-nos para ler nossas histórias de criação com algumas dessas histórias indígenas e afro-latinas: nossa interpretação e as conseqüências para a integri-dade da criação, a justiça e a paz seriam outras.

Se nós, por exemplo, pudermos dialogar e sermos interrogados por essas tradições e formos visitar outra vez os textos da criação, vamos ter que refazer a leitura e interpretação feita no marco ocidental, branco, cristão e masculino. Lemos o texto de Gênesis 1, em que Deus tendo criado toda a imensidão e pluralidade de formas de vida no ecossistema, uma beleza incrível, foi afirmando que tudo era bom, a cada nova possibilidade. Por último, Deus criou os seres humanos, homem e mulher, à sua imagem e semelhança. Nós, pretensiosamente ou a tradição teológica de nossas igrejas, com uma pretensão incrível, achou que Deus nos criou por último porque éramos os melhores, os superiores a todo aquele resto que foi criado antes.

Lemos como se fossemos maior que a natureza. Equivocamo-nos! Lemos o hebraico errado – ele também não era dos melhores, mas a tradução é ainda pior – a qual afirma “dominai toda a terra”. Ora, não foi com/para esse sentido que Deus nos fez, mas a gente se achou muito importante e perdeu a possibilidade de uma relação de integridade com a criação; uma relação de respeito e apren-dizado. Construiu-se uma visão utilitarista da natureza que nos acompanhou, resultando daí conseqüências nefastas, no ocidente, para as relações humanas e as relações com demais seres vivos e o ecossistema, prevalecendo uma ação de desrespeito.

Se nós pudéssemos nos pensar como seres humanos e não como o centro da história; não como o centro da fé; não como o centro de onde a gente entra em diálogo com Deus, seria outra coisa. Aí, sim, nós poderíamos encontrar sentidos em outras tradições de espiritualidade da criação. Há tradições indígenas que di-zem que a mãe-terra, a patchamama ao abrir seu ventre fez brotar da terra uma pluralidade de corpos, de mulheres, homens, crianças, velhos, de diferentes cores de pele e de cabelo, de toda a ginga, de toda a graça. E afirmam que se algo nós fizermos a um desses filhos da terra à própria terra ferimos, seremos tragados de volta a esse ventre. Não há na memória judaico-cristã predomi-nante o reconhecimento da diversidade e pluralidade que vem da criação. Mas pode-se, por meio do diálogo inter-fé e ecumênico, resgatar-se elementos es-quecidos na leitura feita da Bíblia.

O desafio que se coloca diante de nós é o de redescobrir, não uma superioridade, mas uma possibilidade de nos percebermos como um fio dessa grande teia da vida,

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desse ecossistema com suas pluralidades de formas e vidas. Um convite é ur-gente: o de sentar, aquietar-se, escutar e silenciar para aprender das tradições que temos nas nossas terras, da oralidade, do ritual, dos gestos das tradições afros e indígenas para reler aquilo que a nossa racionalidade ocidental foi apagando da oralidade do primeiro testamento que levou vários séculos se construindo.

SUPERANDO A CENTRALIDADE DO HUMANO

Precisaríamos mudar de percepção sobre nós mesmos os seres humanos e sobre Deus. Seria bom rompermos com a centralidade de nossa visão sobre o ser humano e pensá-lo como um ser vivo importante junto com outros seres vivos impor-tantes. Como um fio nessa grande teia da vida, nos perceber como parte inte-grante do ecossistema. A vida só poderá existir com dignidade e integridade se nos percebermos conectados, interdependentes das demais forças de vida do universo. Nós, seres humanos, precisamos nos perceber não necessariamente como o ser mais importante, nem mesmo centro da vida, mas como outro distinto e fundamental. Penso que essa atitude, nós cristãos e cristãs, precisa-remos aprender com as tradições de fé indígenas e afro-latinas.

Nas palavras do Chefe Seattle, um líder indígena dos EEUU, aproximadamente no ano 1852, citados na obra de Campbell (1990, p. 33-36), encontramos um desafio à re-significação das relações dos seres humanos com a natureza quando dizia “a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Isto sabemos: to-das as coisas estão ligato-das como o sangue que une uma família. Há uma liga-ção em tudo. O que acontecer à terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo”.

Essas cosmovisões há tempos vivenciadas por nações indígenas são, por exemplo, anunciadas no desafio dos físicos para alcançarmos uma nova percepção do mundo e de suas complexas redes de sentido. Na expressão de Albert Einstein (apud RUSSELL, 1991, p.76):

os seres humanos são uma parte do todo que nós chamamos de Universo, uma pequena região no tempo e no espaço. Eles consideram a si mesmos, suas idéias e seus sentimentos como separados e à parte de todo o resto. É como uma ilusão de ótica em suas consciências. Essa ilusão é uma espécie de prisão. Ela nos restringe às nossas aspirações pessoais e limita nossa vida afetiva a umas pou-cas pessoas muito próximas de nós. Nossa tarefa seria livrar-nos dessa prisão, tornando acessível nosso círculo de compaixão de forma a abraçar todas as criaturas vivas e toda a natureza em sua beleza.

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Somam-se a essas palavras desafiantes a perspectiva de Ivone Gebara (1997, p. 35), dizendo da necessidade de “arrumar os sentidos e os conhecimentos de um outro jeito [...] para, a partir daí, captar de outra maneira os sentidos de nossa existência.” Em seu texto, o desafio é para jamais “deixar adormecer a energia inquiridora da mente, a nunca deixar de questionar o que parece óbvio e defi-nitivo. Contra dogmatismos... o movimento da vida!”

Para chegarmos a uma concepção da interdependência de tudo o que forma o ecossis-tema e produz vida será importante pensar os seres humanos como parte dessa grande “teia da vida”. E como conseqüência precisaremos de uma visão que abra mão da concepção de centralidade. Seja ela divina ou humana ou cósmi-ca. Nem mais teocêntrica, nem mais andro/antropocêntrica, nem

qualquercoi-sacêntrica!

Se reinventarmos a relação de poder com a natureza, teremos também que reinventar as relações de poder que subordinam mulheres a homens, negros e indígenas a brancos, empobrecidos a ricos, idosos a jovens. Nesse momento, vale res-saltar que embora haja alguns avanços antropológicos como os que formulam a superação de concepções de mundo e relações de caráter androcêntrico para uma perspectiva antropocêntrica, essa mudança resolve a descentralização da matriz cultural masculina como parâmetro para o humano, mas não altera a percepção de centralidade do humano para entender o ecossistema em suas relações.

Afirmamos aqui, provisoriamente, uma concepção que “explode” o centro para dar lugar a uma concepção de relações de mútuas interdependências; sem que isto desqualifique o ser humano, mas o re-signifique na relação de perce-ber-se como parte necessária e com necessidades de toda a complexa e múlti-pla diversidade do que existe no ecossistema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo esta reflexão e contribuição para o diálogo ecumênico e inter-religioso parece-me fundamental introduzir o desafio de pensarmos a revisão das con-cepções de centralidade para rever a construção teológica feita sobre Jesus Cristo. Jesus, que é o centro de nossa fé, na tradição cristã, é importante para minha e a tua experiência de fé, nascida e tecida nesta trajetória cristã, mas não é esta a única maneira de conceber a experiência de fé. Jesus pode ser compre-endido não como a única mediação para que todos os seres humanos cheguem a Deus. O marco da minha fé não precisa ser a experiência única e absoluta de Deus no mundo, mas a minha e nossa experiência. Imagino que se pudermos fazer esse deslocamento do centro da concepção de Jesus para as experiências

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intolerância e poderemos seguir com o diálogo ecumênico e iniciar o diálogo inter-religioso.

Considero que isso para nós, cristãos e cristãs, é um grande desafio. Há algumas his-tórias; há alguns momentos da vida em que nós podemos dizer que o Jesus importante, centro da nossa fé, não é necessariamente o centro da fé do mun-do, do jeito de nos aproximarmos de Deus. Se quisermos o diálogo ecumênico e inter-religioso, temos de nos localizar no nosso lugar de tradição, mas não interpor Jesus como a única mediação para falar ou para aproximarmo-nos de Deus. Estamos diante do convite ao diálogo e para tal precisamos revisitar a nossa tradição em um movimento de abertura como é a vida em sua dinâmica e desafios.

BIBLE AND ECUMENISM - REFLECTIONS FOR A DIALOGUE

Abstract: in celebrative context Harold’s life and his contribution to Latin American

Bible reading this essay is a proposal for a fundamental dialogue between those who can take your brand identity without losing listening to the identity of the other. The many faith traditions can and must find in the daily struggle for life and not under the institutional issues. Intolerance is very close to dog-mas, since dialogue is approaching the renewal and alliance for a dignified life for all.

Keywords: Dialogue. Ecumenism. Bible.

Referências

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito (com Bill Moyers). São Paulo: Associação Palas Athe-na, 1990.

GEBARA, Ivone. Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião. São Paulo: Olho d’água, 1997.

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: EDUSP, 1996.

RUSSELL, Peter. O Despertar da Terra: o cérebro global. São Paulo: Cultrix, 1991. SAMPAIO, Tânia Mara Vieira. Movimentos do Corpo Prostituído da Mulher: encontros e desencontros teológicos. São Paulo: Loyola, 1999.

Referências

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