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AS METAMORFOSES DO MARACANÃ PELA PERSPECTIVA DE WALTER BENJAMIN

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Academic year: 2020

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International Scientific Journal – ISSN: 1679-9844 Nº 2, volume 13, article nº 7, April/June 2018 D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v13n2a7

Accepted: 10/01/2018 Published: 20/06/2018

AS METAMORFOSES DO MARACANÃ PELA PERSPECTIVA DE

WALTER BENJAMIN

THE METAMORPHOSIS OF MARACANÃ FROM THE PERSPECTIVE OF

WALTER BENJAMIN

Pedro Jorge Lo Duca Vasconcellos1, Mariane Aparecida do Nascimento Vieira2

1

Doutorando em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

2

Mestranda em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Resumo – O principal esforço deste trabalho, dividido em fragmentos, é estabelecer um nexo conjuntivo de todos os processos transformativos pelos quais passou o estádio Mário Filho, popularmente conhecido por Maracanã, neste século com o pensamento de Walter Benjamin sob os vários prismas de sua atuação intelectual. O ponto de partida é a crítica engendrada por Benjamin às alterações arquitetônicas realizadas em Paris no século XIX por Eugène Haussmann, apontando o quanto estas visavam não apenas o embelezamento urbanístico da cidade, mas sobretudo o impedimento de uma insurreição popular, estratégia largamente usada em outros contextos e espaços sociais, com foco aqui no estádio. Nas análises acerca da transformação do estatuto da obra de arte a partir da introdução de mecanismos de reprodutibilidade técnica, Benjamin ressalta que estas novas formas de realizar, acessar e perceber a arte possibilitaram a perda do aspecto aurático em torno das obras, retirando seu caráter exclusivista e permitindo sua apropriação emancipatória pelas massas. No caso do Maracanã, como tentar-se-á demonstrar por meio dos conceitos benjaminianos valor de culto e valor de exposição, percebe-se o efeito reverso no que se entende como período pós-aurático deste equipamento sociocultural. As alterações orquestradas no Maracanã, ao visarem inseri-lo no mercado cultural subordinado a questões econômicas, interferiram em traços fundamentais da sua fisionomia espacial e da experiência do torcedor ao assistir uma partida de futebol. Respeitando todas as diferenças empíricas possíveis, a utilização de um autor como Benjamin parece-nos ainda hoje bastante atual para uma melhor compreensão de como os discursos em nome da modernidade e seus métodos de exclusão social nos

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diversos espaços são ainda colocados em prática pelas classes dominantes.

Palavras-chave: Maracanã; Haussmann; Identidade; Aura.

Abstract – The main goal of this paper, divided into fragments, is to establish a conjunctive nexus of all the transformative processes imparted to the Mario Filho stadium, also known as Maracanã, in the present Century, through the many facets Walter Benjamin‟s intellectual activity. The starting point of this analysis is Benjamin‟s criticism of the architectural interventions effected in 19th Century Paris by Eugène Haussmann, which sought not only urban renovation, but mostly the suppression of popular revolt. This rationale has been adopted in myriad social contexts and spaces, such as the stadium itself. In his analysis of the transformation of the status of the work of art following the deployment of means for its technical reproducibility, Benjamin stresses that such novel forms of realising, accessing and perceiving works of art may have caused the loss of their auratic aspect, voiding their exclusivist character and allowing for their emancipatory appropriation by the masses. In the case of Maracanã, however, the effects of the post-auratic period seem to operate in reverse, as this paper, through the Benjaminian concepts of value of cult and value of exhibition, contends. The alterations imposed to Maracanã, seeking to insert it in the economic market, under an economic paradigm, has distorted fundamental traits of its spatial physiognomy and the supporters‟ experience of attending a football match. In spite of every possible empirical difference, the thought of an author such as Walter Benjamin seems quite pertinent, in the present, to obtain a better understanding of how discourses in the name of modernity and its methods of social exclusion in different spaces are still much mobilised by the dominant classes.

Keywords: Maracanã, Haussmann; Identity; Aura.

Haussmann e seu ideal urbanístico através da crítica benjaminiana

Walter Benjamin foi um arguto observador das metamorfoses sofridas na cidade que tanto admirava, Paris. Pelos intensos desenvolvimentos técnicos possibilitados com a introdução de materiais como o ferro e o vidro, a busca pela novidade nas construções arquitetônicas torna-se o cânone do século XIX e a cidade muda sua fisionomia num curto espaço de tempo. O momento mais representativo desta época de frenesi pela técnica seria o erguimento da Torre Eiffel, possibilitado pela

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introdução de materiais como o vidro e o ferro. Em um breve e ácido escrito sobre estas transformações realizadas na cidade pelas mãos do Barão Eugène Haussmann, Benjamin apontara que o ideal urbanístico de embelezamento estético da capital francesa, visando o enobrecimento das construções técnicas ao patamar de projetos artísticos, estava diretamente circunscrito numa lógica especulativa do capital financeiro possibilitado pelo imperialismo napoleônico, cuja real finalidade era tornar a cidade livre de qualquer insurreição popular e, assim, alcançar um sonhado padrão de beleza liberto das contingências indesejáveis – as barricadas.

Ademais, com o intuito de tornar Paris uma cidade homogênea e mais facilmente interpretada não apenas arquitetonicamente, mas também socialmente, as intervenções de Haussmann promovem a valorização dos aluguéis de tal modo que aqueles que não poderiam pagar (proletariado) pelos altos valores cobrados nas moradias seriam forçados a se deslocarem para as franjas da cidade, o que Benjamin chama de “Cinturão Vermelho”. Dessa forma, criam-se polarizações entre centro e periferia, determinadas pela questão de classe. Aqueles que não tivessem condições econômicas de desfrutar das benesses do capital não poderiam, por exemplo, desfrutar em sua plenitude dos espaços emblemáticos da arquitetura moderna que são as galerias parisienses; estas passagens cobertas que se configuram como reminiscências de um mundo onírico que então se tornariam o templo da ociosidade e do consumo onde o mundo da mercadoria se mistura às pretensões artísticas. Diz Benjamin, acerca da reviravolta arquitetônica das passagens, que elas “tornaram-se o molde oco, a partir do qual se cunhou a imagem da modernidade” (BENJAMIN, 2007, p. 954).

Para o pensador alemão, portanto, as radicais alterações não deixariam de explicitar suas consequências sociopscicológicas, tendo como ponto mais problemático a percepção de estranhamento individual e coletivo com o novo espaço que se apresentava de modo tão remodelado. E exibe sua perspicácia de observador ao mostrar que “ele [Haussmann] faz com que Paris se torne uma cidade estranha para os próprios parisienses. Não se sentem mais em casa nela. Começa-se a tomar consciência do caráter desumano da grande metrópole” (BENJAMIN, 1991, p. 41). Portanto, a Paris do século XIX é a morada oficial dos discursos da fé no progresso, do culto à mercadoria como projeto artístico e do triunfo das classes dominantes que fazem da cidade seu espelho urbano.

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Esse projeto de modernização ficou conhecido como embelezamento estratégico, dada sua notória vantagem política pelo discurso inebriante da segurança e beleza, e a figura de Haussmann, notabilizada por essas metamorfoses radicais, passaria à história pela alcunha imputada a si próprio de “o artista demolidor”. Esta grandiosa reforma logo tornou-se um modelo a ser seguido em inúmeras partes do mundo, recebendo inclusive a denominação de haussmannização, quando alguma cidade ou espaço aplicava tais ideias em sua própria realidade. Esse pensamento está imbricado naquilo que se definiu como moderno, isto é, algo presente e atual entendido como uma ruptura brusca e definitiva com o passado, uma ruptura tida como um valor positivo e uma esperança racional de um porvir melhor. Portanto, o passado passa a receber imputações negativas, em oposição ao “novo”, que justifiquem as ações radicais presentes com vistas a um futuro redentor.

Geograficamente distante da realidade parisiense, um dos exemplos que melhor incorporaram este ideal de modernização estratégica encontra-se na cidade do Rio de Janeiro, então capital da República do Brasil naquele começo do século XX. Inspirado fortemente pelo que presenciou em Paris, o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, procura remodelar o centro do distrito federal com uma grande reforma urbana que despeja de modo sistemático e autoritário os moradores indesejáveis daquela região para áreas afastadas do Centro. Assim como em Paris, as estratégias desse pretenso embelezamento baseavam-se principalmente na abertura de largas avenidas, nos moldes dos boulevards, e na constante derrubada de casas populares (cortiços), acompanhado de uma elevação nos valores dos imóveis. Igualmente fazia-se presente o nobre discurso estético que, modelado pelo desenho racional do espaço urbano do Centro, objetivava sobretudo a implantação de um processo de exclusão das contingências, da sistematização do controle social e da tão propalada ideia de eugenização da sociedade.

Para o historiador Nicolau Sevcenko, reportando-se ao caso do Rio de Janeiro, chega a conclusões semelhantes àquelas que Benjamin havia asseverado em relação a Paris:

Pode-se deduzir, portanto, que a transformação do desenho urbano da capital obedeceu a uma diretriz claramente política, que consistia em deslocar aquela massa temível do Centro da cidade, eliminar os becos e vielas perigosos, abrir amplas avenidas e asfaltar as ruas (SEVCENKO, 2010, p. 91)

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Essa experiência carioca de planejamento e intervenção urbanística, cujo grande responsável passou a ser conhecido como “Haussmann tropical”, alastrou-se para outros espaços em que as transformações estariam associadas ao infalível discurso da novidade moderna. A expansão imobiliária na Barra da Tijuca é um clássico exemplo da conjugação destes ideais no planejamento de um espaço urbano. Contudo, o mais recente – e notável – símbolo deste ideal de intervenção arquitetônica em nome da modernização encontra-se na remodelação – ou seria mais apropriado falar em destruição sem desmoronamento? – do estádio Mário Filho, popularmente conhecido como Maracanã, fundado em 1950 como significante da almejada expressividade material e simbólica do Estado moderno brasileiro no cenário mundial.

A partir do seu quinquagésimo aniversário, em 2000, este espaço historicamente polifônico e um equipamento sociocultural formulador e difusor de identidades individuais e coletivas começa a passar por bruscas remodelações estruturais que culminariam, nos dias atuais, em um equipamento estranhamente distante de seus propósitos inaugurais. Comungando com as mudanças conjunturais de uma economia global em que as elites do Estado convertem-se à ideologia do mercado, ainda mais neste século em que o estádio coloca-se em evidência no mapa mundial dos grandes eventos esportivos – Mundial de Clubes da FIFA (2000), Pan-Americano (2007), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016) – sua arquitetura passa por intensas mudanças estruturais, tendo como aspectos mais visíveis o esvaziamento de sua função social – pela elevação abusiva do valor de seus ingressos e sua nova configuração espacial em cadeiras individuais que transforma o torcedor em espectador – e a exploração de sua histórica para fins que contemplam prioritariamente o consumo. Não sem razão Benjamin afirmaria que “a classe dominante faz história fazendo os seus negócios” (BENJAMIN, 1991, p. 37).

Portanto – e certamente aquilo que o autor anteviu e criticou nas reformas de Haussmann –, a radicalidade nas transformações do Maracanã, em nome do interesse mercadológico e do reforço da segmentação social, ancora ainda suas ações num discurso de modernidade (progresso) como valor inquestionavelmente positivo, mas que na realidade concreta traz a ideia de que os espaços socioeconomicamente higienizados são formuladores de uma imagem positivamente civilizatória, o que não deixa de trazer consequências irreversíveis em sua histórica

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topografia e nos modos de vivenciar a experiência coletiva. É o que tentaremos nas próximas seções.

As mudanças no estádio estão em consonância com um amplo contexto de apropriação do capitalismo da ideia de progresso enquanto avanço técnico e civilizacional associado ao “manto da racionalidade” que justifica tais alterações. Sob essa égide dogmática, a “legitimação econômica permite ao sistema de dominação adaptar-se às novas exigências de racionalidade.” (DUPAS, 2007, p. 77). Desse modo, o Maracanã foi reformulado e descaracterizado para atender os ideais modernos, alterando abruptamente a experiência do torcedor nesse espaço que costumava agregar diferentes segmentos sociais.

Esvaziamento da aura do Maracanã

Benjamin, em seu ensaio seminal “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1998), parece vislumbrar um aspecto positivo na perda daquilo que denomina de aura da obra de arte, isto é, aquela peculiaridade insólita que a tornaria única e, portanto, revestida por um manto sagrado que dificultaria seu acesso à coletividade social. Contudo, o autor aponta que a nova fase do desenvolvimento da reprodução técnica, se bem utilizada, retiraria seu caráter exclusivo e permitiria um maior ingresso das artes na vida das pessoas, possibilitando uma tomada de conscientização das massas para a sua emancipação social. Dessa forma, Benjamin associa a perda da aura ao maior acesso das pessoas ao outrora mundo sacralizado da arte.

No caso a que nos propomos analisar nesta seção – as transformações arquitetônicas do Maracanã – fica evidenciado que esta particularidade aurática se faz exatamente pelo seu avesso: o esvaziamento de sua aura (suas qualidades materiais e simbólicas) proporcionou uma dificuldade para seu acesso, por meio de sua elitização socioeconômica. Contudo, a pertinente afirmação de Benjamin que chama atenção para os propósitos de elucidação analítica desta seção, e da qual partiremos, é esta: “mesmo no caso de uma reprodução altamente perfeita, falta um elemento: o hic et nunc [aqui e agora] da obra de arte – a sua existência única e irrepetível no lugar em que se encontra” (BENJAMIN, 1998, p. 8. Tradução nossa).

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Em pouco menos de 15 anos, a imagem do estádio transformou-se de maneira radical, deixando de ser um estádio portador de uma monumentalidade capaz de abrigar vários estratos sociais num único espaço, para resultar num produto semelhante a tantos outros cuja finalidade passa a ser uma espécie de circuito da contemplação passiva e do consumo, tal qual um grande shopping center do mercado cultural, tornando mais visível as múltiplas dimensões de um modelo excludente que permeia o histórico de alianças entre a elite política e o capital financeiro, desta vez atuando na intervenção física de um espaço que outrora, embora reprodutor em sua arquitetura da hierarquia social, fora reconhecidamente mais democrático e polissêmico. Apesar de reproduzir em sua arquitetura as distinções de classe (partindo da base, com a geral, até o topo, onde estão as tribunas e camarotes), o Maracanã era um local da possibilidade de acolhimento de todas as camadas sociais, como mostra a sua arquitetura original (Figura 1) com as arquibancadas de cimento, cobertura e rampas com traçados tradicionais de azul.

Figura 1 – Vista aérea do estádio em 1973, com sua arquitetura original.

Fonte: Maily Online/Press Association Images.

Após os conturbados incidentes que ocorreram no estádio, nos anos 90, como a queda do alambrado na final do Campeonato Brasileiro, em 1992, constituiu-se o cenário que constituiu-serviu de pretexto para a primeira das grandes intervenções que vieram a ocorrer no Maracanã, iniciadas ao final desta década. Ao ser escolhido como uma das sedes do Campeonato Mundial de Clube da FIFA, em 2000, percebe-se uma grande mudança na arquitetura do estádio com a colocação de cadeiras individuais na arquibancada, representando as cores da bandeira nacional, como demonstra a figura abaixo.

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Figura 2– Alterações no estádio para ser uma das sedes do Campeonato Mundial de Clube da FIFA,

em 2000. Fonte: London 24. Fotógrafo: Matthew Ashton.

O estádio permaneceu com esse formato em atividade por poucos anos, quando passaria por outra grande intervenção, em 2007, para ser palco da abertura e encerramento dos jogos Pan-Americanos. Desta vez, a intervenção que mais se destaca é o definitivo fim do espaço da geral e a colocação de cadeiras azuis que formam um único bloco entre as antigas cadeiras e a geral, como pode ser visualizado na figura 3:

Figura 3 – No ano 2007, reformado para ser o palco de abertura e encerramento do Pan-Americano.

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Contudo, a intervenção mais drástica de todas aconteceria em 2013, realizada para abrigar alguns jogos da Copa de Mundo, entre eles a final. Para satisfazer as exigências dos representantes do evento, sobretudo na figura da FIFA, o estádio, em nome da imperiosa modernização, passaria por modificações estruturais jamais vistas em sua história. As intervenções mais incisivas, que saltam aos olhos na figura 4, são a completa descaracterização de sua marquise – até então protegida por lei patrimonial (art. 17 do Decreto-Lei 25/1937) – que teve sua demolição questionavelmente concedida pela Justiça Federal –, a alteração das rampas tradicionais e a colocação de outras duas e, internamente, a remodelação da estrutura que forma um único bloco, após a retirada das cadeiras azuis colocadas em 2007, de novos assentos coloridos dispostos de modo pontilhado. Além disso, percebe-se o desaparecimento dos tradicionais contornos azuis que ocupavam a cobertura e as rampas.

Figura 4 – O estádio, no processo final das obras em 2013, já com sua fisionomia amplamente

alterada interna e externamente. Fonte: O Globo [online]. Fotógrafo: Genilson Araújo.

Para justificar tais alterações no estádio, a valores estratosféricos (oficialmente gira em torno de mais de um bilhão de reais), muitos dos atores sociais e políticos envolvidos lançaram mão do inebriante discurso da modernidade, senão vejamos estes três pronunciamentos acerca do novo Maracanã que surgia:

[Com o novo Maracanã] ganham o Rio de Janeiro, o torcedor carioca e o torcedor brasileiro que estiver aqui na Copa das Confederações e na Copa do Mundo. O público vai vibrar e ver a modernidade que tem o Maracanã hoje. Ele cresceu na tecnologia e na segurança. Ele ganhou telões modernos e mais de 320 câmeras dando segurança ao torcedor1.

1

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O novo Maracanã impressiona pela sua beleza, o seu conforto, a sua funcionalidade e o seu padrão tecnológico. O estado o transformou em um estádio moderno, sem que ele perdesse as caraterísticas que o fizeram um dos principais ícones do esporte mundial [...]. Sempre que grandes transformações são realizadas, há resistência por parte de pessoas que têm receio do novo. Tem gente que nunca quer mudar nada, que sente nostalgia da geral, onde os mais pobres quase não conseguiam assistir ao espetáculo. Que tem saudade do acesso precário, dos banheiros fétidos, do sistema de som inaudível, da falta de segurança. O governo do estado quer um novo Maracanã, acessível a toda a família, onde as torcidas possam fazer a sua festa com segurança e conforto2.

É um estádio de muita história, agora moderno. Com o tempo, os saudosistas perceberão isso. Ele indo ao estádio vai ver que está bem mais próximo do time e do ídolo. Certamente, a emoção é maior3.

A primeira fala remete ao atual governador do Rio de Janeiro, à época vice-governador, Luiz Fernando Pezão. A segunda é um trecho de um artigo corporativo da ANETRANS (Associação Nacional das Empresas de Engenharia Consultiva de Infraestrutura de Transportes) publicado no jornal O Globo; a última é feita por Ícaro Moreno, presidente da EMPO (Empresa de Obras Públicas do Rio de Janeiro). Na fala dos três, a clara definição da positividade dada à radicalidade do novo em detrimento daquilo que estaria degradado e, portanto, inapto a continuar existindo na sua forma original. A fala mais paradoxal certamente encontra-se nos dizeres da ANETRANS, ao afirmar que o estádio mantém suas características, quando no mesmo artigo enumera estratégica e genericamente aspectos negativos que justificariam uma mudança total, além de condenar pejorativamente aqueles torcedores com um sentimento nostálgico. É historicamente comum o uso sistemático de um discurso que visa degradar a imagem daquilo que está associado ao antigo como o contraponto das benesses da modernidade, tornando mais nítida sua positividade. A esta tática podemos definir como a construção de uma memória antiética das virtudes do novo.

A caraterística que toma corpo material e simbolicamente por meio de todos estes discursos baseados numa pretensa modernidade altamente contestável está <http://www.emop.rj.gov.br/maracana-da-show-de-beleza-e-funcionalidade/>. Acesso em 25 jan. 2016

2

ANETRANS. O novo Maracanã. Disponível em:

<<http://www.anetrans.com.br/component/content/article/2694-o-novo-maracana-.html>> Acesso em 25 jan. 2016

3COSTA, Felippe; BALTAR, Marcelo. Responsável pela obra do Maracanã desabafa: “Chorei muitas

vezes”. O Globo [online]. 20 ago. 2013. Disponível em: << http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-

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no fato de que os estádios em geral, e o Maracanã em particular, perdem suas particularidades essenciais e distintivas (na terminologia benjaminiana, aura) e ingressam na era de sua homogeneidade arquitetônica e comportamental: seu modelo de uso e sua pedagogia do torcer tornam-se uma ideologia ampla e indiscriminadamente difusa por vários recantos do planeta, sem levar em consideração o relevo histórico e social de cada localidade.

Agora considerado mais um elemento do mercado cultural e de serviços entre tantos outros, com sua fisionomia espacial tão semelhante com a de outros estádios, o Maracanã destitui-se de seu hic et nunc; ou seja, perde seus traços fundamentais, entrando numa era que poderíamos chamar de “pós-moderna” do futebol. É o fim da tradição, como pensou Benjamin ao analisar o modo pelo qual a reprodução técnica eliminaria a aura e conceitos tradicionais como os “de criatividade e de genialidade, de valor eterno e de mistério” da obra de arte, conceitos que o autor temia por sua associação com o fascismo (Op cit., p. 8).

Benjamin, ainda neste ensaio, estabelece uma polaridade pertinente ao nosso objeto: a relação entre valor de culto e valor de exposição. Para Benjamin, se antes a arte, pela sua unicidade, estava a serviço da magia e do culto ao eterno, dificultando o acesso das pessoas menos abastadas, nas sociedades contemporâneas a obra de arte destaca-se de sua função parasitária e alcançaria, assim, um público quantitativamente mais expressivo. O que pretendo aqui é fazer uma inversão dessa lógica no que tange o Maracanã, ao ser outrora um espaço simultaneamente de peso cultual para uma massa de pessoas muito maior do que se pode perceber hoje – o maior público registrado entre clubes rivais foi na final do Campeonato Carioca de 1963, entre Fluminense e Flamengo, quando estiveram presentes oficialmente mais de 194.603 torcedores4. Desse modo, a relação estabelecida por Benjamin entre valor de culto e exclusividade de acesso não parece se enquadrar na monumental e gigantesca arquitetura do Maracanã, um local notadamente reconhecido por seu acolhimento da massa.

Portanto, o preço a ser pago por essas políticas está naquilo que Benjamin denominou de o fim da autenticidade da obra, pois reproduzido de modo universalizado, os estádios perdem sua qualidade de algo idêntico e si próprio,

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STEIN, Leandro. O jogo que eternizou a grandeza do Fla-Flu: 194 mil no Maracanã em 1963. Trivela. 8 fev. 2014. Disponível: < http://trivela.uol.com.br/o-jogo-que-eternizou-grandeza-fla-flu-194-mil-maracana-em-1963/>. Acesso em: 25 jan. 2016.

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seguindo uma tendência social de transformação na experiência coletiva nos espaços. O Maracanã reporta esta condição, um dos estádios mais famosos do mundo e reconhecido por suas outrora características diferenciadas, como sua monumental arquitetura, sua imensa capacidade em acolher públicos superlativos e sua interação com a paisagem natural, artificial e social da cidade. O caso emblemático deste esvaziamento de sua unicidade absoluta está na recente declaração de um jornalista britânico sobre a semelhança entre o estádio na Ucrânia (Figura 5) que foi palco da final da Eurocopa-2012 e o “novo” Maracanã (Figura 6). Nos dizeres do jornalista Philip McNulty, da BBC Sports inglesa, por meio de uma matéria do site da ESPN Brasil:

A primeira impressão que tive aqui dentro do Maracanã é que ele se parece muito com o estádio de Kiev, por causa das cores das cadeiras. A cobertura lembra um pouco também. A principal diferença é que lá são dois níveis de arquibancada, e aqui é apenas um. O estádio está muito bonito, mas é bem diferente daquele velho Maracanã que eu via pela televisão5

Figura 5 – Estádio ucraniano que recebeu as seleções na Eurocopa de 2012, com as cadeiras nas

mesmas cores do novo Maracanã. Fonte: ESPN/UOL. Fotógrafo: Tiago Leme.

5

COBOS, Paulo; TORRE, Pedro Henrique; LEME, Tiago. Semelhante ao estádio de Kiev, estilo de

Maracanã chama atenção de mídia inglesa. ESPN. 6 jun. 2013. Disponível em:

< http://espn.uol.com.br/noticia/333676_semelhante-ao-estadio-de-kiev-estilo-do-maracana-chama-atencao-de-midia-inglesa>. Acesso em: 20 jan. 2016.

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Figura 6 – Semelhante ao exemplar acima, o Maracanã transformou-se, perdendo sua originalidade

e tornando-se um modelo entre tanto outros. Fonte: ESPN/UOL. Fotógrafo: Tiago Leme. A partir dessa afirmação, percebe-se amplitude da metamorfose espacial sofrida pelo estádio: de monumento inspirador e de caraterísticas que o tornam único para um espaço destituído de traços marcantes, aparentemente inspirado por outros e vinculado ao mercado. Ao contrário das formulações de Benjamin, que acreditava que a perda de autoridade do monumento original permitiria um contato mais íntimo das pessoas com as obras de arte nos espaços, o Maracanã pós-reformas mostrou a produção do efeito inverso: a dificuldade de acesso daqueles que não podem pagar pelos altos valores praticados.

A massa de torcedores e o equipamento cultural

Retomando o ensaio de Benjamin sobre a época da arte reprodutível, este definiu como sua tese central neste ensaio o fato de que “a época da reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte” (BENJAMIN, 1998, p. 27. Tradução do autor).

Segundo Benjamin, esses novos regimes da obra de arte estavam associados diretamente com as mudanças e avanços atingidos pelas técnicas de produção das artes visuais, com destaque para o impacto da fotografia e do cinema na sensibilidade do homem moderno para perceber o mundo do qual fazia parte. A partir deste fato, trazendo luz para as novas formas de distração através da

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politização cultural, chegava-se a uma etapa inédita no envolvimento sensorial da sociedade de massas com a arte.

Diante do que fora apontado na seção anterior, o pensamento de Benjamin, ainda que descartando suas considerações hoje ingênuas de exigências revolucionárias, é profícuo no que tange ao nexo conjuntivo entre os elementos culturais das grandes formações multitudinárias cada vez mais presentes nas metrópoles em ascensão e os modos de participação dessas massas com estes elementos culturais. E os estádios de futebol são uns desses espaços arquitetônicos da modernidade que possuem uma relação umbilical com as relações sociais e as condições de produção da sociedade industrializada que, nas palavras de Benjamin, oferecem a possibilidade de uma “recepção coletiva simultânea” (Op.cit., p. 28), configurando-se num espaço histórico das formações sociais construídas na vida urbana com seus elementos de distração coletiva e mutações nos modos de participação ao longo do tempo.

O Maracanã, fundado em 1950, seria o auge deste casamento entre massa e equipamento cultural, onde os modos de percepção dos eventos ali transcorridos, se não criariam uma atmosfera de emancipação social almejada por Benjamin, produziriam formas de expressão de identidades individuais e coletivas que seriam capazes de mobilizar grandes contingentes para atualizar estas expressões identitárias. Contudo, as recentes alterações topográficas – sintoma das mudanças sociais e de produção: de uma sociedade industrial para uma de regime pós-industrial – alteram as formas de contemplação e participação nos eventos do estádio. O novo Maracanã, seguindo uma lógica mercadológica de uma sociedade de serviços e consumo de produtos, compreende uma forma de contemplação mais individualizante, menos participativa, distante dos propósitos de expressão de uma coletividade6.

Nesse ponto vale trazer para a discussão as iluminações ensaísticas do filósofo alemão Peter Sloterdijk (2002) que, por meio de uma leitura da obra de Elias Canetti – Massa e poder –, faz um panorama acerca das transformações nas formas

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Antes de mais nada, cabe aqui uma apreciação que indique uma não polarização estanque entre momentos cristalizados, como se uma espécie de individualismo atomizado (partículas moleculares) tivesse superado integralmente um passado de prevalência socialmente holística (massa molar), em que os sujeitos sentir-se-iam englobados pelo peso coletivo. Distanciando-se dessas oposições, compreender-se-á melhor a relação de coexistência destas formas sociais por meio daquilo que Norbert Elias, em seu livro A sociedade dos indivíduos (1994), definiu como uma relação entre um Nós e um Eu, em que a configuração do contexto histórico altera essa balança em favor de uma forma mais social ou individual, mas nunca uma suplantando inteiramente a outra.

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de experiência coletiva no espaço. O autor entende que a imagem da massa-ajuntamento tão característica da era moderna, visível sobretudo pelas reuniões maciças de corpos presentes em que, utilizando uma figura de linguagem, ficava “tudo preto de gente”, dá lugar ao que ele define como massa pós-moderna, aquela que não precisa da experiência corporal para se experimentar enquanto massa, haja vista que suas experiências são orientadas por meio de símbolos dos meios de comunicação de massa e pelas mídias sociais e, por essa razão, não possui mais, como diz o autor, “um sentimento de corpo e espaço próprios” (SLOTERDIJK, 2002, p. 21). Desse modo, é possível apontar que as transformações recentes em espaços sociais como no caso do Maracanã refletem uma nova forma de as massas se reunirem e vivenciarem um evento num espaço coletivo: a metamorfose da massa densamente molar para aquela que mais se assemelha a partículas coloridas que fluem desatenciosamente.

As partidas de futebol tornam-se mero entretenimento cultural em que se passa de uma concentração de massa potente a um caráter individualista mais blasé, nos termos empregados por Georg Simmel (2005) em seu ensaio sobre a condição do homem moderno diante da vertigem das metrópoles em rápida mutação, com clara inspiração em Berlim e que pode ser vislumbrada nas transformações dos modos de experimentar o novo espaço em que se tornou o Maracanã, esta testemunha exemplar das novas estruturas de relações sociais da sociedade pós-industrial. Portanto, como fora falado na seção anterior sobre a perda de sua característica ritual e mágica, o estádio torna-se um espaço de entretenimento pela sua apropriação unicamente com vista ao lucro, deslocando sua funcionalidade de um local de expressão de identidades coletivas para mais um produto a ter seus produtos consumidos em sua efemeridade do espetáculo.

O exemplo mais emblemático desta imposição arbitrária pela mudança do ethos torcedor vem das palavras do dono do consórcio que administra o estádio, João Borba, que nitidamente se posiciona pelo enquadramento de novos hábitos por parte dos torcedores:

Bandeirões gigantes, mastros de bambu, torcedores, sem camisa, não assistir aos jogos em pé [...]. Fui no último fim de semana às finais do tênis em Wimbledon, e no convite, estava escrito que não é recomendável ir com

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uma determinada roupa... Quando um inglês lê “não recomendável”, entende que não deve usar aquele tipo de roupa7.

Ao comparar o novo momento do Maracanã com o torneio de tênis em Wimbledon, o administrador deixa entrever que uma das premissas de acesso ao novo espaço topográfico é o de fazer o torcedor internalizar um modo de comportamento docilizado, ofuscando os traços de subjetividade nas práticas torcedoras, e ao mesmo tempo demarcar uma ideia polarizada entre o que se pretende “civilizado” como antítese às atitudes de “barbárie”, aquelas associadas às tradicionais formas de torcer.

O ato de torcer como experiência coletiva

Chegamos no ponto da consequência prática em termos de experiência, procurando entender de modo mais concreto como as formas de experienciar o futebol mudaram seu estatuto ao longo do tempo e como isto se reflete nas mudanças arquitetônicas do estádio, de modo que sua fisionomia modificada é ao mesmo tempo produto e produtor determinante para a metamorfose nas relações sociais compartilhadas.

Benjamin se interroga sobre o declínio no ato de narrar devido às dificuldades de comunicar as experiências. Em textos como Experiência e Pobreza e O Narrador, o autor irá se ater à questão do enfraquecimento na arte da narratividade em uma sociedade capitalista moderna, onde a experiência tradicional (Erfahrung) no sentido pleno e orgânico, tão ligada à atividade artesanal que molda uma maneira de contar única, cede lugar a um empobrecimento informativo que estaria ligado à fragmentação social e à perda do aspecto aurático de transmissão do passado. Essa passagem de uma estrutura à outra resultaria, para Benjamin, numa experiência individual e isolada do indivíduo (Erlebnis). Para o autor, estas transformações indicariam que

é a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente [...]. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1993, p. 198).

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NOGUEIRA, Cláudio. Ambiente exige novo respeito no Maracanã. O Globo [online]. 11 de jun. 2013. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/esportes/ambiente-exige-respeito-no-novo-maracana-9000186>. Acesso em: 27 jan. 2015.

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Embora esta visão benjaminiana possa parecer carregada de nostalgia por um passado idílico nas formas de transmissão das experiências (boca a boca) e demonstrar uma lamentação por seu iminente desaparecimento, sua tese tem a força elucidativa de apresentar como as condições técnicas de um capitalismo em desenvolvimento teriam proporcionado alterações nas formas de narrar e receber experiências, em que haveria uma espécie de enfraquecimento das transmissões geracionais entre o narrador e seus ouvintes – relação esta que pressuporia o compartilhamento de uma mesma posição no mundo e suas experiências comunitárias – para o caráter prevalente de formas mais objetivas e impessoais.

No caso do futebol, podemos perceber como as transmissões orais – fossem elas por meio das histórias contadas pelos mais experientes aos mais jovens ou até mesmo pelas narrações radiofônicas, tão caras a Benjamin – operavam como meios desencadeadores de uma interminável sequência de relatos que mexiam com a memória e o imaginário dos torcedores. Contudo, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, essas formas narrativas cedem espaço para aquelas mais midiáticas de apreensão do jogo. O sentimento de experiência individualiza-se, as informações jornalísticas e imagens pululam em vários meios e por todos os ângulos, e o torcedor, isoladamente, busca suas explicações definitivas. Dessa forma, fica latente o esvaziamento do aspecto lúdico e espacialmente localizado em detrimento das estatísticas, dos números frios, das análises táticas, enfim, é um período em que cada torcedor pode se tornar um estudioso do futebol sob diversos aspectos e além de suas fronteiras, dada as possibilidades de acesso a um imenso cabedal de informações acerca de um sem número de campeonatos, equipes, jogadores.

Com uma nova topografia que reproduz materialmente a lógica benjaminiana da experiência vivida individualmente com o declínio da arte de narrar, o novo Maracanã deixa de ser o espaço do templo pleno, espaço de culto e magia partilhado coletivamente de um tempo histórico em que as transmissões intergeracionais ainda prevaleciam. Nos estádios pós-modernos, esse tempo das experiências vividas individualmente são representadas arquitetonicamente pela distribuição homogênea das cadeiras individuais por todo o estádio, numa clara demonstração da mutação antropológica na forma de assistir às partidas, de experimentar o futebol. Embora as duas formas de estádio (moderna e pós-moderna) abriguem a mesma funcionalidade – albergar jogos de futebol –, estas

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produzem formas diferenciadas de experimentar coletivamente uma partida. Saímos de uma época em que a imagem mais bem acabada dos estádios era a da comunhão dos indivíduos num único corpo coletivo, uma totalidade efetivamente reunida (espaço molar em que tudo fica preto de gente) para aquela em que prevalecem os corpos isolados individualmente (partículas moleculares coloridas).

Algumas considerações finais

Benjamin, fazendo o diagnóstico do declínio da experiência, nos diz que “ficamos pobres. Fomos entregando, peça por peça, o patrimônio da humanidade, muitas vezes tivemos que empenhá-Io por um centésimo de seu valor, para receber em troca a moeda miúda do „atual‟” (BENJAMIN, 1986, p. 198). Aqui, como tentou-se elaborar ao longo deste trabalho, evidencia-se a maneira pela qual a sequiosa busca pela novidade como valor supremo inibe as formas tradicionais de experiência e destrói os espaços sociais, não somente na época moderna vivida pelo autor, mas como o discurso que busca esse valor se capilariza para realidades sociohistóricas temporal e espacialmente diversas.

A inflexão empírica para este trabalho de diálogo com as análises de Benjamin sobre os mais variados campos da cultura moderna foi o caso do Maracanã, um espaço sociocultural reconhecido por sua magnitude arquitetônica e simbolismo mundial que, exatamente a partir da virada do século XX para o XXI, sofre alterações indeléveis em sua estrutura que são o produto das novas relações sociais e de produção da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo em que ajudam a produzi-las e sedimentá-las, resvalando decisivamente em questões que envolvem identidade, memória e experiências individuais e coletivas. Assim como Benjamin destaca que a maior parte das passagens parisienses, esses espaços tão característicos da modernidade, surgiu nos primeiros quinze anos após 1822, pode-se afirmar que as mudanças mais eloquentes no Maracanã aconteceram nos primeiros quinze anos após o ano 2000.

Parafraseando seu diagnóstico das mudanças no estatuto da experiência vinculadas à destruição material da I Guerra Mundial, podemos afirmar que uma geração que ainda fora nos espaços da geral ou da arquibancada de cimento do

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Maracanã, viu-se desabrigada, numa paisagem onde tudo mudou, exceto as nuvens, num campo de forças de intensas destruições de um patrimônio cultural cada vez menos vinculado a uma experiência plena, mas mediado pelas revoluções midiáticas.

Diante de todos esses acontecimentos, a tarefa crítica que se segue é aquela indicada por Benjamin nas suas Teses sobre o conceito de História (1940) concernentes a um incansável esforço do historiador em localizar nos escombros amontoados pelo desenfreado progresso aquele fragmento velado que pudesse deslocar o eixo para um outro futuro. Da mesma forma que Angelus Novus, de Paul Klee, foi a imagem-símbolo escolhida por Benjamin para representar esse momento de extração do fragmento redentor nos destroços da história, o Maracanã aqui opera como a referência física e simbolicamente perceptível deste urgente exercício de retirar das ruínas uma nova possibilidade. Não se pretende um sentimento nostálgico de reprodução de um passado exatamente tal qual fora outrora, mas redimir algum fragmento soterrado sob a rubrica delirante do discurso moderno.

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EFERÊNCIAS

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Imagem

Figura 1 – Vista aérea do estádio em 1973, com sua arquitetura original.
Figura 3 – No ano 2007, reformado para ser o palco de abertura e encerramento do Pan-Americano
Figura 4 – O estádio, no processo final das obras em 2013, já com sua fisionomia amplamente  alterada interna e externamente
Figura 5 – Estádio ucraniano que recebeu as seleções na Eurocopa de 2012, com as cadeiras nas  mesmas cores do novo Maracanã
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Referências

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