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HERMENÊUTICA E MODERNIDADE: O RETORNO A UM CRISTIANISMO PROPOSITIVO

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Academic year: 2020

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HERMENÊUTICA E MODERNIDADE:

O RETORNO A UM CRISTIANISMO

PROPOSITIVO

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HELDER MAIOLI ALVARENGA**

* Recebido 28.11.2019. Aprovado em: 05.01.2019.

** Mestre em Ciências da Religião, com Bolsa CAPES, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Teologia pela Faculdade dos Religiosos de Filosofia e Teologia (ISTA 2016). Licenciado em Filosofia pela Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo - Vitória (2011). E-mail: hmaio@hotmail.com

DOI 10.18224/frag.v29i3.6924

Resumo: sabemos que toda ruptura pressupõe continuidades. Assim, apesar de inúmeros

pensadores afirmarem a impossibilidade de se conjugar modernidade e religião, no nosso caso o cristianismo, o que vemos são as religiões coexistirem com as demais instituições modernas. Não só as religiões mudaram, mas a própria modernidade não é a mesma. No tocante ao cristianismo, a reflexão em torno da hermenêutica diversificou esta matriz, bem como revelou uma de suas características identitárias, possibilitando seu diálogo com o mundo moderno. Neste sentido, o objetivo de nosso artigo é resgatar a dimensão hermenêutica do cristianismo, mostrando como ela contribuiu para o diálogo desta matriz com as diversas modernidades. Nossa metodologia é bibliográfica e parte de um resgate histórico da interpretação cristã, enquanto identidade e método, e do confronto desta realidade com o período atual, revela-dor de um novo estágio da modernidade. Por fim, pensamos que assim como a modernidade se tornou múltipla, assumindo a pluralidade para si mesma, o cristianismo, como matriz religiosa que pretende oferecer sentido ao ser humano contemporâneo, só pode ser pensado dentro da pluralidade própria de nossos tempos.

Palavras-chave: Hermenêutica. Modernidade. Pluralidade. Cristianismo Propositivo.

O

presente artigo faz uma discussão sobre a relação entre cristianismo e

moderni-dade no tocante à incidência do pluralismo sobre a reflexão teológica. O assunto não é novidade no meio teológico e das ciências da religião, mas as resistências colocadas pelas instituições cristãs fazem com que seja necessária a sua abordagem continu-amente e de modos diversos. A questão subjacente neste artigo é de que forma o movimento hermenêutico possibilita um melhor relacionamento com a pluralidade no cristianismo?

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Na investigação da questão, dividimos o nosso artigo em três pontos. No primeiro, analisamos a hermenêutica como face identitária da tradição cristã, desde o seu nascimento. No segundo ponto, apresentamos as consequências da hermenêutica, enquanto método cientí-fico no fazer teológico. Por fim, no terceiro ponto, analisamos os desafios contemporâneos do cristianismo, hermenêutico e plural, num mundo cada vez mais moderno e em transformação.

Passada a crença de que quanto mais modernidade menos religião, e olhando para a realidade que se revela múltipla, com coexistência de diversas correntes políticas, econômi-cas, filosófieconômi-cas, religiosas etc, pensamos que há lugar para o cristianismo neste momento da modernidade. Para isso, ele precisa, com seriedade e ousadia, assumir sua identidade herme-nêutica e por-se em diálogo com as diversas realidades.

A NEGAÇÃO CRISTÃ ORIGINAL DE UMA POSTURA NÃO HERMENÊUTICA Investigar a origem hermenêutica do cristianismo leva-nos aos primórdios dessa matriz religiosa, aos contextos e elementos fundamentais que a fizeram se reconhecer em torno de uma palavra: as Sagradas Escrituras1. Neste sentido, sabendo da complexidade de se

falar de uma identidade diante de uma tradição religiosa tão multiforme e vasta, pensamos ser a característica hermenêutica parte significante da mesma e que, em determinados momentos da história, ficou esquecida.

Paul Ricouer afirma que “sempre houve um problema hermenêutico no cristianis-mo” (RICOEUR, 1978, p. 319). Isso se configura, pois o mesmo organizou-se sob a procla-mação da chegada do Reino de Deus em Jesus Cristo. No entanto, esta proclaprocla-mação guardada na escritura deve constantemente ser restaurada em palavra viva, tornando atual o evento pri-mitivo da vinda de Cristo, considerado fundamental e fundador da tradição. A relação criada entre escritura-palavra-evento2 e os sentidos extraídos daí no decorrer da história formam o

núcleo do problema hermenêutico cristão (RICOEUR, 1978, p. 319-320).

Neste panorama, o mesmo autor aponta três momentos, tomados em sentido siste-mático, elucidativos desta situação hermenêutica, e que nós buscaremos aprofundar em nosso texto: 1) a relação entre o Primeiro Testamento e o Segundo Testamento3; 2) a ideia contida já

em Paulo, mas bem desenvolvida na modernidade, de que a interpretação do livro e a interpre-tação da vida se correspondem e se ajustam mutuamente; 3) a constituição do querigma cristão, ou seja, o entendimento de caráter testemunhal do Evangelho (RICOEUR, 1978, p. 320-325). O SEGUNDO TESTAMENTO LEITURA DO PRIMEIRO TESTAMENTO

O cristianismo em seus primórdios nasce no contexto cultural do judaísmo e, por isso, apesar da releitura de ruptura das duas comunidades, feita no decorrer dos séculos, é necessário, nos dias atuais, repensarmos de que maneira os cristãos viram-se na continuidade dos elementos presentes na cultura judaica.

No momento em que boa parte do Segundo Testamento fora escrito, a comunidade judaica ainda não havia determinado o cânon de suas escrituras4, bem como a Torá oral5 ainda

não havia ganhando um corpo mais definido. Neste contexto, o diferencial da releitura cristã dos textos do Primeiro Testamento está no viés cristológico dado a eles. Porém, a afirmação de Jesus como Cristo e toda teologia desenvolvida no Segundo Testamento estão completamente dependentes do Primeiro Testamento6 (BARRERA, 1995, p. 593-594).

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No livro dos Atos dos Apóstolos, escrito entre os anos 80 e 90 d.E.C. já estava ex-posta, pelo menos, duas correntes: uma mais judaizante e outra mais helênica. No século II, com a difusão do cristianismo por dentro do império e a influência do pensamento grego, o grupo que renegava as origens judaizantes do cristianismo ganha força.

Consoante a tal pensamento está Marcião para quem os cristãos não deveriam considerar o Primeiro Testamento como escritura sagrada. Além disso, fazendo uma leitura literal do mesmo, contrapõe o Deus justo da lei, dos judeus, ao Deus bom dos cristãos. Ele apontava o quão, em suas palavras, antiquada e ultrapassada, estaria a primeira aliança. Além de Marcião, reforçou esse movimento o gnosticismo, com Valentino, que rejeitava todo o Primeiro Testamento, e Ptolomeu, que aceitava algumas partes das quais julgou serem divinas.

Nesta conjuntura, na qual a comunidade cristã deixava geograficamente o mundo judaico e se inseria no império romano, a multiplicidade de pensamentos exigiu a formulação de uma teoria sobre os textos sagrados. E a opção feita foi estabelecer a relação entre as duas alianças, em que a segunda estava eminentemente ligada com a primeira.

Assim a doutrina cristã foi formulada afirmando que

o evento crístico está numa relação hermenêutica com todo o conjunto da escritura judaica, no sentido em que ele a interpreta. Assim, antes de dever ele mesmo ser interpretado – e eis aí o nosso problema hermenêutico, - ele é o interpretante para a escritura anterior (RICOEUR, 1978, p. 320).

Para além do exposto, este momento fora crucial na história do cristianismo e in-flui sobre nós até os dias de hoje. Ele determinou os rumos que tomaria a teologia cristã no percurso de sua história. Desta relação, o cristianismo além de resolver, para si, um problema que não era apenas seu, o da hermenêutica do Primeiro Testamento, demarcou uma de suas identidades, ou seja, o seu caráter hermenêutico.

DO LIVRO À VIDA, DÁ VIDA AO LIVRO

Se num primeiro momento o cristianismo se viu necessitado de pontuar a sua re-lação entre o Primeiro e o Segundo Testamentos, num segundo momento o problema her-menêutico encontra-se em uma situação posta já pelo apóstolo Paulo7 e retomado na

Moder-nidade: a interpretação do livro na vida e da vida no livro. Dessa maneira, no cristianismo, o sentido crístico dado à escritura encontra-se com o sentido existencial do cristão, imerso na história, e tanto um quanto outro recebem novas significações, gerando já aí um círculo hermenêutico8 (RICOEUR, 1978, p. 322).

Ajudam-nos a aprofundar esta perspectiva os teólogos modernos Rudolf Bultmann (1884-1976), do mundo protestante, e Henri de Lubac (1896-1991), do mundo católico. Ambos, no momento em que o cristianismo era questionado, retomaram o viés hermenêutico a fim de apontar a sua plausibilidade para modernidade.

Bultmann, herdeiro da Teologia LiberaLl9, e imerso num contexto no qual diversas

tentativas de escrever uma biografia de Jesus eram construídas, encontra um problema na re-lação do ser humano moderno e o Segundo Testamento: o caráter mitológico. Para o humano moderno a mensagem contida no mito não encontra mais sentido, tendo assim de resgatar

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o essencial. Para Bultmann, o essencial é o Kerigma, a saber, a fé pascal da comunidade cristã primitiva, e com isso então ele se questiona e ao mesmo tempo responde:

Deveremos conservar a pregação ética de Jesus e abandonar a sua pregação escatológica? Haveremos de reduzir a sua pregação do senhorio de Deus ao chamado “evangelho social”? Ou existe ainda uma terceira possibilidade? Temos que perguntar-nos se a pregação esca-tológica e o conjunto dos enunciados mitológicos contêm um significado mais profundo, que permanece oculto sob o invólucro da mitologia. Se é assim devemos abandonar as concepções mitológicas precisamente porque queremos conservar seu significado mais profundo. A esse método de interpretação do Novo Testamento, que procura redescobrir o significado mais profundo oculto por trás das concepções mitológicas, chamamos de “demitologização” – termo que não deixa de ser bastante insatisfatório. Não se propõe eliminar os enunciados mitológicos, mas sim interpretá-los. É, pois, um método herme-nêutico (BULTMANN, 1999, p. 53).

Utilizando deste método, Bultmann reinterpreta toda a cosmovisão do Segundo Testamento e funda a Teologia Existencial. Para ela a pregação cristã não tem como objetivo elaborar um conjunto doutrinal para ser aceito pela razão ou por sacrificium intelectus, mas, por ser kerigmática, é uma proclamação dirigida a um ouvinte em si mesmo. Sendo o mundo do ouvinte moderno não mais entendido mitologicamente, mas existencialmente, cabe à mensagem cristã tornar-se existencial.

No campo católico, Henri de Lubac também trouxe uma importante contribuição na maneira de se ler as Escrituras. Retornando às origens do cristianismo, ele propôs o resgate do sentido espiritual na leitura dos textos bíblicos. Lubac, refletindo sobre a leitura literal e alegorizante, discussão marcante nos primórdios do cristianismo nascente, relembra que a literalidade do Segundo Testamento só foi possível a partir da leitura espiritual do Primeiro Testamento.

Dito isto, apesar dos riscos presentes, Lubac afirma a necessidade de o fiel cristão reler as escrituras no sentido espiritual, a fim de que a sua vida seja, também, inspirada. De-marcamos aqui o terreno da fé como sendo o espaço para tal leitura10. Mas o que vem a ser

este sentido espiritual?

Ora, essa espiritualização é simultaneamente uma interiorização: quem diz espiritual, diz interior. A Lei nova não esta gravada em tábuas de pedra, mas nos corações, e as relações visíveis dos cristãos entre si no “corpo de cristo” exprimem ou constituem laços de ordem mística. Dupla transposição, dupla passagem [...] do primeiro testamento ao segundo. O fruto da interpretação da escritura que leva em consideração essa dupla passagem, com justeza se denomina “sentido espiritual” (LUBAC, 1970, p. 25).

Por isso, o sentido espiritual é fruto de uma vida espiritual, fazendo assim com que o fiel cristão encarne em sua vida a mensagem contida nos textos canonizados por sua comu-nidade. Para o cristão o mistério de sua fé não pode ser analisado como um objeto científico, mas é necessário ser interiorizado e vivido (LUBAC, 1970, p. 28).

A partir das duas perspectivas modernas de interpretação da escritura, conseguimos perceber a incidência do momento histórico sobre a matriz cristã. Em busca de

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plausibilida-de e plausibilida-de uma leitura consoante com o espírito da época, Rudolf Bultmann e Henri plausibilida-de Lubac pensaram uma maneira de fazer com que a mensagem cristã tivesse sentido para o humano moderno.

O período moderno e os processos que o envolvem, tais como secularização, cien-tificidade, globalização, entre outros, colocaram novos problemas na maneira do cristianismo se compreender. A volta à origem se fez necessária para propor uma leitura concernente com a vida do ser humano moderno. Essa volta com um novo olhar, dado pelas ciências, trouxe temas já presentes na maneira como os Testamentos foram escritos e canonizados e daí surge o nosso terceiro momento da questão hermenêutica.

AS DISTÂNCIAS DO SEGUNDO TESTAMENTO

Na modernidade a afirmação da ciência influi fortemente sobre os estudos bíblicos. Se com Lutero (1483-1546) a bíblia fora traduzida para o alemão e posta na mão de pessoas fora da hierarquia eclesiástica, com o desenvolvimento científico ela será pesquisada, trazendo uma nova situação para o cristianismo.

Neste contexto desponta o método histórico-crítico: “Um conjunto de procedi-mentos que pretendem estabelecer os processos histórico-sociais e culturais que interferiram na configuração dos textos, desde as dinâmicas da transmissão oral até o papel dos redatores finais” (VASCONCELLOS, 2013, p. 473). Ou seja, com o emergir de conhecimentos no campo filológico, sociológico, histórico, entre outros, as sagradas escrituras do mundo judai-co-cristão foram “dissecadas” para estudo.

Acrescido disto, o avanço dos estudos da linguagem, em especial no campo herme-nêutico, nos revelaram que a mesma não é um receptáculo “neutro” da realidade, onde comu-nicamos a nossa experiência da realidade sem interferências ou mutações. A linguagem por si só já é uma ação interpretativa. Sendo assim, ela é colocada no interior da história, com inúmeras mediações culturais que fazem com que o ouvinte moderno e o texto de sua tradição construam um círculo hermenêutico, retirando disto inúmeras possibilidades, como veremos adiante.

Diante disto, revela-se para nós a terceira raiz do problema hermenêutico, que só fora reconhecida e compreendida plenamente por nós modernos (RICOEUR, 1978, p. 32):

Se reconhecemos a função hermenêutica da linguagem, devemos aceitar que o Antigo Testamento contém a primeira interpretação verbal dos fatos e experiências da velha aliança, e o Novo Testamento nos dá em palavras a primeira interpretação do mistério vivo de Cristo11 (SCHÖKEL, 1986, p. 151).

Se nos dois primeiros pontos vimos o Segundo Testamento como interpretação do primeiro e base para interpretação do cristão, no terceiro apontamos que a hermenêutica está no interior mesmo do Segundo Testamento. Ou seja, o querigma cristão, aí guardado em sua primeira realidade, não é um texto, mas uma pessoa12. O texto é apenas o primeiro

testemunho da experiência feita pela comunidade primitiva desta pessoa. Assim, o cristão só pode “crer, ouvindo e interpretando um texto que, em si mesmo, já é uma interpretação” (RICOEUR, 1978, p. 323).

Aprofundando o problema, ao se tornar texto, o Evangelho exprime uma diferen-ça e uma distância do evento que proclama. Com o passar do tempo, a primeira

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testemu-nha distancia-se das demais a ponto de a distância gatestemu-nhar uma característica dupla: além de temporal, a distância espacial, já que as experiências ocorrem em lugares diferentes. Sendo assim, a experiência cristã está fundada sobre um movimento de distanciamento do ouvinte à testemunha do evento. A distância adquirida pelo tempo, na modernidade, revelou-se uma distância original e constitutiva da própria fé. Cabe a nós tirar as consequências disto.

Tendo feito este caminho, apresentando uma face hermenêutica do cristianismo como situação originante dele próprio, podemos agora investigar as perspectivas abertas no decorrer da história. Para a atualidade, diante da pluralidade de pensamentos, a identidade hermenêutica do cristianismo pode desempenhar um papel fundamental na reinterpretação desta matriz religiosa, bem como comporta grandes riscos.

PERSPECTIVAS ABERTAS PELA HERMENÊUTICA

Na Modernidade, a questão que investigamos sobre a hermenêutica se aprofun-da. Isso porque, para além da sistematização feita, a maneira como ela entra no campo teológico é no contexto de grande crise. Isso porque, para além das instituições religiosas, a própria profissão de fé, seja ela dentro de uma comunidade de fé ou subjetiva, será ques-tionada. O cristão se viu obrigado a responder ao porquê de sua fé? Que diferença ela implica no todo da realidade? Porque Deus é necessário?

Tal atitude frente à vida e à história causaram grandes questionamentos no mundo cristão e a busca por respostas, seja de maneira mais rápida (protestantismo) ou mais vagarosa (catolicismo)13, atingiu o cristianismo ocidental levando-o a uma profunda crise existencial.

O progresso das diversas áreas do conhecimento fez com que o anúncio da mensagem cristã ficasse descontextualizado, dizendo muito pouco ao ser humano moderno. Uma crise de sentido atingiu o cristianismo na maneira como este representara a realidade, como afirma François Refoulé:

não podemos contestar o fato de que a linguagem religiosa sob sua forma tradicional, quer seja das Escrituras quer a dos dogmas, tornou-se para muitos difícil de ser enten-dida. Não se trata somente de uma questão de vocabulário, porém mas amplamente das representações, dos conceitos tradicionais. Os testemunhos supramencionados provam-no suficientemente. O que causa dificuldade ainda são, por exemplo, as fórmulas dos concílios medievais sobre a ressurreição da carne [...] É a definição do Concílio de Trento sobre a transubstanciação [...] o que significa Ascenção ou a “descida aos infernos”, quando já se superou a divisão do mundo em três andares? (REFOULÉ, 1970, p. 26).

Sem o contexto referencial que desse sentido aos conceitos que a teologia cristã representava, a hermenêutica teológica viu-se colocada em uma situação nova e complexa. Antes, a teologia cristã, sobre a base de uma proposta de Deus e a devida resposta humana, construiu grandes sistemas a fim de sustentar a profissão de fé, que seria quase automática.

A realidade de Deus e humana encontram-se sobre interrogação. O problema da compreensão da revelação cristã de Deus, que é uma interpretação da realidade, é posto per-manentemente. Neste contexto, provar a existência de Deus, tarefa cara à teologia especula-tiva, tornou-se obsoleta. Urge responder que sentido tem professar a fé num Deus cristão no contexto atual (SCHILLEBEECKX, 1973, p. 123).

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Se tudo isso influiu sobre a hermenêutica teológica, a teologia, seja ela protestante ou católica14, viu-se necessitada de reformular-se enquanto ciência. Acontece assim a virada

hermenêutica no campo teológico, propiciando o que chamamos de teologia hermenêutica. Considerar a teologia como hermenêutica é repor em causa a distinção entre o dado e o construído, estudada na teologia tradicional, e ultrapassar a oposição entre uma teologia dita positiva e uma teologia dita especulativa, que há mais de três séculos compromete a unidade do saber teológico. De fato, essa distinção consagrava o divórcio entre a razão e a história no trabalho teológico e o triunfo de uma escolástica separada de suas fontes bíblicas (GEFFRÉ, 1989, p. 24).

A Escritura deixa de ser um depósito de citações bíblicas para atestar as afirmações dogmáticas, no qual ao teólogo (crente) cristão era aberto um campo vasto de especulações. Levando em consideração a hermenêutica, três pólos aparecem distintos, porém correlacio-nados: escritura, dogma e crente.

A partir da leitura da Escritura, o crente reinterpreta os enunciados dogmáticos contextualizando-os. O dogma, a consciência da comunidade de fé em um dado momento, tem uma dimensão de complementariedade, na progressiva interpretação que o crente faz dos mistérios da fé cristã. O crente emerge como sujeito da fé, situado no presente, relacionando a sua história com a Escritura e o Dogma, atualizando-os.

Diante disso, se antes a leitura da Escritura era feita a partir da Tradição constituída pela comunidade de fé, agora cabe, também, “uma releitura da Escritura a partir de nosso horizonte histórico, a fim de discernirmos o que é visado por tal definição dogmática do que depende da mentalidade e das representações espontâneas de uma época” (GEFFRÉ, 1989, p. 25).

Tal movimento abre novas perspectivas na maneira de fazer teologia, em especial a partir da segunda metade do século XX, das quais elencamos:

• Escritura e dogma, mais que autoridades pelas quais a realidade se enquadra, são testemunhos, e testemunhos textuais, de uma comunidade de fé. Quando atualizados pelo crente em seu contexto constroem uma realidade com sentido. A continuidade e a legitimidade da leitura se dão não pela verdade absoluta de seus conceitos, dos quais nos apropriamos, mas pela comunidade a que se está inserido, professante da mesma fé (GEFFRÉ, 1989, p. 23); • O lugar da teologia não está mais nas especulações conceituais, mas na prática cristã. É na

vivência do cristão, lá em seu lugar, que se produz e verifica o sentido da mensagem cristã. É o resgate da ortopraxia. (GEFFRÉ, 1989, p. 23);

• O resgate da dimensão histórica. É através da interpretação crente da história que a Revelação se dá. Ainda que os eventos centrais tenham se dado em um dado momento histórico, a sua interpretação no decorrer da história faz com que a Revelação esteja aberta a uma multiplicidade de sentidos ainda não explorados. Com isso, a teologia está internamente ligada à história. Novos problemas sempre surgirão e novas respostas sempre serão buscadas (SCHILLEBEECKX, 1973, p. 69,116);

• O falar teológico, antes mesmo de expor uma hermenêutica da tradição cristã, deve se contrastar com uma hermenêutica da experiência15. Se o conteúdo teológico desvincula-se

da vida cotidiana do crente, torna-se sem intelecção, sem sentido. O fazer teológico deve ser fruto de uma experiência, bem como produtor de demais experiências (SCHILLEBEECKX, 1973, p. 17-19). Em nosso contexto esta foi, a nosso ver, a principal tarefa cumprida pela

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Teologia da Libertação. Ao propor o método ver, julgar e agir, a experiência cristã ganha seu devido lugar, como fonte da teologia, sendo posteriormente “julgada” pela tradição cristã e provocando novas experiências;

• Acolhida da pluralidade, característica essencial do nosso tempo. O teólogo moderno reconhece-se como limitado e sabe que sua teologia é apenas uma interpretação da totalidade do mistério, não podendo, assim, absolutizar a sua reflexão;

• Sendo a experiência fonte da teologia, as diversas experiências do mistério cristão propiciam diversas teologias, fazendo emergir teologias contextualizadas, que partindo de lugares diferentes dão rostos distintos ao mesmo mistério.

Diante disso, pode-se afirmar que a modernidade marcou esta matriz religiosa pro-fundamente e o pensamento plural é apenas consequência das diversas maneiras de se fazer experiência da fé cristã. Mas, mesmo sabendo da crise em que passou a hermenêutica, é possí-vel dar crédito a tal movimento? Mesmo com o conflito das diversas interpretações é possípossí-vel dizer da legitimidade das diversas teologias?

DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS À HERMENÊUTICA CRISTÃ

Depois de apresentada a origem hermenêutica do cristianismo e a hermenêutica cristã no decorrer dos séculos, propõe-se pensar o momento atual das relações entre cristia-nismo e modernidade. E refletir como este momento atual, apesar de suas contrariedades e desafios, pode ser propício ao cristianismo.

Quando propomos tal reflexão, partimos de duas concepções que se contrastam. A primeira é a ideia de uma primeira modernidade na qual a concepção de progresso, evolu-ção, desenvolvimento esta concatenada com o fim da religião. Ou seja, quanto mais moder-nidade menos religião.

A segunda, resultante da primeira, é a constatação que, no momento atual, assumi-do por nós como moderno, a religião, e aqui o cristianismo, ainda encontra seu lugar como instância capaz de oferecer sentido. Não mais na posição de legitimação da realidade, mas como espaço, entre tanto outros, no qual sujeitos modernos constroem suas existências.

Ao refletirmos sobre estas questões, duas afirmações precisam ser feitas. Ao assumir-mos a contemporaneidade como moderna não estaassumir-mos afirmando ser a mesma modernidade do século XIX ou início do XX. E ainda, ao pensarmos o cristianismo neste lugar, parte-se da convicção de que o cristianismo atual não é o mesmo daquele que estava em confronto com a modernidade em busca de legitimidade.

Dito isto de antemão, faz-se necessário explicitarmos melhor a modernidade na qual se insere o cristianismo investigado neste artigo, bem como a reflexão cristã no momento atual. Uma característica já fica da de antemão: a pluridiversidade, seja das instituições mo-dernas ou do cristianismo enquanto religião.

CARACTERIZAÇÕES DA MODERNIDADE ATUAL

A relação do ser humano com o tempo marcou a vida deste desde os primórdios de sua existência. Nos tempos atuais, os contextos que nos condicionam causam estranhamento, acolhida e repúdio. Seja na arte, nas ciências humanas e exatas, na política, na economia, na religião, entre tantas outras dimensões da vida, a modernidade implicou a maneira de

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viver-mos e nos relacionarviver-mos, suscitando em nós uma diversidade de posturas, por vezes opostas, outras vezes complementares, mas na totalidade complexas.

Passado o fascínio da ideia da salvação pelo progresso da ciência e da história, ou do materialismo dialético, ampliado os horizontes do conhecimento da origem do tempo presente, reconhecendo a imperatividade da realidade sobre os nossos pensamentos, passamos a nos perguntar sobre as características do tempo atual e se o mesmo poderia ser chamado de moderno.

No tocante ao nosso estudo, ajuda-nos dois pensamentos: a ideia desenvolvida por Eisenstadt, de estarmos em modernidades múltiplas, e o conceito de ultramodernidade, ela-borado por Willaime. Além disso, com ambos, partimos da posição de estarmos vivendo um estágio novo, mas localizado no interior dos tempos modernos.

Partindo do questionamento de dois pressupostos, de uma modernidade uniforme e abrangente da realidade, como um todo, e da identificação da modernidade com o ocidente, Eisenstadt formula a teoria da multiplicidade da modernidade. Para ele,

A ideia de modernidades múltiplas pressupõe que a melhor forma de compreender o mundo contemporâneo ─ e também para explicar a própria história da modernidade ─ é vê-lo como uma história contínua de constituição e reconstituição de uma multiplicidade de programas culturais (EISENSTADT, 2001, p. 140).

Diante disso, o primeiro comentário a ser feito é que o momento atual ainda é de modernidade, diferente da pensada até então, mas dentro de suas características. Depois, a consciência do constante movimento no interior da modernidade, gerando um pluralismo tão grande que podemos acrescentar o plural à modernidade, chamando-a de modernidades.

Nesta dinâmica, apesar do reconhecimento do ocidente como berço do movi-mento moderno, hoje as sociedades e as culturas diferentes das ocidentais implementam a modernidade a sua maneira, dentro de suas características e, até mesmo, questionando o ocidente.

Com isso, apesar do aparente câmbio de época ou o surgimento de uma nova era, os tempos atuais reforçam a modernidade em uma de suas conquistas mais essenciais: a plura-lidade, transformada pelo autor no adjetivo “múltiplas”. Torna-se importante salientar como uma característica, conquistada pelo programa moderno no ocidente, se volta contra o mes-mo mes-movimento, no sentido de torná-lo plural e deixar confusos os intelectuais mais pessimis-tas ou otimispessimis-tas com o legado moderno ocidental.

Se no campo externo o ocidente é questionado por aquilo que ajudou a gerar, em seu interior a sua modernidade vive, também, um momento de peculiaridade. Sob os escom-bros das guerras, o questionamento das “grandes” ideologias e o emergir da questão sobre o sentido, viu-se surgir uma luta ideológica ainda mais particularizada e, com o avanço das novas maneiras de se comunicar, mais aguerrida.

E mesmo assim, a modernidade ocidental mais uma vez mostra a sua capacidade contínua de se reinventar e quando todo o diagnóstico dos intelectuais parece efetivar o pen-sado, a realidade se sobrepõe com suas mudanças de rumo. No início do século XX parecia algo normal aceitar o consequente fim da religião e a organização do mundo a partir das grandes correntes políticas. Isso era modernidade. Hoje, a religião contínua aí, a política se vê questionada e continuamos modernos. Mas em que Modernidade?

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Parece-nos válido, então, dar voz ao que diz Jean Paul Willaime em sua caracteri-zação da modernidade. Para este autor, o contexto em que vivemos é de Ultramodernidade, isso porque se na primeira parte da Modernidade assistimos a uma transferência no papel da religião para as instituições secularizadas (“saídas da religião”), agora assistimos à secularização daquilo que fora secularizado:

definimos a ultramodernidade como o movimento mais a incerteza, em oposição à modernidade definida como o movimento mais a certeza. Se as lógicas modernas de certezas (do progresso científico, econômico, político, moral, educativo...) acarretaram o choque de diferentes magistérios seculares e religiosos e uma oposição bastante direta entre modernidade e religião, as lógicas ultramodernas de incertezas engendram mutações concomitantes do secular e do religioso que reconfiguram suas relações. E se falamos de ultramodernidade, é para significar que se trata de uma radicalização da modernidade, e não de uma saída da modernidade. A era ultramoderna da modernidade é o tempo de uma modernidade desencantada e problematizada, de uma modernidade que sofre o contragolpe da reflexividade sistemática e dessacralizante que ela encadeou: esta não poupa nada, nem mesmo os encantamentos que a modernidade pôde produzir na sua fase conquistadora. A ultramodernidade é, pois, a desabsolutização de todos os ideais seculares que, em uma relação crítica ao religioso, se erigiram em novas certezas e foram fortes vetores de mobilizações sociais. Em relação à secularização como transferência de sacralização do religioso a outras esferas de atividades (econômica, política, moral), que corresponde particularmente à fase da modernidade secularizadora, a ultramodernidade aparece como uma modernidade secularizada na qual a secularização se aplica às próprias forças secularizadoras (WILLAIME, 2007)16.

Neste contexto, como o próprio autor exemplifica em seu texto, a educação, a po-lítica e, a nosso ver, as demais esferas da vida sofrem a secularização daquele primeiro movi-mento secularizador. Dos grandes ideais pedagógicos e políticos, libertadores dos humanos e propiciadores de uma salvação terrena, passa-se a descrença geral destas esferas.

Além disso, neste cenário, impõe-se ao ser humano a questão do sentido. Sabendo da impossibilidade de a verdade estar nesta ou naquela religião, nesta ou naquela ideologia, o ser humano atual assume espaços diversificados em busca daquilo que confere sentido a sua existência. Nesse contexto, as “hibridizações” entre religião e lutas éticas, políticas, educacio-nais, ecológicas, entre outras, acontecem de maneira muito vigorosa.

É sob este cenário, apontado por Eisenstadt e Willaime, que assistimos o emergir e efervescer dos diversos grupos, e porque não dizer micro-ideologias, com as mais diversas pautas em busca de reconhecimento. Sob todos permanecem as diversas interpretações do Estado, de seu papel, mas agora numa luta mais aguerrida, particularizada e plural. Diante disto tudo, nos perguntamos: qual a configuração do cristianismo neste contexto?

DO CRISTIANISMO AOS CRISTIANISMOS

A partir das reflexões apresentadas, é possível inferir a não neutralidade da religião, ou seja, conforme o mundo muda a religião também muda. O cristianismo surge a partir de uma proclamação e, no desenrolar da sua história, viu-se necessitado de atualizar, reinterpretar

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e repropor a sua maneira de pensar, agir, enfim, o seu modo de existir. A sua reflexão sempre esteve interligada, ainda que com a modernidade isso fica mais consciente, com a hermenêutica.

A teologia é compelida por sua energia teórica a articular um juízo acerca do ho-mem e da cultura. É a existência cultural dos seres pessoais que decide sobre a adequação deste juízo. Uma vez que esta existência encontrou suas expressões num sem-número de constela-ções culturais, o estudo destas constelaconstela-ções é não apenas uma questão de orientação teórica, mas também de verificação interna sem a qual também a teologia está condenada a ficar sem sentido (DUPRÉ, 1980, p. 14).

A consciência da influência dos diversos contextos sobre o cristianismo ganhou espaço muito fortemente na matriz cristã, em especial, a partir da segunda metade do século XX. A ideia de uma teologia que não enquadrasse a realidade em conceitos abstratos e univer-sais, dads previamente, foi rompida por uma na qual a realidade e a Revelação estabeleciam um permanente diálogo17.

Com isso, ocorre um movimento crescente dentro da teologia: a passagem de uma reflexão teológica que dissesse algo, à luz da fé, sobre um aspecto da realidade humana, o que Afonso Murad e João Batista Libânio chamam de Teologias do genitivo (1996, p. 249-250), para os novos enfoques teológicos. Estes, partindo de uma particularidade, pretendem a universalidade, oferecendo uma nova mediação hermenêutica na qual Bíblia e Tradição ganham novas leituras:

Gesta-se novo enfoque quando o teólogo capta certo “mal-estar” presente em grupos da comunidade eclesial, normalmente minoritários, expressão da sensação de desconforto pelo descompasso entre o discurso e a experiência de fé. Além disso, os embates teóricos com as ciências, as filosofias e cosmovisões revelam ao teólogo a insuficiência de seu discurso para responder às novas questões teóricas, práticas, existenciais, de cunho social ou mesmo místico-celebrativo (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 250).

O que se quer destacar é o movimento que se faz, nos dias hodiernos, de não somente dizer algo sobre uma realidade, com as categorias já definidas por uma teologia unversal/uniforme, mas o emergir de diversas reflexões com mediações próprias que, em sua reflexão, chegaram à compreensão de que não bastava apenas pensar teologicamente uma realidade, mas deixar que a realidade influa na maneira de se fazer teologia.

O quadro abaixo ajuda-nos a visualizar alguns movimentos da reflexão cristã atual18. Quadro 1: Novas teologias e seus enfoques

CONTEXTO TEOLOGIA PENSAMENTO/AÇÃO

Redescoberta do corpo sexuado e dos gêneros Teologia Feminista

• Lugar da mulher na família e na sociedade; • Importância dos movimentos femininos; • Realiza análise crítica, exploração construtiva e

transformação conceitual;

• Superação do androcentrismo ou patriarcalismo; • Resgata o feminino silenciado na releitura das Escrituras

e da Tradição.

• Propõe uma leitura não hierarquizada da realidade e das verdades da fé.

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Étnico Teologia Negra e Ameríndia

• Articulam na reflexão teológica as aspirações do movimento de negritude e dos indígenas. Com isso, assume rostos diferenciados em lugares donde surge; • No Zaire, por exemplo, interpreta a mensagem cristã em

termos de conceitos africanos bantus;

• África do Sul, contexto de apartheid, afirma a existência negra como maneira legítima do existir humano; • Na América surge como uma força de libertação social; • Parte-se da experiência concreta de opressão-libertação

do povo negro;

• Pergunta-se como ser cristão e negro? É possível repensar o cristianismo sem a conotação de um cristianismo branco? Com isso, critica-se o etnocentrismo do cristianismo ocidental;

• Dá importância a força desideologizadora da Palavra de Deus;

• Para além de uma intelecção da fé, acentua o sentimento de entrega a Deus;

• Com os povos indígenas, a teologia ameríndia busca colocá-los como objetos e sujeitos desta nova reflexão.

Visão Planetária

Ecoteologia ou Teologia Ecológica

• Movimento que propõe repensar o lugar do ser humano na totalidade da criação;

• Tomada de consciência em função de uma ética que respeite os demais seres vivos e mantenha o equilíbrio do ecossistema;

• Apregoa, para além do nível conceitual, uma mudança estrutural. Ou seja, assumindo o conhecimento construído até aqui, ecologiza as diversas instâncias da vida;

• Propõe que o cristianismo seja coerente com a defesa da vida em sua totalidade. Com isso, a partir da teologia da criação, repensa (ecologiza) as demais reflexões teológicas;

• Implica uma mudança mais radical para a teologia, já que não põe sua centralidade na humanidade, mas na vida.

conclusão

Fonte: Libanio e Murad (1996)

Os três exemplos aqui postos ajudam-nos a visualizar o movimento no interior do cristianismo de diversificação da reflexão teológica. Além desses enfoques, poderíamos dizer ainda da Teologia das Religiões, da Teologia Inculturada, da Teologia Continental e da Teologia Queer, entre outras.

Apesar de todo o movimento de busca de unidade nas das instituições que profes-sam a fé cristã, a pluralidade, filha da modernidade, atingiu fortemente o cristianismo. Para longe de todo negativismo, tal movimento levou o cristianismo a sua situação primeira: como proposta. Essa proposta só será aceita se fizer sentido à vida de quem acolhe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre a relação entre modernidade e cristianismo é sempre necessário e atu-al, pois nem a modernidade, nem o cristianismo são mais os mesmos. A modernidade trouxe em seu interior a capacidade de estar sempre em mudança, deixando os estudiosos sempre

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perplexos. O cristianismo sofreu, em seu percurso histórico, diferentes revoluções, possibili-tando sua atualização e sua permanência no tempo.

Há um movimento de “secularização da secularização”. Ou seja, há a secularização que atinge as instituições forjadas por aquele primeiro movimento secularizador da moder-nidade. Exemplo deste movimento é o atual questionamento do papel do Estado em nossas vidas e a consequente descrença da redenção alcançada pela via política.

Nesta perspectiva, a questão do sentido se torna imperativa. E seja nas lutas ideoló-gicas, nas religiões, ou nos grandes e pequenos movimentos da sociedade, os sujeitos moder-nos constroem continuamente espaços em que possam reafirmar suas cosmovisões de mundo. Estes espaços, longe de qualquer fechamento, constituem lugares em que religião, política, economia, gênero, ecologia, direitos, enfim, quase tudo se toca, se intercala e há par-tilha de modos de ser e de estar no mundo. Neste sentido, uma postura hermenêutica, aberta ao diálogo, e consciente da necessidade de atualização, torna-se essencial ao cristianismo que queira se apresentar como doador de sentido ao ser humano moderno.

HERMENÉUTICA Y MODERNIDAD: EL RETORNO A UN CRISTIANISMO PROPOSICIONAL

Abstract: hence, we know that every rupture presupposes continuitie. Thus, although many thinkers

have affirmed about the impossibility of combining modernity and religion; Christianity as our point here, what we encounter is that religions coexist with other modern institutions. Not only the religions have changed, but also the modernity itself, has changed as well. Regarding Christianity, reflection on hermeneutics has diversified this matrix, as well as revealed one of its identity charac-teristics, allowing its dialogue with the modern world. Therefore, the objective of this our article, is to rescue the hermeneutic dimension of Christianity, showing the way how it contributed to the dialogical dimension of this matrix with the different modernities. Our methodology is based on the bibliographical and also historical in order to rescue the Christian interpretation as its identity and method to confront the reality. At the end, we just think that, as modernity has become mul-tiple by having assumed plurality for itself, Christianity, as a religious matrix that intends to offer the meaning of life to the contemporary human being, can only be thought of within the proper plurality to our times.

Keywords: Hermeneutics. Modernity. Christianity. Proposal.

Notas

1 A partir daqui teremos a liberdade de usar escritura e palavra em minúsculo. 2 Quando se diz evento fala-se da vida de Jesus Cristo como evento fundante.

3 Em nosso artigo optaremos por classificar os testamentos das escrituras cristãs como Primeiro e Segundo Testamento. Isso em conformidade com a ideia aqui exposta de continuidade entre as Escrituras e a fim de levar em consideração a igual importância dos dois testamentos.

4 O Concílio de Jamnia foi uma reunião de rabinos judeus, ocorrida após a queda do segundo templo, final do século I, em Jerusalém e onde acredita-se que foi formulado o cânon das escrituras judaicas.

5 Os judeus falam de duas modalidades da Torá: Escrita e Oral. A Torá Escrita são aqueles livros contidos no que no cristianismo chamam-se de Antigo ou Primeiro Testamento. No interior dela estão os livros do Pentateuco (no mundo judaico chamado de Torá), dos profetas e os escritos, que formam a TANAK. Na Torá Oral estão os escritos dos comentadores da Torá Escrita, o que se chama de TALMUD. Porém, para

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a cultura judaica Torá Oral e Torá Escrita são partes do movimento constante de interpretação dos Escritos Sagrados. Estes, um dia, passaram da oralidade à escrita e, pela celebração ritual e a ação dos judeus no mundo, voltam a oralidade.

6 Foi somente no segundo século que os cristãos assumiram os escritos do Segundo Testamento como parte das Escrituras. Durante o primeiro século a Escritura cristã ainda era o Primeiro Testamento. Em cartas de Inácio de Antioquia, o autor admoesta um grupo de cristãos que se negava a reconhecer as escrituras do Segundo Testamento e o seu viés cristológico (BARRERA, 1995, p. 626).

7 Para o apóstolo Paulo, o cristão deveria configurar a sua vida a Jesus morto e ressuscitado, núcleo da profissão de fé cristã em seus primórdios. Além disso, os seus escritos estão permeados pela antítese carne e letra, em contraposição ao espírito (Fl 3,1-16; 2 Cor 3; Cl 3,1-4).

8 Hermenêutica se diz da arte de interpretar. É a ciência que estuda a maneira como interpretamos, a validade dos métodos de interpretação e da coerência das interpretações feitas. O círculo hermenêutico é a relação entre um texto, fruto de um dado momento histórico, de um ator e um leitor, situados em outro momento da história. O movimento estabelecido do leitor com o texto e do texto com o leitor forma o chamado círculo hermenêutico.

9 “O termo Liberalis theologia encontra-se já no teólogo de Halle, Johann Salomo Semler (1725-1791), que mencionava indiciar com isso um livre método de investigação histórico-crítica das fontes da fé e da teologia, que não se sentisse vinculado aos dados posteriores da tradição dogmática. A teologia liberal (Liberale Theologie) nasce do encontro do liberalismo – como autoconsciência da burguesia européia do século XIX – com a teologia protestante” (GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998. p. 19). 10 É importante colocarmos para quem Henri de Lubac está falando – o cristão e sua prática de fé – e sem negar

a possibilidade de estudar os textos das escrituras de outra maneira, ele propõe este sentido espiritual. 11 Traduzido do espanhol: Si reconocemos la función hermenéutica del lenguaje, debemos aceptar que el

Antiguo Testamento contiene la primera interpretación verbal de los hechos y experiencias de la vieja alianza, y el Nuevo Testamento nos dá en palabras la primera interpretación del mistério vivo de Cristo (SCHÖKEL, 1986, p. 151, tradução nossa).

12 Aqui podemos nos perguntar também sobre o Primeiro Testamento, visto que, para a comunidade judaica, o escrito é um momento posterior à experiência de Deus feita pelo povo na história. Além disso, a realidade primeira da elaboração desta experiência é o debate entre os sábios judeus, sendo a escrita fruto de uma interpretação e de um debate acerca de Deus na história do povo.

13 Ao dizer da lenta resposta do cristianismo católico, não negamos que a postura antimoderna não fosse, também ela, uma resposta a tal situação. Porém, ao se fechar em uma hermenêutica cristalizada, o catolicismo prolongou em si uma crise que no mundo protestante já se resolvia pelo menos desde o início do século XX. É com o Concílio Vaticano II que o pluralismo será aceito com meio de abertura no mundo católico. Como também, os tempos atuais podem ser um julgamento se tal resposta permanecerá ou não no decorrer da história.

14 Quando dissemos “protestante” estamos pensando nos grandes teólogos protestantes que, no decorrer dos séculos XIX e XX, se propuseram a pensar a relação teologia e modernidade, a saber: F. Schleiermacher, R. Bultmann, k. Barth, entre outros. Na teologia católica, apesar da efervescência de diversos movimentos que culminaram no Concílio Vaticano II, foi a partir deste que com mais naturalidade a teologia viu-se inserida nesta problemática.

15 Ainda que não esteja expresso explicitamente, o resgate da dimensão mística na teologia se dá também neste ponto, como falado anteriormente, desde que a escolástica, a Teologia Especulativa e a Teologia Mística se separaram por questões metodológicas. Com o resgate da experiência como fonte, a mística volta a exercer papel central no fazer teológico, sendo uma dimensão deste, sem separação das demais etapas.

16 Tradução do original: “nous avons défini l’ultramodernité comme le mouvement plus l’incertitude en opposition à la modernité définie comme le mouvement plus la certitude. Si les logiques modernes de certitudes (du progrès scientifique, économique, politique, moral, éducatif …) ont entraîné le heurt de différents magistères séculiers et religieux et une opposition assez directe entre modernité et religion, les logiques ultramodernes d’incertitudes engendrent des mutations concomitantes du séculier et du religieux qui reconfigurent leurs rapports. Et si nous parlons d’ultramodernité, c’est pour signifier qu’il s’agit d’une radicalisation de la modernité et non d’une sortie de la modernité. L’âge ultramoderne de la modernité, c’est le temps d’une modernité désenchantée et problématisée, d’une modernité qui subit le contrecoup de la réflexivité systématique et désacralisante qu’elle

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a enclenchée : celle-ci n’épargne rien, pas même les enchantements que la modernité a pu produire dans sa phase conquérante. L’ultramodernité, c’est donc la désabsolutisation de tous les idéaux séculiers qui, dans un rapport critique au religieux, s’étaient érigés en nouvelles certitudes et avaient été de forts vecteurs de mobilisations sociales. Par rapport à la sécularisation comme transfert de sacralisation du religieux à d’autres sphères d’activités (économique, politique, morale) qui correspond particulièrement à la phase de la modernité sécularisatrice, l’ultramodernité apparaît comme une modernité sécularisée où la sécularisation s’applique aux forces sécularisatrices elles-mêmes” (Traduzido por Fabiano Victor Campos).

17 Hoje temos consciência que dentro do cristianismo há muitos adeptos do primeiro modelo de teologia, em especial vinculados a instituições mais rígidas, como o catolicismo. Porém, até mesmo dentro do catolicismo, diversos grupos, para além das condenações institucionais, propõem novas questões à teologia cristã, reformulando-a.

18 A caracterização colocada neste quadro está baseada na obra: LIBANIO, J. B.; MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 1996.

Referências

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GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas,

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GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998.

LIBANIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas.

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SCHÖKEL, Alonso. Hermeneutica de la palabra: hermeneutica bíblica. Madrid: Cristiandad,

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