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A LINHAGEM PERDIDA DE SCEAF: REFLEXÕES METODOLÓGICAS SOBRE GENEALOGIAS MÍTICO-HISTÓRICAS NA INGLATERRA E ESCANDINÁVIA MEDIEVAL & A TRADUÇÃO DO PRÓLOGO DA EDDA DE SNORRI STURLUSON

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Academic year: 2021

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A LINHAGEM PERDIDA DE SCEAF: GENEALOGIAS MÍTICO-HISTÓRICAS NA INGLATERRA E ESCANDINÁVIA & A TRADUÇÃO DO PRÓLOGO DA

EDDA DE SNORRI STURLUSON.*

THE LOST LINEAGE OF SCEAF: MYTHICAL-HISTORICAL

GENEALOGIES IN ENGLAND AND SCANDINAVIA & THE TRANSLATION OF THE PROLOGUE OF THE EDDA OF SNORRI STURLUSON.

Elton Oliveira Souza de Medeiros Faculdade Sumaré

______________________________________________________________________ Resumo: Os estudos a respeito de

genealogias durante o período medieval muitas vezes acabam por se restringir apenas a área da curiosidade acadêmica, do folclore ou como parte de estudos sobre mitologia. Entretanto, sua importância pode se revelar como uma ferramenta importante para identificarmos elementos que poderiam ser tentativas de construção de “identidades nacionais” no período. Neste artigo, pretendemos usar o estudo sobre genealogias régias ao redor do Mar do Norte para realizar a crítica a respeito da tendência recorrente em explicar as semelhanças existentes entre elas simplesmente como fruto de uma suposta cultura folclórica pangermânica. Além disso, neste trabalho, também trazemos pela primeira vez em língua portuguesa a tradução do prólogo da Edda do islandês Snorri Sturluson, a partir do texto original em nórdico antigo e onde se encontra uma das genealogias mitológicas mais famosas do norte europeu.

Palavras-chave: Genealogia, Edda, Alta Idade Média.

Abstract: The studies on genealogies during the medieval period are often restricted to the field of academic curiosity, folklore or as part of studies on mythology. However, its importance may prove to be a relevant tool to identify elements that could be attempts to the construction of “national identities” in that period. In this article, we intend to use the study about royal genealogies around the North Sea to perform the criticism regarding the recurring tendency to explain the similarities between them simply as a result of an alleged pangermanic folkloric culture. In addition, this work also brings for the first time in Portuguese the translation of the prologue of the Edda of the Icelandic Snorri Sturluson, from the original text in Old Norse and where can be found one of the most famous mythological genealogies of northern Europe.

Keywords: Genealogy, Edda, Early Middle Ages.

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Recebido em: 31/10/2015 Aprovado em: 21/12/2015

* Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada durante o VI Coloquio Medieval: Sociedad y Cultura en la Alta Edad Media Occidental, entre 7 e 9 de outubro de 2015, na cidade de Buenos Aires, Argentina. Agradeço a Santiago Barreiro por suas críticas e sugestões sobre a primeira versão, especialmente sobre a nomenclatura das fontes. Quando não explicitado, todas as traduções para o português são de nossa autoria, assim como a tradução a partir do original em nórdico antigo para o português.

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Introdução

No campo dos estudos sobre a Idade Média, e principalmente sobre a Alta Idade Média, há ainda muito receio ao se abordar temas como “nação”, “nacionalidade” e “identidade nacional”. Especialmente por serem terminologias já consagradas e extremamente ligadas a análises de processos históricos voltados, costumeiramente, aos séculos XVIII – XIX em diante.

É sabido que as ideias mais ortodoxas de “nação” e “nacionalismo” são atribuídas a períodos específicos e a manifestações e construtos políticos modernos e contemporâneos. A partir disso, é compreensível a argumentação de que formas de associação e organização humanas anteriores a tais períodos não sejam qualificadas como “nações”. Contudo, este não é um ponto de vista que medievalistas e muitos pesquisadores do contemporâneo, entre historiadores e sociólogos, compartilham sem questionamentos.1

Ao visualizarmos grandes períodos de tempo e processos étnicos e de identidade nacional, a grande ênfase dada ao campo político e que envolve diretamente a sociedade civil para a concepção de nações e nacionalismos claramente necessita ser balizada por elementos culturais, de etnicidade e o que poderíamos chamar como “mítico-genealógico”. Uma vez que a ideia de identidade nacional é algo fundamentalmente abrangente, multifacetado; e algo que não deveria ser estranho ao campo do conhecimento histórico como um todo.

Segundo pesquisadores como Rees Davies, existiria certa “arrogância do tempo-presente” para a utilização das ideias de nação e identidade nacional que fugisse ao escopo das sociedades modernas e contemporâneas. Segundo Davies, para os mais tradicionalistas é um pressuposto que a cultura escrita e a cultura de massa são pré-requisitos essenciais para o desenvolvimento e articulação de uma identidade nacional.2 Entretanto, sociedades orais não estão necessariamente desprovidas de mecanismos que possam gerar uma identidade nacional. Através, por exemplo, de contadores de histórias profissionais e genealogistas, bardos andandantes e mesmo no campo mais austero do

1 DAVIES, Rees. Nations and National Identities in the Medieval World: An Apologia, Revue belge d’Histoire

contemporaine/Belgisch Tijdschrift voor Nieuwste Geschiedenis, XXXIV, n. 4, 2004, p. 567-568. Ver também GEARY, Patrick. O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005.

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discurso político e social, com o que John D. Niles chama de “discurso ritualizado”,3 é possível engendrar a ideia de “nação” e uma “identificação nacional” em cenários pré-modernidade. É necessário lembrar que a sociedade medieval ocidental de forma alguma dependia exclusivamente da palavra escrita ou da tradição oral para a propagação de informações e do conhecimento. No caso da Inglaterra anglo-saxônica, da mesma forma que sua poesia heroica, mitos de origem não eram simplesmente o produto de uma cultura literária ou da tradição oral, mas de uma complexa interação entre elas. Ambas atuavam simultaneamente e de forma intrínseca no universo da Idade Média.4

É possível notar que no medievo as pessoas acreditavam pertencer a certo povo (gentes) e nação (naciones). 5 Tradicionalmente poderíamos argumentar que os significados das terminologias seriam diferentes no período medieval e na atualidade. Porém, ao fazer isso, estaríamos ignorando a visão de tais povos sobre si mesmos em prol da manutenção de uma epistemologia mais conservadora que se restringe a um período muito especifico e mais recente da história humana. Pesquisadores como Susan Reynolds insistem que as concepções medievais sobre reinos e povos eram na verdade muito semelhantes às ideias a respeito de nações na atualidade, por exemplo.6

Ao trabalhar com a formação de identidades nacionais dentro da Idade Média, é necessário levar em consideração outros pontos além dos elementos sociais, culturais e políticos. Diferentemente da visão contemporânea de etinicidade e nacionalidade, ao lidarmos com o medievo não podemos esquecer, de forma alguma, o peso da religiosidade cristã. Tão importante que é a primeira construção identitária ocidental que tomanos contato ainda como alunos ao iniciarmos o estudo do período: a Cristandade.

O Velho Testamento, nesse contexto, seria uma das fontes primordiais de inspiração para a elaboração de linhagens, grupos sociais e a integração de tais agrupamentos dentro

3 Onde por “discurso” devemos entender uma associação de significados ao lidar com determinado tema que permite abordagens sobre ele enquanto se estabelece um conjunto de relações entre um corpo de informações e um conjunto de normas comportamentais e práticas institucionais. E por “ritualizado” estaríamos falando de um estilo elevado de linguagem, voltado principalmente para apresentações em público dentro de um ambiente ou ocasião especial, que se associa à estética, à ética e à ideologia do rito, e também ao status e poder daqueles que tomam parte do ato. Cf. NILES, John D. Homo Narrans: The Poetics and Anthropology of Oral Literature. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999, p. 120 – 145.

4 YORKE, Barbara. Anglo-Saxon Origin Legends. In: BARROW, Julia, WAREHAM, Andrew. Myth, Rulership,

Church and Charters. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 28.

5 DAVIES, Rees. Nations and National Identities in the Medieval World: An Apologia, Revue belge d’Histoire

contemporaine/Belgisch Tijdschrift voor Nieuwste Geschiedenis, XXXIV, n. 4, 2004, p. 570.

6 REYNOLDS, Susan. Medieval Origines Gentium and the Community of the Realm, History, LXVIII, 1983, p. 375 – 390.

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dos ideais de “nação” e de etnogenese da Cristandade. Onde a identidade de tais grupos não estava fundamentanda apenas em uma noção de percepção ou crença religiosa, mas numa hereditariedade vinculada a uma espiritualidade cristã e a uma consanguinidade. Em outras palavras, para os povos do ocidente europeu medieval, não era o bastante a simples aceitação da fé cristã para integrá-los ao âmbito da Cristandade latina, era necessário o estabelecimento de vínculos de parentesco – vínculos “biológicos” – que pudessem adequar seus povos e seus ancestrais pagãos dentro das elaborações da doutrina cristã e assim integrá-los a todo um cenário de uma História Sagrada e de Salvação.

Desta forma, como objeto de estudo deste fenômeno no período medieval, vamos observar o que teria ocorrido na Inglaterra dos séculos IX e X. Nesse momento da história inglesa podemos observar a construção de um mito de origem que remontava tanto ao passado bíblico, quanto ao mundo germânico e à tradição cristã. Mito que serviu para legitimar o presente daquele momento histórico e o poder político da casa real do reino de Wessex. O qual acabou por se tornar um elemento de suporte à unidade dos povos anglo-saxões remanescentes frente a um inimigo comum e que proporcionou as bases ideológicas para a unificação do território inglês como um único reino a partir de meados do século X. Porém, de onde viria tal construção identitária? Podemos dizer que um povo se torna uma “nação” a partir do momento que passa a ter uma consciência de si de maneira diferenciada em relação a outros povos e cria elementos que possam distinguí-lo como tal. Desde o início da história inglesa, as fontes documentais tentam deixar claro que os novos habitantes da ilha não eram bretões, dando os primeiros indícios de um processo de etnogênese.7 No século VIII temos uma das principais obras do período que demonstra claramente essa formação da identidade de um povo na ilha da Bretanha: a Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (“História Eclesiástica do Povo Inglês”), de Beda o Venerável (c. 672 – 735).

Beda estabelece uma das mais influentes contruções literárias de um mito de origem no norte europeu, ainda que utilizando de alguns elementos presentes em trabalhos anteriores como o de Gildas e sua Excidio et Conquestu Britanniae ou ainda dos primeiros clérigos do reino de Kent. É Beda que irá unir as lendas de origem de fundo germânico com outras, de influência bíblica, estabelecendo a ideia de um Povo Escolhido e de um Destino Manifesto para os anglo-saxões. Com isso ele produz uma ideia poderosa que

7 REYNOLDS, Susan. Medieval Origines Gentium and the Community of the Realm, History, LXVIII, 1983, p. 572.

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iria inspirar a proliferação de ligações de elementos do período migratório dos anglos-saxões aos hebreus do Velho Testamento, resultando em um processo de etnogenese que nos séculos IX – X iria auxiliar na consolidação de um ideal de “povo inglês”.8

Em uma de suas homilias, Beda comenta a passagem bíblica das bodas de Canã, quando Jesus se encontra com Natanael:

Perguntou-lhe Natanael: “De Nazaré pode sair algo de bom?” Felipe lhe disse “Vem e vê”. Jesus viu Natanael vindo até ele e disse a seu respeito: ‘Eis verdadeiramente um israelita em quem não há fraude’. Natanael lhe disse: ‘De onde me conheces? ’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Antes que Filipe te chamasse, eu te vi quando estavas sob a figueira’. (João 1, 46-48)

Em seu comentário exegético, Beda diz sobre o comentário de Jesus ao reconhecer Natanael sob a figueira: electione spiritalis Israhel, id est, Populi Christiani [“a escolha da Israel espiritual, que é, o povo cristão”].9

O que complementa seu comentário anterior no mesmo texto:

O quam magna nobis quoque qui de gentibus ad fidem uenimus in hac sententia nostri redemptoris spes aperitur salutis! Si enim uere Israhelita est qui doli nescius incedit, iam perdidere Iudaei nomen Israhelitarum quamuis carnaliter de Israhel quotquot doloso corde a simplicitate patriarchae sui degenerauerunt, et adciti sumus ipsi in semen Israhelitarum qui quamlibet aliis de nationibus genus carnis habentes fide tamen ueritatis et munditia corporis ac mentis vestigia sequimur Israhel. [“Ó, que grande esperança de salvação está aberta por esta ordem de nosso Redentor para aqueles de nós que vieram para a fé dos gentios! Pois se ele é verdadeiramente um israelita que caminha como um ignorante do engano, os judeus, apesar de fisicamente descenderem de Israel, já perderam o nome de israelitas, como muitos degeneram em seus corações da simplicidade de seu patriarca. E nós fomos aceitos entre os

descendentes dos israelitas, desde que, embora de acordo com a carne nós temos nossa origem de outras nações, contudo pela verdadeira fé e pela pureza do corpo e da alma, seguimos os passos de Israel”].10

Com essas palavras, Beda se apropria de um elemento da tradição cristã e que será fundamental para a construção de um mito histórico social 11, um mito de origem que

8 YORKE, Barbara. Anglo-Saxon Origin Legends. In: BARROW, Julia, WAREHAM, Andrew. Myth, Rulership,

Church and Charters. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 28 – 29; MEDEIROS, Elton O. S. Alfred o Grande e a linhagem sagrada de Wessex: a construção de um mito de origem na Inglaterra anglo-saxônica. Mirabilia, vol. 13, n. 2, 2011, p. 134 – 172.

9 BEDA, Homaelia 1.17, ll 203-204.

10 BEDA, Homaelia 1.17, ll 172-180 (Grifo nosso).

11 SCHEIL, Andrew P. The Footsteps of Israel: Understanding Jews in Anglo-Saxon England. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2007, p. 96-97 e 106.

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persistirá durante todo período da Inglaterra anglo-saxônica. Nos séculos IX e X, essa construção identitária se torna ainda mais clara com as elaborações realizadas na corte do rei Alfred o Grande (871 – 899) e de seus sucessores, Edward o Velho (899 – 924) e Athelstan (924 – 939), durante o período de enfrentamento contra os invasores escandinavos e a tentativa de reunir sob o comando da casa real de Wessex o que havia restado dos demais reinos anglo-saxônicos, frente à grande onda de assaltos vikings à Inglaterra. Ao se colocar como soberano tanto de anglos quanto de saxões, Alfred estava plantando os alicerces de um novo reino, que buscava unidade política, religiosa, linguística e cultural. Assim ele criava um “povo inglês”, aos moldes do que Beda já falava no século VIII. Podemos ver isso refletido nos escritos de Alfred na utilização de palavras como Angeland ou Englaland (“Inglaterra”), Angelkynn ou Angelcynn (povo inglês) e Englisc (o idioma inglês).12 Além disso, é nesse mesmo período que surgirá na Inglaterra a construção genealógica da casa de Wessex, como parte desse processo mítico-histórico. Rememorando a ancestralidade régia anglo-saxônica, o passado lendário pagão e o antigo mundo bíblico. Contudo, ao estabelecermos paralelos da genealogia da casa de Wessex e de outras genealogias régias das regiões em torno do Mar do Norte, é possível identificarmos uma curiosa coincidência, onde temos as mesmas personagens – ou ao menos a repetição de nomes muito similares – especialmente em fontes da Escandinávia.

O objetivo desse artigo não é exatamente esclarecer esse fenômeno, mas lançar dúvidas sobre a forma como o assunto vem sendo tratado pela historiografia mais tradicional e novas hipóteses ou possibilidades metodológicas para lidar com tais fontes.

A linhagem de Sceaf

No início do poema Beowulf, logo em sua introdução, temos um bom exemplo de uma linhagem mítica surgindo através das palavras do poeta anônimo. Em seus versos de abertura encontramos:

Hwæt! We Gardena in geardagum þeodcyninga þrym gefrunon hu ða æþelingas ellen fremedon. Oft Scyld Scefing sceaþena þreatum monegum mægþum meodosetla ofteah egsode eorlas syððan ærest wearð

12 ABELS, Richard P. Alfred the Great: War, Kingship and Culture in Anglo-Saxon England, Harlow: Longman, 1998, p. 185.

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feasceaftfunden. He þæs frofre gebad weox under wolcnum weorðmyndum þah oðþæt him æghwylc þara ymbsittendra ofer hronrade hyran scolde

gomban gyldan. Þæt wæs god cyning. Ðæm eafera wæs æfter cenned geong in geardum þone god sende folce to frofre fyrenðearfe ongeat þæt hie ær drugon aldorlease lange hwile. Him þæs liffrea

wuldres wealdend woroldare forgeaf Beowulf wæs breme – blæd wide sprang – Scyldes eafera, Scedelandum in.

(“Escutem! Ouvimos falar da glória dos guerreiros dinamarqueses dos dias de outrora, dos reis de sua tribo, de como aqueles príncipes realizaram feitos de coragem! Por diversas vezes Scyld Scefing tomou os salões de hidromel que pertenciam a tropas inimigas de muitas tribos, aterrorizou guerreiros, ainda que a princípio se encontrasse sozinho. Para isso ele obteve auxílio e cresceu sob os céus, prosperou com grande honra até que cada uma das nações ao longo da costa — além do Caminho da Baleia — tivesse se submetido e pagasse tributo. Aquele foi um bom rei! Para ele veio depois um filho, jovem na corte, que Deus enviou para confortar o povo. Um grande sofrimento lhes abatia por terem permanecido sem um líder por tanto tempo. O Senhor da Vida, o Regente da Glória, concedeu-lhe grande renome: Beowulf, o filho de Scyld, foi famoso, e seu nome se espalhou ao longe por todas as Terras do Norte.”) vv. 1 – 19.13

A narrativa segue, falando sobre os preparativos do funeral de Scyld Scefing.14 Seu corpo é colocado em um barco, cheio de utensílios de guerra, tesouros e enviado ao mar. Nesse momento o poeta faz um paralelo entre o corpo do rei enviado à deriva no mar, para águas desconhecidas, e as origens misteriosas de Scyld Scefing. De como ele teria surgido, ainda criança, numa embarcação, sozinho, na costa da Dinamarca; oriundo das mesmas águas desconhecidas.

Tal imagem mítica, do herói ou governante que surge de além-mar ou de terras distantes, é um arquétipo comum a diversas culturas. Por exemplo, podemos encontrá-lo de forma central na Eneida de Virgílio, na Historia Regum Brittonum de Geoffrey de

13 Grifo nosso. Doravante, todos os trechos em destaque nos fragmentos das fontes utilizadas em nosso artigo têm como objetivo realçar para o leitor os nomes e trechos importantes para a reflexão a respeito dos paralelos entre as genealogias apresentadas.

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Monmouth e mesmo em elaborações modernas dentro do mundo empresarial.15 No mundo da Europa setentrional, a chegada de fundadores nacionais vindos de além-mar é um modelo clássico nos processos de etnogênese das sociedades de origem germânica. Como os lendários irmãos Hengest e Horsa que chegam à Britannia, iniciando a ocupação da antiga província romana e a linhagem dos reis saxões de Kent, ou como em três embarcações os fundadores das linhagens dos godos teriam partido da Escandinávia.16

No caso de Scyld Scefing, sua figura mítica poderia ser apenas mais uma elaboração poética dentro da obra em questão. Especialmente pelo fato de tal menção à personagem ser breve e sem maiores explicações. Contudo, justamente por isso é que ela chama a atenção. Pois, caso o poeta não estivesse apenas “floreando” a narrativa com um evento sem grande importância para o restante do poema – pois, de fato, isso não afeta em nada o desenrolar da obra –, podemos levantar a hipótese de que o público alvo da narrativa tinha algum tipo de conhecimento a respeito da lenda de Scyld Scefing. Sua história, como líder que vem ainda criança para a Dinamarca, era minimamente familiar a um público anglo-saxão. E como poderíamos dizer que isso seria possível?

Além de Beowulf, na Inglaterra dos tempos anglo-saxônicos (séculos V – XI) temos outros dois documentos importantes onde a personagem de Scyld aparece de forma muito clara: a Crônica Anglo-Saxônica17 e a Crônica de Æthelweard. Como é sabido pela

historiografia, ambas relatam acontecimentos da história da Inglaterra anglo-saxônica. Porém, vale lembrar, a Crônica de Æthelweard seria uma versão inspirada na versão mais antiga da Crônica Anglo-Saxônica.18

Em ambas temos como ponto em comum o ano de 855, referente à linhagem do rei Æthelwulf, pai de Alfred o Grande. Além da presença dos nomes que também surgem em Beowulf iremos encontrar uma construção genealógica da casa real de Wessex, remontando aos ancestrais mais famosos (como Ingild, Ine e Cerdic), a personagens lendárias e míticas (como Woden e Geat) e sua união às personagens do passado bíblico.

15 RIPPIN, Ann, FLEMING, Peter. Brute force: Medieval foundation myths and three modern organizations’ quests for hegemony. Management & Organizational History, n. 1, v. 1, p. 51 – 70, 2006.

16 YORKE, Barbara. Anglo-Saxon Origin Legends. In: BARROW, Julia, WAREHAM, Andrew. Myth,

Rulership, Church and Charters. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 20.

17 A Crônica Anglo-Saxônica relata ano a ano a história da Inglaterra, desde o nascimento de Cristo até meados do século XII. Sua organização como nós a conhecemos teria sido fruto das iniciativas ocorridas na corte do rei Alfred o Grande, no final do século IX. Atualmente são conhecidas sete versões da Crônica, com pequenas discrepâncias entre si, sendo a versão mais antiga o Manuscrito A ou também conhecido como Manuscrito de Winchester (Cambridge, Corpus Christi College MS 173, ff. Iv – 32r). Cf. SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicle. Londres: Dent, 1996.

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Reunindo a ancestralidade de Æthelwulf ao passado mítico e histórico dos anglo-saxões e à História Sagrada do Cristianismo:

E dois anos após ter retornado da França, ele morreu, e seu corpo foi sepultado em Winchester, e ele havia reinado por 18 anos e meio. E Æthelwulf era o filho de Egbert, o filho de Ealhmund, o filho de Eafa, o filho de Eoppa, o filho de Ingild. Ingild era irmão de Ine, rei dos Saxões do Oeste, que manteve o reino por 37 anos e que mais tarde foi para junto de São Pedro e findou sua vida lá. E eles eram filhos de Cenred. Cenred era o filho de Ceowold, o filho de Cutha, o filho de Cuthwine, o filho de Ceawlin, o filho de Cynric, o filho de Creoda, o filho de Cerdic. Cerdic era o filho de Elesa, o filho de Esla, o filho de Gewis, o filho de Wig, o filho de Freawine, o filho de Freothogar, o filho de Brand, o filho de Bældæg, o filho de Woden, o filho de Frealaf, o filho de Finn, o filho de Godwulf, o filho de Geat, o filho de Tætwa, o filho de Beaw, o filho de

Sceldwa, o filho de Heremod, o filho de Itermon, o filho de Hathra, o

filho de Hwala, o filho de Bedwig, o filho de Sceaf, i.e. o filho de Noé. Ele nasceu na arca de Noé. Lamech, Methuselah, Enoch, Jared, Mahalaleel, Cainan, Enos, Seth, Adão o primeiro homem e nosso pai, i.e. Cristo. (Amém.) – Crônica Anglo-Saxônica.19

Assim, rei Æthelwulf morreu após um ano, e seu corpo descansa na cidade de Winchester. O rei citado era filho do rei Ecgbyrht, e seu avô era Ealhmund, (...) seu tetravô Cerdic, que foi o primeiro a possuir as partes ocidentais da Bretanha após ter derrotado os exércitos dos bretões, e seu pai era Elesa, o avô Esla, o bisavô Gewis, o tataravô Wig, o tetravô Freawine, seu sexto pai Frithogar, o sétimo Brond, o oitavo Balder, o nono Woden, o décimo Frithowald, o décimo primeiro Frealaf, o décimo segundo Frithowulf, o décimo terceiro Fin, o décimo quarto Godwulf, o décimo quinto Geat, o décimo sexto Tetwa, o décimo sétimo Beo(w), o décimo oitavo Scyld, o décimo nono Scef. E este Scef chegou com um

barco pequeno na ilha do oceano que é chamada Scane(y), com armas em torno de si, ele ainda um jovem garoto, e desconhecido para o povo daquela terra. Mas ele foi recebido por eles, e acolhido por eles, e o aclamaram rei; e desta família se origina a descendência do rei Æthelwulf. – Crônica de Æthelweard 20

A primeira menção genealógica à casa real de Wessex na Crônica Anglo-Saxônica é no ano de 495, ao falar de Cerdic e seus descendentes. Em 547 há a genealogia da casa da Northúmbria a partir do rei Ida e remontando sua ancestralidade até Woden e a partir desse até Geat. No ano de 552 temos novamente a casa de Wessex e agora a presença de Woden também como um ancestral. Contudo, o que chama a atenção é que tanto as genealogias da casa da Northúmbria quanto da casa de Wessex possuem como ancestral em comum o nome “Brand”:

547. (Northúmbria) Ida era o filho de Eoppa, o filho de Esa, o filho de Ingui, o filho de Angenwit, o filho de Aloc, o filho de Benoc, o filho de

19 WHITELOCK, Dorothy (trad. e org.). The Anglo-Saxon Chronicle, Londres: Eyre & Spottiswoode, 1961, p. 44 (grifo nosso).

20 CAMPBELL, Alistair (ed. trad.). Chronicon Æthelweardi, Londres: Thomas Nelson & Son, 1962, p. 32-33 (grifo nosso). Aqui podemos observar o mesmo mito do líder vindo de além-mar presente no poema Beowulf.

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Brand, o filho de Bældæg, o filho de Woden, o filho de Freotholaf, o

filho de Freothowulf, o filho de Finn, o filho de Godwulf, o filho de Geat. – Crônica Anglo-Saxônica.21

552. (Wessex) Cerdic era o filho de Elesa, o filho de Esla, o filho de Gewis, o filho de Wig, o filho de Freawine, o filho de Freothogar, o filho de Brand,

o filho de Bældæg, o filho de Woden. – Crônica Anglo-Saxônica.22

Porém no ano de 560 ocorre algo interessante. É descrito a ascenção do rei Ceawlin (filho de Cynric) em Wessex e do rei Ælle na Northúmbria e sua linhagem:

560. (Northúmbria) Ælle era filho de Yffe, o filho de Uscfrea, o filho de Wilgils, o filho de Westerfalca, o filho de Sæfugel, o filho de Sæbald, o filho de Sigegeat, o filho de Swefdæg, o filho de Sigegar, o filho de Wægdæg, o filho de Woden. – Crônica Anglo-Saxônica.23

Em 592 teremos a repetição da mesma genealogia de 552 para a casa de Wessex e depois teremos finalmente o aparecimento da famosa genealogia de Æthelwulf no ano de 855. Alguns pontos interessantes são que na Crônica Anglo-Saxônica, anterior ao século IX, apenas na referência à casa real da Northúmbria na linhagem de Ida o nome de Woden possui uma ascendência (“o filho de Freotholaf...). Somente o rei Ida da Northúmbria e Cerdic de Wessex são descendentes de “Brand, o filho de Bældæg, o filho de Woden”. Entretanto, a primeira genealogia de Wessex com Woden descrito como detentor de uma ancestralidade surgirá apenas com o rei Æthelwulf (seguindo uma estrutura muito semelhante a do rei Ida da Northúmbria). O que podemos pensar inicialmente a respeito desses fatos é que, talvez, houvesse interesse da casa de Wessex em vincular sua ancestralidade à casa real da Northúmbria através do rei Ida. Lembrando que com isso a casa de Wessex estaria estabelecendo vínculos profundos de parentesco com uma importante casa real anglo-saxônica do norte da Inglaterra. O que poderia se revelar como uma ferramenta importante em um discurso político legitimador de um reino que tinha pretensões de expansão hegemônica nos séculos IX – X sobre o território inglês; e período quando a Crônica Anglo-Saxônica é organizada como a conhecemos na atualidade.24

21 WHITELOCK, Dorothy (trad. e org.). The Anglo-Saxon Chronicle, Londres: Eyre & Spottiswoode, 1961, p. 12 (grifo nosso).

22 Ibid. (grifo nosso). 23 Ibid., p. 13.

24 O que também pode demonstrar que tais eleaborações não estavam restritas a um único momento histórico da Inglaterra anglo-saxônica, mas desde antes dos tempos de Beda que já havia uma preocupação na elaboração e organização de mitos, lendas e genealogias que buscassem legitimar e promover uma identidade a tais grupos sociais. Teríamos assim não uma única construção identitária de um mito de origem em um único momento específico, mas diversas camadas de elaborações e servindo a diversos propósitos ao longo de um longo período de tempo; cf. YORKE, Barbara. Anglo-Saxon Origin Legends. In: BARROW, Julia, WAREHAM, Andrew. Myth, Rulership, Church and Charters. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 23 – 24.

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Já no caso da Crônica Anglo-Saxônica e da Crônica de Æthelweard e da linhagem de Sceaf/Scef, há um espaço cronológico na elaboração das duas fontes de aproximadamente cem anos: como dissemos, a Crônica Anglo-Saxônica data de por volta de fins do século IX e início do X, enquanto a Crônica de Æthelweard data de finais do século X. O poema Beowulf, por sua vez – ao menos o manuscrito contendo a narrativa como a conhecemos –, data do período em torno do ano mil. Portanto, podemos supor que nesse momento tardio da Inglaterra anglo-saxônica (dessa “Baixa Inglaterra anglo-saxônica”, séculos IX – XI), a personagem de Scef/Sceaf ou Scyld Scefing era não só conhecida como também alguém importante ao ponto de ser inserida na genealogia da casa real de Wessex.

Contudo, a identidade de Scyld Scefing ou Scef, infelizmente, continua um mistério para nós até o presente momento. Poderíamos supor que ele faria parte de um conjunto de outras personagens lendárias e míticas do norte europeu que nenhuma informação mais precisa chegou até nós. Como exemplo de casos semelhantes dentre outros deste universo inglês da Alta Idade Média, nos painéis da Franks Casket25 temos a presença de duas cenas que até a atualidade permanecem sem maiores explicações sobre quem seriam suas personagens ou o que estão retratando:

25 A Franks Casket (lit. “Caixa de Franks”), também conhecida como Caixa de Auzon, trata-se de uma pequena caixa feita de osso de baleia, datada de por volta do século VIII, do norte da Inglaterra (mais precisamente do reino da Northúmbria). Suas dimensões são aproximadamente 20cm de largura x 20 cm de profundidade x 10 cm de altura. Em suas laterais foram esculpidas imagens que rememoram cenas míticas do passado germânico (como a lenda de Weland) e romano (Rômulo e Remo com a loba) e do passado bíblico (a adoração dos Reis magos ao menino Jesus e a tomada do Templo de Jerusalém pelo general Tito), além de inscrições rúnicas relacionadas a algumas das passagens retratadas. Supostamente servindo como uma forma de reforçar elementos mítico-históricos cristãos. De certa forma, desempenhando quase a mesma função que, por exemplo, a genealogia da casa de Wessex ao unir o mundo do passado dos anglos e saxões às tradições da Antiguidade romana e cristã. Cf. WEBSTER, Leslie. The Franks Casket. Londres: British Museum Press, 2012.

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No painel superior da Franks Casket (Figura 1) vemos a figura de um arqueiro defendendo o que podemos supor se tratar de uma fortaleza contra invasores armados, com elmos e armaduras. Logo acima desse arqueiro encontramos as runas que dizem “Ægili”, talvez o nome da personagem em questão, que poderia ser o herói irmão do também lendário Weland. Porém isso não passa de mera conjectura.26

Já no painel direito da Franks Casket (Figura 2) o mistério é ainda maior. Vemos à esquerda uma figura zoomórfica com asas, cabeça (talvez de cavalo) e à sua frente um guerreiro armado de lança a escudo. Ao centro temos uma imagem feminina portando um cálice e um cajado, junto a um monte funerário e um cavalo. E à direita temos duas figuras femininas que parecem estar segurando uma terceira. Tudo isso em um cenário de floresta. Assim como no caso anterior, não há qualquer indício que possa nos ajudar a compreender o que está sendo retratado. Nem mesmo as inscrições rúnicas que acompanham o entalhe nos ajudam a solucionar o mistério:

Her Hos sitiþ on harmberga

agl(...) drigiþ swa hiræ Ertae gisgraf sarden sorga and sefa torna.

(Aqui Hos senta-se em uma colina de mágoa;

ela suportou sofrimento que assim lhe foi imposto por Ertae, amargas tristezas e tormentos do coração)

26 WEBSTER, Leslie. The Franks Casket. Londres: British Museum Press, 2012, p. 18 – 19.

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Quem é Hos, Ertae ou o que se passou entre essas duas personagens até hoje continua sem explicações. Enquanto isso, casos semelhantes podem ser encontrados também na tradição literária em inglês antigo, a exemplo de Beowulf, em sua produção poética, como no Encantamento das Nove Ervas:

Gemyne þu, mægðe, hwæt þu ameldodest, hwæt ðu geændadest æt Alorforda;

þæt næfre for gefloge feorh ne gesealde syþðan him mon mægðan to mete gegyrede.

(Lembre-se, Camomila, o que você revelou; o que você consumou em Alorford: que nunca ninguém desistiria da vida por causa de doença, quando camomila lhe fosse preparada para a refeição) – Encantamento

das Nove Ervas, vv. 23 – 26.27

E no Poema Rúnico Anglo-Saxão:

ING [Ing] wæs ærest mid East-Denum

gesewen secgun, oþ he siððan est ofer wæg gewat; wæn æfter ran; ðus Heardingas ðone hæle nemdun.

(ING [Ing] foi visto primeiramente pelos homens entre os

Dinamarqueses do leste, até que ele então para o oriente, sobre as ondas, rumou; seguido de sua carruagem. Assim, os Heardingas o chamaram de herói). – Poema Rúnico Anglo-Saxão.28

Em todos os casos mencionados acima, até a atualidade, não existem explicações satisfatórias que elucidem quem são tais personagens; como quem ou o que seria Alorford e quem seria Ing? Podemos conjecturar que suas histórias se perderam ao longo do tempo, nos restando lidar apenas com os fragmentos de suas lendas. Da mesma forma que a presença de Scyld Sceafing nas fontes supracitadas. O que nos ajuda a refletir que o que conhecemos desse passado anglo-saxão a partir de tais fontes seria talvez apenas uma pequena fração do que existia em sua totalidade original.

Retornando às genealogias, o caso se torna ainda mais intrigante ao analisarmos outra fonte, contemporânea à Crônica Anglo-Saxônica: a Vida do Rei Alfred, de Asser; monge de origem galesa que teria vivido na corte de Wessex durante o governo de Alfred. Segundo a genealogia descrita pelo autor:

27 MEDEIROS, Elton O. S. Erudição e Poesia Encantatória na Inglaterra anglo-saxônica: Salomão & Saturno I e o Encantamento das Nove Ervas. Mirabilia, n. 20, v. 1, 2015, p. 313 – 363.

28 MEDEIROS, Elton O. S. Ráðna Stafi, Mjǫk Stóra Stafi, Mjǫk Stinna Stafi: Tradução Comentada dos Poemas Rúnicos Anglo-Saxão, Islandês, Norueguês e do Abecedarium Nordmannicum. Revista Medievalis, v. 4, n. 1, 2015, p. 1 – 31.

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Sua linhagem é organizada desta forma: Rei Alfred era filho do Rei Æthelwulf, o filho de Egbert, Æthelwulf era o filho de Egbert, (...), o filho de Cynric, o filho de Creoda, o filho de Cerdic, o filho de Elesa, o filho de Gewis (devido ao qual os galeses chamaram toda aquela raça de gewisse), o filho de Brand, o filho de Bældæg, o filho de Woden, o filho de Frithuwald, o filho de Frealaf, o filho de Frithuwulf, o filho de Finn, o filho de Godwulf, o filho de Geat (a quem os pagãos adoraram por muito tempo como um deus), (...) o filho de Tætwa, o filho de Beaw, o filho de Sceldwa, o filho de Heremod, o filho de Itermon, o filho de Hathra, o filho de Hwala, o filho de Bedwig, o filho de Seth, o filho de Noé, o filho de Lamech, o filho de Methuselah, o filho de Enoch (filho de Jared), o filho de Mahalaleel, o filho de Cainan, o filho de Enos, o filho de Seth, o filho de Adão – Vida do Rei Alfred.29

Como podemos ver, ela segue a mesma lógica de nomes da Crônica Anglo-Saxônica e da Crônica de Æthelweard ao remontar uma linhagem mítica da genealogia do rei Alfred, ligando-o tanto a um suposto passado germânico quanto ao passado bíblico veterotestamentário – assunto que não nos aprofundaremos aqui por ser extremamente complexo e já abordado em trabalhos anteriores.30

A princípio isso não nos causaria tanta estranheza, uma vez que se tratam de fontes praticamente contemporâneas e produzidas dentro de um mesmo espaço geográfico sob a influência de Wessex. Porém, ao realizar uma comparação com fontes externas ao ambiente inglês é quando algo começa a nos saltar aos olhos. Um paralelo famoso e tradicional com a casa real de Wessex se encontra na Escandinávia, no prólogo da Edda ou Edda em Prosa do islandês Snorri Sturluson (fins do século XII e início do XIII). Não há como deixar passar despercebidas as semelhanças entre as genealogias dessas fontes – anglo-saxônicas e a Edda – e pensar em algum tipo de associação entre elas, como veremos a seguir.

A comparação entre as genealogias anglo-saxônicas e a Edda de Sturluson pode nos propiciar uma porta de entrada para a tentativa de estabelecer outros paralelos com outras fontes escandinavas. Em nosso caso, isso ocorreu especialmente após o contato com a tradução de Jesse Byock para a Hrólfs Saga, que por sua vez compartilha muito dos elementos heroicos e fantásticos com o poema Beowulf. Segundo um paralelo estabelecido por Byock:31

29 KEYNES, Simon, LAPIDGE, Michael (trad. e org.) Alfred the Great: Asser’s life of King Alfred and other

contemporary sources. Londres: Penguin, 1983, p. 67 (grifo nosso).

30 MEDEIROS, Elton O. S. Alfred o Grande e a linhagem sagrada de Wessex: a construção de um mito de origem na Inglaterra anglo-saxônica. Mirabilia, vol. 13, n. 2, 2011, p. 134 – 172.

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Beowulf Gesta Danorum32 Skjöldunga Saga33 Hrólfs Saga

Eadgils Athislus Adillus Adils

Beowulf Biarco Bodvarus

Bodvar Bjarki

Froda Frotho Frodo Frodi

Healfdene Haldanus Halfdanus Halfdan

Halga Helgo Helgo Helgi

Hrothgar Roe Roas Hroarr

Hrothulf Roluo Krake Rolfo Krake Hrolf Kraki Scyld

Scefing Scioldus Scioldus Skjoldr

Yrse Vrsa Yrsa Yrsa

Como podemos ver, na comparação de Byock fica evidente que há algo em comum entre tais fontes. O que se torna ainda mais curioso se levarmos em conta as genealogias dos reis de Wessex.

A partir dessa comparação preliminar entre as fontes anglo-saxônicas e o prólogo da Edda de Snorri Sturluson – e posteriormente levando em consideração o quadro comparativo sugerido por Jesse Byock –, decidimos realizar um levantamento comparativo geral de fontes com origens escandinavas que poderiam ser vinculadas a essa problemática a respeito de genealogias régias e o resultado que obtivemos foi o seguinte:34

32 Obra de Saxo Grammaticus, a Gesta Danorum (“Os Feitos dos Dinamarqueses”) narra a história dos povos dinamarqueses, desde suas origens míticas até o século XII. Cf. DAVIDSON, Hilda Ellis, FISHER, Peter. Saxo Gramaticus: The History of the Danes, Book I – IX. Cambridge: D. S. Brewer, 1979.

33 É uma saga lendária datada de por volta de fins do século XII, onde temos a figura central do lendário líder dinamarques Skjöldr. Elementos de sua história e de seus descendentes surgem em outras obras como na Edda em Prosa e na Heimskringla de Snorri Sturluson, na Gesta Danorum e outras obras de origem nórdica. Cf. MCTURK, Rory. A Companion to Old Norse-Icelandic Literature. Oxford: Blackwell, 2005.

34 As referências para as fontes utilizadas em nosso levantamento são: SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon

Chronicle. Londres: Dent, 1996; WHITELOCK, Dorothy. The Anglo-Saxon Chronicle. Londres: Eyre & Spottiswoode, 1961; CAMPBELL, Alistair (ed. trad.). Chronicon Æthelweardi, Londres: Thomas Nelson & Son, 1962; KEYNES, Simon & LAPIDGE, Michael (trad. e org.) Alfred the Great: Asser’s life of King Alfred and other contemporary sources. Londres: Penguin, 1983; STEVENSON, William Henry. Asser’s Life of King Alfred. Oxford: Claredon Press, 1959; KLAEBER, F. Beowulf. Lexington: Heath, 1922; DOBBIE, Elliott van Kirk. The Anglo-Saxon Poetic Records IV: Beowulf and Judith. Nova York: Columbia University Press, 1953; MEDEIROS, Elton O. S. Beowulf. São Paulo: Ed. 34, 2016 (no prelo); KRAPP, George Philip, DOBBIE, Elliott van Kirk. The Anglo-Saxon Poetic Records III: The Exeter Book. Nova York: Columbia University Press, 1936; MEANEY, Audrey L. Scyld Scefing and the Dating of Beowulf – Again. Manchester: Manchester University Press, 1989; DAVIDSON, Hilda Ellis & FISHER, Peter. Saxo Gramaticus: The History of the Danes, Book I – IX. Cambridge: D. S. Brewer, 1979; JÓNSSON, Guðni (ed). Eddukvæði: Sæmundar-Edda. Reykjavík: Islendingasagnaútgáfan, 1956; LARRINGTON, Carolyne. The Poetic Edda. Oxford: Oxford University Press, 1996; ORCHARD, Andy. The Elder Edda. Londres: Penguin, 2011; STURLUSON, Snorri. JÓNSSON, Finnur (trad). Edda. Copenhagen: Gyldendalske Boghandel, 1931; BJÖRNSSON, Arni. Snorra Edda. Reykjavík: Iðun, 1975; FAULKES, Anthony (trad). Edda. Londres: Everyman, 1998; JÓNSSON, Guðni & VILHJÁLMSSON, Bjarni. Fornaldarsögur Norðurlanda, vol. 2, Reykjavík: Bókaútgáfan Forni, 1943-1944; BYOCK, Jesse. The Saga of King Hrolf Kraki. Londres: Penguin, 1998.

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c. 855 Æthelweard Alfred

Noé Noé

Sceaf Scef Seth Scef Sceafa Seskef

Bedwig Bedwig Bedvig

Hwala Hwala

Hrathra Hrathra Athra (Annar)

Itermon Itermon Dan Itrmann

Heremod Heremod Lotherus Heremod

Sceldwa Scyld Sceldwa Scyld Skjold Scioldus Scioldus Skjold Skjaldun (Skjold) Skjöldr

Gram Fridleifus Fridleif

Hadingus Frodo I Frodi

Herleifus Havardus Frodo II Vermundus Olava Frodo III Fridleifus

Beaw Beo Beaw Beowulf Frotho Frotho Frodo IV Bjaf (Bjar)

Tætwa Tetuua Tætwa Healfdene Haldan Haldan Halfdanus Hálfdan

Geat Geat Geat Hrothgar Helghi etc. Roas Jat Hróarr

Godwulf Goduulf Godwulf etc. etc. etc. Gudolfr

Fin Fin Fin Finn

Friduwulf Frithouulf Friduwulf

Frealaf Frealaf Frealaf Friallaf (Fridleif)

Friduwald Frithouuald Friduwald

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Todas as fontes elencadas parecem compartilhar de nomes semelhantes e muitas vezes obedecendo a uma mesma ordem genealógica, com maiores ou menores intervalos. Dentre elas, ao que parece, as que mais se assemelham são as fontes anglo-saxônicas e a obra de Snorri Sturluson.

Uma das soluções mais comuns para elucidar tal fato seria a ideia de que tais elementos seriam fruto de um “fundo cultural” comum a essas sociedades. Como parte de um mesmo universo pangermânico que uniria, nesse caso, tanto anglo-saxões quanto escandinavos. Assim, seria natural supor que Scef ou Scyld Scefing e sua linhagem (assim como Weland, Beowulf, Ing e outras personagens como as da Franks Casket) fariam parte desse mesmo universo germânico genérico e acessível tanto aos anglo-saxões quanto aos escandinavos.

A partir disso, uma prática comum, como forma de solucionar as lacunas e incógnitas presentes no conteúdo de muitas fontes – especialmente as de origem anglo-saxônica – seria buscar elementos lendários e míticos escandinavos para preencher tais vazios. Entretanto, tal prática é duplamente perigosa e leva, costumeiramente, a considerações extremamente circunstanciais.

Jane Crawford em seu artigo de 1963, intitulado Evidences for Witchcraft in Anglo-Saxon England,35 já alertava sobre isso. A autora elenca indícios de práticas mágicas e (pseudo)religiosas na Inglaterra do período anglo-saxônico e sua relação com o que possivelmente seriam reminiscências de práticas populares pré-cristãs. Ela então enfatiza o problema de escassez de indícios e de fontes existentes sobre o período – criando grandes dificuldades aos pesquisadores sobre o assunto – e ressalta o que para ela seria um vício do mundo acadêmico: na falta de elementos em número o suficiente ou que possuam maior clareza de sua procedência no contexto anglo-saxão, buscar por elementos do mundo escandinavo ou ainda céltico. Desconsiderando, na maioria das vezes, as particularidades dessas culturas e a época de onde tais exemplos ou “enxertos” são oriundos. Criando, dessa forma, verdadeiras anomalias teóricas ao reunir, por exemplo, uma fonte anglo-saxônica do século VII ou VIII com supostos exemplos de práticas ou crenças pré-cristãs escandinavas; que na verdade estão presentes em fontes literárias do século XIII.

35 CRAWFORD, Jane. Evidences for Witchcraft in Anglo-Saxon England, Medium Ævum 32, n. 2, 1963, p. 99-116.

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A partir disso, os problemas recorrentes que observamos dentro desse campo de estudos sobre o norte-europeu medieval – mesmo antes dos tempos de Crawford até a atualidade – seriam: a) o de considerar a existência de um pangermanismo medieval como um fato concreto e claro36 e, em decorrência disso, b) utilizar de uma metodologia que trata a Escandinávia medieval como um grande repositório de fontes totalmente confiáveis para demonstrar qualquer tipo de coisa que esteja levemente vinculado ao passado mítico do norte europeu e especialmente aos tempos pagãos.

Mais recentemente, o perigo de tal prática foi muito bem abordado pela pesquisadora Anette Lassen, em seu último livro a respeito do estudo da personagem do deus Odin nas fontes literárias da Escandinávia.37 Onde ela demonstra que não há como, a partir de tais fontes, encontrar o “verdadeiro deus dos tempos pagãos” em função da natureza de tal documentação e o período de sua confecção em tempos cristãos. E mais: são muitas vezes, na verdade, elaborações caricatas de como os cristãos enxergavam esse seu passado pagão. Reforçando, assim, o argumento de Jane Crawford.

Desta forma, levando em consideração argumentos como os de Jane Crawford e de Anette Lassen, pensarmos na hipótese de que a semelhança entre as fontes escandinavas e as anglo-saxônicas ocorre em função de um pangermanismo se torna algo duvidoso. Isto é, a ideia de que elementos germânicos de origem escandinava teriam influenciado a construção das genealogias na Inglaterra deixa de ser algo concreto e se torna apenas uma entre outras possibilidades.

Outra hipótese seria talvez inverter os protagonistas dessa equação. Em outras palavras, ao invés de uma influência oriunda da Escandinávia em sentido à Inglaterra, termos uma influência da Inglaterra sobre a Escandinávia. Tal possibilidade se torna mais palpável especialmente em vista da documentação existente que pode sustentar essa argumentação: um manuscrito na Dinamarca conhecido como o Manuscrito Resen.38

36 O que costumeiramente leva a anacronismos brutais e a uma abordagem no mínimo ultrapassada, que exala um leve ranço nacionalista do século XIX; cf. GEARY, Patrick. O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005, p. 27 – 55; BJORK, Robert E. Nineteenth-Century Scandinavia and the Birth of Anglo-Saxon Studies. In: FRANTZEN, Allen J., NILES John D. Anglo-Anglo-Saxonism and the Construction of Social Identity. Gainesville: University Press of Florida, 1997, p. 111 – 132.

37 LASSEN, Annette. Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanums Forlag, 2011.

38 FAULKES, Anthony. The Genealogies and Regnal Lists in a Manuscript in Resen’s Library, Sjötíu ritgerðir

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O Manuscrito Resen (Resen MS. AM1 e βII fol., ff. 85v–91r ) trata-se de uma cópia de três páginas feita pelo estudioso islandês Árni Magnusson (1663 – 1730) a partir do manuscrito original, que havia pertencido ao dinamarquês P. H. Resen (1625 – 1688). Infelizmente esse original se perdeu em um incêndio em Copenhagen em 1728.39 Seu conteúdo trata de um conjunto de listas genealógicas presentes em outras fontes escandinavas – assim também como as que aparecem na Crônica Anglo-Saxônica e na Crônica de Æthelweard – e datado como da segunda metade do século XIII. Portanto, não poderia ter sido utilizado por Snorri Sturlusson (morto em c. 1241); ainda que seja possível que uma versão anterior com a mesma compilação pudesse ter sido usada por ele. O que levanta a hipótese de que o manuscrito original que deu origem ao Manuscrito Resen fosse também uma cópia.40

O manuscrito, como o conhecemos, possui tanto genealogias régias anglo-saxônicas quanto escandinavas, totalizando onze listas. Em sua primeira página há uma primeira lista contendo onze ancestrais de Odin começando com o nome de “Sescef”, juntamente com três linhas de descendência a partir de Odin (chamado também como “Voden”) através de dois filhos – “Beldeg” e “Veggdegg” – até os reis históricos de Wessex, Kent e Northúmbria, e uma quarta lista com os reis da Inglaterra desde Alfred (grafado como “Elfraðr”), passando por Cnut o Grande, Eduardo o Confessor e Guilherme o Bastardo/Conquistador, até Henrique II (“Heinrecr”):

1. Sescef, Bedvig, Athra, Itermann, Heremoth, Scealdva, Beaf, Eat, Godulf, Finn, Frealaf, Voden þann kollum ver Odinn fra honum eru commar flestar kononga ęttir i norðr halfu heimsins. Hann var tyrkia konungr oc flyði fyrir rvmverium nordr higat.

2. Beldeg, Brand, Freoðegar, freovine, Vigg, Gevis, esla, Elesa, Kredic, Kreoda, Kinric, Keaƿlim, Kvðvine, kuða, Keolvald, Kenreð, Ingeld broðir vestr Saxa konongs. hann var konongr xxxvi∙ hann let gora mustari i Glestinga buri. Siðan foro þeir badir til rvms oc ǫnduðuz þar þessi ero nofn langfeðga þeira. Ioppa, Eava, Ealhmund. Eggbricht, Aðulf, Elfred riki, Eadverð, Eadmund, Iadgar, Eþelreð, Eadverð. 3. Veggdegg, Vitrgisl, pitta, Hengest, ocga, vese, Eormrec, Eðelberth,

Eaðbald, Erconbert, Ecbert, Viggtdrec, Eðelbriht.

4. Veggdegg, Siggar, Svebdegg, Siggror, Seballd, Sefugol, Seomel, Veostorr valena, Vilgils, Vvlscfrea, Vffe, Elle, Eadvine.

5. Elfraðr riki xxviii ar oc vii manoðr. Eatvarðr xxiiii ar Aþalsteinn xiii ar vii vicor ∙iii∙ daga. Eatmundr brodir hans ∙vi∙ ar ∙vi∙ manoðr 7 ∙ii∙ daga, Eatvarðr brodir þeira ix ar 7 ∙v∙ vicor, Eatvigr son Jatmundar

39 FAULKES, Anthony. The Earliest Icelandic Genealogies and Regnal Lists, Saga-Book XXIV, 2005, p. 115–19. 40 Ibid., p. 177 – 178.

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∙iii∙ ar vicor ∙xxxvi∙ ii daga, Eatgeirr brodir hans xvi ar. Eatvarðr iiii ar xvi vicor. Adalradr brodir hans xxxíííj∙ ar, Eatmundr aþalraðs son ix manoðr, Knutr gamli ∙xxíííj∙ ar, Haraldr ∙v∙ ar, Horda Knvtr ii ar, Eatvarðr helgi Aþalraðs son xxííj∙ ar, Haraldr guðina son ix manodr, Vilialmr basthardr xxi, Vilialmr xi ar, Heinrecr xxx ar, Stefnir xiii∙, Heinrecr xi, Rikarþr x, Ioan sina terra ∙xvii∙, Heinrecr.

Manuscrito Resen41

Na segunda página existem listas genealógicas dos Sjöldungar e dos Ynglingar, entre outros, todos com Odin como seu início. E na terceira página se encontram as genealogias a partir de Ragnar Lothbrok e listas dos reis da Dinamarca, Noruega e Suécia até meados do século XIII.

As referências presentes nas listas da primeira página do manuscrito seriam praticamente idênticas às encontradas em outro manuscrito na Inglaterra do período anglo-saxônico conhecido como Cotton Tiberius B v. Esse manuscrito, a exemplo de outros como o Cotton Vespasian B iv (Cambridge, Corpus Christi College 183) e o prólogo da Vida do Rei Alfred, são documentos do período anglo-saxônico que contêm genealogias régias vinculadas ao que pode ser encontrado na Crônica Anglo-Saxônica ainda que não façam parte da mesma. 42

No caso específico do Cotton Tiberius B v haveria outros elementos que também o vinculariam de forma mais clara ao universo político e intelectual do sul da Inglaterra, principalmente a abadia de Glastonbury.43 O manuscrito em si – London, British Library, Cotton Tiberius B. v, part 1 (ff. 2-73 e 77-88) – data de por volta da primeira metade do século XI. Nele podem ser encontradas iluminuras, elaborações de um calendário, listas com os nomes dos primeiros abades de Glastonbury juntamente com a genealogia dos

41 FAULKES, Anthony. The Earliest Icelandic Genealogies and Regnal Lists, Saga-Book XXIV, 2005, p. 115–19 (grifo nosso).

42 Cf. FAULKES, Anthony. The Genealogies and Regnal Lists in a Manuscript in Resen’s Library, Sjötíu ritgerðir

helgaðar Jakobi Benediktssyni 20. júlí 1977, Rvík 1977, p. 179 – 180.

43 É importante lembrar que nos séculos IX – X ocorre um importante florescimento intelectual que possibilitou o desenvolvimento de toda uma cultura literária extremamente erudita no sul da Inglaterra, em comunidades religiosas como as de Winchester e Glastonbury. Essa última era um dos principais centros intelectuais e religiosos do sul da Inglaterra do século X e um dos com maior influência intelectual irlandesa da época. E durante essa mesma época, e ligado a esse tipo de produção, em Glastonbury foi quando viveu São Dunstan (c. 909 - 988); figura que teve um papel de destaque na história da Inglaterra anglo-saxônica (especialmente durante os governos do rei Edgar e Æthelred II e sua relação com a Reforma Beneditina na Inglaterra) e que viveu na corte do rei Athelstan em sua juventude. Em suma, alguém próximo à corte anglo-saxônica. Cf. MEDEIROS, Elton O. S. Erudição e Poesia Encantatória na Inglaterra anglo-saxônica: Salomão & Saturno I e o Encantamento das Nove Ervas. Mirabilia, n. 20, v. 1, 2015, p. 318 – 320.

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reis de Wessex.44 Em função da lista com nomes dos abades de Glastonbury contidos no manuscrito e a falta de um cabeçalho que identificasse claramente do que aquela lista de nomes se tratava, supõe-se que sua composição tenha ocorrido de fato na própria Glastonbury. Uma vez que tal lista dificilmente seria identificada fora dos limites de tal comunidade ou além das regiões do sul da Inglaterra mais próximas do período. Além disso, o manuscrito também contém tabelas identificando os períodos de celebração da Páscoa referentes aos anos de 969 a 1006. Combinando cronológicamente com a genealogia da casa de Wessex ali presente. A partir desses indícios (a genealogia régia de Wessex, a lista com os abades e as tabelas sobre a data da Páscoa) é possível presumir que o conteúdo do manuscrito tenha sido composto em meados do século X, talvez durante o próprio ano de 969.45 Portanto, isso faria com que o Cotton Tiberius B v fosse uma cópia do século XI a partir de um original do século X e contemporâneo à compilação dos manuscritos mais antigos da Crônica Anglo-Saxônica.46

Com isso teríamos uma documentação que estaria vinculada às genealogias da casa real de Wessex e anterior a muitas das fontes genealógicas escadinavas como a Edda de Sturluson e ao Manuscrito Resen, por exemplo.

A partir disso, uma argumentação polêmica, mas muito interessante – como de pesquisadores como Anthony Faulkes47 – seria de que em tais fontes genealógicas régias escandinavas a personagem de Odin, por exemplo, acaba por ser inserida não por se tratar de uma reminiscência pré-cristã dos povos escandinavos. Tais genealogias inicialmente remontariam a heróis míticos como Yngvi e Skjöldr – como no caso de Scyld Scefing em Beowulf, ou ainda como as figuras de Enéas na Eneida ou Brutus na Historia Regum Brittonum – por exemplo, e com o contato com a Inglaterra e as genealogias régias anglo-saxônicas, onde Woden/Voden/Odin se faz presente como ancestral de diversas casas régias, passou-se a inserir a divindade também nas genealogias nórdicas a partir dos séculos XII – XIII. Não como fundador, mas um integrante de tais genealogias a exemplo

44 FOOT, Sarah. Glastonbury’s Early Abbots. In: ABRAMS, Lesley, CARLEY, James P. The Archaeology and

History of Glastonbury Abbey. Woodbridge: Boydell Press, 1991, p. 164 – 165.

45 FOOT, Sarah. Glastonbury’s Early Abbots. In: ABRAMS, Lesley, CARLEY, James P. The Archaeology and

History of Glastonbury Abbey. Woodbridge: Boydell Press, 1991, p. 165.

46 O Manuscrito A ou Manuscrito de Winchester (Cambridge, Corpus Christi College MS 173, ff. 1v – 32r) e o Manuscrito A2 (British Library MS Cotton Otho Bxi, 2); cf. SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicle. Londres: Dent, 1996, p. xxi – xxiii.

47 FAULKES, Anthony. The Genealogies and Regnal Lists in a Manuscript in Resen’s Library, Sjötíu ritgerðir

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do que já ocorria na Inglaterra. E assim tal influência anglo-saxônica teria acabado por se fazer presente também a obra de Snorri Sturluson – através de uma cópia paralela ao Manuscrito Resen e talvez derivada das listas contidas no Cotton Tiberius B. v – onde não apenas a genealogia semelhante à casa de Wessex aparece, mas elementos que podemos identificar remetendo aos arquétipos medievais do mito de origem troiana, à “matéria de Tróia” e a conciliação de tal cenário com a tradição genealógica cristã veterotestamentária.48

Considerações finais.

A importância das genealogias mítico-históricas no contexto europeu setentrional do medievo não pode ser encarada como simples reminiscências pagãs ou mero folclore, mas como um processo extremamente intrincado de construção indentitária, de etnogênese, na formação de “nações” durante o dito período.49

No caso das fontes utilizadas em nosso artigo, é necessário enfatizar que ao questionarmos seu conteúdo, isso não significa que não seja possível encontrar algum tipo de informação importante que esteja vinculada ao período pré-cristão inglês ou escandinavo. Contudo, é necessário reconhecer que tais elementos não podem ser usados de forma proselitista, sem uma metodologia coerente e senso crítico.50 Se faz necessário um novo olhar sobre a análise de tais fontes, que estejam voltadas a uma visão holística do período. Onde, por exemplo, as práticas dos primeiros missionários cristãos no norte europeu deveriam ser revisitadas pelo pesquisador e submetidas a novas críticas. Ao invés de uma busca exclusiva por supostos elementos pré-cristãos em fontes posteriores ao período, numa ânsia acadêmica por resultados que podemos dizer ser no mínimo teleológica.

Em suma, o ponto que gostaríamos de enfatizar neste trabalho seria de que se faz mais do que necessário rompermos com antigas metodologias de pesquisa que claramente não conseguem mais suprir análises consistentes e, consequentemente, buscar por novas

48 FAULKES, Anthony. The Genealogies and Regnal Lists in a Manuscript in Resen’s Library, Sjötíu ritgerðir

helgaðar Jakobi Benediktssyni 20. júlí 1977, Rvík 1977, p. 183.

49 DAVIES, Rees. Nations and National Identities in the Medieval World: An Apologia, Revue belge d’Histoire

contemporaine/Belgisch Tijdschrift voor Nieuwste Geschiedenis, XXXIV, n. 4, 2004, p. 567-579.

50 YORKE, Barbara. The fate of otherworldly beings after the conversion of the Anglo-Saxons. In: RUHMANN, Christiane, BRIESKE, Vera. Dying Gods – Religious beliefs in northern and eastern Europe in the time of Christianization, Neue Studien zur Sachsenforschung 5, 2015, p. 167-179.

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hipóteses ou soluções. No caso abordado em nosso artigo, uma metodologia que rompa com antigos paradigmas – como a persistente ideia oitocentista de um fundo cultural pangermânico – e a procura por novas abordagens que tentem cumprir tal função realmente a partir das fontes e o que elas nos apresentam de fato, por mais óbvio que isso possa soar dentro do campo da pesquisa histórica e literária. Como nossa proposta (baseadas nas ideias de Crawford, Lassen e Faulkes) de um maior cuidado ao lidar com as fontes do período e uma desmitificação da Escandinávia medieval como detentora de uma influência absoluta ou fonte primordial sobre as regiões em torno do Mar do Norte.

E a partir disso possibilitar o desdobramento para pensarmos em outras hipóteses onde, por exemplo, tais genealogias escandinavas pudessem ser compreendidas não apenas como meras reminiscências mitológicas ou folclóricas, mas indícios de processos de formação de identidades nacionais – ou ao menos de tentativas – e de discursos legitimadores no ambiente sociopolítico da Escandinávia medieval do século XIII, a exemplo do que já vinha ocorrendo na Inglaterra e no Continente.

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PRÓLOGO DA EDDA DE SNORRI STURLUSON.51

Original em Nórdico Antigo

1.

Almáttigr guð skapaði í uphafi himin ok jǫrð ok alla þá hluti, er þeim fylgja, og síðarst menn tvá, er ættir eru frá komnar, Adam ok Evu, ok fjǫlgaðisk þeira kynslóð ok dreifðisk um heim allan. En er fram liðu stundir, þá ójafnaðisk mannfólkit: váru sumir góðir ok rétttrúaðir, en myklu fleiri snerusk eptir girndum heimsins ok órœkðu guðs boðorð, ok fyrir því drekti guð heiminum í sjávargangi ok ǫllum kykvendum heimsins nema þeim er í ǫrkinni váru með Nóa. Eptir Nóa flóð lifðu átta menn þeir er heiminn bygðu ok kómu frá þeim ættir, ok varð enn sem fyrr at þá er fjǫlmentisk ok bygðisk verǫldin þá var þat allr fjǫlði mannfólksins er elskaði ágirni fjár ok metnaðar en afrœktusk guðs hlýðni, ok svá mikit gerðisk af því at þeir vildu eigi nefna guð. En hverr mundi þá frá segja sonum þeira frá guðs stórmerkjum? Svá kom, at þeir týndu guðs nafni ok

Tradução

1.

Deus Todo-Poderoso criou o céu e a terra e todas as coisas neles, e por fim duas pessoas dos quais as gerações são descendentes, Adão e Eva. E sua linhagem se multiplicou e se espalhou por todo o mundo. Mas o tempo passou e a humanidade se tornou diversa. Alguns eram bons e corretos em sua fé, mas muitos se afastaram para seguir as luxúrias do mundo e negaram os mandamentos de Deus, e então Deus mergulhou o mundo numa enchente com todas as criaturas do mundo exceto aquelas que estavam na arca com Noé. Após a enchente de Noé viveram oito pessoas que habitaram o mundo e delas descenderam gerações. Pouco antes que o mundo viesse a ser povoado e se acomodado, ocorreu de que grande parte da humanidade cultivou o desejo por riqueza e glória e negou a obediência a Deus, e isso chegou a tal ponto que eles se recusaram a mencionar o nome de Deus. Mas quem estava lá então para contar a seus filhos sobre os mistérios de Deus? Então aconteceu que eles esqueceram o nome de Deus e em muitas partes do mundo não havia ninguém a

51 O texto original da Edda de Snorri Sturluson que acompanha nossa tradução foi baseado nas edições de JÓNSSON, Guðni. Edda Snorra Sturlusonar. Reykjavik: Islendingasagnautgafan, 1959; BJÖRNSSON, Arni. Snorra Edda. Reykjavík: Iðun, 1975.

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víðast um verǫldina fansk eigi sá

maðr er deili kunni á skapara sínum. En eigi at síðr veitti guð þeim jarðligar giptir, fé ok sælu, er þeir skyldu við vera í heiminum. Miðlaði hann ok spekina svá at þeir skilðu alla jarðliga hluti ok allar greinir þær er sjá mátti loptsins ok jarðarinnar. Þat hugsuðu þeir ok undruðusk, hví þat myndi gegna, er jǫrðin ok dýrin ok fuglarnir hǫfðu saman eðli í sumum hlutum ok þó ólík at hætti. Þat var eitt eðli, at jǫrðin var grafin í hám fjalltindum ok spratt þar vatn upp ok þurfti þar eigi lengra at grafa til vats en í djúpum dǫlum. Svá eru ok dýr ok fuglar, at jafnlangt er til blóðs í hǫfði ok fótum. Ǫnnur náttúra er sú jarðar, at á hverju ári vex á jǫrðinni gras ok blóm ok á sama ári fellr þat allt ok fǫlnar. Svá eru ok dýr ok fuglar, at þeim vex hár ok fjaðrar ok fellr af á hverju ári. Þat er in þriðja náttúra jarðar, þá er hon er opnuð ok grafin, þá grœr gras á þeiri moldu er efst er á jǫrðinni. Bjǫrg ok steina þýddu þeir á móti tǫnnum ok beinum kvikvenda. Af þessu skilðu þeir svá at jǫrðin væri kyk ok hefði líf með nokkurum hætti, ok þat vissu þeir at hon var furðuliga gǫmul at aldartali ok máttug í eðli. Hon fœddi ǫll kvikvendi ok hon eignaðisk allt þat er

ser encontrado que conhecesse alguma coisa sobre seu criador. Mesmo assim Deus lhes concedeu bênçãos terrenas, riqueza e prosperidade para desfrutarem no mundo. Ele também lhes deu certa quantia de sabedoria de forma que pudessem compreender todas as coisas terrenas e os detalhes de tudo que eles pudessem ver no céu e na terra. Eles refletiram e estavam maravilhados sobre o que significava a terra e os animais e os pássaros terem características em comum em algumas coisas, apesar de que havia (também) diferenças (entre eles). Uma das características da terra era de que quando ela era cavada no alto do topo da montanha, lá a água jorrava e não havia necessidade para se cavar mais por água lá do que em vales profundos. Era o mesmo com os animais e pássaros, pois há de se sangrar tanto na cabeça quanto nos pés. Uma segunda qualidade da terra: que todo ano lá cresce vegetação e flores e no mesmo ano tudo cai e definha. É o mesmo com animais e pássaros: seus cabelos e penas crescem e caem todo ano. É a terceira qualidade da terra: quando ela é aberta e cavada, então a vegetação que está mais alto na terra cresce no solo. Rochas e pedras eles pensaram ser o equivalente aos dentes e ossos dos seres vivos. A partir disso concluíram que a terra estava viva e tinha vida há muito tempo, e eles perceberam que ela era incomensuravelmente velha na conta dos anos e de natureza

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dó. Fyrir þá sǫk gáfu þeir henni nafn

ok tǫlðu ættir sínar til hennar. Þat sama spurðu þeir af gǫmlum frændum sínum at síðan er talið váru mǫrg hundruð vetra þá var in sama jǫrð, sól

ok himintungl. En gangr

himintunglanna var ójafn, áttu sum lengra gang en sum skemra. Af þvílíkum hlutum grunaði þá at nǫkkurr mundi vera stjórnari himintunglanna, sá er stilla mundi gang þeira at vilja sínum, ok mundi sá vera ríkr mjǫk ok máttugr; ok þess væntu þeir, ef hann réði fyrir hǫfuðskepnunum, at hann mundi fyrr verit hafa en himintunglin; ok þat sá þeir, ef hann rédi gang himintunglanna, at hann mundi ráða skini sólar ok dǫgg loptsins ok ávexti jarðarinnar er því fylgir, ok slíkt sama vindinum loptsins ok þar með stormi sævarins. Þá vissu þeir eigi hvar ríki hans var. Af því trúðu þeir at hann réð ǫllum hlutum á jǫrðu ok í lopti, himins ok himintunglum, sævarins ok veðranna. En til þess at heldr mætti frá segja eða í minni festa þá gáfu þeir nafn með sjálfum sér ǫllum hlutum, ok hefir þessi átrúnaðr á marga lund breyzk, svá sem þjóðirnar skiptust ok tungurnar greindusk. En alla hluti skilðu þeir jarðligri skilningu, því at

poderosa. Ela nutria todas as criaturas e se apossava de tudo que morria. Por essa razão eles lhe deram um nome e traçaram sua ancestralidade até ela. Da mesma forma eles aprenderam de seus parentes mais velhos que após muitas centenas de anos era sabido que existia a mesma terra, sol e corpos celestes. Mas os percursos dos corpos celestes eram muitos, alguns tinham um percurso mais longo e alguns mais curtos. A partir destas coisas eles pensaram de forma acertada que deveria haver alguém a controlar os corpos celestes que deveria estar ajustando seus percursos de acordo com sua vontade, e ele seria muito forte e poderoso; e eles concluíram que se ele governava sobre os elementos, que ele deve ter existido antes dos corpos celestes; e eles perceberam que se ele governava sobre o percurso dos corpos celestes, ele devia governar sobre o brilho do sol e o orvalho do céu e o que é produzido na terra e o que depende dela, e de forma similar o vento do céu e com ele a tempestade do mar. Eles não sabiam onde era seu reino. E então acreditaram que ele governava todas as coisas na terra e no céu, do céu e dos corpos celestes, do mar e os climas. Mas então como é melhor, capaz de dar um relato disso e fixar na memória, eles deram um nome por eles mesmos para tudo, e esta religião mudou de várias maneiras conforme as nações se tornavam distintas e as línguas se ramificam. Contudo, eles compreenderam

Imagem

Figura 1: Franks Casket, painel superior (imagem concedida pelo Museu Britânico)
Figura 2: Franks Casket, painel direito (imagem concedida pelo Museu Britânico)

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