Chaves do exílio
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e
portas da esperança
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H e lo ísa Ro d r ig u e s F e r n a n d e s
Professora da Escola Nacional Florestan
Fernandes e da Universidade de São Paulo
RESUMO: O texto se refere às angústias vivenciadas por Florestan Fernandes durante o
exílio no Canadá (1971), com base nas cartas enviadas aos familiares. Além disso, sugere
como os dias no exílio fortaleceram a opção de Florestan pelo socialismo na América
Latina.
PALAVRAS-CHAVES: Florestan Fernandes, exílio, cartas, socialismo.
ABSTRACT: The text refers to rhe Florestan Fernandes' "sadness" during his exile in
Canada (1971). The letters sent to his family are rhe bases to the analyses. Ir says add
to rhar how the days of exile made stronger the Florestan's option for rhe socialism on
Larin America.
KEYWORDS: Florestan Fernandes, Exile, Letters, Socialismo
Q u a n d o a p á tr ia q u e te m o s , n â o a te m o s ,
Perdida por silêncio e por renúncia,
Até a voz do mar se torna exílio
E a lu z q u e n o s r o d e ia é c o m o g r a d e s .
(E xílio , So p h ia d e M e llo An d r e s e n )
Em 1969, quando os conceitos de s u b ve r s ivo e de in im ig o d a p á tr ia
passaram a ameaçar todos aqueles que não pensassem do mesmo modo que
o poder, teve início o período mais brutal da ditadura militar. Foi um general
argentino da época que melhor soube dizer a fala do terror: " P r im e ir o , m a
-ta r e m o s to d o s o s s u b ve r s ivo s ; d e p o is , m a -ta r e m o s s e u s c o la b o r a d o r e s ; d e p o is , s e u s
s im p a tiza n te s ; e m s e g u id a , a q u e le s q u e p e r m a n e c e m in d ife r e n te s e , fin a lm e n te ,
m a ta r e m o s o s q u e s e m o s tr a m tím id o s . "(ROZITCHNER, 1982: 170)
DCBA
América Latina afora os mesmos acontecimentos repetem-se:
sin-dicatos de trabalhadores e partidos de esquerda são declarados ilegais e seus
dirigentes e militantes são perseguidos, presos, mortos. Parlamentos são
fe-chados e deputados são perseguidos, presos, mortos. A universidade
autô-noma é destruída: professores, alunos, funcionários, são perseguidos, presos,
mortos. Jornais, revistas e outros meios de cultura e de comunicação são
fechados ou submetidos àcensura. (VINAR, 1992: 38)
Tudo que ontem fazia parte da cidadania e da legalidade passava a
ser criminoso. Tudo que era digno tornava-se ilegal e subversivo.' A própria
Lei tornava-se uma impostura. A ditadura Costa e Silva procurou justificar
com os chamados Atos lnstirucionais decisões do mais puro arbítrio. Com o
ato instirucional nv 5, de 1968, o governo militar dava-se o poder de expul-sar os indesejáveis das instituições civis e militares.
DCBA
É assim que, em 28 de abril de 1969, quarenta e duas pessoas, entre
as quais três professores da Universidade de São Paulo - Florestan
Fernan-des, Jaime Tiomno e João Villanova Artigas - são compulsoriamente
apo-sentados dos cargos que ocupavam. O ato provocou o imediato protesto do
professor Hélio Lourenço de Oliveira, Vice-Reiror em exercício, e obteve
uma resposta igualmente imediata: um novo decreto aposentava o
Vice-Reitor e mais vinte e três professores da Universidade de São Paulo, entre
os quais Caio Prado Júnior, que nem ao menos era professor! (DURHAM,
1978: 38-41)
Aos quarenta e oito anos de idade, Florestan estava sendo expulso
da cadeira de Sociologia, daquele pequeno mundo que, como ele dizia,
tor-nara-se uma razão de ser da sua vida (FERNANDES, 1977: 192).
Começa-va a sofrer na própria pele o que é ser um
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" h o m e m m a r g in a l' numa experiên-cia muito semelhante àdo bororo Tiago Marques Aipobureo, sobre o qualescrevera aos vinte e cinco anos, quando ainda era um aprendiz de sociólogo
(FERNANDES, 1960)2. Florestan tornava-se aquele ser condenado a vive r
à m a r g e m do grupo social ao qual pertencia. Como bem colocou Miriam Limoeiro, com a aposentadoria compulsória, a ditadura militar conseguiu
arrancar de Florestan o seu chão institucional, aquele mesmo chão que, em
grande parte, ele próprio construfra." (CARDOSO, 2005: 193)
Expulso do seu lugar, do seu mundo, e obrigado a tornar-se
prisio-neiro na sua própria casa, Florestan escolhe o exílio e aceita o convite para
lecionar na Universidade de Montreal, no Canadá. Parte sozinho, sem sua
família, no mesmo ano de 1969.4
Exílio, êxodo, migração, errância; experiências de separação, de
perda das raízes, da terra, do lugar, da casa. Atravessar cercas, muros,
fron-teiras. Ser invadido pelo medo, solidão, insegurança, tornar-se um estranho
e um estrangeiro. Costurar o que foi rompido com os fios da saudade e da
nostalgia. Saudades da querência, cultura da ausência. Florestan inicia essa
dolorosa experiência
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r e c o r r e n te es e c u la r de milhões de camponeses brasilei-ros e latino-americanos.DCBA
É o que nos diz, ainda agora, Manoel dos Santos, bóia-fria em Ribeirão Preto, natural de Livramento, na Bahia, onde deixoumulher e três filhos: " N ã o te m je ito , p r e c is o fa ze r is s o - aceitar uma situação
próxima da do trabalho escravo -'.Te n h o m u ita s a u d a d e d e le s . Vivo d o q u e é
p o s s íve l e u te r " ?
Exílio não é emigração, nem para Florestan, nem para Manoel dos
Santos. O emigrante viaja nos braços de um desejo em relação ao seu lugar
de destino. O exilado carrega uma sentença de expulsão, forçada ou
volun-tária, da sua terra. O emigrante quer ser aceito e reconhecido, ele é movido
por um desejo de futuro. O exilado é o desterrado, o retirante imerso no
tra-balho do luto da sua querência, condenado a carregar, nas cores da saudade,
um passado que recusa abandonar.
Para Florestan, é a integridade de uma posição ética que sustenta
sua decisão de exilar-se; é como ele próprio reconhece numa carta enviada à
minha mãe: " Ta lve z e u te n h a e r r a d o a o m e a ju s ta r às itu a ç ã o p o lític a d e fo r
-m a r a d ic a l-s o c ia lis ta . M a s é m in h a p o s iç ã o e e u n ã o p o d e r ia te r a g id o d e o u tr o
m o d o (..) Te n ta r e i vir a o Br a s il q u a n ta s ve ze s m e fo r p o s s íve l p a r a r e d u zir a s
c o n s e q ü ê n c ia s d a s e p a r a ç ã o " . (6 de janeiro de 1970)6
Mas o passado do qual pensou poder separar-se, encarrega-se de
tornar impossível adotar a nova terra, que impõe uma outra língua: " te n h o
d e p r e p a r a r tr ê s a u la s d e u m a h o r a e m e ia e u m a d e d u a s h o r a s e tu d o is s o é
b a s ta n te d u r o p a r a m im , p o r c a u s a d o in g lê s .
J á
n a s e g u n d a -fe ir a , d e i a p r im e ir a a u la . A m in h a g a r g a n ta fic o u c o m p le ta m e n te s e c a e e u e s ta va c o m p le ta m e n ten e r vo s o " (carta a Myriam, 1 de outubro de 1969). " M e u in g lê s p io r o u d e
m o d o h o r r íve l. Até p a r e c e q u e e s to u c o m e ç a n d o d e n o vo (..) Ac h o q u e a s r a zõ e s
s ã o d e n a tu r e za p s ic o ló g ic a " . (carta a Myriam, 6 de janeiro de 1970)
Se a língua seca a garganta, o clima pesa no corpo:
'o
fr io é d e s a n im a-d o r (..) c o m o c a p o te q u e vo c ê viu , e u m e s in to c o m o s e e s tive s s e p e la d o q u a n d o
a n d o p e la r u a . ( . .) O n te m àn o ite , fo i a u m c in e m a a q u i p e r to , p o is m e s e n tia
c a n s a d o e d e p r im id o . P a r a vo lta r a o a p a r ta m e n to , tin h a d e a n d a r u n s
5
o u 6 q u a r te ir õ e s . C o m a n e ve n o c h ã o e a n e ve q u e e s ta va c a in d o , p a r e c ia q u e e s ta vaa r r a s ta n d o o m u n d o n a s c o s ta s " . (carta a Myriam, 31 de janeiro de 1971)
Quem sabe não era seu próprio país que Florestan sentia estar carregando
no lornbol?
Outra terra, outros professores, outros valores. Florestan lastima só
ter dois colegas que " ta m b é m s ã o s o c ia lis ta s " ; ademais, com a exceção de um
ou outro professor liberal e de alguns estudantes 'á
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c o n vivê n c ia s e m p r e fo im a is fo r m a l" (carta a Myriarn, 3 de outubro de 1971). Em resumo, " p o u c o s
a c e ita r a m a s m in h a s te s e s e id é ia s . E s to u r e d u zin d o d e ta l m a n e ir a o m e u e s p a ç o
p o lític o q u e te m o c o n ve r te r -m e n o e q u iva le n te d e u m 'm a n ía c o id e o ló g ic o ' (. ..)
P a c iê n c ia , n ã o s o u a d a p ta tivo e p r e fir o tr o c a r d e vid a a te r u m e s p a ç o p o lític o
r a zo á ve l à c u s ta d o q u e m e é m a is c a r o " . (SOARES, 1997: 79-80)8
Outros alunos, outras experiências: " Be m , a q u i e s to u d e n o vo . C h e
-g u e i m u ito c a n s a d o (. ..) e c a d a ve z c u s ta -m e m a is a r o tin a d e tr a b a lh o . Ac h o
q u e a tin g i o lim ite d e s a tu r a ç ã o ; r e c o m e ç a r to d o a n o a e n s in a r n o va s tu r m a s
c h e g a a s e r in te r e s s a n te q u a n d o s e é jo ve m e q u a n d o s e e n s in a , n a p r ó p r ia lín
-g u a , e s tu d a n te s q u e c o m p a r tilh a m a s m e s m a s p r e o c u p a ç õ e s e e s p e r a n ç a s . Aq u i,
e s to u tã o d is ta n te d e to d o s e le s , q u a n to e le s d e m im . D e c id id a m e n te , o s a c r ifíc io
n ã o p a g a a p e n a ... E s to u p e n s a n d o p e d ir d e m is s ã o " . (carta a Myriarn, 15 de setembro de 1971)
Florestan vive dolorosamente esta situação de falante de uma
lín-gua/cultuta/ambiente/clima estrangeiro onde se estranha e já não se
reco-nhece. Não por acaso, quando viajou para os Estados Unidos, quase não
conseguiu rerornar, pois e s q u e c e u que seu visto de permanência teria o prazo
de validade encerrado assim que saísse do Canadá! 'In d o a Bu ffà lo , n o s E s
-ta d o s U n id o s , s a í d o C a n a d á e p e r d i o d ir e ito d e p e r m a n ê n c ia e d e r e e n tr a r n o
P a ís ! M a s o fo n c io n á r io fo i c o r tê s e in te lig e n te e r e s o lve u fe c h a r o s o lh o s . "(carta a Myriam, 29 de outubro de 1971)
Não é casual que seu mundo tenha adquirido um novo encanto
com a chegada de José Nun, professor socialista argentino, ao Canadá " e le
já m e vis ito u , h á te m p o , e m n o s s a c a s a . F o i c o m o F e r n a n d o H e n r iq u e . É u m a
p e s s o a e n c a n ta d o r a . C o m p r o u u m c a r r o e s ó p e n s a e m s a ir c o m ig o p a r a lá e p a r a
c á . (. ..) E m te r m o s d e c o n ve r s a ç ã o , p a r a m im é ó tim o . (. ..) C o m N u n , te n h o a r e s
d a Am é r ic a La tin a , d a E u r o p a e d a Ar g e n tin a " . (carta a Myriam, 3de outubro de 1971)
Exílio, esrranhamento, impossibilidade do trabalho de luto da sua
terra, do seu clima, da sua gente, dos seus ideais. " To r n a -s e c a d a ve z m a is
d ifíc il e s ta b e le c e r u m a p o n te e n tr e o q u e s o u e o q u e fa ç o e o q u e d e s e ja r ia s e r e
fa ze r ... à s ve ze s , o lh o p a r a m im m e s m o c o m c e r ta ir o n ia , p o is m e e s p e c ia lize i
e m d a r m u r r o s e m p o n ta d e fa c a e a g o r a q u e m e ve jo la n ç a d o r e a lm e n te n o m e r
-c a d o , -c o m o m e r -c a d o r ia e s tim a d a e m d ó la r e s , s in to (..) q u e s e r ia m e lh o r ve n d e r
s o r ve te s n u m a r u a q u e n te d e Sã o P a u lo d o q u e s e r p r o fe s s o r d e So c io lo g ia n o
N o r te d a s Am é r ic a s " . (SOARES, 1997: 79)9
O que mais dói é a saudade. Bem diz Manoel Berlinck, a saudade é
uma maneira de resistir ao presente; é uma afirmação de que não faço parte
só do aqui e do agora porque continuo atado ao meu passado,
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" n a s a u d a d e , o e u a m e a ç a d o r e e n c o n tr a s u a id e n tid a d e n u m p a s s a d o q u e s efa z p r e s e n te " .(BER-LINCK, 1992: 29) Florestan resiste aceitar o Canadá e defende-se com a
saudade da família: " m e e m o c io n o q u a n d o e s c r e vo p a r a vo c ê s o u r e c e b o a s c a r ta s
e a p r e s s ã o s o b e q u e n e m r o jâ o " . (carta a Myriam, 14 de outubro de 1965) Defende-se com a saudade da sua terra: " Se vo c ê s p u d e r e m m e e n via r u m
p r e s e n te d e fim d e a n o , g o s ta r ia d e te r u m á lb u m c o m a s g r a vu r a s d e P o r tin a r i
(. . .) p a r a m a n d a r e n q u a d r a r e p o r n a s p a r e d e s ; c o m a s s u a s fo to g r a fia s e a lg u m a s
g r a vu r a s , te r e i u m a m b ie n te b r a s ile ir o " .(carta a Myriam, 12 de novembro de
1969, grifos do Florestan)
Como para tantos trabalhadores rurais brasileiros, também para
Florestan, a saudade, " e s s a tr is te za d o c e e d o lo r o s a " (VINAR, 1989: 112),
ali-menta o desejo de voltar; desejo que precisa ser capaz de derrotar o medo e a
insegurança: " r e c e b i n o tíc ia s a m a r g a s s o b r e a s itu a ç ã o (...). N ã o s e i s e é té c n ic a
d o p e s s o a l d o s E . U . p a r a c o n ve n c e r -m e a fic a r p o r a q u i o u s e é tu d o r e a lm e n te
ve r d a d e . In c lu s ive , fa la r a m -m e d a p r is ã o d o O c ta vio (Ia n n i) e , m a is ta r d e , q u e ele fo r a s o lto " . (carta a Myriam, 4 de maio de 1970)
Ainda assim, voltar, mesmo sendo preciso enfrentar " u m p r o lo n g a d o
p e r ío d o d e va c a s m a g r a s " (carta a Myriam, 15 de setembro de 1971) e, pior
ainda, mesmo sem saber do seu destino: " c o m e xc e ç ã o d o p e s s o a l d e c a s a , r e c e b i
m u ita s c a r ta s a c o n s e lh a n d o -m e c o m a r d o r e vita r e s s a d e c is ã o q u e , p a r a m im , é
in e vitá ve l. (...) D is s e r a m -m e q u e a n d a m e s p a lh a n d o n a s u n ive r s id a d e s (...) q u e
e u p r e te n d o vo lta r p o r q u e 'vo u a d e r ir ' a o a tu a l g o ve r n o . É u m a p e r ve r s id a d e e
ta n to " .(carta a Myriam, 24 de março de 1971)
O exílio é mesmo este " ir e vir d e n tr o d e s itu a ç õ e s d e g r a n d e d r a m a
-tic id a d e " (NEGRI, 2001: 10) preparando a eclosâo do novo dentro da repe-tição. Para Florestan, o exílio é solidão e a solidão é impotência. Florestan
sabia muito bem o que dizia quando escreveu, mais tarde, que, retirado do
seu " a m b ie n te , o in te le c tu a l n ã o te m vid a , é u m a p la n ta d e e s tu fa , q u e m o r
-r e p -r e c o c e m e n te " . (FERNANDES, 1978: 27) A decisão tornou-se inevitável
porque já " é te m p o d e c o lo c a r -m e àp r o va " (carta a Myriam, 15 de setembro
de 1971) e, portanto, retorno.
Tomada a decisão de voltar, Florestan nunca mais será um exilado.
Aceita alguns convites para trabalhos intelectuais fora do Brasil, mas só com
passagem de ida e volta. Como ele mesmo reconhece, são viagens que valem
" p e la o p o r tu n id a d e d e e n s in a r e d e fic a r livr e d a s p r e s s õ e s , s e ja d o is o la m e n to ,
s e ja d a s lim ita ç õ e s d a m in h a vid a a í (vir e i u m m is to d e c r ia n ç a , a n o r m a l e
c r im in o s o : o q u e , tu d o ju n to , é d e m a is '). "(carta a Myriam, 4 de fevereiro de
1977)
DCBA
o
exílio cumpriu sua sina. Foi como Florestan obrigou o sociólogo a repetir-se e repetir-se até a sua derradeira irnplosão." Dois textos dãotes-temunho da ruptura. O primeiro, de 1969,
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So c ió Lo g o s : o s N o vo s M a n d a r in s, escrito quando acabara de chegar ao Canadá, onde afirma " e u s o u , a o m e s m ote m p o , so c iâ lo g o eso c ia lista " , embora a Sociologia seja o verdadeiro centro de referência do seu discurso.(FERNANDES, 1977: 268) O outro, A G e r a ç ã o
P e r d id a , escrito após o retorno ao Brasil mas imerso na experiência do exílio, começa com um encontro emocionado numa estação de trem no Canadá. 11
Éramos três " p e r d id o s " no mundo, diz Florestan, Sularnira Costa Pinto e eu
que, despedindo-me de Costa Pinto começo a chorar enquanto o amigo me
diz: " D e ixa d is s o , m e u u e lh o , n ó s a in d a n o s ve r e m o s m u ita s ve ze s e a in d a va m o s
d a r m u ita r is a d a d e tu d o is s o " .(F E RN AN D E S, 1977: 214) G e r a ç ã o P e r d id a
é um texto longo, duro, pesado, doloroso. Implacável, Florestan quer saber
onde nós, socialistas, falhamos e para onde vamos. No centro do seu
discur-so já não está a Sociologia, mas o povo. "(..) d e ve m o s c o lo c a r -n o s a s e r viç o
d o p o vo b r a s ile ir o , p a r a q u e e le a d q u ir a (. . .) a c o n s c iê n c ia d e s i p r ó p r io e p o s s a
d e s e n c a d e a r , p o r s u a p r ó p r ia c o n ta , a r e u o lu ç â o n a c io n a L q u e in s ta u r e n o Br a s il
u m a o r d e m s o c ia L d e m o c r á tic a e u m E s ta d o fo n d a d o n a d o m in a ç ã o e fe tiva d a
m a io r ia " . (FERNANDES, 1977: 246)12
âo por acaso, Florestan usou seu tempo livre no exílio para
estu-dar a " r eu o lu çâ o s o c ia lis ta n a Rú s s ia , n a C h in a e e m C u b a " .(FERNANDES,
1977: 204) Ele mesmo nos conta que essas leituras permitiram " Liq u id a r a s
ú ltim a s h e s ita ç õ e s e to d a s a s e s p e r a n ç a s : d e n tr o d o c a p ita lis m o s ó e xis te m s a íd a s ,
n a Am é r ic a La tin a , p a r a a s m in o r ia s r ic a s , p a r a a s m u ltin a c io n a is , p a r a a s
n a ç õ e s c a p ita lis ta s h e g e m ô n ic a s e a s u a s u p e r p o tê n c ia , o s E s ta d o s U n id o s (..) a
s o c ie d a d e c a p ita lis ta n ã o o fe r e c e a lte r n a tiva s à m a io r ia (..) E u e s ta va p r o n to
p a r a e s c r e ve r a ú ltim a p a r te d e A Re o o lu ç ã o Bu r g u e s a n o Br a s if" .1 3
(FER-NANDES, 1977: 203)
DCBA
* * *
Na feliz expressão de João Pedro Stédile quando se refere à situação do acampado que já não tem nada a perder, Florestan " r e s o lu e d a r u m ta p a n o
d ia b o " e, em 1972, abandona a neve do Canadá para mergulhar nas trevas da ditadura do general Médici (1 969-74)! Para não se exilar de si mesmo,
adaptou-se, embora mal, à existência aprisionada, isolada e solitária da vida familiar em São Paulo; conformou-se à sua "g a io la d e o u r o " ou à " s u a b e la
p r is ã o " , como ele dizia, que lhe será imposta pela ditadura militar até 1977.14
(FERNANDES, 1980: 22)
Esperava iniciar a luta de resistência, pois, como ele mesmo
reco-nheceu, " fo i p a r a To r o n to e fiq u e i láp e n sa n d o q u e p o d ia Lu ta r a li c o n tr a a d ita
d u r a . D e p o is , d e s c o b r i q u e lá n ã o s e lu ta c o n tr a a d ita d u r a . O s q u e n o s o u via m
e r a m p e s s o a s q u e e u n ã o p r e c is a va c o n ve n c e r (. ..).
vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
O e s fo r ç o lá , ia n a d ir e ç ã o d e fo r ta le c e r a d ita d u r a . P o r is s o é q u e p e n s e i: E u vo lto p a r a o Br a s il e lá e u vo up o d e r lu ta r . Vim p a r a c á e n ã o p u d e lu ta r c o is a a lg u m a , p o r q u e r e a lm e n te d e
1 3 e m d ia n te vivi d e n tr o d e u m is o la m e n to tr e m e n d o (. ..)." (FERNANDES,
1980: 21-22)
Mesmo prisioneiro e isolado, foi ali, no seu escritório, que, voltando
a habitar sua língua e os ideais da sua gente, Florestan colocou-se a escrever
a sua obra mais politicamente engajada como a Te r c e ir a P a r te da Re vo lu ç ã o
Bu r g u e s a n o Br a s il (1975), C ir c u ito F e c h a d o (1976), D a G u e r r ilh a a o So -c ia lis m o : a Re vo lu ç ã o C u b a n a (1979), Oq u e éRe vo lu ç ã o (1981), etc,
Recentemente, Solange Aguirre, da Secretaria de Educação de
Suza-no, em São Paulo, teve a gentileza de me relatar um episódio que ela
viven-ciou durante a campanha de Florestan a deputado federal pelo Partido dos
Trabalhadores. Depois de uma palestra em Santos, disse-me ela, retomavam
todos, ànoite, de carro, para São Paulo. Subindo a Serra do Mar, enfrentam uma neblina cerrada que não deixa enxergar um palmo adiante do nariz.
Pois Florestan sai do carro e, sozinho, assume a pé a dianteira, dizendo
"-Sigam-me!" E eu pensei nesses dois Florestans tão diferentes. O Florestan
afundando sob o peso da neve nas costas, que foi como seu corpo viveu o
fechamento do horizonte político do seu país, e esse último Florestan,
re-conciliado consigo mesmo, que assume a direção dessa caminhada lúdica e
utópica com seus companheiros. A neblina da serra antecede a luz do
ama-nhecer. Florestan estava possuído pela esperança; sabia que, quando o desejo
de liberdade dos oprimidos fizer uma aliança com o desejo de justiça dos
explorados, juntos, os dois estarão abrindo as portas para o socialismo.
NOTAS
DCBA
I Em 1964, quando a ditadura ainda estava em seus primórdios, casos como aquele
vivido pelo professor Warwick Estevarn Kerr e que me foi relatado pelo professor
Marco Antonio Villa, ainda hoje nos fazem rir. Em 1964, trabalhava em Rio Claro
e esteve preso junto com Florestan, este lhe contou que sua própria filha Myriam
Lúcia, com 7 anos na época, havia ficado muito triste com a sua prisáo,
diferente-mente da sua própria filha que, ao contrário, ficara muito orgulhosa. Floresran quis
saber o que explicava essa diferença de comportamento e Kerr contou que preparara
os filhos; no dia 2 de abril, reuniu todos eles e esclareceu que havia a possibilidade
" d o s h o m e n s d e b e m , d o s d e fe n so r e s d o s p o b r e s, d o s o p e r á r io s, d o s so c ia lista s, se r e m p r e so s e q u e , n e ste c a so , e le s d e ve r ia m fic a r o r g u lh o so s e n â o tr iste s, n e m e n ve r g o n h a d o s" . Kerr reconhece que talvez tenha exagerado; sua filha Jacira, que tinha 10 anos, assim que o
prenderam, reuniu as arnigunhas para contar, orgulhosa, a detenção do pai. Quando
o professor Altenfelder chegou em casa para almoçar, sua filha, que era amiga de
Jacira, veio perguntar, desiludida,
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" E o s e n h o r , a in d a n ã o fo i p r e s o ? " Mais tarde, jásob o terror, muitos, como eu, tiveram de explicar aos filhos crianças o significado
da palavra s u b ve r s ivo que aparecia nos cartazes distribuídos pela cidade. lndagada por
minha filha Ana, na época com oito anos, respondi que eram pessoas que defendiam
os pobres e os discriminados, como os índios, os negros, e dos quais o governo não
gostava. Assistindo uma aula da sua professora que discorria sobre a escravização
dos Índios no Brasil colonial, minha filha não teve dúvidas e logo foi perguntando,
radiante, à sua boquiaberta professora se ela também era subversiva! Fui chamada à
escola onde a professora relatou o ocorrido e eu precisei esclarecer minha filha que ela
não devia chamar as pessoas de " s u b ve r s iva s "em público.
Florestan escreveu " Tia g o M a r q u e s Aip o b u r e u : u m b o r o r o m a r g in a l': em 1945, como
trabalho de pós-graduação para o professor Herbert Baldus da Escola de Sociologia
e Política o qual, por sua vez, o entregou para publicação naRe vis ta d o Ar q u ivo M u
-n ic ip a l (São Paulo, 1946, voI.CVII). Maria Arminda Nascimento Arruda fez uma
bela e sensível análise das semelhanças e diferenças existentes nos percursos de Tiago
Marques e o próprio Florestan Fernandes (ARRUDA, 2001: 303-313).
" F lo r e sta n F e r n a n d e s é r e c o n h e c id o c o m o o p r in c ip a l a r q u ite to d a So c io lo g ia a c a d ê m ic a b r a s ile ir a ." (ARRUDA, 2001: 222).
4 Com a aposentadoria compulsória, proporcional ao tempo de serviço, Florestan
per-de uma parte substancial dos seus rendimentos, necessários para sustentar família
numerosa; ademais, o artigo 3 do ato institucional na 10 impede que exerça qualquer
outra atividade de ensino ou de pesquisa e tecnologia no país.
5 F o lh a d e S.P a u lo , 18 de setembro de 2005. A reportagem " M o r te d e b á ia s -fr ia s s e r ã o
in ve s tig a d a s " , publicada no mesmo jornal, no dia 28 de setembro de 2005, esclarece
que cada bóia-fria precisa dar 9.700 golpes de podão para conseguir cortar suas dez
toneladas de cana diárias.
No período que meu pai esteve no Canadá escrevíamo-nos semanalmente. Com seu
falecimento, rasguei a correspondência cuja leitura se me tornara tão dolorosa!
Feliz-mente, minha mãe, uma sábia mulher, soube preservar sua própria correspondência
das insanidades do luto. Recentemente, ela mesma me entregou essa sua
correspon-dência na expectativa que eu a utilizasse.
7 O psicanalista Manoel Berlinck, que foi assistente de Florestan e seu amigo, fez a
gentileza de ler uma primeira versão deste trabalho e foi ele que me disse ter lido a
carta de Florestan nessa equivalência: peso da neve/peso do seu país.
8 Eliane Veras transcreve a carta de Florestan endereçada à sua amiga, a socióloga
Bár-bara Freitag, em 17 de março de 1971.
9 Carta de 10 de dezembro de 1970, de Florestan para Bárbara Freitag.
10 Refiro-me àimplosâo do scholar para o qual a elaboração da Sociologia como ciência
começa pela questão da pesquisa e pela construção precisa dos procedimentos, passa
pelo rigor metodológico e conceitual e desemboca na formação de uma linguagem
sociológica de cunho pesadamente acadêmico, traços estes tão bem demarcados e
aprofundados por ARRUDA, 2001: 221-303.
11 Em 1977, de janeiro a abril, Florestan esteve trabalhando no Departamento de
So-ciologia da Universidade de Yale, em New Haven, e foi lá que recebeu um exemplar
do seuA So c io lo g ia n o Br a s il (carta a Myriam, 25 de fevereiro de 1977).
DCBA
É ainda deNew Haven que Florestan escreve ter lido o artigo no qual Carlos Guilherme Mora
faz a resenha do livro. Mostra-se " d e c e p c io n a d o c o m o fa to d e e le n ã o te r e n te n d id o p o r q u e q u a lific o a g e r a ç ã o d e 'p e r d id a ' (p e lo m e n o s o fr a g m e n to a q u e p e r te n ç o ). O P a u lo
[ Silu e ir a ]p o d e r ia d ize r a e le , s e n ã o p a r e c e e vid e n te , p o r q u e o n o s s o tr a b a lh o s e p e r d e u . D e le n ã o s o b r o u n a d a . A c o lo n iza ç ã o e xte r n a d a vid a in te le c tu a l b r a s ile ir a , a tr a vé s d a u n ive r s id a d e , n ã o s ó s e r e s ta b e le c e u , c o m o s e in s titu c io n a lizo u . H o je , fa ze r c a r r e ir a a í va i
ju n to c o m la va g e m d e c é r e b r o , a q u i o u a í. E le d e ve s a b e r d is s o , p o is e s tá tã o e m c o n ta c to c o m e s s a r e a lid a d e q u a n to e u . N ã o lu te i ta n to p a r a ve r e s s a r e g r e s s ã o . E , p a r a m im , o s e n tid o d o tr a b a lh o q u e p r e te n d ía m o s fa ze r s e p e r d e u .
DCBA
Op io r é q u e n ã o s e p e r c e b a p o r -q u e ... U m a r e g r e s s ã o n e o c o lo n ia l in s titu c io n a liza d a n a s d u a s p o n ta s , é u m a r e a lid a d e c o n c r e ta e p a lp á ve l. Se vo c ê m o s tr a r is to p a r a a H e lo ís a e o P a u lo , e le s p o d e r ã o e xp lic a r a o C a r lo s G u ilh e r m e o p o r q u e d o m e u títu lo . N ã o s e tr a ta a p e n a s d e u m 'e n d u r e c im e n to in te r n o : Tr a ta -s e , ta m b é m , d o fa to q u e o m a d e in Br a zil é d e te r m in a d o a p a r tir d e fo r a ,c o m in te n s id a d e q u e n ã o p o d e r e m o s c o n tr o la r d a d a s a s p r o p o r ç õ e s d o fe n ô m e n o " .
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(carta a Myriam, 25 de abril de 1977)12 Em poucas palavras, Florestan chegou ao Canadá, como ele mesmo disse, " s o c ió lo g o
e s o c ia lis ta "e saiu " s o c ia lis ta e s o c ió lo g o " .A inversão dos termos têm profundos efeitos
políticos e subjetivos. Como diriam os lacanianos, houve uma mudança de estilo e
bem sabemos que, para Lacan, o estilo é o homem.
1 3 Na " N o ta E xp lic a tiva " (d e 1974)aoA Re vo lu ç ã o Bu r g u e s a n o Br a s il, Florestan es-clarece o leitor que " n ã o p r o je ta va fa ze r o b r a d e 'So c io lo g ia a c a d ê m ic a ' (..) Tr a ta -s e d e u m e n s a io livr e , q u e n ã o p o d e r ia e s c r e ve r s e n ã o fo s s e s o c ió lo g o . M a s q u e p õ e e m p r im e ir o p la n o a s fr u s tr a ç õ e s e a s e s p e r a n ç a s d e u m s o c ia lis ta m ilita n te " (FERNANDES, 1975:
9-10)
14 Florestan discorre sobre o seu isolamento e, mesmo, " d e s a b a m e n to " , como ele diz, na
entrevista publicada pelaRe vis ta E s c r ita E n s a io , 1 9 8 0 .
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