• Nenhum resultado encontrado

A REPRESENTAÇÃO DO CORPO TRANSGÊNERO FEMININO NA FICÇÃO: UM OLHAR

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A REPRESENTAÇÃO DO CORPO TRANSGÊNERO FEMININO NA FICÇÃO: UM OLHAR"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

1

A REPRESENTAÇÃO DO CORPO TRANSGÊNERO FEMININO NA FICÇÃO : UM OLHAR SOBRE DUAS PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS

Maria Fernanda Mileski de Paula

1

Resumo: A intenção deste trabalho é provocar apontamentos sobre a produção cinematográfica com histórias referentes à vida de mulheres transgêneras, dialogando com os estudos realizados no campo da teoria queer, em suas origens e aplicação no contexto do cinema. Este é o passo inicial de uma pesquisa de mestrado que realizará (a partir de entrevistas com mulheres transgêneras) um estudo sobre a construção do corpo transgênero feminino, desfazendo possíveis confusões em relação ao tema e inserindo na ficção, que se enquadra como forma de discurso que pode, ou não, reiterar representações hegemônicas sobre as identidades de gênero. Por meio de acordos de similaridade, padrões de comportamentos e estéticos emergem como resquícios de modelos, reafirmando e subvertendo estereotipias. Assim, este trabalho busca analisar como os filmes Transamérica (2005) e Laurence para Sempre (2012) representam a transgeneridade feminina. Para isso, são elencados os trabalhos de Judith Butler, Berenice Bento, Guacira Lopes Louro, entre outros pesquisadores, como contribuição teórica para a investigação. O objetivo é discutir a visibilidade de pessoas trans no cinema e sua representatividade, se estão de forma alinhada com as demandas políticas e sociais.

Palavras-chave: Corpo. Gênero. Transgeneridade. Cinema. Representação.

Introdução

“Na contemporaneidade, o cinema, como tantas outras instâncias, pluraliza suas representações sobre a sexualidade e os gêneros” (LOURO, 2008, p. 94). No caso dos filmes Transamérica (Transamerica, 2005) e Laurence para sempre (Laurence Anyways, 2012), abrem possibilidade de levantar questões sobre a transgeneridade na perspectiva de mulheres transgêneras.

A produção cinematográfica independente Transamérica mostra a história de Bree Osbourne (interpretada por Felicity Huffman), uma mulher transgênera que descobre ter um filho, Toby (Kevin Zegers), que está preso em Nova York e à procura do pai. Dias antes de sua cirurgia de redesignação sexual, ela viaja para retirá-lo da prisão. O rapaz, a princípio, acredita que Bree é uma missionária cristã. Os dois vão juntos de volta para Los Angeles. O filme recebeu duas indicações ao Oscar.

Já o canadense Laurence para sempre tem foco na narrativa da transição de Laurence (interpretada por Melvil Poupaud), que revela ser uma mulher transgênera à namorada Fred (Suzanne Clément). A relação sofre uma reviravolta e o filme acompanha dez anos da vida dos personagens, que juntos ou separados enfrentam os preconceitos da sociedade.

1

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.

mileskimaria5@gmail.com.

(2)

2

Guacira Lopes Louro (2008, p. 87) chama atenção para essa condição do cinema, que participa do processo de multiplicação dos discursos sobre sexualidade e auxilia na visibilidade “das muitas formas de ser, de amar e de viver, embora se mantenham, de modo renovado, divisões, hierarquias, diferenciações”.

Essas divisões hierárquicas são visíveis, principalmente em relação à violência contra pessoas transgêneras. O Brasil ainda é um país difícil para se viver se a sua identidade de gênero não está em conformidade com os padrões de cisgeneridade. Os dados sobre violência nos apontam em primeiro lugar no ranking de assassinatos de transgêneros durante os últimos 10 anos. Isso se reflete na expectativa de vida dessa população, que marca a média dos 35 anos de idade segundo Benevides e Nogueira (2019), o que representa um número significativo diante da expectativa de vida da população brasileira, que é de 76 anos

2

.

Essa violência se reflete cotidianamente sobre mulheres transgêneras. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra)

3

, nos dez primeiros meses de 2020 absolutamente todas as 151 pessoas trans assassinadas expressavam o gênero feminino. O que chama atenção são os recorrentes casos, onde o ódio de acordo com o gênero se faz presente. “Muito pela falta de ações do estado que segue ignorando esses índices que vem sendo insistentemente divulgados e publicizado nos maiores veículos do país, e não implementou nenhuma medida de proteção junto a população LGBTI+” (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS, 2020).

Assim como uma personagem de um filme, que pode ser interpretada de diversas maneiras também a depender da atriz ou ator que a compõe, Judith Butler (2018) caracteriza a possibilidade do corpo generificado atuar seu papel dentro de um espaço corporal culturalmente restrito e dentro de limites pré-existentes. A representação dos corpos, por meio de produções cinematográficas, por exemplo, posiciona os sujeitos em práticas de significação e sistemas simbólicos. Os significados produzidos pelas representações permitem dar sentido às experiências e sugerir aos sujeitos as possibilidades de gêneros.

Para Kathryn Woodward (2000, p. 13), a representação como um processo cultural “estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? O que eu quero ser?”.

2 Dado divulgado na Tábua Completa de Mortalidade para o Brasil, do ano de 2018, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

3 Boletim N° 05/2020 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Disponível em:

https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/boletim-5-2020-assassinatos-antra.pdf

(3)

3

Ao buscar nas performances as relações com a vida e a construção das identidades (assim como, a invenção das realidades), “os discursos e sistemas de representação constroem lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar” (WOODWARD, 2000, p.13). Com base nos filmes, a discussão sobre a construção dos gêneros emerge. A partir das personagens principais, seus gestos, corpos, ações e técnicas corporais aparecem e por estes elementos performam

4

a realidade social.

O gênero é uma questão fundamental para entender a argumentação que se impõe neste artigo, justamente pelas produções cinematográficas serem um retrato das punições rigorosas de quem questiona ou sai do papel que lhe é dado. Segundo Butler (2018), gênero não está passivamente inscrito no corpo, muito menos é determinado pela natureza, pela língua, pelo domínio simbólico ou pela história do patriarcado. A filósofa pós-estruturalista nomeia o gênero como aquilo que se supõe diariamente, de forma incessante, com angústia e prazer.

Filmes sob o olhar da teoria queer

Os saberes e poderes hegemônicos que policiam sexualidades e gêneros têm suas origens de produção e reprodução nas instituições educacionais, médicas e jurídicas. E no meio social, as disciplinas normativas cristalizadas provocam tensões entre os indivíduos, principalmente em relação às mulheres transgêneras. Isto é perceptível no filme Transamérica, sobre os esquemas que cerceiam a vida de Bree: através da terapeuta que impõe condições para que a cirurgia da personagem aconteça, pelo vídeo que “ensina” como falar com tom de voz mais feminino, ou por meio da família que julga a identidade de gênero da mulher e a humilha. Todas as pessoas com quem a personagem se relaciona exercem alguma interferência na forma como ela vê a si mesma.

As figuras de gêneros estão no limiar entre o que pode ser visto e o invisível. Pode construir e reafirmar estereótipos, além de sofrer com o senso comum. Em Laurence para sempre, a primeira reação de não reconhecimento e preconceito surge primeiro por parte da namorada de Laurence, depois através da direção da escola em que trabalha, que a demite com a justificativa de que a

4 Por performativo, entende-se a capacidade do discurso de produzir aquilo que lhe é nomeado, enquanto que por

performático, é a dimensão mais incorporada atrelada à afetividade e que escapa ao discurso . Para Butler, a

performatividade é uma questão da manutenção dos atos que reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos.

SENKEVICS, Adriano. O conceito de gênero por Judith Butler: a questão da performatividade. Disponível em:

<https://www.geledes.org.br/o-conceito-de-genero-por-judith-butler-a-questao-da-performatividade/>

(4)

4

transexualidade era reconhecida como doença mental no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)

5

.

Para a socióloga Berenice Bento (2014, p. 51), a categoria de gêneros só é reconhecível, “só ganha vida e adquire inteligibilidade

6

, segundo as normas de gênero, em corpos-homens e corpos- mulheres. Ou seja, a reivindicação última das pessoas trans é pelo reconhecimento social de sua condição humana”. Desta forma, gênero é um processo de reconhecimento social, que também passa pelo olhar do outro, por vezes até acusatório.

Butler (2016) vai de encontro na questão da inteligibilidade para reforçar que a identidade de gênero se torna inteligível por meio da exigência de inexistência das identidades de gênero que não decorrem do sexo, assim como, das práticas de desejo que não sucedem nem do sexo e nem do gênero.

No filme Transamérica, aparece o fator do reconhecimento em uma das cenas que retrata o lugar marginal em que a sociedade coloca o corpo transgênero, como que em domínio público. Diante do reencontro com os pais, Bree ouve a pergunta se já teria feito a cirurgia de redesignação sexual.

Ao responder que esse assunto não seria da conta de ninguém, a mãe vai até a direção da personagem, apalpa a sua região genital e exclama “Graças a Deus ele ainda é homem!” e “Sabe o que eu vejo quando olho para você? Uma alma doente gritando por ajuda”.

Assim fica possível ilustrar como os corpos e os gêneros vivenciam ações de inteligibilidade.

Diariamente, os sujeitos passam por processos de adequação nas categorias. As ações dos corpos, mesmo que pareçam naturais ou originais, são adquiridas e definidas através de técnicas e um conjunto de simbologias. Essa compreensão permite entender, através de Butler (2016), que os gêneros são construções sociais e históricas:

Como em outros dramas sociais rituais, a ação do gênero requer uma performance repetida.

Essa repetição é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação. Embora existam corpos individuais que encenam essas significações estilizando-se em formas do gênero, essa "ação" é uma ação pública. Essas ações têm dimensões temporais e coletivas, e seu caráter público não deixa de ter consequências; na verdade a performance é realizada com o objetivo estratégico de manter o gênero em sua estrutura binária - um objetivo que não pode ser atribuído a um sujeito, devendo, ao invés disso, ser compreendido como fundador e consolidador do sujeito (BUTLER, 2016, p. 200).

5 É na década de 1980 que a transexualidade entra no catálogo de doenças do Manual de Diagnóstico e Estatístico dos

Transtornos Mentais (DSM). Atualmente, o DSM está na sua quinta edição, publicada em 2015. A transexualidade aparece de forma detalhada no capítulo denominado “Disforia de gênero”.

6 Judith Butler concede a questão da inteligibilidade em seu livro Problemas de gênero (2016), e esclarece que só

acontece quando pessoas adquirem seu gênero em conformidade com os padrões. “Gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles

que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática social e

desejo” (BUTLER, 2016, p. 43).

(5)

5

Butler (2016), portanto, entende que o gênero é constituído no tempo e espaço através da repetição dos atos. Seu efeito é produzido pela estilização do corpo. Gestos, movimentos e estilos corporais compõem a ilusão de um sujeito marcado de forma permanente pelo gênero. Sendo assim, entende-se que o gênero organiza performativamente a vida de cada pessoa, da mesma forma que suas experiências. Há de se considerar um ponto importante: a genitália, que é entendida externamente como indissociável ao gênero. É deste campo que surgem interpretações que envolvem ações punitivas para aqueles sujeitos desviantes. “A distinção de gênero faz parte da ‘humanização’ dos indivíduos dentro da cultura contemporânea; assim, quem não efetua a sua distinção de gênero de modo adequado é regularmente punido” (BUTLER, 2018, p. 6).

Nos filmes analisados por este artigo, esta questão aparece através da cena de Transamérica, em que uma criança pergunta à Bree: “você é menino ou menina?”. A personagem desestabilizada liga para a terapeuta em busca de ajuda. Em Laurence para sempre, uma atendente de um restaurante pergunta para Laurence se sua transição é por diversão: “Estávamos conversando na cozinha. Tem muita gente assim na rua, alguns são profissionais”, retornando à questão sobre domínio do corpo transgênero.

Esse é um exemplo do poder e violência que a linguagem pode exercer sobre os corpos de mulheres transgêneras e revela uma expectativa de patologização. As normas de gênero produzem o entendimento da existência de um sexo natural. Ou seja, a existência de uma verdadeira mulher, de um verdadeiro homem e de uma série de formas de atuações dos corpos e estereótipos sociais.

Segundo Butler (2018), isso produz estilos corporais que tomam forma de uma configuração natural de corpos diretamente em sexos, que existem numa relação binária uns com os outros.

Se os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado definem o gênero, a distinção entre sexo e gênero contribui na descontinuidade entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Sendo assim, não seria considerável a suposição de que a categoria “homens” se aplique somente a corpos masculinos e “mulheres” somente a corpos femininos. A binariedade dos gêneros cai por terra. Judith Butler (2020) ainda se refere a liberdade de gênero, como reivindicação política contra a discriminação e violência. Ela coloca que mulheres trans, assim como todas as pessoas que não se sentem à vontade com a designação que receberam ao nascer, ensinam todos os dias questões importantes sobre as restrições tradicionais de gênero.

Não existiria uma referência original ou natural para as performances de gênero. Aí se aplicam

as cenas anteriores descritas. Berenice Bento (2014, p. 60) explica que as normas de gênero atuam

referenciadas no corpo, sendo ele as composições: “corpo-vagina-mulher e corpo-pênis-homem. Aí

(6)

6

residiria a verdade dos gêneros e aqueles que constroem suas performances fora do referente biológico são interpretados como cópias mentirosas da mulher/homem de verdade”.

Esse referencial é o que explica a abordagem de um homem diante de Laurence em um bar, no filme Laurence para sempre. A personagem ouve que ela é “esquisitinha”, é ameaçada e agredida.

Este é um momento de tensão em que a feminilidade e masculinidade são colocadas. Para o homem, a existência de Laurence não foi suficiente para o respeito e reconhecimento como mulher. Exige-se que a declaração e o reconhecimento devam ser acompanhados de atos que não são inteiramente para si, mas também para o outro. Berenice Bento explica:

A produção da abjeção daquilo que a linguagem não alcança, está no momento em que há descontinuidade, onde não há relação social possível. Ai se instaura uma relação de abjeção onde o léxico acionado para definir o outro passa a ser “bicho esquisito”, “macho-fêmea”,

“aberração da natureza”, “monstruosidade” (BENTO, 2014, p.58).

Essa relação com o léxico também envolve o reconhecimento do nome social, que aparece nos longas através de personagens que se dirigem, tanto à Bree quanto à Laurence, com o pronome masculino ou o nome que consta em seu documento. Para contextualizar localmente no Brasil, foi em 2018 que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito de alteração de nome e gênero no documento de registro civil, independente da cirurgia de redesignação sexual.

Já foi aqui abordado que performar o gênero de maneira inadequada gera punições. Desta forma, segundo Judith Butler (2018), o gênero em conformidade com um modelo contradiz a fluidez performativa e serve para uma política social de regulação e controle. Essa regulação é sentida preferencialmente pelas mulheres transgêneras, que também sofrem diante de modos de representação. Este ponto pode ser percebido em uma cena marcante do filme Transamérica, em que o personagem Toby, após descobrir que Bree é uma mulher transgênera, a expõe e agride através de xingamentos como “aberração”. Woodward (2000), afirma que o corpo é um dos principais espaços envolvidos no estabelecimento das demarcações que definem quem somos. Também fundamenta a identidade, inclusive a identidade de gênero. Para a autora, “a forma como vivemos nossas identidades sexuais é mediada pelos significados culturais sobre a sexualidade que são produzidos por meio de sistemas dominantes de representação” (WOODWARD, 2000, p. 13).

As binaridades (como homem/mulher) não dão mais conta de exemplificar as possibilidades

de gênero e de sexualidades em que pessoas podem viver e se expressar. Guacira Lopes Louro (2008,

p. 87) afirma que os embaralhamentos desafiam classificações e as fronteiras são “constantemente,

atravessadas. Novas posições são nomeadas. Alguns não se contentam apenas em mudar de um

(7)

7

‘lugar’ para outro e escolhem viver na fronteira, numa espécie de entre-lugar”. Isto é perceptível no relacionamento de Laurence e Fred, bem explorado no longa Laurence para sempre.

Logo quando assume ser uma mulher transgênera, Laurence explica para a companheira que a questão não tem a ver com sua orientação sexual. Essa relação é interessante de se analisar em filmes, principalmente neste em questão, que coloca em cena uma personagem trans e lésbica. A discussão se relaciona com a desconstrução da heterossexualidade compulsória

7

e com o entendimento sobre identidade de gênero e orientação sexual. Segundo Jaqueline Gomes de Jesus (2012), gênero é a forma de se identificar e ser identificada. Já a orientação sexual diz respeito à atração afetivossexual. Uma dimensão não depende da outra e não há normas.

O padrão heteronormativo e normativo, que Judith Butler (2016) aborda, impõe que os corpos e os gêneros se comportem de forma a seguir o papel social atribuído. “Os gêneros distintos são parte do que ‘humaniza’ os indivíduos na cultura contemporânea; de fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero” (BUTLER, 2016, p. 199).

A heterossexualidade compulsória, que coloca as relações heterossexuais em detrimento das outras, regula o gênero numa relação binária em função dos sexos. Evidencia os mecanismos de opressão diante daqueles que desviam das imposições do discurso normativo. Sendo assim, a partir de Preciado (2014), o corpo se torna um arquivo orgânico da história, que se naturaliza diante daquilo que é definido como padrão ou é punido pela transgressão. Berenice Bento (2014, p. 53) faz uma contribuição nesse sentido, quando indica a radicalização da desnaturalização das identidades que

“apontará que as expressões de gênero, as sexualidades, as subjetividades só apresentam uma correspondência com o corpo quando é a heteronormatividade que orienta o olhar”.

Um olhar mais a fundo

Judith Butler (2016) entende que o gênero é uma identidade instituída no espaço externo por meio da repetição estilizada de atos e do corpo. Deve ser entendido como a forma pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais são marcados por um gênero (BUTLER, 2016, p. 200). Esta reiteração de atos é importante pois auxilia no reconhecimento dos processos sociais que influem no universo simbólico de cada gênero.

7 O conceito foi desenvolvido por Adrienne Rich (2010) e propõe pensar a heterossexualidade como instituição política

e norma reguladora. Para ela, a heterossexualidade também se coloca em sociedades masculinas e assegura modos de

exploração, colocando a feminilidade como subalterna.

(8)

8

Nos filmes que compõem este corpus de análise, as personagens principais são interpretadas por atrizes ou atores cis. Esta é uma questão importante a ser pontuada, pois a representação é um ponto de destaque. Segundo Berenice Bento (2014), o corpo é fabricado por tecnologias precisas e dá inteligibilidade aos gêneros. É a existência trans quem coloca sobre ele limites discursivos. Ou seja, a mulher transgênera vai realizar esta caminhada de construção de uma nova linguagem e novos códigos:

Uma razão para militar contra esse enquadramento é porque o ativismo trans está ligado ao ativismo queer e aos legados feministas que permanecem muito vivos hoje. O feminismo sempre esteve comprometido com a proposição de que os significados sociais do que é ser homem ou mulher ainda não foram estabelecidos. Contamos histórias sobre o que significava ser mulher em um determinado tempo e lugar e acompanhamos a transformação dessas categorias ao longo do tempo (BUTLER, 2020, não p.).

Ao considerar esta primeira questão, o gênero organiza performativamente a vida e as experiências de cada pessoa. Segundo as normas cisnormativas, a genitália é quem define o gênero.

Além disso, aparecem comportamentos e condutas fortemente construídos em torno da diferença entre os sexos. São os papéis sociais que modelam e impõem as aparências de naturalidade.

Na análise da construção das personagens Bree e Laurence, percebem-se vestígios de comportamento conectados às performances esperadas pelo sistema binário de gênero, do que é ser mulher e homem. A primeira questão aparente diz respeito a alguns padrões de feminilidade associados aos gestos mas, principalmente, às escolhas de estilo das personagens. Um dos exemplos vincula-se à paleta de cores da personagem Bree em Transamérica. O rosa e tons pastéis predominam no figurino, bem como no cenário (FIGURA 1). Como podemos ver nas imagens abaixo:

FIGURA 1: Personagem principal de Transamérica, Bree, em diferentes cenas que demonstram o padrão de cores.

(9)

9

Estas escolhas associam diretamente a personagem a modelos de feminilidade compostos pela ideia de delicadeza e suavidade, que marcam importante lugar na expressão do gênero feminino.

Estes detalhes induzem a compor o gênero como um "estilo corporal, um 'ato', por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, no qual 'performativo' sugere uma construção dramática e contingente do sentido" (BUTLER, 2016, p. 199).

A figura feminina que usa rosa, que cruza as pernas, que reclina o pulso, que coloca as mãos no cabelo (só para citar alguns atos performativos), mesmo que seja trans, não perturba completamente a hierarquia entre os gêneros, nem mesmo os estereótipos vinculados. Os modelos de feminilidade presentes nos filmes se referem ao imagético de uma figura de mulher.

Laurence para sempre tenta subverter essas questões no início do filme, quando coloca a personagem Laurence utilizando os recursos da maquiagem ou o uso de acessórios, mas também outras possibilidades na expressão do gênero feminino, como o cabelo curto. No entanto, ao longo da produção, feminino e masculino vão se entrelaçando, construindo figuras mais andróginas. Até que, ao final do filme, Laurence demonstra o que se vê em outros filmes: a mulher com as roupas coloridas, floridas e o cabelo longo (FIGURA 2).

FIGURA 2: Personagem principal de Laurence para sempre, Laurence, ao longo de sua transição entre início, meio e fim do filme.

Por meio da análise deste corpus, entende-se que as figuras de feminilidade aparecem na

maioria das cenas norteadas pelos ideais de um repertório simbólico binário. O que se percebe é que

(10)

10

esse modelo permanece na construção das personagens nos filmes, o que impede a inserção de outras possibilidades do ser trans, mulher ou homem:

Consideremos a interpelação médica que, apesar da emergência recente das ecografias, transforma uma criança, de um ser "neutro" em um "ele" ou em uma "ela": nessa nomeação, a garota torna-se uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do gênero. Mas esse tornar-se garota da garota não termina ali; pelo contrário, essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma (BUTLER

8

apud LOURO, 2013, p. 161).

Ou seja, os filmes não apresentam uma guinada não-binária, contracorrente do padrão cisnormativo e heteronormativo. Isso aparece também em cenas quando a discriminação é abordada.

Os filmes parecem querer demonstrar que a aparência mais próxima do ideal de feminilidade (ou masculinidade) fornece uma maior possibilidade de reintegração social. É só notar as cenas finais de Laurence para sempre, quando Laurence oferece entrevista para uma mulher que, anos atrás, escreveu um artigo sobre sua transição e a fez perder o emprego.

Outro ponto que requer um olhar mais crítico se refere à relação entre identidade de gênero e orientação sexual. Esta questão é amplamente abordada em Laurence para sempre. A personagem principal se coloca como mulher trans e se sente atraída por mulheres. No entanto, o filme peca no diálogo em que expõe e explica a atração afetivossexual de Laurence. Esse deslize é fundamental para compreender a forma com que alguns filmes apresentam e problematizam o gênero, seus compromissos com a didaticidade e seus engajamentos com uma discussão mais profunda.

Por fim, as figuras estereotipadas e binárias presentes nos filmes de forma geral atuam na valorização de comportamentos que favorecem determinados grupos. A recorrência de elementos que apresentam a feminilidade e masculinidade, também na representação da transgeneridade, contribuem no entendimento de que os gêneros são idealizados de forma “natural” numa estrutura binária. Para Berenice Bento (2014), histórias de existências trans interrompem uma sequência ou coerência daquilo que se supõe como natural, especificamente entre corpo, sexualidade e gênero. Bento ainda reflete que corpos trans “apontam os limites de eficácia das normas de gênero e abrem espaços para produção de fissuras que podem, potencialmente, transformar-se em contradiscursos e libertar o gênero do corpo-sexuado” (BENTO, 2014, p.64).

Neste contexto, os filmes com temática sobre a transgeneridade podem oferecer contornos delicados, didáticos e responsáveis. Isso porque, não é suficiente apenas tornar visível. Woodward

8 BUTLER, J. Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira. O corpo educado:

pedagogias da sexualidade. Trad. Tomaz Tadeu. BH: Autêntica, 2013.

(11)

11

(2000) afirma que uma política de identidade tem a sua importância por construir uma subversão de categorias biológicas e criar oposições binárias. Não há uma grande guinada não binária nas obras Transamérica e Laurence para sempre, mas apresentam as questões sobre as normas de gênero, sobre o corpo e existência de uma mulher transgênera. Como traduz Laurence, quando perguntada se sua transição é uma revolta, ela responde: “Não, é uma revolução”.

Referências

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Boletim N°5/2020. 2020. Não paginado. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/boletim-5-2020-

assassinatos-antra.pdf. Acesso em: 20 jan. 2021.

BENEVIDES, B. G; NOGUEIRA, S. N. B. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, Antra, IBTE, 2020.

BENTO, Berenice. O que pode uma teoria? Estudos transviados e a despatologização das identidades trans. Revista Florestan - Graduação em Ciências Sociais da UFSCar, São Carlos, v. 2, p. 46-66,

2014. Disponível em:

<http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/64/pdf_25> Acesso em: 20 jul. 2020.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução de:

AGUIAR, Renato. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Título Original: Gender Trouble – Feminism and the Subversion of Identity.

_____, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre a fenomenologia e teoria feminista. Tradução de: DIAS, J. P. Caderno de leituras, n.78, p. 1-16, 2018. Disponível em:

<https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2018/06/caderno_de_leituras_n.78-final.pdf> Acesso em: 25 set. 2020.

_____, Judith. Judith Butler: O feminismo radical trans-excludente, J.K Rowling e a “cultura do cancelamento”. [Entrevista cedida a Alona Ferber]. Tradução de: PEREIRA, A. K. New Statesman, 2020. Disponível em <https://medium.com/@allankardecpereira/judith-butler-feminismo-trans- excludente-j-k-rowling-e-a-cultura-do-cancelamento-1576d7572fe1> Acesso em: 29 set. 2020.

JESUS, J. G. de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília: Autor, 2012. Disponível em:

http://www.sertao.ufg.br/uploads/16/original_ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87

%C3%83O_TRANS.pdf?1334065989. Acesso em: 31 jan. 2021.

LAURENCE para sempre. Direção: Xavier Dolan. Canadá: Lyse Lafontaine, 2012. 1 filme (159

minutos), sonoro, legenda, colorido.

(12)

12

LOURO, G. L. Cinema e Sexualidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 81-98, jan./jun. 2008. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6688/4001>

Acesso em: 28 set. 2020.

_____, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Trad. Tomaz Tadeu. BH: Autêntica, 2013.

PRECIADO, Paul B (Beatriz). Manifesto Contrassexual. Tradução de: RIBEIRO, M. P. G. São Paulo: n-1 edições, 2014. Título original: Manifiesto contra-sexual.

RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas: estudos gays, gêneros e sexualidades, Natal, v. 4, n. 5, p. 17-44, jan./jun. 2010. Disponível em:

<https://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art01_rich.pdf> Acesso em: 27 set. 2020.

TRANSAMÉRICA. Direção: Duncan Tucker. Estados Unidos: Focus Filmes, 2004. 1 filme (103 minutos), sonoro, legenda, colorido.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: HALL, Stuart, WOODWARD, Kathryn, SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2014.

The representation of the female transgender body in fiction: a look at two film productions

Abstract: The intention of this work is to provoke notes about the film production with stories related to the life of transgender women, dialoguing with the studies in the field of queer theory, its origins and application in the cinematic context. This is the initial step of a master's research that will conduct (from interviews with transgender women) a study on the construction of the female transgender body, dispelling possible confusion about the theme and inserting in fiction, which fits as a form of discourse. which may or may not reiterate hegemonic representations of gender identities. Through similarity agreements, behavioral and aesthetic patterns emerge as remnants of models, reaffirming and subverting stereotypes. So, this paper seeks to analyze how the films Transamerica (2005) and Laurence Anyways (2012) represent female transgenderity. For this, we list the works of Judith Butler, Berenice Bento, Guacira Lopes Louro, among other researchers, as a theoretical contribution to the investigation. The objective is to discuss the visibility of trans people in the movies and their representativeness, if aligned with the political and social demands.

Keywords: Body. Gender.Transgenerity. Movie. Representation.

Referências

Documentos relacionados

• Capacitação e Transferência da metodologia do Sistema ISOR ® para atividades de Coaching e/ou Mentoring utilizando o método das 8 sessões;.. • Capacitação e Transferência

BONNEVILLE école Eteaux 3 ,bergeret marie caroline 16 4 12 16 48 ARGENT. EQUIPE 3 ,gay lancermin sophie

Este desafio nos exige uma nova postura frente às questões ambientais, significa tomar o meio ambiente como problema pedagógico, como práxis unificadora que favoreça

Foi apresentada, pelo Ademar, a documentação encaminhada pelo APL ao INMETRO, o qual argumentar sobre a PORTARIA Nº 398, DE 31 DE JULHO DE 2012 E SEU REGULAMENTO TÉCNICO

Neste trabalho avaliamos as respostas de duas espécies de aranhas errantes do gênero Ctenus às pistas químicas de presas e predadores e ao tipo de solo (arenoso ou

A Escala de Práticas Docentes para a Criatividade na Educação Superior foi originalmente construído por Alencar e Fleith (2004a), em três versões: uma a ser

O pressuposto teórico à desconstrução da paisagem, no caso da cidade de Altinópolis, define que os exemplares para essa análise, quer sejam eles materiais e/ou imateriais,

Se os fornecedores de ITCM usam versões dos codecs de G.711 ou de G.729 que são diferentes daqueles usados nesse exemplo, você deve estaticamente configurar moldes de perfil de QoS