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Museus, coleções, exposições e povos indígenas

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Academic year: 2018

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Lucia Hussak van Velthem

Doutora; Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, PA, Brasil; luciavelthem@museu-goeldi.br

Alegria Benchimol

Doutora; Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, PA, Brasil; alegria.benchimol@gmail.com

Resumo: Os estudos antropológicos, em suas tendências mais atuais,

começaram a se debruçar sobre a teoria museológica e as práticas conduzidas nos espaços museais, os quais são compreendidos como locais que carregam as marcas de produções específicas. Constata-se, assim, que nos museus etnográficos, a guarda ou exposição de suas coleções são efetivadas em territórios que produzem algumas dessas marcas, pois são características dessas instituições. O presente artigo aborda os vínculos que os museus de antropologia estabelecem com suas coleções etnográficas, nos espaços da reserva técnica e da exposição destacando alguns dos sentidos que os marcam e os definem. A metodologia utilizada foi a pesquisa documental e etnográfica.

Palavras-chave: Coleções etnográficas. Exposição. Museus. Patrimônio

cultural indígena do Rio Negro.

1 Introdução

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que passaram pela Europa e forneceram aos intelectuais da época informações sobre as rotas marítimas para os novos continentes (BURKE, 2003).

No início da Era Moderna, a ampliação dos horizontes alterou o sistema de conhecimento até então vigente, e estendendo-se para outras dimensões, nos quais o conhecimento era discutido, e também para as disciplinas ensinadas, os profissionais de atuação de cada área caracterizaram-se como praticantes de uma revolução científica (BURKE, 2003). Como resultado, houve uma proliferação de novos espaços de atuação, como museus, laboratórios, jardins botânicos, anfiteatros e observatórios que indicaram a quebra de monopólio do conhecimento por parte das universidades e academias.

Neste quadro, o surgimento dos museus no século XVIII permitiu institucionalizar a coleção e o ato de colecionar. Entretanto, a gênese desse procedimento vem de remotos tempos - os Gabinetes de Curiosidades – que se desenvolveram dos séculos XV ao XVII no Continente Europeu. Tais gabinetes visavam principalmente ao estudo de plantas, de minerais e de animais, com finalidade farmacêutica e medicinal, e antecedem o desenvolvimento das Ciências Naturais, ocorrido no século XVIII. Neste século, museus e universidades já indicavam que os acervos de colecionadores não eram apenas para serem conservados, mas também para serem pesquisados, expostos e acessíveis ao público, pois a difusão do saber aparece, nessa época, como uma responsabilidade do Estado.

No século XIX, os museus de história natural adquirem as formas e as funções que lhe serão próprias e assim passam a dedicar-se tanto à pesquisa sobre a natureza e suas leis, como à difusão da cultura científica e aos avanços científicos. Em meados do século XX, os museus de história natural solidificam os papéis social e científico ampliando a difusão das ideias e pesquisas produzidas pelos profissionais da instituição1.

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coletaram abundantemente: objetos materiais, espécimes zoológicos e botânicos, amostras minerais, além de elaborarem relatos descritivos e objetivos, nos quais a ciência se definia por uma abordagem universalista (LOPES, 2001). O destino desse colecionamento foram as instituições museais, nas quais as peças e os espécimes eram classificados e divulgados através da publicação de catálogos e de exposições.

No Brasil, essas instituições eram representadas pelos Museus de História Natural, criados no século XIX, a saber o Museu Nacional, o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Museu Paranaense. Objetos de procedência indígena constituíam, no século XIX, o fruto da coleta de pesquisadores e também de militares, missionários, seringalistas, comerciantes, agentes governamentais. Este colecionamento era condicionado e influenciado pelas estruturas predominantes nos contextos sociais em que se exerciam (VELTHEM, 2012), aspectos estes que as impregnam até os dias atuais.

Locais físicos do fazer científico, os museus de História Natural produzem conhecimento e suas inúmeras viagens- impregnadas do sentido da ordem e do urbano - vão produzir extensas coleções. Este aspecto constitui marcas indeléveis, enquanto uma característica própria destas instituições, como nos propõe Maria Margaret Lopes em seu artigo “Viajando pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia paleontológica”, datado de 2001. Tais

marcas evidenciam alguns tipos de relações estabelecidas entre os membros dos museus e da coletividade, e suas formas de ligação com a sociedade em geral. A autora (LOPES, 2011) salienta que os laboratórios das instituições museais são identificados pelos historiadores da ciência como representando os locais específicos da construção das ciências modernas, no passado e no presente e ressalta ainda que determinados aspectos da história da ciência, tradicionalmente negligenciados, se inscrevem, contudo, no mesmo quadro de temas que passaram para a ordem do dia através de um novo olhar: a localidade do fazer científico, o campo e o colecionismo, os coletores, os museus, a amplitude que os catálogos adicionam às coleções formadas.

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como locais que carregam “marcas indeléveis”, isto é produções particulares que

são representadas pelas conexões que essas instituições estabelecem com suas

coleções. No artigo mencionado (LOPES, 2011), tais “marcas” se conectam

sobretudo ao sentido da ordem, mas é possível acrescentar, sem grandes

dificuldades, outras expressões carregadas de sentidos, entre as quais “práticas rigorosamente controladas”.

Nesta perspectiva, lembramos que a palavra marca tem vários sentidos,

muitas das quais aplicáveis aos museus e ao seu estatuto. Desta forma, uma

marca é tanto uma “categoria” quanto uma “qualidade”, e representa também

um “sinal de reconhecimento” e uma “impressão que fica no espírito”, aspectos

estes que remetem às exposições, às coleções e ao colecionismo e por isso relacionados ao campo da Museologia.

O escopo deste artigo é abordar as possibilidades curatoriais que determinados museus aplicam às suas coleções e às relações que são engendradas por seu intermédio, ressaltando especialmente aquelas que são estabelecidas nos espaços específicos, destacando alguns dos sentidos que os marcam e os definem.

Vamos nos ater apenas a dois espaços de atuação particularmente fecundos: a guarda e a exposição de coleções, que são no contexto museal fortemente marcadas. Um desses é a reserva técnica, espaço tecnicamente estruturado para o recebimento, a guarda e a conservação de peças e de coleções. O outro é aquele em que ocorrem as exposições, e que representa um espaço de múltiplas intenções: apresentação, representação, confirmação, o qual é fortemente marcado pela impressão e efeitos que se deseja transmitir aos visitantes.

2 Antropologia, museus e coleções

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fértil para a implantação, desenvolvimento e consolidação desta disciplina na qualidade de ciência na medida em que para “[...] a antropologia em seus primórdios, estudar povos exóticos, pouco conhecidos, implicava em formar coleções de estudo antropológicos.” (ABREU, 2007, p. 141). Um fato

importante a ressaltar é que nas pesquisas praticadas, os indivíduos das

sociedades produtoras dos objetos coletados, não “[...] tinham voz e se

configuravam como ‘outros passivos’ de um discurso científico.” (ABREU,

2007, p. 142).

Neste período, o colecionismo é um tema particularmente relevante nos museus em que o fazer antropológico imprime suas marcas em vários domínios, tais como as que se voltam para o ordenamento e a categorização dos objetos coletados. Os vínculos de tais museus com as suas coleções produzem e reverberam especificidades, tais como a categorização comum e geral de

“etnográficas” e a sua inclusão em um sistema classificatório que agrupa coisas

diferentes entre si em categorias, muitas das vezes abstratas e sem um significado apreensível.

Deve ser ressaltado que uma coleção etnográfica constitui sempre o resultado direto de uma coleta, a qual é regida por vários desígnios e princípios que conferem sentidos de classificação, ordenação e de permanência (LOPES, 2010). O colecionismo do final do século XIX buscava evitar a perda de informações sobre as culturas dos povos indígenas, pois na época eram compreendidos como fadados à extinção. Essa coleta intensiva reproduzia em sua dinâmica tanto a história do contato entre índios e brancos, como a história da ciência antropológica e, em parte, a história do gosto estético vigente (RIBEIRO; VELTHEM, 1992).

Em meados do século XX, o diálogo entre a antropologia e o museu perde impulso. Os laços estabelecidos são enfraquecidos pela institucionalização das ciências sociais nas universidades e pela introdução de novos paradigmas na pesquisa antropológica, mas são novamente estreitados no final do mesmo século. Uma inovadora concepção vai fundamentar essa aproximação e, assim,

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museus, os quais passam a ouvir, além de curadores, documentalistas e pesquisadores, os próprios produtores dos objetos coletados, seja para montar exposições com esses objetos, seja para restaurá-los ou mesmo para documentá-los.

No Brasil, as coleções de objetos de cultura material dos povos indígenas

– antigas e recentes – estão invariavelmente associadas aos museus universitários instalados em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Goiânia, Uberlândia. Entretanto encontram-se coleções etnográficas também em museus estaduais e federais em Recife, Belém e Rio de Janeiro e, ainda, nos museus missionários de Campo Grande e Manaus. Nestas instituições, os artefatos indígenas podem submeter-se a modelos museográficos concebidos a partir de teorias antropológicas (GONÇALVES, 1995; GONÇALVES, 2007). Esse fato permite ilustrar as mudanças nos paradigmas teóricos ao longo da história da disciplina antropológica e, ao mesmo tempo, a aplicabilidade de tais paradigmas na organização de coleções, como sucedeu no Museu Paraense Emilio Goeldi, cuja Reserva Técnica foi estruturada e o acervo ordenado de acordo com as

“Áreas Culturais” como estabelecido pelo conhecido antropólogo Eduardo

Galvão na década de 1960 (VELTHEM et al., 2004).

As coleções etnográficas sinalizam, quase sempre, formas específicas de apreensão, que são mensuráveis a partir dos tratamentos aos quais são submetidas na instituição museu, que evidenciam diferentes escalas de valores. Assim, podem vir a ser desvalorizadas porque tais coleções não foram contextualizadas, ou então serem favoravelmente aquilatadas como científicas, porque seus componentes foram devidamente identificados, classificados, descritos, ilustrados, fotografados.

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espaços de atuação dos povos indígenas é necessário efetivar movimentos institucionais afirmativos no sentido de garantir a acessibilidade plena a suas coleções e, paralelamente, o reconhecimento dos saberes desses povos na gestão das mesmas coleções. É preciso, contudo, estar atento, pois as dinâmicas dos movimentos indígenas podem reverter estas disposições ao considerá-las insuficientes.

Os condicionantes que conferem um novo sentido às coleções etnográficas vão exigir das instituições museais a adaptação a uma nova realidade e também a uma operacionalidade diversa da usual. Isso implica no estabelecimento de inovadoras formas de relação com os povos indígenas o que vai se refletir na mudança das estruturas expositivas, na ampliação da acessibilidade, nas formas de preservação e documentação das coleções. Tais mudanças acarretam, entretanto, muitos desafios para os atores envolvidos, indígenas e técnicos de museus.

Os museus etnográficos que se voltam para esses novos paradigmas irão se constituir em fundamentais agentes na implantação de uma política favorável ao diálogo intercultural. Desta forma, não se limitariam exclusivamente aos aspectos puramente curatoriais de suas coleções, mas considerariam outras dimensões. Contribuiriam desta forma, para as demandas indígenas de valorização cultural na medida em que as coleções etnográficas se revestiriam de um novo papel, político e social, pois considerariam que as coleções possuem uma relação de continuidade com as culturas de origem (VELTHEM, 2012).

Neste sentido, os artefatos devem ser apreciados em estreita sintonia com os próprios critérios de afirmação identitária indígena. Estes estão relacionados com a memória e com o reconhecimento de uma conexão histórica com sociedades pré-coloniais. Não menos importante é o fato de se “[…]

identificarem como indígenas e se considerarem diferentes da sociedade nacional.” (BANIWA, 2006, p. 27). Outros sinais distintivos são as variadas e

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(OLIVEIRA FILHO, 1994; BANIWA, 2006). Tais aspectos também podem ser perceptíveis em seus objetos de cultura material, e assim estão presentes nas coleções etnográficas musealizadas.

O movimento sincronizador mencionado é absolutamente necessário nos dias atuais porque parte do princípio de que os museus antropológicos e também os históricos são chamados a cumprir um importante papel político e social, através da significação que impregna as suas coleções. Estes museus conservam e representam, por meio dos objetos musealizados, a riqueza das relações sociais e simbólicas de uma comunidade indígena específica e, assim, são por ela identificados e reconhecidos enquanto matrizes de importantes práticas e valores culturais (GRUPIONI, 2004). Este é o motivo porque os museus devem se empenhar em ações respeitosas e compromissadas que possibilitem que seus acervos sejam apropriados, conceitual e politicamente pelos povos indígenas engajados em processos de rememoração individual e comunitária (FEREIRA; KUKAWKA, 2011).

O que está em pauta na atualidade, no campo compreendido pelos museus e suas coleções é o estabelecimento de um necessário ir e vir entre pesquisadores, colecionadores, técnicos de museus e os interlocutores indígenas, os quais devem poder acessar o que foi dito, escrito, coletado, sobre eles e entre eles. Particularmente importantes são as iniciativas que visam ao desenvolvimento de parcerias com os povos indígenas na estruturação e na documentação dos patrimônios musealizados, e em outros processos, os quais envolvem novas conexões.

Essas novas conexões possuem forte repercussão no âmbito da museologia e, como fruto do crescente protagonismo dos povos indígenas no

cenário brasileiro, estimularam a criação dos ‘museus indígenas’. Procurando

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3 Exposições: intenções e efeitos

Há muitas formas de se definir uma exposição museal e uma delas explicita que uma exposição é um artefato que possui uma intenção e também um objetivo ou uma vontade de produzir um efeito (DAVALLON, 1999). Esses efeitos são, evidentemente, de muitas ordens: científicos, estéticos, políticos, institucionais. O artefato expositivo se fundamenta em suas intenções, que agregam e se expressam através de conceitos, e também de objetos materiais, de textos, de registros gráficos, fotográficos e audiovisuais, de recursos cenográficos. Como

os territórios das exposições museais são marcados pela “impressão que fica no

espírito”, pergunta-se, agora, quais seriam os efeitos que uma exposição deseja

produzir no público visitante? E, evidentemente, a outra face da mesma moeda, a saber quais são os efeitos a serem evitados em uma exposição?

Em muitos museus, a narrativa expositiva geralmente pressupõe que algo está sendo revelado e comunicado e que, independentemente do tipo, uma exposição deve proporcionar um aporte de prazer e de conhecimento (CHELINI; LOPES, 2008). Contudo, outro aspecto a ser destacado são as intenções e os efeitos que uma exposição pode suscitar no público visitante, as quais derivam de diferentes fatores.

Quando uma exposição se dedica a apresentar artefatos indígenas, a maior dificuldade reside no fato de que, nas cidades, as pessoas têm certo sentimento de estranheza ao se depararem com expressões patrimoniais que são formuladas segundo outros critérios e que se organizam através de materiais, de palavras, de usos, de hábitos, de mobilidades, de contextos completamente diversos dos habituais, uma vez que refletem os princípios das culturas indígenas que os produziu (VELTHEM, 2010). Quando levados a admirar tais

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artística nos espaços museais de sua própria sociedade, como seria o caso das pinturas de Cândido Portinari, um dos mais conhecidos artistas brasileiros.

Para se contornar esse problema, devem ser evitadas as generalizações, pois constituem o grande perigo das exposições em que se apresentam artefatos indígenas. Trata-se de um risco que é, na realidade, múltiplo, pois tais exposições podem transmitir uma noção genérica de índio, ao não considerar as especificidades das coletividades indígenas que se expressam por meio de suas produções. Por outro lado, ao apresentar apenas artefatos usualmente descritos

como ‘tradicionais’ a exposição não reflete a continuidade histórica dos povos

indígenas e as suas relações com a memória e as identidades.

Artefatos indígenas quando expostos em um museu são sempre acompanhados de informações sobre suas funções técnicas, econômicas, materiais constitutivos, o que leva o visitante a apreendê-lo, sobretudo, por meio dessas indicações que são de ordem material. Esta intenção interpretativa é restritiva porque esmaece a noção de que os objetos indígenas possuem qualidades estéticas dignas de serem apreciadas (PRICE, 1993). Outro aspecto deste mesmo problema é que o visitante de um museu pode se interessar e apreciar os objetos indígenas expostos, mas aceita, na maioria das vezes sem questionamentos, a regra que os classifica, o dispositivo que os enuncia, o discurso que os substantiva (VELTHEM, 2012). A responsabilidade institucional é, portanto, significativa porque incide diretamente sobre a mediação estabelecida no espaço expositivo e que se efetiva entre o visitante e o acervo que contempla e que busca apreender.

Visando a contornar esses problemas, a museografia expositiva de um museu deve atentar para os aspectos estéticos - materiais e imateriais - contidos nos artefatos. Alguns desses aspectos podem ser facilmente evidenciados, como aqueles que resultam em grafismos iconicamente identificados, presentes nos artefatos trançados. Outros precisam ser destacados, como os que estão

relacionados com o “saber fazer” tais como o tratamento conferido às matérias

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agregadas aos artefatos e são fundamentais para sua compreensão mais profunda.

Para ressaltar outros aspectos estéticos, uma exposição deve considerar a apresentação de peculiaridades de certos artefatos indígenas, que geralmente passam despercebidos. Desta forma, o desenho museográfico não deve separar objetos que adquirem sentido apenas quando estreitamente associados, pois neste caso, a valorização estética se concentra justamente na relação que é estabelecida através dessa associação (VELTHEM, 2012).

Deve ainda ser considerado que em uma exposição, os artefatos ameríndios apresentados geralmente conjugam os seus valores culturais intrínsecos e aqueles que são impostos pela instituição museu, aspecto que pode

desencadear um “sincretismo de valores” (SANSI-ROCA, 2005, p. 149). Essa

dinâmica possui estreitos vínculos com as sucessivas reinterpretações e reavaliações que incidem sobre os objetos etnográficos e que são perpetradas nos processos de incorporação e apresentação museal. Assim, entre outros aspectos, relacionados com a apresentação dos artefatos, a cenografia expositiva buscará não acarretar o apagamento das histórias particulares dos artefatos e de seus produtores e usuários. Ao contrário, deve atuar de modo a potencializar a interpretação conferida pelos dados etnográficos, uma vez que o visitante dificilmente reconhece diretamente o artefato que contempla, porque o mesmo está distanciado de seu universo cultural, como referido. Neste caso, a curadoria indígena insistiu na apresentação de objetos em contexto, através da reprodução de uma casa de forno, devidamente guarnecida de suas coleções de artefatos utilitários e também de objetos em sua individualidade o que permite ressaltar as matérias primas, o aspecto formal, os grafismos, o produtor.

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exercício não está completo, pois o cuidado com os diferentes aspectos da materialidade deve abandonar a comodidade do lugar comum para se transportar a outros espaços, para investigar outras possibilidades, para mergulhar em outros mundos. Se faz mister superar as necessárias, porém, por vezes, empobrecedoras descrições e contextualizações etnográficas. Finalmente, ao apuro das palavras e das imagens, pode ser reorganizado e reinterpretado o discurso expositivo para que os povos indígenas tenham a possibilidade de se exprimirem, se reconhecerem e de serem compreendidos pelos visitantes.

4 Uma exposição sobre patrimônio indígena no Rio Negro

Tomando-se um caso particular, a saber a organização de uma exposição no Museu da Amazônia (MUSA)2, cujos trabalhos iniciaram-se em 2015. Essa exposição é dedicada ao Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, e insere-se no contexto do Plano de Salvaguarda deste bem que foi registrado como Patrimônio Cultural Imaterial em 2010 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Neste caso concreto, a decisão de montagem de uma exposição alargou o caminho que conduz os povos indígenas do Rio Negro a novas conectividades, relacionadas com os espaços das instituições museais.

Entende-se por sistema agrícola um conjunto de saberes, práticas, produtos, técnicas, objetos, comidas e outras manifestações associadas que envolvem espaços manejados e plantas cultivadas, formas de transformação dos produtos agrícolas e dos sistemas alimentares (VELTHEM; EMPERAIRE, 2016, p. 13).

Este não constitui, entretanto, um fato inusitado pois há mais de uma década os povos ameríndios têm frequentado, no Brasil, os museus e suas reservas técnicas nas quais acessam coleções e colaboram em exposições. Ademais, como um dos resultados do protagonismo indígena, foram criados, em várias regiões do país, os museus indígenas, que constituem espaços de interlocução e de valorização cultural dos povos envolvidos.

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incorporar a participação de pessoas indígenas em todas as fases da sua estruturação e montagem. Assim, foi estabelecido um grupo de curadores indígenas, pertencentes aos povos Pira-Tapuya, Baré, Tukano e Baniwa, moradores da cidade de Santa Isabel do Rio Negro, e em duas comunidades - Cartuxo e Acariquara– que são ativistas do movimento indígena e especialistas das culturas indígenas. Em todo o processo, essa curadoria indígena atuou através de indicações, decisões, escolhas e determinações. A esses atores somaram-se outros, da mesma região, que participaram de oficinas realizadas em 2015, nas quais elaboraram textos e desenhos e gravaram depoimentos e que foram utilizados posteriormente na exposição e no catálogo.

Em Santa Isabel do Rio Negro e depois em Manaus foram realizadas reuniões e discussões, sempre com a participação dos membros da curadoria indígena, que conduziram para o estabelecimento do conceito da exposição. Os debates permitiram formular a ideia central A própria síntese da exposição se conecta à diversidade: dos saberes, das memórias, das relações, das línguas

faladas, dos mitos, dos espaços e caminhos, das técnicas e processos de manejo e cultivo, de plantas cultivadas, dos artefatos, dos grafismos, das comidas e bebidas, das técnicas de produção, das formas de aprendizado.

Nesta perspectiva, a exposição se fundamenta em conceitos e interpretações e descreveu os temas selecionados através de registros gráficos, fotográficos, áudio visuais e imagens, de objetos materiais e de textos, de recursos cenográficos. Estes elementos descrevem as etapas de confecção de uma roça, os processos de confecção e utilização de objetos na casa de forno, a produção de alimentos. Entretanto, esses recursos não acarretam uma experiência completa, pois se pergunta como o visitante terá acesso ao universo imaterial indígena, como poderá apreender os sentidos simbólicos dos processos que cercam um artefato, um cultivar, uma comida e que se traduzem em gestos, odores, falas, classificações e saberes associados?

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recolhido revela uma concepção particular de colecionamento museológico, pois fortemente influenciado pelas redes sociais ativadas para sua execução.

Os objetos coletados destacam não apenas o repertório empregado, mas outros aspectos que foram considerados relevantes pela curadoria indígena. Assim, de cada tipo de artefato foi coletado um número expressivo de exemplares com o objetivo de identificar os usos especializados, as diversas técnicas de confecção, os tamanhos diferenciados. O público visitante da exposição não terá dúvidas a respeito dos complexos saberes e conhecimentos dos povos indígenas do médio Rio Negro sobre o sistema agrícola tradicional3.

Esta complexidade se evidenciou na concretização da “casa de forno”

que constitui, ao lado da roça, no mais significativo dos espaços relacionados com o este sistema. Neste caso, a curadoria participativa optou, não por uma estrutura cenográfica, mas sim pela reconstrução integral desta casa de forno, observando os mínimos detalhes da sua arquitetura e guarnecendo-a com todos os utensílios necessários para o processamento da mandioca em farinha e outros alimentos.

5 Museus, exposições e efeitos políticos: notas conclusivas

Como apresentamos neste artigo, a exposição no Museu da Amazônia possibilitou a produção de efeitos de variadas ordens. Uns foram propriamente institucionais, mas outros corresponderam aos pretendidos pela curadoria participativa, e se caracterizaram por serem prioritariamente políticos. Neste sentido, a visibilidade proporcionada pela exposição foi considerada por essa curadoria como uma oportunidade para a apresentação e a divulgação da atuação do movimento de base política em que estão engajados, o qual se estrutura e se concretiza através das suas associações4.

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Além de atividades expositivas, os novos desafios que envolvem os povos indígenas e os museus estão relacionados aos acervos de objetos manufaturados que estes abrigam, os quais estão sendo cada vez mais apropriados por esses povos. Quando a oportunidade se apresenta, em levantamentos nas reservas técnicas, em trabalhos curatoriais, em visitas a exposições, as pessoas indígenas não qualificam os objetos musealizados exclusivamente a partir do seu enquadramento nos contextos culturais originários. Tais objetos são antes apreendidos e classificados de acordo com significantes culturais mais amplos, conectados aos processos históricos, o que permite aos povos indígenas uma apropriação desses objetos enquanto instrumentos de afirmação e de atuação política, no contexto atual de comunicação com a sociedade nacional e nas projeções para o futuro. Esse movimento está intimamente conectado à noção atual de patrimônio cultural e ao fato de que a gestão das identidades ameríndias está cada vez mais politizada. (VELTHEM et al, 2017).

Como avaliar a participação dos curadores indígenas do Rio Negro no processo de concepção e montagem de uma exposição, como descrito nesse artigo? Segundo os participantes da curadoria indígena, a concepção, preparação e montagem da exposição sobre o sistema agrícola tradicional do Rio Negro representou uma conquista de cada um deles em particular, assim como para o movimento indígena da região do médio Rio Negro. Consideraram, justamente, que o patrimônio cultural - o sistema agrícola – que é enfocado e difundido através da exposição representa uma possibilidade de reconhecimento de uma especificidade, o fato de serem detentores deste bem patrimonial. Desta forma, constitui um recurso, tanto nas demandas de políticas da diferença, como também para uma distribuição equitativa de seus benefícios (GALLOIS, 2005; CARNEIRO DA CUNHA, 2012), o que também é válido para outros povos indígenas que tiveram seus bens patrimonializados. Nessas disposições, os patrimônios culturais se tornam instrumentos de requalificação de relações, até então assimétricas, para bases que consideram e respeitam as singularidades dos povos indígenas.

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difusão do sistema agrícola tradicional, através de uma exposição que o descreve e o valoriza constitui em um meio efetivo para auxiliá-los na gestão desse patrimônio, abrindo caminhos para o aprimoramento de sua salvaguarda, conduzida pelo IPHAN- MinC. Ademais, a mostra, ao enfatizar o significativo valor patrimonial deste sistema agrícola, auxilia nas reflexões que possam assegurar a continuidade desses sistemas e a construção de políticas públicas diferenciadas que sustentam suas dinâmicas no Rio Negro e em outras regiões do Brasil.

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beijus: o sistema agrícola tradicional do Rio Negro. Patrimônio Cultural do

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VELTHEM, Lucia Hussak van, KUKAWKA, Katia, JOANY, Lydie. Patrimônios ameríndios, museus e museus da Amazônia em rede. Boletim do

Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciência Humanas, Belém, v. 12, n. 3, p.

735-748, set./out. 2017.

Museums, collections, exhibitions and indigenous people

Abstract: Anthropological studies, in their most current tendencies, began to

(19)

documentary and ethnographic research.

Keywords:Ethnographic collections. Museums. Exhibition. Indigenous cultural

heritage of Rio Negro.

Recibo: 11/12/2017 Aceito: 19/12/2018

1 Conforme em Pinna (1999), referências pormenorizadas sobre essas questões.

2 Criado 2009, o MUSA ocupa 100 hectares da Reserva Florestal Adolpho Ducke, em Manaus,

estado do Amazonas. Este espaço associa exposições museográficos a atividades de um jardim botânico. Constitui, ademais, um observatório sensível das culturas dos povos da floresta e assim estabeleceu uma contínua interlocução com os povos indígenas do Rio Negro e suas associações (museudaamazonia.org.br)

3 Como as pesquisas do programa Populações, Agrobiodiversidade, Comunidades Tradicionais

na Amazônia (PACTA) ressaltaram, o que também é confirmado nas páginas do dossiê elaborado para o registro do sistema agrícola tradicional do Rio Negro.

4 Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Associação das Comunidades

Referências

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b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

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