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CAMINHAR, PARAR E MORRER DE FRENTE AO MAR

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Academic year: 2021

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CAMINHAR, PARAR E MORRER DE FRENTE AO MAR

VERA MAGIANO HAZAN1 ADALTON DA MOTTA MENDONÇA2

RESUMO

O ensaio apresenta o difícil ato de caminhar pela alteridade nos passos e nos laços que nos unem enquanto seres humanos. Nele, descrevemos, simultaneamente, o caminho e o caminhante, a alegria e o sofrimento, a sociedade e o ser social que nela habita. Francesco Careri em seu livro “Walkscapes” (2013) apresenta o caminhar como prática estética, mas atualizamos e discutimos com o atual livro "Caminhar e Parar" (2017), onde o autor eleva o ato de caminhar à categoria etnográfica. Caminhar como instrumento de criação, comparação e transformação do espaço físico, mas também do interior do leitor. Trata-se de um ensaio pleno de possibilidades, afetos e memórias coletivas. Falamos também dos imigrantes em várias cidades e introduzimos a pausa e a contestação sobre a política do refúgio e a falta de abrigos nas cidades; discutimos o universo da ética de um mundo que beira um caos migratório e a impossibilidade objetiva de ser nômade num mundo cada vez mais alimentado pelo ódio ao Outro.

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. E-mail:

verahzn@gmail.com

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Habitar a rua e viver a cidade

Nos últimos anos, em função das inúmeras guerras e crises políticas, econômicas e sociais proporcionadas pelo processo de globalização, os fluxos migratórios têm se intensificado não somente em direção aos países europeus, como também à América Latina, principalmente ao Brasil e à Argentina. Essas migrações em massa têm provocado situações bastante complexas não só junto às fronteiras como nas grandes cidades.

Há aqueles que se deslocam por opção e os que vivem um deslocamento forçado por guerras, desastres ambientais, perseguição religiosa ou política, crise sócioeconômica, etc, e buscam mais do que um novo lugar para morar. A pesquisa “Habitar a rua e viver a cidade” surgiu das angústias de quem observa esses processos e vê a multiplicação da informalidade e falta de infraestrutura nas cidades para abrigar dignamente todas essas pessoas. Somam-se a esses imigrantes das mais diversas procedências, culturas e línguas os excluídos internos, que também não encontram a cidade como um abrigo, e muitas vezes caminham a esmo, sem ter onde parar.

Assim como (Piketty, 2014: 7) pretendemos nos distinguir dos economistas burgueses e dos socialistas utópicos por não nos contentamos em denunciar o crescimento da miséria em números e em depoimentos, mas nos aventurando na discussão dos processos de apropriação da cidade a partir dos grupos que vivem a rua no seu cotidiano.

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alternativa de refúgio para imigrantes oriundos da Bolívia, Colômbia, Venezuela, Haiti, China, Nigéria, Angola, Congo, Ucrânia, Afeganistão, Síria, entre outros.

Em outros tempos, e até recentemente, quando a Europa vivenciava uma grave crise econômica, profissionais de nível superior oriundos do bloco europeu procuravam as grandes cidades brasileiras como novas alternativas de mercado de trabalho. Segundo aponta Jessé de Souza (2017), a nossa “elite” incentivava esse tipo de migração, imaginando que ela poderia trazer novas tecnologias, conhecimento e desenvolvimento para o país.

Nos últimos anos, entretanto, em função da crise política que o Brasil vem enfrentando, os pedidos de refúgio e vistos de migração têm sido solicitados por aqueles que têm dificuldade de entrar nos países europeus. Muitos deles, inclusive, vêem o Brasil como uma etapa intermediária até que tenham condições de retornar aos seus países ou obter recursos para ingressar na Europa ou nos Estados Unidos, onde imaginam encontrar mais oportunidades de trabalho e amparo social para suas famílias. Há profissionais de nível superior, como nos casos de muitos sírios, congoleses e venezuelanos, mas há também trabalhadores sem formação específica, que talvez tenham mais facilidade de encontrar um novo ofício na informalidade.

Ainda que o Brasil não ofereça as melhores perspectivas para esses imigrantes, em 2017 e 2018 houve um aumento expressivo do número de solicitações de refúgio e acolhimento no país. Muito fragilizados por todo esse processo, precisam das cidades das fronteiras para entrar no país e encontrar o apoio necessário. Algumas cidades, como Boa Vista e Paracaima em Roraima, na fronteira com a Venezuela, têm sofrido muito com essa migração. Em pouco tempo tiveram que lidar com o grande número de refugiados abrigados precariamente em suas praças, sem qualquer infraestrutura de apoio e serviços básicos de saúde e higiene, proliferando doenças já erradicadas no país. A governadora de Roraima solicitou, inclusive, o fechamento da fronteira, o que felizmente foi negado pelo governo federal, uma vez que isso poderia culminar em uma crise humanitária ainda mais grave.

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documentos para transitar pelo país, há um tempo, e esse tempo às vezes é longo. A vantagem do exílio no Brasil é que, diferentemente de outros países, a livre circulação dos refugiados é permitida. A política de acolhimento prega a interação social, cultural e econômica entre estrangeiros e população local ao invés de pregar um confinamento obrigatório em campos de refugiados, como em alguns países.

Na Europa, há situações bastante diferentes. Desde janeiro, mais de vinte mil refugiados chegaram somente à Espanha pelo mar mediterrâneo. São cerca de 400 homens, mulheres e crianças por dia, que apesar da precariedade do refúgio e da dificuldade de integração social e cultural, ainda se submetem à longa jornada atrás de alguma esperança. Enquanto Espanha e Portugal, com governos socialistas recentes, tentam abrigar esses imigrantes, os Estados Unidos e outros países europeus criam regras ainda mais rígidas contra a imigração, e projetam campos e abrigos para refugiados que muito lembram campos de concentração. Arquitetos do

establishment seguem as ordens de seus contratantes, e deixam de lado a possibilidade de

projetar espaços para vivências mais humanas e maior integração entre estrangeiros e população local.

Há campos tão grandes que parecem verdadeiras cidades de porte médio, mas com infraestrutura precária por se localizarem em áreas afastadas. Há, também, abrigos em áreas periféricas das cidades, que funcionam como hospedarias de controle, já que o acesso à cidade é restrito, e alguns imigrantes levam anos para conseguir o visto e a suposta liberdade para transitar pela cidade. Essa política de imigração testa ao limite a capacidade de sobrevivência e persistência dos solicitantes de visto. Ela expõe, também, a exclusão social e racial nos países com maior desenvolvimento econômico.

Recentemente, acompanhamos a separação das famílias nos Estados Unidos, que criou um

imbróglio internacional ao levar crianças pequenas, a maioria sem qualquer domínio da língua

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Esses abrigos são frutos de políticas de extrema exclusão, que mostram uma postura de intolerância incompatível com o momento em que vivemos.

Ao mesmo tempo em que vemos situações como essas, assistimos em paralelo aos acampamentos ao longo do rio Sena em Paris e à ocupação das calçadas em Los Angeles, que mostram atos de resistência e reafirmam a urgência de um plano de inclusão daqueles que não conseguiram se inserir no processo de globalização. No caso de Paris, a maior parte é formada por imigrantes, muitos deles ainda em situação ilegal. Em Los Angeles, há uma boa parcela de imigrantes, mas há também norte-americanos que fazem parte da grande população de sem-teto nos Estados Unidos. Segundo artigo publicado em 16/04/2018 na revista Exame, o número de pessoas vivendo na rua ou em albergues na cidade aumentou cerca de 75% nos últimos seis anos, passando de 32.000 para quase 58.000 em 2018, refletindo a falta de uma política social que envolva a provisão habitacional e a criação de empregos.

As imagens encontradas facilmente na internet mostram a gravidade da situação e o quanto as cidades estão despreparadas para isso. As calçadas estreitas mal acolhem as milhares de cabanas de camping, e ainda fazem os pedestres andarem no meio das vias de veículos. São muitas ruas, ciclovias, praças e estradas ocupadas por famílias e indivíduos que se viram na informalidade. Uma parte está nas ruas por conta de envolvimento com drogas e bebidas, mas a maioria perdeu seu emprego, e por conseguinte sua casa. Se a política social nos Estados Unidos é falha inclusive para seus cidadãos, em relação aos imigrantes ela é ainda pior.

No Brasil, a Cáritas, junto com a ACNUR e as Cátedras Sergio Vieira de Mello, abertas junto a instituições públicas e universidades, têm tentado minimizar os problemas desses imigrantes, especialmente com programas de assistência social e jurídica, geração de renda, ensino da língua portuguesa, inclusão das crianças em escolas municipais etc. A questão da moradia é um problema recorrente, uma vez que não há abrigos e hotéis de trânsito suficientes. Em São Paulo, há três abrigos específicos para esse público. Segundo Aguiar e Alves3 (2016, pág.61), a maior parte dos refugiados no Rio de Janeiro reside em áreas de risco ou em situações precárias, como

3 Aline Maria Thuller de Aguiar e Debora Marques Alves, assistentes sociais da Cáritas do Rio de Janeiro, em

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as favelas, em função dos valores e informalidade dos contratos de aluguel, pois não há abrigos específicos para essa população, e nas poucas unidades existentes eles concorrem com pessoas em situação de rua e usuários de drogas.

Segundo Carolina Moulin (2017)4, “uma chave fundamental desses processos se encontra na interseção entre o exercício da cidadania e a capacidade de autossuficiência material – particularmente afeta à incorporação laboral”. Através do trabalho e da capacidade de comunicação, há maior interação e respeito. Para Charly Kongo5 (2017), “diferentemente do que acontece em países com democracias mais antigas e avançadas, aqui podemos trabalhar. Desde o momento em que somos aceitos como solicitantes de refúgio, a Lei brasileira nos permite trabalhar. “Ainda segundo o congolês, “à primeira vista, ninguém é capaz de distinguir um refugiado de um brasileiro. É isso que faz do Brasil uma grande nação. (...) Mas, basta que nos ouçam, que vejam nossos documentos que descubram de onde viemos, e então as coisas mudam. As diferenças aparecem (...) Só pelo fato de sermos africanos, somos considerados analfabetos. Pensam que não temos cultura, que não temos formação, que somos ignorantes.”

Segundo os imigrantes Leonardo Ruge e Ninibe Forero, (Moulin, 2017): “a nossa conclusão final sobre esta longa e confusa história de migração é que o Rio é o zoológico que nos acolheu. (...) nós somos uma família que não se sente em seu habitat natural, que faz parte da paisagem e da realidade”. Já para Agossou Lucien Ahouangan6 (idem, 2017), em artigo na mesma revista, “é bem difícil começar uma nova vida em um lugar tendo tanto a língua como a cultura como barreiras. (...). Às vezes tive que enfrentar os comportamentos preconceituosos de pessoas, seja na rua, no ônibus, no metrô ou nos restaurantes. Acho que isso é o cotidiano também do brasileiro, não só dos estrangeiros. As pessoas sofrem preconceito por serem mulheres, negros, chineses, estrangeiros, homossexuais; faz parte, infelizmente, da sociedade atual.”

4 Carolina Moulin, professora adjunta do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e coordenadora CSVM

da universidade na apresentação da revista “A Presença do Migrante no Rio de Janeiro – O Olhar do Imigrante e do Refugiado”, editada pela Associação Scalabrini a Serviço dos Imigrantes, dezembro de 2017.

5 Charly Kongo é refugiado a República Democrática do Congo, e deu depoimento à mesma revista que Carolina

Moulin.

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Como disse Ahouangan, a vulnerabilidade dos refugiados em alguns momentos se parece com a das pessoas em situação de rua, mas os brasileiros em geral se mostram mais acolhedores e solidários em relação aos imigrantes, ainda que exista preconceito, sobretudo em relação aos africanos. As politicas de acolhimento de refugiados parecem ser muito mais estruturadas do que o atendimento à população local em situação de rua. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, a Prefeitura do Rio dispõe de 38 abrigos próprios, 22 conveniados e dois ‘hotéis acolhedores’, somando um total de 2.177 vagas disponíveis.

Além desse número ser insuficiente para atender aos cerca de 15 mil indivíduos cadastrados pela Secretaria, a maior parte localiza-se em áreas distantes e de difícil mobilidade, dificultando o acesso dessas pessoas ao mercado de trabalho. Em função disso, muitos usam as ruas e praças como abrigos. Em 2013, a cidade do Rio de Janeiro tinha cerca de seis mil moradores de rua, e já no fim de 2016 esse número chegou a 14.279, resultando em um aumento de 156% no período.7 Com o agravamento da crise e aumento do desemprego, esse número aumentou novamente em 2018, juntamente com a economia informal. A falta de uma política habitacional capaz de lidar com os atuais desafios tem provocado a construção de barracos em áreas de risco, invasão de imóveis fechados e ocupação de espaços residuais como baixios de viadutos, margens da linha férrea, praças subutilizadas etc.

Uma rede de solidariedade apoia essas pessoas através de projetos sociais como a distribuição de refeições, geralmente realizada por grupos religiosos. A maior parte acontece em bairros próximos do Centro, onde muitos dormem sob as marquises da Av. Presidente Vargas para ficar perto do trabalho e economizar no transporte. (SMASDH, 2017). Há, também, iniciativas como restaurantes populares criados durante o governo de Anthony Garotinho, e projetos como o Gastromotiva, uma organização social que desde 2013 busca transformar a vida das pessoas em situação de rua do Rio de Janeiro através da comida, seja fornecendo refeições, seja formando novos profissionais na área da gastronomia. O projeto se localiza no bairro da Lapa, centro do Rio, em local de fácil acesso àqueles que habitam ou trabalham na área central.

7 Fonte:

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Ainda que existam programas de assistência social e uma grande rede de solidariedade, com organizações que fornecem alimentação, agasalhos e amparo às pessoas em situação de rua, a ocupação livre e desorganizada de grupos incomoda, principalmente em áreas nobres e comerciais. Isso não se restringe à ocupação dos moradores de rua. Em função dos problemas sociais e econômicos atuais, há cada vez um número maior de pessoas trabalhando nas ruas e ocupando os espaços da cidade. São trabalhadores informais que transitam e permanecem em pontos de maior circulação, por um lado atribuindo maior vitalidade aos espaços públicos, mas por outro ocupando calçadas destinadas a pedestres e praças projetadas para o lazer e encontro de moradores.

Muitos criticam essa ocupação dos espaços públicos da cidade, mas a população de uma forma geral tenta apoiar esses trabalhadores, comprando suas mercadorias e respeitando seus “pontos de venda”. Há refugiados vendendo quibes e esfihas, famílias vendendo doces, “camelôs” com suas tradicionais mercadorias chinesas até empreendedores de classe média organizados em barraquinhas em eventos. A crise afetou a população de uma forma geral, e o crescimento da pobreza e o desalento nas ruas se tornou facilmente perceptível.

O crescimento da pobreza e o desalento nas ruas

“Se você é pobre, as portas se fecham e isso vira um ciclo”, diz um desempregado que teve três filhos internados por desnutrição. A visão cíclica, antes relacionada à pobreza, agora também pode ser relacionada a determinados grupos de imigrantes. A polícia do Estado do Rio de Janeiro resgatou quatro haitianos que realizavam trabalho em situação análoga ao trabalho escravo em uma construção civil.8 Enquanto isso, na Rua Uruguaiana, no centro da cidade do Rio de janeiro, dezenas de bolivianos e peruanos trabalham de forma precária em confecções. Segundo Silva & Gutierrez (2013) com a diminuição do contato com a família, com as

8 Policia resgata quatro haitianos que realizavam trabalho escravo em Rio das Pedras. 29 Junho de 2018.

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atividades anteriores e a criação de novos vínculos, habitar e trabalhar na rua implicam a exposição à violência e à criminalidade, além da diminuição da expectativa de vida. Torna-se necessário incentivar redes de solidariedade e novas estratégias de sobrevivência na cidade. Saber manipular a invisibilidade e a vulnerabilidade social constitui agora um novo mapa para a existência na cidade. Enfim, a normalidade do mundo torna-se uma falsidade. (Pereira, 2012).

Nesse sentido, quando se pergunta como é o habitar e trabalhar na rua, percebe-se a tristeza do indivíduo quanto à sua condição, onde é comum a depressão, alcoolismo, drogadição no universo dos entrevistados. Na maioria das vezes, nota-se o ato de conviver com os riscos, sofrer algum tipo de violência ou ser acolhido “pelo pessoal do Programa Segurança presente” do Governo do Estado em parceria do Sistema Fecomércio-RJ. Há uma mudança na percepção sobre a cidade, um novo locus de medo.

Diferente da casa, a rua não é interpretada como local para morar. Quem opta por habitar a rua, e não um dos mais de trinta equipamentos sociais de acolhida, tem que criar uma série de discursos e estratégias para “escapar do programa” e permanecer “em liberdade”. Se, em alguns casos, há uma história de vícios ou violência por trás, em outros, ainda que em menor número, é uma opção de vida independente e dificuldade de lidar com regras e rotina. Esses indivíduos desenvolvem uma estratégia de sobrevivência, seja através de redes de solidariedade, seja através de habilidades. Ainda que a rua não ofereça segurança, perspectivas de proteção ou valorização da vida humana, há aqueles que preferem estar na rua a mudar de rotina. (Chachamovich: 2007).

A intolerância e a dificuldade de entender o outro se perpetuam ao longo dos séculos. A imagem noturna que se tem da rua é o local do perigo, dos marginais, excluídos e dependentes e também dos andarilhos, dos foragidos e daqueles que não se encaixam na sociedade. Ao invés de se tentar compreender as razões que fazem as pessoas utilizarem os espaços públicos como a própria casa, o que se observa são visões preconceituosas que acabam por estigmatizar esses indivíduos e tornar sua inserção na sociedade ainda mais difícil. Para idosos e crianças, a situação é um pouco diferente.

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crianças e adolescentes é visto como risco do descaminho e da vulnerabilidade do ambiente. Se as ruas proporcionam o desamparo, a violência e o alcoolismo, por que os serviços de atendimento in loco são feitos, em sua maioria, por grupos voluntários ou religiosos e não por equipes profissionais multidisciplinares? As políticas públicas de “acolhimento” são comprovadamente caras e pouco eficazes. Além de não resolverem o problema de reinserção social, não reduzem as tensões entre os diferentes grupos de moradores da cidade.

A cidade como abrigo x políticas de ‘limpeza urbana’

Recentemente foi criada, na cidade do Rio de Janeiro a Secretaria Municipal de Ordem Pública, SEOP – que atua em diversas frentes – da fiscalização de camelôs e estacionamento irregular à ocupação dos espaços públicos, visando resguardar a imagem da cidade maravilhosa, limpa e bonita. Inicialmente, essa Secretaria tinha um papel muito importante diante dos eventos esportivos que aconteceram no Rio de Janeiro. O projeto piloto, intitulado “Transformando meu quadrado”, definido em reuniões com entidades comerciais e de moradores, tendo à frente a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH) e o SindHotéis-RJ, e coordenado pela primeira-dama Sylvia Jane Crivella, idealizadora do projeto, tinha como objetivo assegurar “uma cidade mais limpa, mais organizada e mais agradável para morar e visitar”.

Para o coronel Paulo Amendola, secretário municipal de Ordem Pública, a recuperação dos espaços públicos está entre os projetos que contribuem para a elevação dos níveis de segurança, uma vez que “ambientes malconservados, desorganizados, com vendedores ambulantes não autorizados, lixo nas ruas e outras violações são propícios a pequenos delitos. A Prefeitura está dando um exemplo de esforço, e é importante que todos se sintam motivados e envolvidos”. (SMASDH, 2017).9

Esses projetos resgatam uma função higienista de outros tempos, ampliando a vulnerabilidade social de idosos, crianças e adolescentes que, em situação de risco, tendem a fugir das ‘acolhidas’. Vale ressaltar também que o papel legal da Secretaria de Assistência Social seria

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promover os Direitos Humanos e não os demover. Da mesma forma, a Secretaria responsável pelo combate à violência e qualidade de vida do idoso deveria olhar não só para o idoso em situação regular, mas também em situação de rua. A experiência do coronel Paulo Amendola, criador do Batalhão de Operações Policiais Especiais, BOPE, associada ao trabalho em controle de situações de alto risco com elementos de grande periculosidade é questionada em relação ao cargo que ora representa.10

As intervenções oficias na rua seguem um padrão: “policiais, mídia, destruição, promessas, mas, “a cracolândia anda” e tudo se restabelece novamente. O que fica é a impressão de uma política da “produção de morte da população de rua via Estado”. (BARBOSA, 2017, p. 156). Para compartilhar esse conceito, a antropóloga Taniele Rui fala em sua obra “Corpos Abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack” sobre como os atuais gestores de grandes cidades se aproveitam desses fatos para ganhar espaço na mídia, com ações que “revestem-se de uma “força tarefa” que age em “casos extremos” – “o que não se confunde com as ações corriqueiras executadas pela Administração Municipal”. (Rui, 2012, p. 178).

Segundo Careri,

“Os imigrantes carregam consigo essa capacidade de transformação informal da cidade que, no passado, permitiu-nos construir nossas cidades. São eles que repovoam muitos dos espaços públicos que a cidade deixara vazios ou abandonados, as praças e os jardins dos centros históricos, como também os espaços móveis dos ônibus e dos metrôs. Partes de cidades que começaram a transformar-se graças a novos usos e comportamentos: festas e rituais comunitários, habitações temporárias, phone centers, vendas de produtos alimentares, mercados improvisados nas estações de chegada e de partida das vans transnacionais, fenômenos temporários que se ativam só a determinadas horas de um determinado dia, até ações mais cotidianas, como a de por na calçada uma cadeira para encontrar e conversar com os vizinhos de casa”. (Careri, 2018: 58-59).

10 No início desse ano, o vereador David Miranda, criou um abaixo-assinado questionando a competência do

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Essa informalidade, que também representa certa resistência à ordem pública e às normas impostas à sociedade local, cria novas dinâmicas nas cidades. São novos habitantes em novas communitas existenciais,11 novos comportamentos como “camelôs” oriundos de países da América Latina e África, convertendo a rua em um condomínio intercultural - obra de arte provisória no centro da carioquice; misto de simulacro, favela, villa e comuna, termos que, em quase toda a América Latina, são carregados de forte peso negativo e preconceito.12 Como nos ensina o poeta Don Nolbe, ao caminhar pelas ruas de Santiago no Chile, sem respeitar nenhuma agenda nem cumprir nenhum horário:

Que es lindo vivir la vida haciendo lo que uno quieres. Disfrutar de los placeres que la ocasión le presenta. Sin tener ninguna agenda que le marque los deberes. Hacer o que uno prefere sin cumplir ningún horário. Ni mirar el calendário para tener que colmar. Lo que le quieran paga en cuotas si es necessário. Eso de ser proletário a mí nunca me gustó aunque que también me toco. Caminar sobre la cuerda Pero los mandé a la mierda cuando algo no me gustó Si no piensan como yo escuchen bien lo que digo El patrón nunca es amigo sólo de labio hacia fuera Porque cuando él lo profiera les va a imponer su castigo Por eso mi buen amigo preste usted mucha atención Nunca le crea al patrón cuando él muestre confianza Porque tiene la esperanza de convertirlo en huevón Yo sé que tengo razón. Para comentar así Los años que yo viví trabajando a patronal Muchas veces fui tentado pero nunca me vendí A un yo conocí que el patrón lo convenció Con dinero lo compró cómo comprar un objeto Y sin el menor respeto cuando él quiso lo cagó Si algo se me olvido. De lo que aquí he comentado Les digo: tengan cuidado que este consejo no sobre Es preferible ser pobre pero no un huevón colgado. (Don Nolbe: 2016).13

Os poetas desnudam a alma da cidade, e comentam como os pobres são colocados contra pobres, fato que pode produzir no seio da própria classe o antagonismo de forma orgânica, conforme a música a seguir:

Um exército de irmãos negros usados para caçar irmãos negros. Para eles o inimigo é preto, pobre e mora na favela. Para eles o inimigo é o Brasil, mas é Jorge, o santo guerreiro que vai iluminar a cabeça de todos os irmãos. Os irmãos do morro, os irmãos do asfalto e os irmãos da farda que vão parar de se matar em nome de racistas e ladrões... O povo que cantou Jorge, salve o santo guerreiro canta agora salve Lula, salve o povo brasileiro... Um país na promoção entrega terra, céus e mar. Pra justiça a comissão. Pro jornal mais um jabá. O caldo vai entornar Quando o povo descer. Quando Jorge chamar. Uma elite racista, mentalidade velho mundo O acordo é

11 Ver por exemplo Victor Turner ao comentar que toda estrutura social, acompanhada pelos ritos que concedem

direitos de acesso a determinadas esferas de poder ou status, coopera para a existência de uma antiestrutura na medida em que produz sujeitos liminares, transitórios ou não, que se agrupam em communitas. Turner, Victor. Verbete: Liminaridade e communitas – IN. Enciclopédia de Antropologia. Sitio http://ea.fflch.usp.br/

12 María Alejandra Rerelo-Imery, para o Rio On Wacth. Traduzindo ‘Favela’ Parte 2: Uma Viagem pela America

Latina. A autora comenta os diferentes nomes para as favelas. Entre outros como barrio marginal, cinturón de miséria, población callampa, campamento, barrios pobres e barrio malo etc. Sitio http://rioonwatch.org.br/?p=9362

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nacional com supremo com tudo. O caldo vai entornar Quando o povo descer, quando Jorge chamar. Êee Salve Jorge, salve o santo guerreiro, salve Lula, salve o povo brasileiro! Êee Salve Jorge, salve o santo guerreiro, salve Lula, salve o povo brasileiro! Brasil Livre, Lula livre, canta o povo sem medo. Brasil livre, Lula livre, canta o povo sem medo. (Renegado:2018).14

Conclusões e tensões nos espaços públicos

O paradigma da normalidade social é uma construção cuja base repousa em estereótipos e representações sociais que explicitam o ser que habita a rua como vítimas, dependentes, abjetos e criados e recriados pela lógica hegemônica do discurso de poder. Enfim, a normalidade do mundo é uma falsidade. (Pereira, 2012). A rua mora no ser que habita a cidade e poder ser fonte de inspiração. Caminho e descaminho, tristeza e alegria. Seu Jorge, Ed Sheeran e Cartola também cataram as suas experiencias do habitar a rua. Algumas cidades podem ser mais abertas e receptivas à diversidade, com políticas públicas de acolhimento e tratamento digno aos moradores de ruas, refugiados ou pessoas em situação de risco, mas também podem ser mais fechadas, com práticas de exclusão, criminalização da pobreza, xenofobia, turismofobia, limpeza étnica e social, além de políticas higienizadoras e embelezadoras de ordem pública.

Não há cidade perfeita, mas há aquelas que acolhem melhor a diversidade cultural, étnica e social. Se, por um lado, o Rio de Janeiro parece acolher tão bem os turistas, imigrantes e refugiados, por outro mostra intolerância às pessoas em situação de rua, que em função da crise econômica e social, multiplicam-se pelos espaços públicos da cidade, desconstruindo o clima construído na época dos jogos olímpicos na cidade.

A ausência de políticas públicas, especialmente em relação às questões sociais e habitacionais revela a cada dia mais as dificuldades de se estabelecer nos grandes centros urbanos. A cidade como espaço do habitar e abrigo de todos os cidadãos, com uma ocupação democrática do espaço público e objeto de interação e integração entre seus moradores parece cada vez mais distante em função da desigualdade social e da crise humanitária que assola o mundo. Mas, não se pode imaginar uma virada nesse jogo, de forma a transformar a cidade contemporânea em um abrigo que permita as mais diversas vivências, ocupações e apropriações, independente do

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poder aquisitivo, da idade, da origem ou do gênero? O desafio de pensar espaços que permitam o usufruto dos mais diversos extratos sociais não é fácil em uma sociedade desigual e repleta de preconceitos. Reconhecer a informalidade como parte da cidade, e criar ferramentas que permitam uma urbanidade de maior qualidade pode ser a chave de um projeto de cidade mais equitativa e aberta às diferenças.

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Referências

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