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Conhecimento como crença verdadeira acompanhada de logos no Teeteto de. Platão ÍNDICE. Introdução 2. A teoria do Sonho de Sócrates 5

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1 Conhecimento como crença verdadeira acompanhada de logos no Teeteto de

Platão

Gustavo R. Bianchi A. Ferreira

ÍNDICE

Introdução 2

Capítulo 1 – Dificuldades da parte III do Teeteto 4

A teoria do “Sonho de Sócrates” 5

Capítulo 2 – A Interpretação Unitarista de Cornford 10

Crítica à Interpretação de Cornford 18

Capítulo 3 – A Interpretação Lógica de Ryle e McDowell 20

Crítica à Interpretação Lógica 25

Capítulo 4 – A Interpretação Coerentista de Fine 31

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2 Introdução

Uma vez que o Teeteto é orientado pela questão “o que é conhecimento?”, a proposta de investigar a Teoria do Conhecimento de Platão encontra neste diálogo a sua mais rica fonte de respostas. Ao menos assim parece. Os intérpretes têm divergido drasticamente com relação à função da obra. A ausência de menção à Teoria das Formas, considerada platônica por excelência, suscita a questão de se Platão tinha revisado sua doutrina ou estava a defendendo de maneira velada (por isso achei apropriado contrastar as interpretações unitária e revisionista nos capítulos 2 e 3). O texto também é repleto de enigmas, por exemplo, a questão sobre a possibilidade de crenças falsas, discutida na segunda parte do diálogo. Além disso, o Teeteto termina de maneira inconclusiva, sem estabelecer uma resposta à questão que o oriente. A procura pela visão de Platão sobre o conhecimento neste diálogo, portanto, enfrenta muitas dificuldades.

Os intérpretes dividem o diálogo em três partes. A parte I vai até a conclusão da refutação da definição de conhecimento como percepção, em 186e. A parte II abrange a discussão da possibilidade de crenças falsas e a refutação da equação entre conhecimento e crença verdadeira (187a-201c). A parte III inclui a rejeição da definição de conhecimento como crença verdadeira acompanhada de logos1 e termina de modo inconclusivo (201c-210d).

O objetivo deste trabalho é investigar o que parte III do Teeteto assere acerca do conhecimento. Esta parte final é onde o leitor tem mais esperanças de encontrar elementos da visão de Platão sobre o conhecimento, pois nela Sócrates examina uma

1 Transliteramos “λόγος” em vez de traduzir o termo, porque o seu significado, indeterminado nesse

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3 definição de conhecimento que nos remete ao que o personagem já havia dito sobre o assunto no Mênon. Lá, Sócrates afirma que as crenças verdadeiras se tornam conhecimento quando fixadas com um raciocínio acerca das causas (aitias logismōi) (Mênon 98a). Isso indica que aquilo a que se refere “logismos” (cognato de logos), quando acompanha a crença verdadeira, eleva-a à condição de conhecimento. Esse trecho do Mênon, combinado com outras passagens em que Platão associa conhecimento e logos (Banquete 202a, Fédon 76b, Timeu 51b-e), cria no leitor a expectativa de encontrar, na parte III do Teeteto, o esclarecimento de como, acrescentado à crença verdadeira, o logos a converte em conhecimento.

O que é significado por logos naqueles diálogos nem sempre é claro, mas, na parte III do Teeteto, o sentido do termo é tão indeterminado que a sua tradução é particularmente difícil. A parte III apresenta muitas dificuldades, a começar por esta. Aponto outras questões no capítulo 1.

Os intérpretes encaram as dificuldades da parte III de diversas maneiras diferentes. Em face disso, faz-se necessária uma densa exploração bibliográfica das interpretações existentes, com a finalidade de optar por uma ou outra. O que apresento neste trabalho são os resultados obtidos até este momento com tal exploração (ainda em curso). Ao discutir as interpretações da parte final do diálogo, fez-se necessário contrastar as crenças gerais sobre a função do diálogo a que essas interpretações são subsumidas. Além disso, sendo o Teeteto palco de um debate acirrado sobre o desenvolvimento da epistemologia de Platão, foi preciso contrastar também as duas principais visões adversárias a esse respeito (a unitarista e a revisionista), ainda que brevemente.

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4 interpretação diferente da parte III. No capítulo 2, apresento a linha de interpretação iniciada com Cornford. No capítulo 3, a linha de interpretação iniciada com Ryle. No capítulo 4, a linha de interpretação proposta por Fine. No quinto e último capítulo resumo as minhas conclusões parciais e menciono as tarefas restantes da pesquisa.

Capitulo 1 – Dificuldades da parte III do Teeteto

As questões exibidas aqui dizem respeito à parte III do Teeteto, mas se ligam a questões gerais sobre o diálogo que, por sua vez, estão associadas a questões sobre o desenvolvimento do pensamento platônico como um todo. Aqui apenas indico essas ligações com questões mais gerais. Elas são mais precisamente abordadas na consideração das suas interpretações nos capítulos seguintes.

Antes, porém, de passar à parte III propriamente dita, é importante olhar para a discussão que imediatamente a precede, em 200d-201c. Refiro-me à breve refutação que Sócrates oferece da sugestão da parte II de que o conhecimento poderia ser definido como crença verdadeira. Sócrates argumenta que saber algo não equivale a ter uma crença verdadeira apontando um exemplo em que o sujeito tem crença verdadeira, mas não sabe. No tribunal, é impossível que os jurados aprendam (i.e. obtenham conhecimento de) o que ocorreu na cena do crime, pois tudo o que eles recebem são os discursos defeituosos das partes. No entanto, os jurados muitas vezes adquirem, por meio de tais discursos, a crença verdadeira do que ocorreu, fato verificado sempre que eles julgam o criminoso com justiça. Sócrates diz:

(T1) Teeteto 201b7-c2: “Portanto, quando os jurados foram persuadidos de acordo com o que é justo sobre coisas que se pode saber apenas vendo e não de outro modo, e deliberaram sobre tais coisas a partir do que ouviram dizer – nesse caso eles obtiveram uma crença verdadeira, mas deliberaram sem conhecimento, embora persuadidos do correto, já que julgaram bem?”.

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5 crime. Isso implica que nenhum discurso que pudesse ser oferecido aos jurados, por mais perfeito que fosse, contribuiria para o seu conhecimento do crime. Com isso, a sugestão da parte II de que o conhecimento seja definido como crença verdadeira acompanhada de logos parece estar já bloqueada: em qualquer interpretação, logos é algum tipo de discurso. No entanto, a sugestão é feita por Teeteto e rejeitada por Sócrates sem menção ao resultado da refutação da sugestão anterior. A maioria das linhas ou desconsidera a conexão dessa refutação com a parte III, como Cornford (1935) e Fine (1979), ou se limita a dizer que a conexão é obscura, como McDowell (1974) e Bostock (1988). Ryle (1990) comenta a conexão, ainda que rapidamente2. Em minha opinião (provisória devido à incompletude em que a pesquisa se encontra), a conclusão da parte II contém uma pista essencial para a compreensão do objetivo de Platão com a parte III. Desenvolvo isto ao ponderar a interpretação de Ryle no final do capítulo 3.

Agora podemos passar à parte III propriamente dita.

A teoria do “Sonho de Sócrates”

A sugestão de Teeteto de que conhecimento possa ser crença verdadeira com logos é acompanhada da observação de que as coisas que tem logos são conhecíveis, enquanto as que não têm logos são inconhecíveis. O personagem apresenta a proposta como um como algo que ele ouviu de alguém e do qual não se lembra bem. Ao receber essa sugestão, Sócrates pergunta como a pessoa de quem Teeteto ouviu isto traçou a distinção entre coisas conhecíveis e coisas inconhecíveis. Como Teeteto não consegue se lembrar de como ela o fez, Sócrates narra um sonho seu, no qual um algum teórico (que ele não nomeia) elabora a mesma sugestão de Teeteto. Cito a narrativa completa do sonho:

2 Talvez rapidamente demais. Mesmo assim, como veremos, Ryle tem o mérito de chamar a atenção para

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6 (T2) Teeteto 201d8-202c5: “Escuta, então, um sonho em troca de um sonho. No meu sonho, eu também pensava ouvir de alguns que (i) os elementos primários, como diziam, dos quais nós e tudo o mais somos compostos, não têm logos. (ii) Cada um deles, em si mesmo, é somente nomeado, e não é possível dizer nada dele, nem que ele é e nem que ele não é: pois isso já adicionaria a ele existência ou inexistência, e nada se deve anexar quando alguém pergunta daquela coisa mesma isolada. (iii) De fato, não se deve aplicar a ele nem mesmo tais palavras como ‘mesmo’ ou ‘aquilo’, ‘cada’, ‘isolado’ ou ‘isso’, ou qualquer outra das muitas palavras desse tipo; pois elas acompanham e são aplicadas semelhantemente a todas as coisas, sendo outras além das coisas às quais elas são adicionadas; (iv) enquanto que se fosse possível expressar o elemento mesmo e houvesse logos peculiar a ele, ele precisaria ser expresso sem nada mais. (v) Ora, é impossível, portanto, expressar os elementos primários com um logos: porque <um deles> pode apenas ser nomeado isoladamente – pois um nome é tudo o que possui – (vi) por outro lado, as coisas já compostas deles [dos elementos], assim como se entrelaçaram, assim também os nomes delas [das coisas compostas], se entrelaçando, geram logos; (vii) pois o entrelaçamento de nomes é a essência de logos. (viii) Desse modo, os elementos são sem logos e desconhecidos, mas perceptíveis; enquanto os complexos são cognoscíveis, expressáveis e verdadeiramente opináveis. (viii) Quando um homem adquire um juízo verdadeiro sobre uma coisa sem um logos, sua alma está em um estado de verdade com relação a essa coisa, mas ele não a conhece; pois quem não consegue dar nem receber um logos da coisa é ignorante a respeito dela. Mas quando ele adquiriu também um logos dela, ele é capaz disso e se tornou perfeito com relação ao conhecimento.”

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7 conhecimento. Ele conhece quando, além de ter crença verdadeira, também é capaz de dar e receber um logos.

Não é difícil recontar o que a teoria diz, como feito no parágrafo anterior. No entanto, assim que refletimos sobre ela, notamos que a teoria do Sonho é completamente indeterminada. Para começar, não sabemos nem mesmo sobre o que é a teoria: ela determina somente que os objetos do conhecimento são “nós e tudo o mais”, e que eles são sempre complexos. A nossa primeira questão, portanto, é sobre quais são os objetos de conhecimento reconhecidos pela teoria. Os intérpretes têm variado bastante ao responder essa questão. Alguns acham que a teoria reconhece apenas particulares perceptíveis, pressupondo, portanto, uma ontologia materialista. Outros pensam que a teoria foi designada para conhecer tanto particulares quanto universais. E há ainda os que acham que se trata de uma teoria lógica em que os complexos conhecíveis são as entidades que o filósofo moderno chama de “proposições”. Segundo a qual aquilo que sabemos possui uma complexidade contrasta o significado de declarações e o significado de nomes. Uma indeterminação correspondente afeta os elementos dos complexos conhecíveis: o que são eles depende de se determinar o que são os complexos que eles compõem.

Se refletirmos sobre a teoria sem preconcepções trazidas de outros diálogos, notamos que também não está claro o que o ela quer dizer com “logos”. Essa é a nossa segunda questão. Em outros lugares, ao discutir o conhecimento em conexão com o logos, Platão dá a impressão de se referir com esse termo ora ao que chamamos de “explicação”, ora ao que chamamos de “definição”. Não obstante, a teoria do Sonho diz apenas que o logos de um objeto3 é uma combinação de nomes que corresponde em

3 Nesse estágio, quando escrevo “objeto do conhecimento”, “objeto do logos” ou formas variantes, estou

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8 alguma medida à combinação dos elementos do objeto. Essa é uma definição bastante abrangente. Os intérpretes têm se dividido entre os que pensam que logos significa algum tipo de descrição ou definição e os que pensam que o termo significa declaração. Por exemplo, se os complexos conhecidos por meio de um logos são coisas particulares materiais, então o seu logos pode ser adequadamente retratado como a sua descrição em termos dos seus componentes materiais.

Também causa estranheza as restrições impostas ao que se pode dizer de um elemento. A teoria diz que só podemos nomeá-los e mencioná-los por meio de seus nomes. O sentido dessa restrição é nossa terceira questão. Mas sentimos que normalmente podemos falar sobre qualquer coisa, elementar ou não. Alguns intérpretes explicam essa observação dizendo que ela restringe aquilo que podemos dizer dos os elementos a fim de manifestar conhecimento deles. Podemos nomear uma coisa simples, e também aplicar-lhe aquelas palavras (“ser”, “isto” etc.), mas nada disso equivale a descrevê-los ou defini-los. Como, segundo esta interpretação, os elementos são objetos simples, inanalisáveis, eles não podem ser descritos em termos de seus componentes, e como uma descrição desse tipo é o único discurso que contribui para o conhecimento, segue-se que não há nada que possa ser dito de um elemento a fim de contribuir para o seu conhecimento. Outros disseram que o texto restringe aquilo que podemos dizer dos elementos a fim de declará-los. Podemos nomear um objeto, e também aplicar a eles aquelas palavras, mas nada disso equivale a declará-los. Como, segundo esta interpretação, os elementos são componentes de proposições, eles não podem ser declarados, pois só uma proposição completa pode ser declarada.

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9 Além dessas três questões principais, outros problemas são suscitados pela passagem. Platão apresenta a teoria como algo que ele sustenta ou como um pensamento adversário?

A discussão que se segue à narrativa do sonho tem dois estágios. Primeiro, Sócrates ataca a tese de que os elementos primários são inconhecíveis (202d-206b). Depois, Sócrates e Teeteto examinam a definição de conhecimento como crença verdadeira com logos sob três sentidos distintos de “logos” e concluem que nenhum deles torna a definição (206c-210d). No primeiro estágio, a argumentação de Sócrates suscita questões acerca da sua validade. Essa questão não será abordada aqui: neste estágio da pesquisa, estamos preocupados com a narrativa da teoria do Sonho e com os resultados gerais do segundo estágio. No segundo estágio, o leitor se admira de que nenhum dos entendimentos de logos testados corresponde ao sentido que Platão deu ao termo no Mênon, no Banquete, no Fédon ou na República. Por isso o leitor se pergunta se Sócrates examinou todos os sentidos plausíveis que o termo poderia assumir no contexto da definição de conhecimento. E como, com a eliminação dos sentidos testados, Sócrates rejeita a definição, o leitor se pergunta se, afinal, Platão acha que o conhecimento não é crença verdadeira acompanhada de logos4.

Outras questões ainda poderiam ser apontadas aqui, mas, sendo elas mais específicas, as mencionarei na medida em que forem suscitadas durante o exame das linhas de interpretação, exposto seguir.

Nos três capítulos seguintes, apresento e examino as três linhas de interpretação importantes atualmente acerca da parte III do Teeteto, as quais tentam responder as questões indicadas aqui.

4 O embaraço se intensifica porque, em Replública V, Platão distingue radicalmente a crença do

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10 Capítulo 2 – A interpretação Unitarista de Cornford

Uma teoria materialista

A primeira linha de interpretação vê no Teeteto uma defesa implícita dos fundamentos da teoria do conhecimento de Platão. Assim, esse grupo de intérpretes tenta encontrar um lugar para o diálogo na exposição da doutrina platônica que, segundo eles, conserva a sua unidade ao longo de toda a obra do filósofo. O cerne dessa doutrina é, evidentemente, a Teoria das Formas da Replública e do Fédon, a qual não aparece no Teeteto (ao menos não de modo inequívoco). Essa linha de interpretação foi defendida Cornford (1935) e, em nosso século, por Sedley (2004).

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11 conseguimos definir o conhecimento. Nesta seção, mostrarei como esse intérprete comenta a parte III do Teeteto. Ocasionalmente me referirei também a Sedley (2004), que, ao elaborar uma versão modificada dessa interpretação, devolveu-lhe o parte do crédito que ela perdeu em meados do século XX, especialmente com a crítica feita por Robinson (1950).

Cornford não analisa a relação da refutação da definição de conhecimento como crença verdadeira (parte II) com a parte III. Ele observa apenas que, quando a distinção entre conhecimento e crença verdadeira é traçada no Mênon e no Timeu, Platão afirma que o conhecimento se diferencia pela presença de fundamentos racionais. Cornford conclui seu comentário da parte II dizendo que, no Teeteto, Platão não fala de fundamentos racionais porque está evitando introduzir a sua própria doutrina.

Quanto à nossa primeira questão, sobre os objetos do conhecimento reconhecidos pela teoria do Sonho, esta linha de interpretação sustenta que a teoria descreve o que é conhecer a natureza concreta, pressupondo uma ontologia materialista. Além de Cornford (1935) e Sedley (2004), tal visão foi adotada também por Taylor (1926).

Esses intérpretes são levados a crer que a teoria pressupunha uma ontologia materialista porque as únicas coisas que a teoria reconhece explicitamente como exemplos de complexos são pessoas5, e porque a teoria diz que os elementos primários são perceptíveis6 (do que se segue que os complexos compostos deles também o são). Especialmente este segundo aspecto da teoria indica que ela rejeita coisas imateriais, como universais, e coisas materiais imperceptíveis, como átomos. Portanto, esses intérpretes sustentam que os objetos do conhecimento reconhecidos pela teoria do

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12 Sonho são as coisas particulares, físicas e perceptíveis, como indivíduos humanos (para reutilizar o único exemplo fornecido). Tais objetos, segundo a teoria, têm componentes que são, em última instância, indecomponíveis. Nenhum exemplo é dado, quando Sócrates narra o sonho, do que seriam esses componentes primários: a questão é deixada para a especulação dos intérpretes. Cornford diz que é impossível decidir “se ‘elementos’ significa substâncias primarias simples, tais como o ouro, ou qualidade simples, como o amarelo, ou mesmo se o autor traçou essa distinção” (1935, p. 144).

À nossa segunda questão, sobre significado de logos no interior da teoria do Sonho, os adeptos da interpretação platônica respondem que o termo denota a sequência dos nomes dos elementos de um objeto físico, seja de seus ingredientes materiais (Taylor, Cornford), seja de suas características perceptíveis (Sedley). Portanto, o logos de um indivíduo humano, por exemplo, é a enumeração dos componentes perceptíveis do indivíduo. (A maioria dos intérpretes, mesmo os que não adotam a interpretação platônica, pensa que logos, ao menos no interior da teoria, denota uma enumeração de elementos de algum tipo, e as interpretações de que tipo de elementos são esses variam segundo o modo como eles respondem à nossa primeira questão, sobre o que são os complexos que têm logos e são objetos do conhecimento).

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13 elementos só tem nome?7 Essa questão Cornford não responde. Ele diz apenas que essa restrição pode querer dizer que nada pode ser dito de um elemento, ou significar que é impossível definir o seu nome8.

Portanto, segundo a interpretação de Cornford temos a seguinte teoria. Em seu aspecto ontológico, ela diz que tudo o que há são objetos físicos que em geral são compostos e decomponíveis, mas que há uma classe de objetos (os elementos primários) que, embora componham os outros tipos de objeto, são eles mesmos simples e indecomponíveis. Em seu aspecto epistemológico, ela diz que podemos conhecer um objeto na medida em que o analisamos em termos de seus componentes. Essa análise nos habilita a descrever o objeto, e a posse dessa habilidade com relação a um objeto certifica que nós o conhecemos. Por isso, apenas os objetos compostos podem ser conhecidos, já que possuem componentes e, portanto, são analisáveis. Os elementos primários, sendo indecomponíveis, não podem ser analisados e, portanto, não podem ser conhecidos. Contudo, a teoria concede que eles podem ser percebidos. Em seu aspecto linguístico, a teoria diz que descrever uma coisa equivale a dizer o nome de cada um dos seus componentes. Isso significa que apenas os compostos podem ser descritos, pois só eles possuem componentes. Os elementos primários, sendo simples, não podem ser descritos, mas apenas mencionados por meio de seus nomes.9

7 Para Sedley (2004, p. 159-160), essa restrição se deve ao fato de aqui Sócrates estar destacando aquelas

coisas que podemos dizer a respeito de um elemento enquanto ele é apenas percebido. Itens perceptíveis, enquanto perceptíveis, podem ser nomeados, mas não podem ser ditos que são. Resumidamente, ele acha que Sócrates está retomando resultados da Parte I, em que ele estabelece que, enquanto um objeto é apreendido exclusivamente por este ou aquele órgão sensitivo, o sujeito ainda não pode formar qualquer juízo sobre ele, nem mesmo o juízo de que ele existe. Unicamente pela capacidade de consideração da alma é que o sujeito pode formar juízos e, portanto, atribuir “ser” ou “não-ser” ao objeto. Enquanto o sujeito limitar sua atividade cognitiva à percepção, ele será capaz somente de nomear os itens perceptíveis que encontra. Essa visão de Sedley merece ser ponderada no futuro.

8 Cornford, 1935, p. 144.

9 É Cornford (1935, p. 144-5) quem distingue a teoria em três aspectos, que aqui chamo de “ontológico”,

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14 Uma vez exposto como essa linha de interpretação vê a teoria do Sonho, exibo como ela responde a questões mais gerais a respeito da função dessa teoria no Teeteto.

Nenhum dos defensores dessa linha de interpretação pensa que a teoria do Sonho foi sustentada por Platão: eles julgam que o filósofo a apresenta como uma teoria que ele está interessado em refutar. De fato, seria estranho se o filósofo, após postular as Formas imateriais, admitisse uma ontologia materialista. Se a teoria do Sonho de Sócrates realmente pressupõe uma ontologia tal, o mais provável é que o objetivo de Platão seja demonstrar a inconsistência da teoria.

Não chegou até nós (ou nunca houve) qualquer registro de que algum grego tenha defendido algo semelhante à teoria do Sonho de Sócrates. A despeito disso, alguns dos que supõem que ela não pertence a Platão especularam a respeito de quem, afinal, é o autor da teoria10. Para Cornford, no entanto, simplesmente não há evidência suficiente para identificar o autor.

Para Sedley (2004, p. 160-163), a teoria sonhada é apresentada em um quadro materialista e nunca foi sustentada por Platão. Porém, ele acredita que o seu autor é o próprio Platão. Dito resumidamente, ele vê a teoria como uma generalização do pensamento pré-socrático, que Platão teria elaborado a fim de atacar o ponto comum a todos os pré-socráticos. Esse ponto é a epistemologia pressuposta na filosofia natural deles, epistemologia segundo a qual um ente natural é conhecido por análise das suas causas materiais (para usar a terminologia aristotélica). Essa interpretação da teoria sonhada se conecta com uma interpretação geral do Teeteto de espírito similar ao de

10 Para Taylor (1926), os elementos primários da teoria se parecem com as raízes – ar, água, terra e fogo –

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15 Cornford: Sedley também acha que Platão está defendendo implicitamente o platonismo contra o materialismo.

Independentemente de quem seja o autor da teoria do Sonho, o fato é que ela é rejeitada na discussão que a sucede. Rejeitada é também a definição de conhecimento como crença verdadeira acompanhada de logos. Isso deixa admirado o leitor do Mênon, do Banquete, da República, do Fédon e do Timeu, diálogos em que Platão associa conhecimento e logos em um sentido ou outro do termo. Mas da perspectiva de Cornford, o fato de ela ser rejeitada na conclusão do diálogo é facilmente explicável: a definição é parte de uma teoria que pressupõe que os únicos objetos da cognição são os agregados concretos e seus elementos perceptíveis, porém, como as Formas são os únicos objetos do conhecimento, a definição está fadada ao fracasso na medida em que está embutida em uma teoria materialista. Assim, segundo Cornford, a parte III serve à finalidade geral do diálogo na medida em que mostra que nem mesmo a definição de conhecimento tão querida do platonismo pode valer algo se for direcionada ao conhecimento de sensíveis.

Entre 206c e 210d, Sócrates e Teeteto examinam três sentidos possívels de logos, na esperança de que algum deles torna adequada a definição de conhecimento como crença verdadeira com logos. O primeiro é a expressão verbal do pensamento. O segundo é a enumeração dos elementos de um complexo. O terceiro é a descrição que indica a marca que distingue o objeto de todos os outros. Nenhum dos sentidos considerados leva em conta, por exemplo, as conclusões de Mênon (98a) sobre o conhecimento.

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16 fosse omitir de uma discussão sobre o conhecimento11. Como está há muito estabelecido que aqueles diálogos, com a possível exceção do Timeu, foram escritos antes do Teeteto, Platão com certeza omite deliberadamente, neste diálogo, a teoria das Formas e a associação anterior entre conhecimento e logos. As divergências interpretativas giram em torno do motivo pelo qual o filósofo teria decidido omitir essas coisas.

Cornford justifica a omissão de maneira engenhosa. Como vimos, ele sustenta que, no Teeteto como um todo, Platão está interessado em demonstrar que é impossível conhecer os objetos sensíveis por meio da redução ao absurdo da tese oposta. Por isso o seu procedimento, em todo o diálogo (inclusive na a parte III), é partir do pressuposto de que só os objetos sensíveis são conhecíveis e mostrar o quão infrutíferas são todas as tentativas de definir o conhecimento de tais objetos.

Portanto, no exame dos três sentidos possíveis de “logos” para a definição de conhecimento (206c-210d), a discussão permanece assumindo uma ontologia materialista, tal como a teoria do Sonho (embora esta já tenha sido abandonada neste estágio). “Esta limitação está de acordo com o escopo do diálogo inteiro, que questiona se o conhecimento pode ser extraído do mundo das coisas concretas naturais” (Cornford, 1935, p. 154). Se os três sentidos de logos falham, é porque, durante o exame deles, continua sendo pressuposto que os únicos objetos do conhecimento são indivíduos materiais. Essa pressuposição exclui a visão do próprio Platão de que há Formas imateriais. É essa visão que Platão quer advogar, de maneira implícita, no Teeeto, ao refutar a teoria que exclui a sua visão. Se a definição de conhecimento como crença verdadeira acompanhada de logos é rejeitada por Sócrates e Teeteto, isso não quer dizer que Platão realmente a rejeita. Cornford observa que, antes de criticar a teoria

11 Taylor, 1926, p. *. Mas a razão que Taylor aventa para explicar a omissão daqueles resultados não é

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17 do Sonho, Sócrates diz: “como pode alguma vez haver conhecimento sem logos e crença verdadeira?” (202c6-8). Para o intérprete, isso pode indicar que a definição discutida é apropriada ao menos para algum tipo de conhecimento, “desde que o sentido correto seja dado a logos, não algum dos sentidos discutidos no contexto a seguir” (1935, p. 146, n. 1).

Para Cornford, Platão acredita que “crença verdadeira com logos” é uma boa definição de conhecimento, mas unicamente se entendermos “logos” no sentido que o termo tem no Mênon e no Timeu. Mas esse “quarto” sentido é ininteligível sem menção às Formas, portanto ele não poderia ser mencionado, devido aos pressupostos materialistas do diálogo. A discussão termina como se aqueles três fossem os únicos sentidos plausíveis de logos e Cornford diz que, de fato, eles são os únicos tipos de descrição que se aplicam a coisas particulares. Mas nenhum deles produz uma cognição de tipo mais elevado do que a crença verdadeira. Na visão de Platão, “os objetos de que o conhecimento precisa dar uma descrição são (...) objetos do pensamento” e “os termos mais simples nos quis a descrição precisa ser formulada são (...) conceitos superiores” (CORNFORD, 1935, p. 154).

Tudo isso é resumido no parágrafo que encerra o comentário de Cornford sobre o Teeteto:

“O plantonista traçará a inferência necessária. O conhecimento verdadeiro tem como objetos coisas de ordem diferentes – não coisas sensíveis, mas Formas inteligíveis e verdades sobre elas. Tais objetos são necessários e únicos; eles não vêm a ser e perecem ou mudam em qualquer aspecto. Consequentemente, podemos conhecer eles e verdades eternas sobre eles. O Teeteto leva a esta velha conclusão demonstrando a derrota de todas as tentativas de extrair conhecimento de objetos sensíveis.” (Cornford, 1935, p. 162-3).

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18 conhecimento de sensíveis e que, na realidade, os únicos objetos do conhecimento são as Formas.

Crítica à Interpretação de Cornford

Robinson (1950) elaborou uma crítica da interpretação de Cornford do Teeteto como um todo, e a maioria dos comentadores acredita que a sua crítica é bem sucedida. Concentro-me aqui apenas nas suas objeções contra a moral que Cornford vê na parte III.

Em primeiro lugar, Robinson critica Cornford dizendo que, se Platão quisesse que o leitor inferisse, em face do insucesso de todas as definições do conhecimento de particulares, que há Formas e que apenas elas são conhecíveis, então ele faz um péssimo trabalho. Essa inferência só poderia ser feita se nenhuma das objeções às definições de conhecimento examinadas pudesse ser empregada para refutar a definição adequada ao conhecimento das Formas. Contudo, a objeção que derruba a definição de conhecimento como crença verdadeira acompanhada da descrição que captura a marca distintiva (terceiro e último sentido de logos examinado na parte III) se aplicaria do mesmo jeito às Formas. (ROBINSON, 1950, p. 14).

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19 a definição e dizer que conhecimento é crença verdadeira acompanhada do conhecimento da descrição distintiva. Mas aí temos uma definição circular. De fato, essa é uma dificuldade que afeta qualquer definição de conhecimento do tipo “crença verdadeira acompanhada de x”, independentemente de quais os objetos cujo conhecimento a fórmula tenta definir. Sempre será possível questionar: “x é conhecido ou apenas opinado?”.

Não é verdade, portanto, que os argumentos do texto refutam a definição de conhecimento como crença verdadeira com logos exclusivamente quando os objetos do conhecimento são particulares. O argumento contra essa definição, entendida de acordo com o terceiro sentido de logos examinado por Sócrates e Teeteto, se aplica também quando os objetos do conhecimento são Formas. (ROBINSON, 1950, p. 14).

Em segundo lugar, Robinson questiona qual seria o “quarto sentido” de logos que Platão teria em mente e seria realmente aquilo que, ao acompanhar uma crença verdadeira, tornaria-a conhecimento. Robinson (1950, p. 14-15) reclama que Cornford simplesmente não o explicita, limitando-se a remeter-nos a outros diálogos, sem mostrar como os resultados deles resolveriam os problemas do Teeteto.

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20 Capítulo 3 – A interpretação lógica de Ryle e McDowell

Uma teoria lógica

A segunda linha de interpretação rejeita o pressuposto dos unitaristas de que o pensamento platônico se mantém uno ao longo dos diálogos. Essa linha vê no Teeteto um Platão em transição da Teoria das Formas da República (alegadamente contestada no Parmênides), para a doutrina do Sofista e do Político, na qual as Formas tem pouca proeminência, segundo eles. Por isso, os adeptos dessa interpretação encaram a ausência da Teoria das Formas no Teeteto como sinal de que Platão não mais a considerava essencial à discussão do conhecimento. Portanto, eles tentam alinhar o Teeteto com o pensamento exibido nos últimos diálogos, em vez de tentar alinha-lo à doutrina dos diálogos intermediários, como a interpretação platônica. Essa corrente interpretativa foi iniciada por Ryle (1939) e ainda é muito ainda é muito influente entre os comentadores ingleses. Nesta seção, mostrarei como Ryle e McDowell (1974) comentam a parte III do nosso diálogo.

Antes, porém, observo que Ryle (1990) deu alguma atenção à discussão que precede a sugestão inaugural da parte III, mas prefiro expor o que ele disse a respeito disso mais adiante, já que sua visão sobre isso é importante na ponderação das objeções à sua interpretação que realizo no final do capítulo.

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21 de que fala a teoria são os fatos (ou proposições), e que os seus componentes inconhecíveis, mas perceptíveis, são as suas propriedades sensíveis.

A interpretação de Ryle é de que a teoria do Sonho é uma teoria lógica sobre a composição de verdades e falsidades. Qualquer verdade que sabemos ou na qual cremos possui uma complexidade interna: ela é composta de ao menos duas partes. Por outro lado, cada uma das partes de uma verdade é simples, impossível de ser analisada. E Podemos declarar verdades ou falsidades através de sentenças, enquanto as partes de uma verdade nós só podemos mencionar por meio de nomes. É esse o ponto básico que Ryle acredita que a teoria do Sonho quer capturar. Desse modo, a teoria seria um precedente antigo do Atomismo Lógico defendido por Russell, Wittgenstein e outros no início do século XX.

Para McDowell (1974), os complexos conhecíveis de que fala a teoria podem ser colocados em palavras unicamente por uma construção proposicional. É claro que a complexidade proposicional não é adequadamente exemplificada por uma pessoa – único exemplo que a teria dá de complexos conhecíveis e declaráveis (T2 (i)). Platão não distingue claramente o conhecimento de objetos do conhecimento das entidades que hoje chamamos de proposições, de modo que, embora ele pareça estar interessado do conhecimento de proposições, seus exemplos indicam que ele está falando do conhecimento de objetos. McDowell reconhece que isso é o que está explícito no exemplo dado pela teoria, mas conserva sua “sugestão de que a teoria do Sonho é uma tentativa de capturar a complexidade envolvida em construções proposicionais” (MCDOWELL, 1974, p. 240).

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22 nomes (onoma) e declarações (logoi). É importante também a relação com o Sofista. Nesse diálogo, Platão fala sobre a formação de sentenças. O trecho crucial é:

(T3): Sofista 262d: Pois quando ele diz isso, ele faz uma declaração sobre algo que é, ou que vem a ser, ou que veio a ser, ou que virá a ser; ele não dá meramente nomes, mas chega a uma conclusão combinando verbos e nomes. É por isso que dissemos que ele discursa e não apenas dá nomes, e portanto chamamos tal combinação pelo nome de ‘discurso’.

A semelhança entre o linguajar entre T3 e T2 (ii-vii) levou os intérpretes a suporem que Platão estava falando do mesmo problema, a saber, o que é dizer algo.

Ryle sustenta que “logos” significa “declaração” (“statement”). Ele argumenta que o que é comum a todas as sugestões para o sentido de logos é a capacidade de dizer algo. A teoria quer mostrar que aquilo que eu posso saber possui uma complexidade interna, correspondente à complexidade interna de uma declaração. Essa observação é análoga ao que dizemos, no linguajar moderno, que posso saber apenas proposições ou fatos. McDowell também acha que, na teoria do Sonho, dar um logos é dizer algo, fazer uma declaração, mas ele hesita em asserir que a teoria manifesta consciência de que o que eu posso saber e declarar é sempre uma proposição ou fato.

Ryle acha que, neste ponto do desenvolvimento de Platão, o filósofo esta se conscientizando da distinção entre saber e conhecer. Ele percebeu que aquilo que sabemos possui uma complexidade interna e pode ser dito, declarado, nunca por meio de um nome, mas apenas por meio de uma sentença. (Os filósofos contemporâneos diriam que o conteúdo do que eu sei possui sempre a forma de uma proposição). Por outro lado, aquilo que conhecemos é simples e não pode ser dito; pode ser mencionado, nunca por meio de uma sentença, mas apenas por meio de um nome.

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23 teses, juntas, implicam não só que apenas complexos podem ser objeto do conhecimento, mas também que apenas complexos podem ser objeto de juízos verdadeiros12. Assim, a teoria estaria afirmando que os objetos do conhecimento e do juízo são do mesmo tipo que os objetos do discurso informativo. Esse tipo de objeto possui uma complexidade interna que corresponde à complexidade que uma forma de discurso deve ter para informar algo.

Portanto, segundo essa linha interpretativa temos a seguinte teoria. Em seu aspecto ontológico, a teoria diz que há fatos compostos de propriedades perceptíveis. Em seu lado epistemológico, a teoria afirma que apenas fatos são objeto do saber, mas não as propriedades sensíveis que os compõem. Em seu aspecto linguístico, os fatos seriam significados exclusivamente por sentenças ou declarações e as propriedades perceptíveis por nomes. A teoria defende que não é possível declarar uma propriedade perceptívei, mas apenas nomeá-la.

Uma vez exposto como essa linha de interpretação vê a teoria do Sonho, exibo como ela responde a questões mais gerais a respeito da função dessa teoria no Teeteto.

Ao contrário da interpretação dos unitaristas, a interpretação lógica tende a sustentar que a teoria do Sonho teria sido inventada ou ao menos sustentada por Platão. Diferentemente daqueles intérpretes, Ryle e McDowell veem um desenvolvimento na obra de Platão e tentam encaixar o Teeteto em uma narrativa desse desenvolvimento. Ambos os intérpretes pensam que o Teeteto exibe um Platão em transição da doutrina dos diálogos intermediários (que os unitaristas consideram como a doutrina platônica por excelência, nunca abandonada) para a doutrina dos últimos diálogos. Nesse sentido, se a teoria do Sonho ainda não possui a sofisticação da teoria do discurso apresentada

12 Que apenas complexos podem ser objeto do conhecimento é uma interpretação disputada por Fine

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24 no Sofista (cf. T3), é porque o próprio Platão ainda não a teria formulado. Nesta perspectiva, o que a parte III do Teeteto nos oferece se qualifica como um work in progress.

Ryle e McDowell elaboram uma de defesa da tese de que Platão sustentou a teoria do Sonho em conexão com uma narrativa do desenvolvimento do pensamento do filósofo. Não discutirei essa narrativa aqui, já que isto requereria uma consideração de vários outros diálogos. Reconheço que pode ser preciso levar essa tarefa a cabo na próxima fase da pesquisa.

McDowell acha surpreendente que o sentido de logos enquanto resposta à questão “por quê?” não é abordado na parte III do Teeteto, mesmo tendo sido associado ao conhecimento nos diálogos intermediários. Excetuando-se o sentido segundo o qual logos é a mera expressão verbal de um pensamento, os outros dois sentidos do termo examinados na parte III são formas diferentes de resposta à questão “o que é x?”. Por que Platão ignora o outro sentido (resposta à questão “por quê?”)? McDowell critica a solução de Cornford reclamando, assim como Robinson (1950), que ele não explica como esse sentido de logos resolveria os problemas do diálogo. (Como dito, penso que a solução de Cornford só pode ser aceita se for acompanhada dessa explicação).

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25 afinal Platão ainda não teria formulado a nova concepção de dialética que ele exibe no Sofista e no Político. Segundo McDowell, esta concepção envolve essencialmente a noção de logos como uma explicação que apela para os princípios de uma teoria: por exemplo, no caso da ortografia, a explicação apelaria os princípios da ortografia, que regem a combinação de letras para formar sílabas e palavras.

Crítica à Interpretação Lógica

A principal objeção à interpretação de Ryle é que ela faz da teoria do Sonho uma péssima teoria do conhecimento. Ryle acha que a habilidade de dar um logos, a qual deve acompanhar a crença verdadeira para elevá-la a conhecimento, é a habilidade de declarar algo. Muitos intérpretes, como Fine (1979) e Bostock (1988), replicam dizendo que, se dar um logos é expressar uma crença, então essa habilidade não diferencia crença verdadeira de conhecimento. Segundo a teoria do Sonho de Sócrates, deve ser possível ter uma crença verdadeira sem logos. Mas se logos é declaração, então, como todos (exceto os mudos) que têm uma crença qualquer são sempre capazes declará-la, todos que têm uma crença verdadeira seriam sempre conhecedores. Quem quer que tenha uma crença verdadeira já está de posse do logos por meio do qual pode expressar a sua crença. O próprio Sócrates chama a atenção para isso quando refuta rapidamente a definição de conhecimento como crença verdadeira com logos sob o sentido de logos como expressão daquilo que se pensa:

(T4) Teeteto 206d-e: “Isso é algo que qualquer um pode fazer mais ou mais rapidamente – quero dizer, indicar o que ele pensa sobre algo – se ele não é surdo ou mudo desde o nascimento. Desse modo, todos que formam algum juízo correto o terão junto com um logos, e não haverá mais lugar para o juízo correto ocorrer aparte do conhecimento”.

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26 crítica só faz sentido se supusermos que a teoria esta tentando estabelecer qual é a habilidade discursiva que o sujeito precisa adquirir para se tornar conhecedor (ou exibir para provar que conhece).

Mas se lermos com atenção o que Ryle diz, vemos que ele não só está ciente de que dizer o que se pensa não equivale demonstrar conhecimento, como também que ele não acha que a teoria está dizendo que a minha habilidade de declarar a proposição p demonstra que eu sei que p.

Fine e Bostock falam como se Ryle não estivesse ciente de que para Platão é óbvio que dizer o que se pensa não equivale a mostrar conhecimento. Mas Ryle observa justamente isso quando discute a refutação da definição de conhecimento examinada na parte II do Teeteto, segundo a qual conhecimento é crença verdadeira. Como vimos, Sócrates refuta essa sugestão dizendo que, no tribunal, os oradores persuadem os jurados a aceitar uma crença verdadeira sobre um crime sem que, com isso, os jurados passem a saber o que aconteceu na cena do crime. Ryle comenta:

“(...) a diferença entre a testemunha ocular e os jurados é que ela pode dizer o que ocorreu, enquanto eles apenas pensam o que ocorreu. É claro que eles podem colocar em palavras o que eles pensam, mas ao fazê-lo eles não estariam mostrando, do modo requerido, que eles podem dizer o que ocorreu.” (Ryle, 1990, p. 29).

O comentário revela que Ryle sabia tanto quanto Platão que expressar uma crença não demonstra conhecimento. Revela também a diferença entre quem diz algo com conhecimento e quem meramente declara uma crença: quem sabe o que ocorreu é capaz de dizer o que ocorreu, quem tem apenas crença verdadeira é capaz apenas de dizer o que pensa que ocorreu. Saber, portanto, parece envolver uma relação direta com o que se sabe.

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27 “Então Teeteto agora corrige a sua equação para ‘conhecimento é crença verdadeira meta logou [com logos]’ – os jurados tem uma crença verdadeira; a testemunha ocular apreendeu a mesma verdade, mas com uma apreensão diferente. A sua apreensão é meta logou enquanto a deles é alogon [sem logos].” (Ryle, 1990, p 28-29).

Ryle compreende a sugestão feita na parte III, de que conhecimento é crença verdadeira com logos, como uma correção da sugestão anterior. Mas essa correção realmente leva em conta a refutação que Sócrates fez da sugestão anterior, como Ryle implica no comentário acima?

Em primeiro lugar, quais são as implicações daquela refutação? A maneira como Ryle interpreta a passagem implica que nela Platão chama a nossa atenção para a rota pela qual o sujeito apreendeu o conteúdo pensado, ou dito de outro modo, para a relação entre o sujeito pensante e o objeto do seu pensamento13. Essa relação é a essência do conhecimento. Ela não se altera se o sujeito adquire a habilidade de dizer o que pensa, nem se ele de repente a perde. Essa habilidade, portanto, não é essencial. A relação entre os jurados e o crime é sempre mediada pelo discurso defeituoso do orador, portanto inadequada ao título de conhecimento. A relação entre a testemunha ocular e o crime é imediata, portanto adequada ao título de conhecimento.

Mas se o resultado da refutação é que a habilidade de dar um logos não é essencial, de que modo a definição de conhecimento que coloca tal habilidade em foco pode ser uma correção que leva em conta esse resultado? Se levasse, a teoria do Sonho precisaria observar que o logos que o sujeito deve possuir para elevar sua crença verdadeira à classe do conhecimento ele precisa ser possuído porque o sujeito apreendeu aquela verdade por meio de uma rota privilegiada. Evidentemente, a teoria não diz isso. Por isso, parece que Ryle estava errado em supor que a definição de conhecimento discutida na parte III é uma correção que leva em conta a refutação da

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28 definição de conhecimento discutida na parte II. Mas isso não equivale à objeção que estamos examinando.

Segundo a objeção que estamos examinando, o fato de a teoria do Sonho, na interpretação de Ryle, não indicar o que é que o sujeito precisa apreender para ser conhecedor faz dela uma teoria “estúpida”. Mas se esse fato realmente a torna estúpida, então a teoria é estúpida não só na interpretação de Ryle, mas também na interpretação de Fine e de Bostock, que entendem “logos” como um tipo ou outro de descrição. Pois, se levarmos a sério os resultados da parte II, nenhum tipo de discurso pode ser nem aquilo que, se apreendido, torna o sujeito conhecedor, nem aquilo que, se proferido, demonstra que o sujeito conhece. Mesmo se houver um tipo de descrição que unicamente o conhecedor, enquanto conhecedor, é capaz de oferecer14, não terá sido pela simples obtenção dessa descrição que o sujeito se tornou conhecedor (importa o meio pelo qual ele a obteve). Ao contrário, terá sido porque o indivíduo apreendeu certas coisas de maneira privilegiada que ele se tornou conhecedor e obteve a habilidade de descrever essas coisas da maneira adequada. Esse aprendizado pode, naturalmente, se dar por meio de algum tipo de logos. Por exemplo, podemos dizer que uma proposição matemática é conhecida quando se domina a sua prova. Mas, nesse caso, dominar a prova constitui a rota privilegiada que conduz ao conhecimento. A prova poderia ser decorada ou enunciada por sorte, e em ambos os casos diríamos que sujeito “tem o logos” da proposição matemática, mas nada disso mostraria que ele a conhece. Por isso, a capacidade de descrever algo parece ser tão pouco importante para se demonstrar conhecimento quanto a capacidade de declarar algo.

Evidentemente, o discurso permanece intimamente associado ao conhecimento, na medida em que, ao apreender certos conteúdos por uma rota privilegiada, o

14 Talvez não haja porque não é impossível que um desconhecedor exiba um discurso igual ao de um

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29 conhecedor precisa ser capaz de organizar as coisas que apreender sob a forma de um discurso. Podemos dizer que o conhecimento assume a forma do discurso.

Como dito, se a maneira pela qual Ryle lê a refutação da definição de conhecimento como crença verdadeira é acertada, esta refutação fornece elementos para estender a objeção de Bostock e Fine às interpretações deles próprios. Pois, mesmo sob a interpretação deles, a teoria não determina o tipo de logos que o sujeito deve apreender para se tornar conhecedor, nem determina o tipo de logos que o sujeito deve proferir para provar que conhece. De fato, é parece que não há interpretação sob a qual a teoria possa ser descrita como tentando determinar estas coisas. A maneira de resolver isso, segundo penso, é conjecturar que Platão estava, na verdade, preocupado em realizar outra coisa na parte III. Portanto, devido ao resultados da parte II, sugiro que, na parte III, Platão estava preocupado com outros assuntos, os quais, no entanto, se conectam intimamente à questão do conhecimento. Se minha sugestão estiver correta, é perfeitamente possível resgatar a interpretação de Ryle, segundo a qual, na parte III, Platão estava preocupado com o significado de declarações.

(30)

30 relação (ou demonstrar que ela existe), mas porque o logos é a forma sob a qual o conhecimento obrigatoriamente se articula.

Também a maneira como Bostock e de Fine leem a teoria do Sonho pode se encaixar nessa visão. A visão deles é que Platão está concentrado em um tipo específico de declaração: as descrições. Platão pode estar considerando isso pela razão óbvia de que esse tipo de discurso é mais apropriado ao conhecedor. O que diferencia o conhecedor daquele que tem apenas crença verdadeira não pode ser a mera posse de um logos, mas depende da rota pela qual o conhecedor as obteve – mesmo assim, há razões para crer que esse é o tipo de discurso unicamente por meio do qual o conhecimento é formulado, portanto é apropriado que Platão se concentre em discutí-lo.

No próximo capítulo, ao discutir a interpretação de Fine, teremos oportunidade de observar quais questões são suscitadas por Platão a partir da tese de que o conhecimento envolve a habilidade de fornecer descrições. O importante aqui é esclarecer que, mesmo que seja essa a tese que Platão discute na parte III, é possível que por “o conhecimento envolve a habilidade de fornecer descrições” o filósofo queira dizer não que essa habilidade é o que distingue o conhecimento da crença verdadeira, mas que descrições são a única maneira adequada por meio da qual o conhecimento pode ser formulado.

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31 sucedida). Essa interpretação merece ser mais bem avaliada no próximo estágio da pesquisa.

Capítulo 4 – A interpretação coerentista de Fine

Segundo a última linha de interpretação que abordaremos aqui, A parte III do Teeteto aponta para a noção de dialética que ele desenvolve no Sofista e no Político. Nestes diálogos, Platão sustenta que o conhecimento depende da capacidade de inter-relacionar informações. Platão defende, portanto, uma espécie de teoria coeretista da justificação epistêmica.

A proponente desta linha interpretativa é Fine. Ela defende que Platão estava preocupado em responder ao problema colocado pelo que hoje chamamos de “argumento do regresso”, que afeta a maneira como vemos a estrutura do conhecimento. O argumento é o seguinte. Suponha que eu tenho uma crença justificada c1. Alguém me pergunta de onde vem minha justificativa para c1, eu respondo que vem da minha crença c2. Evidentemente, a pessoa perguntar de novo, dessa vez sobre c2, de onde vem a minha justificativa, e eu posso responder que a justificativa é c3. A cada vez que o procedimento for repetido, a pessoa e eu regrediremos cada vez mais em direção ao que está “por trás” da minha primeira crença c1. Esse argumento suscita a questão: o regresso avança de modo linear ao infinito ou possui uma linha de chegada, isto é, alcança crenças básicas que não têm justificação nem precisam dela para serem conhecidas? Outras resposta é possível: o regresso pode avançar de maneira circular de volta para a crença c1 – é esta a resposta que Fine acredita que Platão fornece para o problema do regresso. Ela pensa que a resposta é apenas indicada no Teeteto e fornecida de modo completo em diálogos posteriores.

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32 formal sobre o conhecimento, isto é, uma teoria que tenta descrever a estrutura do conhecimento, e fornece uma resposta ao problema do regresso de descrições. Esse problema é proeminente em qualquer visão do que são os objetos do conhecimento. Mas Fine observa que quando Platão fala de conhecimento ele está normalmente se referendo ao conhecimento de objetos em oposição a proposições. De qualquer modo, para Platão o conhecimento de objetos envolve o conhecimento do que é o objeto, ou seja, envolve conhecimento proposicional. Fine diz que Platão acha que o conhecimento depende de descrições e “a descrição que certifica que alguém conhece uma coisa particular será ela mesma uma proposição” (FINE, 1979, p. 366). Por isso, o foco de Platão no conhecimento objetual não significa que ele se coloca em um ponto de vista incompatível com o adotado pelos epistemólogos contemporâneos.

(33)

33 em logos como enumeração de elementos do que como explicitação das razões. O problema do regresso e a solução oferecida pela teoria são abstratos a ponto de afetarem igualmente todas essas alternativas, e o mais provável é que Platão estivesse, neste estágio, focando no problema independentemente do modelo de logos e dos objetos do conhecimento admitidos. Aqui o ponto de Platão é simplesmente atacar a perigosa tese segundo a qual coisas inconhecíveis estão envolvidas no conhecimento das coisas conhecíveis. No estágio seguinte da discussão, no entanto, Platão indicaria qual é o sentido de logos que ele acha adequado para a definição de conhecimento.

Quanto à nossa terceira questão, sobre o sentido da restrição segundo a qual elementos não pode ter um logos, mas exclusivamente um nome, Fine vai na mesma direção que Cornford. Os elementos primários, o que quer que eles sejam, não podem ter seus componentes listados em um logos porque eles possuem componentes, mas são simples. A diferença é que, para Fine, o ponto da teoria ao postular tais elementos é colocar um fim no regresso de descrições, já que esse tal regresso é o problema que a teoria foi designada para resolver.

(34)

34 apresentação da verdadeira solução do filósofo para o problema do regresso de descrições.

(35)

35 A resposta que a teoria sonhada fornece ao regresso de descrições é muito simples: ele termina quando chegamos aos elementos que não podem ser descritos, e portanto não podem ser conhecidos.

Platão está insatisfeito com o modelo de logos oferecido pela teoria sonhada, mas o seu primeiro ataque a ela não pega neste ponto, mas sim naquilo que é a resposta ao regresso. Esse modelo de logos, mesmo se substituído, não ajuda a resolver o regresso. A não ser que se admita um regresso circular, o problema só se resolve se a teoria sonhada abrir mão da tese de que algumas coisas são indescritíveis ou da tese de que o conhecimento requer uma descrição. (É claro que, se ele escolher abrir mão da primeira e não da segunda, precisará substituir o modelo de logos por um que seja aplicável tanto a elementos quanto a complexos).

O ponto que Platão ataca é a tese da teoria de que os elementos são inconhecíveis. Analisarei a sua argumentação em outra ocasião, aqui apenas observo que Fine não a considera satisfatória, tal como quase todos os intérpretes. O fato é que Sócrates persuade Teeteto de que os elementos são conhecíveis. Para acomodar esse resultado, é preciso ou alterar a noção de descrição a fim de permitir descrições de elementos, ou abrir mão da requisição de que todo conhecimento se baseie em descrições. Segundo Fine, Platão nunca abre mão desta requisição. A solução que ele aceita, portanto, é alterar a noção de descrição de modo que elementos possam ser descritos e, assim, conhecidos. Aparentemente, Fine acredita que isso é confirmado pelo fato de ela encontrar indicações de qual seria o tipo de descrição Platão propõe em substituição à enumeração de elementos.

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36 que essa visão é característica dos últimos diálogos, como o Sofista e o Filebo, mas acredita que Platão dá indicações dessa visão já no Teeteto. A evidência crucial para a sua interpretação é a passagem em que Sócrates fornece um argumento em favor da tese de que os elementos são conhecíveis, baseado na experiência ordinária de cada um. Resumidamente, Sócrates cada um de nós pode conhecer as letras, que são os elementos da língua, bem como as notas musicais, que são os elementos da música. Os trechos cruciais para Fine são os que dizem o que é conhecer as letras e as notas. Segundo Sócrates, aprender as letras é:

(T5): Teeteto 206a: “passar o teu tempo tentando fazer nada além de distinguir as letras, cada uma apenas em si mesma, tanto quando tu as vê quanto quando tu as ouve, a fim de que tu não sejas confundido por elas serem colocadas em arranjos falados ou escritos”.

E conhecer as notas é:

(T6): 206b: “nada além de ser capaz de acompanhar cada uma delas e dizer a que corda ela pertence”.

Sócrates generaliza a partir desses dois casos e conclui que “a classe dos elementos admite conhecimento mais claro e mais importante para o domínio perfeito de cada área do conhecimento do que os complexos” (206b). Segundo Fine, Platão está afirmando que “quando alguém tem a habilidade de lidar com os elementos nesses modos diversos [descritos em T5 e T6], ele conhece a música ou as palavras perfeitamente”. Eu não conheço os elementos de uma disciplina até compreender o sistema ao qual eles pertencem. Ao mesmo tempo, não conheço o sistema até compreender como seus elementos se inter-relacionam.

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37 compostos. O conhecimento sempre requer a habilidade de inter-relacionar uma coisa com as outras do mesmo sistema.

Mas desse modo, permanece o problema do regresso de descrições. Platão continua sustentando que todo conhecimento requer uma descrição e que todo conhecimento se baseia em conhecimento. Ora, se eu conheço o ao relacionar o com m e n, eu preciso conhecer m e n, mas, para conhecer m e n, eu preciso relacioná-los com outros objetos, e assim por diante, de modo que temos ou um regresso linear infinito ou um regresso circular finito. (Não podemos ter um regresso linear finito porque isso não faz sentido, como mostrou Platão ao refutar a teoria sonhada – que proclamava uma solução nesses moldes para o regresso). Para Platão, o regresso não é linear infinito, porque ele restringe a corrente de descrições a uma área ou disciplina como a música ou a ortografia do Grego Clássico. Portanto, para Platão, o regresso é finito, mas circular. Fine concede que a objeção que afetaria o modelo de Platão é a do regresso circular de descrições. Mas ela não vê a circularidade como um problema: ela defende que Platão teria sido justamente o primeiro a reconhecer que o nosso conhecimento é sempre sistemático15.

Crítica à Interpretação Coerentista

Bostock critica a interpretação de Fine porque ele lê a passagem crucial de maneira diferente. Bostock julga que Fine salta injustificadamente do que é dito em T5 e T6 para a conclusão de que Platão está indicando qual é o tipo de descrição que alguém deve possuir para ser conhecedor. Para o intérprete, T5 e T6 implicam apenas que conhecer as letras (ou as notas) é ser capaz reconhecer cada uma delas e de

15 Fine, 1979, p. 386: “Descrições procedem de maneira circular, relacionando os elementos cobertos por

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38 distinguir cada uma delas das outras. E ele observa que essa capacidade não depende necessariamente de o sujeito possuir as descrições de cada uma das letras.

Bostock concede que o modelo de descrição que Fine pensa ser recomendado no final do Teeteto é realmente associado por Platão ao conhecimento, mas somente em diálogos posteriores, notadamente o Sofista e o Filebo. Ele não acha que Platão apresenta já no Teeteto a visão de que conhecer algo é ser capaz de inter-relacioná-lo com os outros componentes da mesma área do conhecimento. Bostock sugere, inclusive, que possivelmente Platão não havia chegado a essa visão ainda quando escreveu o diálogo.

A interpretação de Fine é atraente por ver na parte final do Teeteto uma moral positiva, a despeito do fechamento aporético do diálogo. Entretanto, a observação de Bostock me parece bem correta: a conclusão que Fine extrai de T5 e T6 parece se distanciar demais do texto e exigir que se o leia tendo em mente o que Platão escreveu depois. Não obstante, tal impressão não prova que Fine está errada. O poder da sua interpretação é tamanho que uma objeção só pode ser bem sucedida se mostrar que a moral que Platão queria que o leitor traçasse é outra. Se nenhuma outra é apresentada, eu acredito que devemos adotar aquela que parece mais provável. E interpretação que considero, por enquanto, como mais provável de estar certa, é a de Fine.

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39 pesquisa se beneficiaria de uma análise do assunto no Sofista e no Filebo, por isso tentarei achar lugar para isto dentre as tarefas do estágio futuro.

A visão de que a parte III discute o regresso de descrições e a questão da sua circularidade é compatível com a sugestão de que a passagem não está primariamente preocupada em determinar qual tipo de logos precisa ser acrescentado à crença verdadeira para elevá-la a classe de conhecimento, e sim preocupada com outras questões. Elaborei essa sugestão a partir da leitura de Ryle sobre os resultados da parte II, que mostram que o acréscimo nenhum tipo de logos seria suficiente, pois determinar se a relação entre o sujeito e um objeto é conhecimento ou não depende de determinar qual a rota por meio da qual ele apreendeu o objeto. Nesse caso, as questões que Platão tinha em mente ao escrever a parte III podem ser sobre a natureza de nomes e declarações (como sustenta Ryle), ou ele podia estar preocupado com o regresso de descrições e a ameaça da circularidade. A princípio, me parece que estas duas visões são possíveis caso se siga aquela sugestão. A avaliação dessa sugestão e a decisão entre essas visões se impõem como as principais tarefa da próxima fase da pesquisa.

Conclusões parciais e próximas etapas ***

Referências Bibliográficas

BOSTOCK, D. (1988). Plato’s Theaetetus. Oxford: Oxford University Press.

BURNYEAT, M. Socrates and the Jury: Paradoxes in Plato’s distinction Between Knowledge and True Belief. Proceedings of the Aristtelian Society, Supplementary Volumes, v. 54, p. 173-191.

(40)

40 CORNFORD, F. (1935). Plato’s Theory of Knowledge. London: Kegan Paul.

FINE, G. (1979). Knowledge and Logos in Plato’s Theaetetus. The Philosophical Review, v. 88, n. 3, p. 366-397.

MCDOWELL, J. (1973). Plato: Theaetetus. Oxford: Oxford University Press.

RYLE, G. (1939). Plato’s Parmenides (II). Mind, v. 48, n. 191, p. 302-325.

______. (1990). Logical Atomism in Plato’s Theaetetus. Phronesis, v. 35, n. 1, p. 21-46.

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