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Ana Flaksman ASPECTOS DA RECEPÇÃO DE HERÁCLITO POR PLATÃO TESE DE DOUTORADO

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Academic year: 2021

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Ana Flaksman

ASPECTOS DA RECEPÇÃO

DE HERÁCLITO POR PLATÃO

TESE DE DOUTORADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Puc-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Filosofia.

Orientadora: Profa. Maura Iglésias

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Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

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Ana Flaksman

Aspectos da recepção de Heráclito por Platão

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da Puc-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Maura Iglésias Orientadora Departamento de Filosofia da Puc-Rio

Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Departamento de Filosofia da Puc-Rio

Profa. Irley Fernandes Franco Departamento de Filosofia da Puc-Rio

Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues Departamento de Filosofia da UFRJ

Prof. Marcelo Pimenta Marques Departamento de Filosofia da UFMG

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia

e Ciências Humanas – Puc-Rio

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora e da orientadora.

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Ana Flaksman Graduou-se em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1997. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio) em 2001. Professora de Filosofia do Ciclo Básico de Graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ) desde 2006.

Ficha Catalográfica

CDD:100

Flaksman, Ana

Aspectos da recepção de Heráclito por Platão / Ana Flaksman ; orientadora: Maura Iglésias. – 2009.

197 f. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Inclui bibliografia

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Agradecimentos

A Maura Iglésias, pela orientação deste trabalho, por suas aulas sobre Platão e pelo apoio, cuidado e incentivo fundamentais durante o curso de doutorado.

A Fernando Rodrigues, Marcelo Pimenta Marques e Danilo Marcondes, pela participação na banca examinadora desta tese.

A Irley Franco, pelo ânimo e generosidade com que discutiu os temas deste trabalho, pelas sugestões valiosas, e pela participação na banca examinadora. Ao CNPq e à Puc-Rio, pelas bolsas de estudo que me concederam.

A Edna e Diná, pelos auxílios no Departamento de Filosofia.

A Maria Inês Anachoretta, pela cessão de muitos artigos sobre o Teeteto, pelo estímulo e pelas conversas que muito enriqueceram esta tese.

A Marcus Reis, pela amizade e interlocução preciosas desde minhas primeiras investigações filosóficas, e pelos livros que emprestou para a tese.

A Marieta Dantas, pelo afeto e a companhia durante o curso, e pela disponibilidade, sempre, para conversar e ajudar.

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A Anaïs Fléchet e Luciana Garbayo, pelos vários textos que me enviaram de bibliotecas estrangeiras.

A Gilberto Velho, pela leitura e as conversas sobre a tese, pela grande amizade, e por estar sempre pronto a me ouvir e encorajar.

Às amigas Gabriela Gastal e Soraya Simonelli pela escuta, o carinho e a torcida a favor, sempre.

A Margareth, pela ajuda essencial para lidar com as dificuldades da tese.

Ao meu pai e à Myriam, ao Carroberto, à Lili e ao Daniel, ao Antonio e à Maria, ao Marcus e à Alice, por todo apoio e afeto.

À minha mãe, pela proximidade e as conversas freqüentes, pelas muitas, grandes e variadas ajudas, pela revisão do texto.

Ao Caco, pelo amor, cumplicidade, suporte e ajuda sem tamanho.

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Resumo

Flaksman, Ana; Iglésias, Maura (orientadora). Aspectos da recepção de Heráclito por Platão. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Tese de Doutorado - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Uma interpretação muito comum da leitura platônica de Heráclito é aquela segundo a qual Heráclito aparece nos diálogos de Platão, especialmente no

Teeteto, como o principal defensor do fluxo extremo e o pensador que trouxe à

tona uma interdição incontornável ao conhecimento e à linguagem. Entretanto, se lemos os fragmentos de Heráclito, vemos que a questão do conhecimento foi tematizada expressamente por ele, que a possibilidade do conhecimento e da linguagem foi por ele afirmada, e que o mobilismo por ele defendido não era extremado. Por esta razão, essa interpretação freqüente do Teeteto produz um estranhamento que pode e deve ser convertido num desafio para a leitura de Platão e de Heráclito. Esta tese busca mostrar, a partir principalmente da leitura da primeira parte do Teeteto, como Platão compreendeu e transpôs o pensamento de Heráclito. Algumas conclusões da tese são que Platão, no Teeteto, não transmitiu de Heráclito a imagem exagerada de um mobilista radical, e sim distinguiu as teses mais moderadas de Heráclito das opiniões mais extremadas de seus adeptos. E, se tudo indica que Heráclito nunca dissociou a tese do fluxo universal de outras teses suas, como por exemplo a tese da unidade dos opostos, Platão por sua vez não isolou a tese do fluxo, de modo que não se deve considerar que ele atribuiu a Heráclito uma versão unilateral e empobrecida de sua filosofia. Por fim, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, no Teeteto, Platão critica somente o heraclitismo exagerado, dando a entender que está aceitando e considerando respeitável a versão moderada da teoria do fluxo universal, tal como defendida por Heráclito.

Palavras-chave

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Abstract

Flaksman, Ana; Iglésias, Maura (advisor). Aspects of Plato’s reception of Heraclitus. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Doctoral Thesis - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A current interpretation of Plato’s reading of Heraclitus maintains that Heraclitus appears in Plato’s dialogues, mostly in Theaetetus, as the main defender of the extreme flux and as the philosopher who asserted an irrevocable interdiction of knowledge and language. However, when we read Heraclitus’ fragments, we can see that he expressly considered the theme of knowledge, that he recognized the possibility of knowledge and language, and that the flux he defended was not extreme. For this reason, this frequent interpretation of

Theaetetus produces a kind of uneasiness that could and should be turned into a

challenge to the reading of Plato and Heraclitus. Basing its arguments mainly of the first part of Theaetetus, this thesis intends to show how Plato understood and translated Heraclitus thought. One of its conclusions is that in Theaetetus Plato did not transmit an exaggerated image of Heraclitus as a radical flux defender, but rather distinguished Heraclitus’ more moderate theories from his followers’ more radical opinions. If most likely Heraclitus never dissociated the universal flux doctrine from other of his theories, as the doctrine of the unity of opposites, and neither Plato did isolate the theory of flux, we should not consider that Plato imputed to Heraclitus an unilateral and impoverished version of heraclitean philosophy. Finally, contrarily to what may seem at first sight, in Theaetetus Plato condemns only exaggerated heraclitism, suggesting that he accepts and respects the moderate version of the theory of universal flux as proposed by Heraclitus himself.

Keywords

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Sumário

1. Introdução 11

1.1 O conhecimento de Platão sobre Heráclito e os heraclíticos 11

1.2 A história da conservação dos escritos de Heráclito 16

1.3 Platão lendo seus predecessores 19

1.4 O que buscar na leitura platônica de Heráclito 22

1.5 Tomando o Teeteto como fio condutor 25

1.6 Roteiro da tese 27

2. Heráclito e o conhecimento: o conflito aparente entre os fragmentos e o testemunho de Platão 30

2.1 A questão do conhecimento em Heráclito 30

2.2 O lógos heraclítico 32

2.3 A psyché em Heráclito 45

2.4 Heráclito e a escuta da phýsis 61

2.5 Platão e Heráclito poderiam ser aliados no Teeteto? 68

3. Considerações iniciais sobre o Teeteto 71

3.1 O Teeteto na cronologia da obra platônica 71

3.2 O prólogo e o diálogo introdutório 75

3.3 Começa a discussão sobre o conhecimento 78

3.4 A primeira definição de Teeteto 80

3.5 A associação com Protágoras 94

(11)

4. Platão lendo Heráclito no Teeteto 113

4.1 As referências a Heráclito e a outros filósofos 113

4.2 A primeira menção a Heráclito 114

4.3 A relação entre as três teses em diversas leituras 119

4.4 A exposição da doutrina secreta e da teoria da sensação 131

4.5 Começa a crítica às três teses 148

4.6 A crítica ao heraclitismo extremo 151

5. Platão, os fragmentos do rio e a tese heraclítica do fluxo 156

5.1 O Teeteto e as teses atribuídas a Heráclito 156

5.2 O suposto erro de Platão 158

5.3 O debate sobre a origem e o significado dos fragmentos do rio 162

5.4 A hipótese da autenticidade e suas implicações 172

6. Considerações finais 179

6.1 O percurso da pesquisa 179

6.2 A riqueza da leitura platônica de Heráclito 184

7. Referências bibliográficas 187

7.1 Fontes primárias 187

7.2 Fontes secundárias 189

(12)

1.

Introdução

1.1

O conhecimento de Platão sobre Heráclito e os heraclíticos

Há fortes evidências de que Platão teve acesso ao livro de Heráclito em sua forma original, e não apenas possuiu um conhecimento indireto de sua filosofia.1 Platão é também uma fonte importante de citações e de doxografia a respeito de Heráclito, assim como é uma das pouquíssimas fontes para nosso conhecimento do heraclítico Crátilo.2 E não é uma fonte qualquer: é a mais antiga

e a primeira cujo texto se conservou integralmente até os dias de hoje.

Há muito pouca informação confiável sobre a vida e a atuação filosófica de Heráclito. Em contraste, existe uma abundante biografia lendária, composta de anedotas, de descrições de seu caráter, e de versões sobre a sua morte. Os dados seguros sobre a vida de Heráclito são que ele nasceu em Éfeso, colônia grega na Ásia Menor – e território hoje pertencente à Turquia –, em data estimada em cerca de 544 a.C.3 Diógenes Laércio, cuja obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres é

1 Ver um pouco mais adiante, ainda nesta Introdução, alguns dos indícios de que é muito

implausível que Platão tenha tido somente um conhecimento indireto do texto de Heráclito.

2 Possuímos somente duas fontes independentes de doxografia sobre Crátilo, das quais todas as

outras fontes parecem ser tributárias: o Crátilo de Platão e três passagens da Metafísica de Aristóteles. Cf. Serge Mouraviev, “Cratylos D’Athenes”, in R. Goulet (dir.), Dictionnaire des

Philosophes Antiques (Paris: CNRS, 1994), vol. II, p. 506.

3 Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (Brasília: EdUnB, 1988), IX, 1. A

(13)

a fonte mais rica para seus dados biográficos, apresenta as diversas variantes que já perpassavam sua fama no séc. III d.C. Em sua obra, ele diz que Heráclito era filho de Blóson e membro de uma família aristocrática de Éfeso. Depois de se recusar a elaborar as leis e a participar do governo de sua cidade, e de renunciar, em favor do irmão, ao direito de reinar, teria acentuado o desprezo que já manifestava pelos efésios – por terem banido seu amigo Hermodoro –, afastando-se do convívio com afastando-seus concidadãos, primeiro retirando-afastando-se para o templo de Ártemis, onde foi jogar ossinhos com as crianças, e depois indo viver nas montanhas. Lá teria escrito seu livro e em seguida tê-lo-ia depositado no templo da deusa Ártemis. Teria depois adoecido e retornado à cidade. Sua morte, ocorrida em torno de 474 a.C., é ora atribuída à hidropisia, ora ao ataque de cães, ora a outra doença.4

Que o livro de Heráclito tenha de fato existido não foi sempre consenso entre os estudiosos. Kirk, por exemplo, afirmou que o livro poderia ser o resultado da compilação dos ditos de Heráclito por outrem. Entretanto, muitos foram os intérpretes de Heráclito que sustentaram, seguindo diversos testemunhos e com base na desenvoltura com que muitos autores o citaram, que o livro de fato existiu.5 Hoje não se encontra mais quem duvide da real existência do livro do Efésio.

O livro de Heráclito circulou por um período e, ao longo do tempo, se perdeu, assim como as obras de todos os pré-socráticos. O que se conhece da obra do Efésio, os seus fragmentos, deve-se a citações de suas palavras feitas por outros autores. Essas citações, nas obras em que aparecem, são trechos contextualizados, e não fragmentários. Os autores que citam os célebres fragmentos são, portanto – e isso se revela no contexto das citações –, também seus intérpretes.

fragmento 40, em que Pitágoras, Xenófanes e Hecateu – homens que morreram entre 510 e 480 a.C. – são citados.

4 Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), IX, 1-6.

5 Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (Londres: Cambridge University Press, [1954]

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A circulação de cópias do livro de Heráclito – que teria ocorrido durante a Antiguidade até os primeiros séculos da era cristã – e a disseminação oral de suas idéias fizeram com que a sua filosofia logo ultrapassasse as fronteiras das cidades gregas da Ásia Menor. Vale notar que a transmissão oral, que era o principal meio de difusão de idéias e obras dos filósofos pré-socráticos, não foi tão intensa no caso do Efésio, pois ele não teve discípulos diretos. Mas isso não impediu que sua obra fosse disseminada e ganhasse fama rapidamente, a ponto de logo aparecerem partidários – reais ou presumidos – de suas teorias que se autoproclamavam heraclíticos.6 A rapidez e a amplitude da propagação da obra de Heráclito se evidenciam quando notamos, por exemplo, que Empédocles e Demócrito – quase seus contemporâneos – estavam muito familiarizados com sua obra e sua filosofia.

No século V a.C., a obra do Efésio chegaria a Atenas. Diógenes Laércio, além de contar que em meados do séc. V Eurípides apresentou o livro de Heráclito a Sócrates, fala também de Crátilo, um ateniense que se dizia um heraclítico e, de fato, passou a ser considerado o “discípulo” de Heráclito por excelência.7 Tudo o que hoje sabemos sobre Crátilo e sobre suas idéias depende de fontes indiretas e está de um modo ou de outro ligado ao heraclitismo que os próprios antigos lhe atribuíram. Estima-se que Crátilo tenha nascido aproximadamente em 450 a.C., e que ele tivesse cerca de 20 anos menos que Sócrates e 20 anos mais que Platão.8

Platão, que viveu entre os fins do séc. V e a primeira metade do séc. IV a.C., é o autor mais antigo a citar Heráclito. Apenas duas são as suas citações de Heráclito, mas muitas são as referências a ele, sejam elas explícitas – o que ocorre em pelo menos seis de seus diálogos –, sejam implícitas – o que parece poder ser encontrado ao longo de toda a sua obra. Platão também se referiu diversas vezes aos heraclíticos, e sobretudo a Crátilo, que é o personagem central do diálogo que leva seu nome no título.

1991), p. 7.

(15)

Em muitos relatos a respeito da vida de Platão consta que, quando ele ainda era jovem, teve contato não apenas com a filosofia de Sócrates, mas também com a filosofia de Crátilo, o auto-intitulado heraclítico. Aristóteles diz o seguinte sobre a relação entre Platão e Crátilo:

Pois, tendo se familiarizado ainda jovem com Crátilo e com as opiniões de Heráclito, segundo as quais todas as coisas sensíveis fluem sempre e não há ciência acerca delas, [Platão] sustentou esta doutrina também mais tarde. Por outro lado, ocupando-se Sócrates dos problemas morais e não da natureza em seu conjunto, mas buscando neles o universal, e tendo sido o primeiro que aplicou o pensamento às definições, [Platão] aceitou seus ensinamentos, mas por aquele motivo [por estar familiarizado com as opiniões de Heráclito] pensou que isto [o universal] se produzia em outras coisas, e não nas sensíveis.9

O heraclitismo de Crátilo é afirmado por quase todas as nossas fontes, a começar por Platão (Crátilo, 440e; 401d-422c) e Aristóteles (Metafísica 987a 32; 1010a 7), e depois por diversos biógrafos de Platão e por comentadores de Aristóteles. Das doutrinas de Heráclito, consta que Crátilo professava tanto a tese do “fluxo universal” quanto a tese da “retidão natural dos nomes”. Em sua obra, Platão mostra ter conhecido e discutido essas duas doutrinas, o que fica claro quando observamos que ambas constituem os temas centrais do diálogo Crátilo e que a primeira delas (a doutrina heraclítica do fluxo universal) é uma das teses mais discutidas no diálogo Teeteto.

(16)

Não se sabe se Crátilo escreveu alguma obra, nem se ele ensinou sistematicamente, e nossas fontes para o conhecimento de suas doutrinas são pouquíssimas. As principais fontes, o Crátilo de Platão e a Metafísica de Aristóteles, atribuem a Crátilo as seguintes teses: “todas as coisas possuem nomes justos conformes à sua natureza” (Crátilo, 383a-384a, 390d-e, 427d); “todas as leis são igualmente justas” (Crátilo, 429b); “é impossível dizer o falso” (Crátilo, 429d); “todas as coisas estão sempre em fluxo” (Crátilo, 401d-422c, 436e-437a;

Metafísica, 987a 32, 1078b 12, 1010a 7); e “das coisas que mudam não é possível

dizer verdade, e não se deve dizer nada” (Metafísica, 1010a 7-13).

Todos os antigos sustentam que a tese do fluxo universal defendida por Crátilo tem sua origem em Heráclito. Mas alguns testemunhos sobre Crátilo mostram que ele foi freqüentemente considerado “mais heraclítico” que o próprio Heráclito no que toca à teoria do fluxo. Aristóteles, por exemplo, diz o seguinte sobre a relação e sobre as diferenças entre Crátilo e Heráclito a respeito dessa teoria:

Além disso, estes filósofos, vendo que toda esta natureza sensível se move, e que nada se diz com verdade do que muda, acreditaram que, ao menos acerca do que muda sempre totalmente, não é possível dizer a verdade. Desta concepção surgiu, com efeito, a opinião mais extremada entre as mencionadas, a dos que afirmam que heraclitizam, tal como Crátilo, que, finalmente, acreditava que não se devia dizer nada, limitando-se a mover o dedo, e censurava Heráclito por haver dito que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois ele acreditava que [não é possível entrar] nenhuma.10

διήκουσε Σωκράτους: ἐκείνου δ᾽ ἀπελθόντος προσεῖχε Κρα τύλῳ τε τῷ Ἡρακλειτείῳ. (Diogenes Laertios, op. cit., III, 6).

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Uma série de estudiosos modernos, no entanto, nega que Heráclito tenha formulado uma tese do fluxo universal, e considera inautênticos os fragmentos do rio (mais freqüentemente os fragmentos B 91 e B 49a), que são os que melhor expressam esta tese.11 Eles entendem que Platão e Aristóteles propagaram uma versão cratiliana (isto é, deformada) de Heráclito, pois o Efésio na verdade estaria ressaltando o tempo todo a estabilidade na mudança e no fluxo, e não o fluxo universal. Alguns estudiosos também acreditaram que Platão teve um conhecimento muito limitado de Heráclito e pode mesmo não ter conhecido as suas sentenças autênticas mais do que nós as conhecemos.12 Mas essa idéia não parece ser muito razoável, e isso por várias razões: os “ecos” das sentenças heraclíticas em uma multiplicidade de escritos pré-platônicos mostram a grande difusão que o livro de Heráclito deve ter tido na Jônia, Grécia e Magna Grécia até o tempo de Platão.13 Nessa época, uma multiplicidade de cópias devia circular; e que elas circulavam em Atenas é indicado não só por Diógenes (quando conta que Eurípedes deu uma cópia a Sócrates), mas ainda pelo fato de ter-se formado em Atenas, em torno de Crátilo, uma corrente de heraclíticos. Além disso, é indubitável o interesse de Platão pelas doutrinas do filósofo de Éfeso, que é mencionado e discutido explícita ou implicitamente ao longo de toda a sua obra. Tudo isso leva a crer que Platão, um pensador ávido de saber que teve uma relação com Crátilo, certamente buscaria ter um conhecimento direto da fonte das doutrinas deste, que era acessível na Atenas de seu tempo.

1.2

A história da conservação dos escritos heraclíticos

ποταµῷ οὐκ ἔστιν ἐµβῆναι· αὐτὸς γὰρ ᾤετο οὐδ’ ἅπαξ. (Aristóteles, Metafísica, IV, 5, 1010a 7-15).

11 Este tema será tratado com mais detalhe no capítulo 4, no qual serão discutidos os argumentos

dos defensores da inexistência de uma tese do fluxo em Heráclito.

12 Este é o caso de G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 15.

13 Cf. Rodolfo Mondolfo e Leonardo Tarán. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (Florença: La

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Depois de Platão, Aristóteles foi o primeiro a conservar citações de Heráclito. Ele fez sete citações e, assim como Platão, realizou discussões bastante detalhadas do pensamento do Efésio. Teofrasto, discípulo direto de Aristóteles, foi o primeiro autor a tentar sistematizar a filosofia e a reunir os dados biográficos mais importantes de Heráclito e de outros filósofos pré-socráticos. Sua obra se perdeu, mas é provável que tenha constituído uma das bases para os relatos registrados por Diógenes Laércio.14

O interesse por Heráclito não parou de crescer e foi de fato muito intenso durante o período helenístico. Muitos foram os autores e as obras, pertencentes a diferentes escolas e movimentos, que dele se ocuparam. O ápice da influência filosófica de Heráclito foi alcançado na obra dos estóicos, que, em conjunto com os neoplatônicos e os primeiros doutrinadores cristãos, citaram a maior parte dos fragmentos heraclíticos. As mais abundantes citações foram feitas pelos autores cristãos Clemente de Alexandria, Hipólito de Roma e Orígenes de Alexandria, responsáveis pela preservação de 47 fragmentos.

Outra fonte importante para os fragmentos originais de Heráclito foi produzida pelo antologista Estobeu, no séc. V d.C. Kahn lembra que a antologia de Estobeu foi compilada quase um milênio depois da composição original do livro do Efésio e afirma que, embora seja provável que muitas de suas citações fossem de segunda mão (feitas com base em antologias ou autores mais antigos), não há por que duvidar de que o livro ainda estivesse disponível em sua forma original nesse período.15 A partir do século VI d.C., a importância e a memória do pensamento de Heráclito quase se extinguiram. Afora a difusão abundante, durante a Idade Média, da imagem pictórica do Heráclito melancólico e choroso em oposição ao Demócrito alegre e risonho, pode-se dizer que nesse período Heráclito permaneceu praticamente esquecido. Entretanto, seis fragmentos foram conservados durante o Medievo, principalmente por autores e dicionários bizantinos. É curioso observar, ainda assim, que ao longo de quatro séculos não se fez nenhuma citação da obra de Heráclito – período este situado entre as citações

(19)

do antologista Estobeu (séc.V d.C.) e do dicionário Etymologicum Magnum (séc. IX d. C.). O último autor a citar Heráclito foi Alberto Magno (1193-1280).

Na Idade Moderna, começa-se a reunir, compilar e editar as citações de Heráclito espalhadas em muitas obras. O primeiro a fazê-lo foi o compilador e editor francês Henri Estienne, também conhecido por seu nome latino Henricus Stephanus, em seu Poesis Philosophica, publicado em 1573. Diversas outras edições se lhe seguiram, entre elas a do filósofo e teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (séc. XVIII) e a do filólogo inglês Ingram Bywater (séc. XIX). Em 1901, o filólogo alemão Hermann Diels publicou seu volume dedicado a Heráclito, Herakleitos von Ephesos, no qual reuniu os fragmentos que valem até hoje como padrão do corpo heraclítico. Em 1903, Diels inseriu o conjunto de fragmentos heraclíticos na obra Die Fragmente der Vorsokratiker, que apresenta os fragmentos de Heráclito e dos demais pré-socráticos. Essa obra foi revista e expandida três vezes por Diels, e foi finalmente revisada e editada duas vezes por Walther Kranz.16 Diels considerou 131 fragmentos de Heráclito autênticos (sem contar o fragmento 109, que é igual ao fragmento 95) e adotou um critério extrínseco ao ordená-los, a saber, a ordem alfabética dos nomes dos autores que os citaram. A única exceção é a citação que engloba os dois primeiros fragmentos, considerados, desde Sexto Empírico, componentes da introdução do livro de Heráclito. Os fragmentos catalogados por Diels, bem como sua numeração, são até hoje padrão e referência para as edições dos textos remanescentes de Heráclito. Entretanto, desde Diels até hoje, vários são os autores que se ocupam com o estabelecimento do texto heraclítico, propondo-lhes também diferentes ordenações e numerações.

Nos séculos XIX e XX, o pensamento de Heráclito despertou enorme interesse e teve bastante influência sobre a obra de grandes filósofos, como Hegel, Nietzsche e Heidegger, que não apenas buscaram mostrar o papel de Heráclito na história da filosofia grega, como também procuraram deixar clara a atualidade de seu pensamento. Além disso, a filosofia de Heráclito tem sido objeto de inúmeros

16 Nesta obra, são apresentadas, para cada pré-socrático, tanto as citações de seus livros

transmitidas por escritores posteriores, quanto material de fonte secundária, conhecido como

testimonia (comentários sobre as obras, relatos sobre as vidas e descrição das idéias filosóficas dos

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estudos realizados por filólogos, pesquisadores de filosofia antiga e de história da filosofia mundo afora.

O Heráclito que aparece nas páginas de seus diversos intérpretes, dos mais antigos aos mais contemporâneos, carrega as múltiplas e controversas imagens que dele se construíram nas sucessivas leituras, citações, paráfrases, imitações, reconstituições e interpretações de seus escritos. De todos os seus leitores, Platão foi o primeiro a estabelecer a oposição entre Heráclito e Parmênides, e a evocar a imagem dos “mobilistas e imobilistas”, que desde então é muito célebre e constitui um lugar comum quase onipresente na história da filosofia.17 Além disso, foi através dos diálogos de Platão – tenham eles sido bem compreendidos ou não – que se constituiu a célebre interpretação de Heráclito, predominante até os dias de hoje, como a do pensador cuja tese mais importante, definidora e decisiva é a que diz pánta reî, tudo flui.18

1.3

Platão lendo seus predecessores

Quando buscamos chegar a uma compreensão apropriada do ponto de vista histórico, e expressiva do ponto de vista filosófico, dos enunciados de Heráclito e dos demais pré-socráticos, cujas obras se perderam, podemos dar de antemão uma certa prioridade à nossa testemunha mais antiga, que é Platão. Mas tanto Platão quanto os outros autores tardios que nos transmitiram as citações dos pré-socráticos, embora tivessem acesso ou familiaridade com os escritos que citavam, ao mesmo tempo deles se apropriavam para seus próprios propósitos. Esses autores, Platão inclusive, transmitiram seu próprio pensamento através de sua referência a Heráclito e aos demais predecessores.

17 No que concerne à gênese da oposição entre mobilistas e imobilistas, lê-se com proveito o artigo

de Francesco Fronterotta, “Réontes kaì Stasiotai: Héraclite et Parménide chez Platon”, Les Cahiers

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O primeiro problema que se apresenta quando buscamos ver Platão como uma fonte para o conhecimento de Heráclito, e dos pré-socráticos em geral, é que Platão não é um historiador da filosofia. Muitos argumentos foram oferecidos para sustentar a idéia de que Platão nem fez nem poderia fazer história ou historiografia filosófica. Um dos argumentos usados se baseia em declarações, encontradas na própria obra platônica, de que tudo o que foi produzido antes de Platão seria ou investigação sobre a natureza, ou mito, ou sofística. Este argumento não é no entanto o único utilizado, nem é aceito por todos, pois pode-se considerar problemática uma leitura que, por levar tão a sério as passagens do texto platônico em que os seus antecessores são tratados de forma severa, chega ao ponto de concluir que Platão não os considerou filósofos.19

Mas outra razão pode ser apresentada: trata-se do argumento que ressalta que a dimensão cronológica linear – a dimensão em que a filosofia pode ser concebida historicamente – não é uma preocupação de Platão e é algo que ele subverte freqüentemente.20 Além disso, pode-se alegar, como faz Monique Dixsaut, que, quando um filósofo aborda historicamente o passado da filosofia, ele delimita o campo da filosofia, constrói sua continuidade e concebe a si mesmo como cume ou ponto de ruptura dessa história. Concordo com esta autora, quando ela diz:

Essa história não existe senão por um movimento de uma verdade que ele, filósofo, detém mais completamente; ele é portanto o único capaz de elevar à sua verdade os filósofos que o precederam e de revelar os erros ou insuficiências deles. Todas as outras filosofias são assim convertidas em momentos de um devir que conduz a uma filosofia determinada, seja de maneira contingente – o que nos faz lembrar dos “soldados não adestrados” de Aristóteles (Metafísica A, 985a) – ou necessária, como em Hegel. Se é na constituição desse

19 Cf. Monique Dixsaut e Aldo Brancacci, “Introduction”, in Platon: Source des Présocratiques

(Paris: Vrin, 2002).

(22)

tempo orientado que reside a possibilidade de uma história filosófica da filosofia, tudo mostra que Platão a recusa.21

Platão, de fato, não parece abordar seus predecessores a partir da suposição de um “tempo orientado”. É para Aristóteles (Metafísica, I, 6, 987a32-b10) que Platão é um resultado ou uma “culminação”. Para ele, Platão teria primeiro se familiarizado com Crátilo, o heraclítico, e com as opiniões de Heráclito, e deles teria conservado a concepção de uma realidade sensível em fluxo perpétuo, sobre a qual não haveria ciência; teria em seguida retido de Sócrates seu interesse pelos problemas éticos e pelas definições; e teria também se inspirado na teoria pitagórica dos números. Assim, finalmente, pensando que o universal não se produzia nas coisas sensíveis, teria separado as idéias das coisas sensíveis e teria trocado para o nome de participação aquilo que os pitagóricos chamavam de imitação.

Segundo Dixsaut, não se pode atribuir a Platão uma abordagem histórica de seus antecessores também em virtude de seu anonimato obstinado. Como observa a autora, a palavra de Platão é polifônica, habitada por outras palavras, e seu uso do discurso é impuro, é híbrido: “ele integra ao seu discurso, ao discuti-los, os discursos dos outros, e assim os torna presentes”.22 Platão nem é personagem, nem fala em primeira pessoa em seus diálogos.23 Além disso, aqueles que para Platão seriam antecessores, como por exemplo Protágoras e Górgias, muitas vezes aparecem como contemporâneos, pois são contemporâneos de Sócrates, que na maioria dos diálogos é o protagonista.

Essa ausência de uma história da filosofia na filosofia de Platão também parece se relacionar com a concepção platônica do pensamento como diálogo. Isso significa que para ele não haveria pensamentos passados ou ultrapassados: cada um mereceria ser examinado agora, nesse presente que é o do diálogo. Seus

21 Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, “Introduction” (op. cit.), p. 13. 22 Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, “Introduction” (op. cit.), p. 14.

23 A Carta Sétima é o único texto platônico ostensivamente autobiográfico. Mas ela tem a

(23)

encontros com outros pensadores seriam então precisamente encontros, e engendrariam um exame filosófico e não uma exposição histórica. Nesse sentido, o que Platão vê nos discursos dos que o precederam são, não doutrinas antigas, e sim questões e soluções que devem ser retomadas e postas à prova. Talvez, para Platão, conhecer bem textos e doutrinas de outros autores signifique sobretudo lhes emprestar algo que, mesmo sem desenvolver explicitamente, esses textos e doutrinas permitem pensar. Talvez signifique reconduzir cada tese aos seus pressupostos e mostrar suas conseqüências, mesmo sabendo que seu autor não as enxergou forçosamente. Platão não busca simplesmente encontrar e transmitir a sabedoria dos antigos, e sim procura extrair, daquilo que eles dizem, sua inteligência de aspectos da realidade. Nesse sentido, pode-se dizer até que Platão não tem predecessores; ele só tem interlocutores. Mas, ainda que Platão utilize, distorça, recrie, desdobre e se aproprie do pensamento de outros autores, ele ao mesmo tempo é fonte indispensável – e não apenas secundária – para o nosso conhecimento desses mesmos autores.

1.4

O que buscar na leitura platônica de Heráclito

(24)

físico seria tal como Heráclito e os heraclíticos descrevem a realidade em sua teoria do fluxo.

Segundo essa leitura, a distinção platônica entre ser e devir também seria fruto de uma adoção e fusão das filosofias de Parmênides e Heráclito: o domínio do ser consistiria em coisas que, similares ao ser de Parmênides, nunca mudam em nenhum sentido, e o domínio do devir seria constituído pelas coisas sensíveis, que, tal como teria dito Heráclito, não são estáveis de nenhum modo.24 Essa interpretação da influência do pensamento de Heráclito na filosofia de Platão pode ser considerada correta ou incorreta, razoável ou exagerada, rica ou restritiva; independentemente disso, porém, ela nos mostra que a importância da leitura platônica de Heráclito não está somente no que essa leitura tem a contribuir para o conhecimento da filosofia de Heráclito, mas também no que ela pode revelar acerca da própria filosofia de Platão.

Mais de um objetivo, portanto, pode dirigir uma investigação sobre a leitura platônica das idéias heraclíticas. Um desses objetivos pode ser verificar se Platão concordou com as teses de Heráclito, ou com parte delas, tal como as entendeu. Há, na literatura acadêmica sobre o tema da recepção platônica de Heráclito, um enorme interesse e muita controvérsia a esse respeito. Particularmente no diálogo Teeteto, há duas leituras antagônicas muito comuns: enquanto uma sugere que Platão concorda com a doutrina heraclítica do fluxo no que concerne às coisas e qualidades sensíveis, a outra sugere que Platão absolutamente não concorda com Heráclito, e que é o jovem Teeteto quem precisa se comprometer com a doutrina heraclítica na primeira parte do diálogo, por só assim conseguir sustentar sua definição de conhecimento. Mas, embora o tema da aprovação ou reprovação, da adoção ou rejeição das teses de Heráclito por parte de Platão seja um assunto muito relevante e seja inevitável abordá-lo, não é o principal objetivo da tese discuti-lo. Menos ainda é objetivo da tese tomar como ponto de partida uma posição definida sobre o modo como Platão julgou Heráclito. Uma das razões disto é que me parece questionável a crença de que se

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deve tomar posição sobre se Platão concordou ou discordou de Heráclito de antemão, fazendo essa decisão funcionar como uma estratégia prévia de leitura que dá unidade e coesão aos argumentos apresentados em um ou mais de um diálogo, antes de percorrê-los um a um. Creio, ao contrário, que toda tomada de posição a respeito do modo como Platão julgou Heráclito deve ser fruto de uma leitura passo a passo de qualquer texto platônico em que as teses heraclíticas são discutidas.

Outro objetivo de um exame da recepção de Heráclito por Platão pode ser a verificação de quais teses imputadas a Heráclito num ou noutro diálogo platônico podem ser atribuídas a Heráclito historicamente. Mesmo considerando que Platão não foi um historiador da filosofia, me parece ser inevitável buscar pensar se – e em que medida – a transmissão que ele fez do pensamento de Heráclito é historicamente verídica ou sobretudo filosoficamente relevante; se, do ponto de vista histórico, sua transmissão é abrangente, multifacetada e rica ou excessivamente seletiva, parcial, unidimensional. O problema de uma abordagem dirigida por esse propósito é que ela pode pretender partir de um conhecimento prévio e impecável do “Heráclito histórico”, para julgar se Platão chegou a compreender Heráclito ou não. E pretender ter mais acesso ou competência para compreender bem Heráclito do que Platão seria evidentemente uma atitude equivocada e infrutífera. Todavia, o recurso a fontes e leituras de Heráclito distintas das de Platão não precisa ser feito com o intuito de julgar se Platão entendeu Heráclito “corretamente ou não”, se foi “fiel historicamente” ou não. Além disso, esse recurso pode ser muito proveitoso quando o objetivo for ver o que Platão enfatizou e o que ele deixou de lado ou tratou mais brevemente no pensamento de Heráclito, enfim, que imagem de Heráclito ele desenhou e transmitiu, e com que propósito. É neste sentido que procurarei ver se há uma correspondência substancial entre o testemunho platônico e aquilo que podemos saber a partir dos fragmentos de Heráclito e de outros testemunhos. Mas, se este é um dos objetivos desta tese, não será também por esta questão que ela se guiará inicialmente.

(26)

determinadas teses a Heráclito e a seus adeptos, examinou e criticou essas teses tal como elas apareceram a seus olhos, e julgou fundamental fazer essa exposição e essa crítica para construir sua própria filosofia. Além disso, importa que freqüentemente se disseminou uma visão caricatural da leitura platônica de Heráclito, visão esta que formou uma das imagens mais correntes do Efésio: a do mobilista radical cuja ontologia implicaria a impossibilidade do conhecimento e da linguagem. Portanto, meu primeiro e também principal objetivo nesta tese é examinar a interpretação que Platão constrói dos discursos e idéias heraclíticas de que ele fala. É ver os diferentes modos e contextos em que Heráclito é trazido à tona, compreendido, criticado. É investigar como Platão interpretou, transpôs e transmitiu suas idéias.

1.5

Tomando o Teeteto como fio condutor

Platão, quando se refere a seus antecessores, raramente os cita e nem sempre os nomeia. No caso de Heráclito, as citações textuais ou quase textuais são pouquíssimas25 e as referências explícitas não são muitas,26 mas as alusões

indiretas, os reflexos e os ecos de expressões heraclíticas são numerosos.27 Para trabalhar o tema da leitura platônica de Heráclito, pode-se partir da idéia ainda

25 Platão conservou dois dos fragmentos de Heráclito listados na edição mais usada dos

fragmentos, a de Diels e Kranz: os fragmentos 82 e 83, que se encontram em Hípias Maior (289a-b). Mas há também versões platônicas quase idênticas a versões dos fragmentos conservadas por outros autores e listadas por Diels e Kranz. Este é o caso, por exemplo, dos fragmentos 91 – que aparece como tendo sido citado por Plutarco, mas também o foi por Platão, no Crátilo (402a) – e 10 – que aparece como tendo sido citado por Pseudo-Aristóteles, mas também o foi por Platão, no

Sofista (242d). Cf. H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (7ª ed., Zürich,

Weidmann, 1954).

26 As menções diretas a Heráclito aparecem em quatro diálogos: Teeteto (152e, 160d, 179d, 179e), Crátilo (401d, 402a, 402b, 402c, 440c, 440e), Banquete (187a), Hípias Maior (289a, 289b), República VI (498b).

27 Mondolfo e Tarán, por exemplo, ao fornecer uma espécie de catálogo dos fragmentos de

Heráclito que encontraram alusão ou eco, mais ou menos significativo, em Platão, listam mais de cinqüenta passagens de 15 diálogos platônicos. Cf. R. Mondolfo e L. Tarán. Eraclito:

(27)

mais abrangente de que o pensamento de Heráclito impregna o todo do pensamento de Platão. De fato, num certo sentido, Heráclito está em todo lugar, assim como Parmênides, Sócrates, os sofistas e outros também estão. Platão parece tê-los incorporado, e com eles nutrido todo o seu pensamento. Essa é uma das razões pelas quais é praticamente impossível determinar precisa ou exaustivamente a relação que sua filosofia tem com Heráclito e outros antecessores e contemporâneos.

Ao planejar e realizar este exame da presença do pensamento heraclítico nos diálogos de Platão, busquei resistir à heraclitização sistemática de Platão, evitando a generalização e a indistinção dessa presença. Por essa razão – e por outras razões que serão apresentadas adiante –, nesta tese, em lugar de partir do exame da totalidade das referências diretas e indiretas a Heráclito nos muitos diálogos platônicos, decidi que o ponto de partida e o fio da meada de toda a discussão seria o exame de um único diálogo, o Teeteto, em que Heráclito é discutido explícita e extensamente. Não deixo de utilizar, em alguns momentos, dados de outros diálogos que se referem aos mesmo assuntos, que se assemelham ou produzem contraste, que complementam ou articulam os passos do Teeteto. Todavia, sempre que outros diálogos são introduzidos na discussão, isso é feito a partir do percurso de leitura do Teeteto.

(28)

do conhecimento foi tematizada expressamente por ele, e que a possibilidade e a importância do conhecimento e da linguagem foram por ele afirmadas.

Já que uma primeira leitura do Teeteto pode facilmente produzir a estranha impressão de que a imagem de Heráclito ali desenhada não corresponde à imagem que se forma a partir do que restou de seu próprio texto, esse estranhamento pode e deve se converter num desafio para a leitura de Platão e de Heráclito: afinal, Platão estaria de fato atribuindo um mobilismo extremo a Heráclito, no Teeteto? Ou será que sua exposição da tese heraclítica do fluxo, no

Teeteto, ao ser realizada em etapas que progressivamente vão apresentando

versões mais e mais radicais desse mobilismo, se refere apenas inicialmente a Heráclito, para depois referir-se exclusivamente a seus seguidores extremados? E, além disso, será que o Teeteto está atribuindo a Heráclito somente a tese do fluxo universal, isolando assim um aspecto de sua filosofia até o ponto de produzir uma imagem muito parcial de seu pensamento? Ou será que ali Platão está apresentando uma imagem multidimensional de Heráclito, considerando outras teses de peso, como por exemplo a doutrina da unidade dos opostos, como teses de autoria do Efésio? Enfim, estas questões suscitadas pelo Teeteto só fizeram reiterar minha idéia de que esse é um diálogo extremamente fértil para quem busca um ponto de partida para examinar a leitura platônica de Heráclito.

1.6

Roteiro da tese

No primeiro capítulo desta tese, apresento de maneira sintética a trajetória de estudos que me levou a estranhar a leitura platônica de Heráclito no

Teeteto e a enxergar, neste diálogo, um desafio e um campo fértil para a reflexão

sobre a recepção de Heráclito por Platão. Parto do exame dos fragmentos em que Heráclito tematiza explicitamente a questão do conhecimento e, com base nas conclusões desse exame, mostro como o Heráclito pretensamente apresentado no

(29)

distorcido, de modo a instigar uma releitura, mais minuciosa, da primeira parte do diálogo, na qual as opiniões heraclíticas são extensamente discutidas.

No segundo capítulo, inicio o exame do Teeteto, tratando primeiro da cronologia da composição, dos personagens, da divisão e do tema central do diálogo. Em segundo lugar, passo a acompanhar os passos do diálogo que antecedem as menções a Heráclito e aos heraclíticos. Seguindo o curso da primeira parte do Teeteto, apresento e examino a definição de conhecimento formulada por Teeteto, bem como a doutrina protagórica do “homem-medida” citada e interpretada por Sócrates, preparando o terreno para a associação, feita em seguida, dessa definição e dessa doutrina com as teses heraclíticas.

No terceiro capítulo, apresento e interpreto as seções do diálogo em que as teses heraclíticas são primeiramente expostas e em seguida criticadas e refutadas. Busco refletir sobre a associação das teses de Heráclito e dos heraclíticos com a questão do conhecimento, com a identificação feita por Teeteto entre conhecimento e sensação, e com a tese do homem-medida de Protágoras. Examino o modo como Platão interpretou e transmitiu o pensamento de Heráclito na primeira parte do Teeteto, e busco distinguir as passagens do diálogo em que Platão está claramente discutindo um mobilismo que ele atribui a Heráclito das passagens em que ele está expondo e criticando um mobilismo estendido ou radicalizado que não é mais imputado a Heráclito, e sim a seus adeptos. Finalmente, mostro que, no Teeteto, Platão não atribui a Heráclito apenas a tese do fluxo universal, mas também outras três teses, articulando-as e apresentando, portanto, uma imagem multifacetada da filosofia de Heráclito.

(30)

de que sua defesa não foi a de um fluxo extremado, e sim a de um fluxo moderado, com medida, ordem e padrão.

(31)

2.

Heráclito e o conhecimento: o conflito aparente

entre os fragmentos e o testemunho de Platão

2.1

A questão do conhecimento em Heráclito

A leitura de Heráclito feita por Platão em seus diálogos pode provocar, num primeiro momento, uma enorme admiração e muito estranhamento. No

Teeteto, por exemplo, a interpretação dada à teoria do fluxo leva a filosofia

heraclítica a fornecer fundamentos ao relativismo de Protágoras e a implicar, no fim das contas, a impossibilidade do conhecimento e da linguagem. O estranhamento é produzido quando vemos que aquilo que Heráclito, em seus fragmentos, exige de “comum” ao conteúdo de nossos conhecimentos, aquilo que ele afirma ser o único objeto possível de conhecimento, mostra que, ao contrário, ele mais provavelmente se aliaria a Platão contra o relativismo de Protágoras e o radicalismo dos auto-intitulados heraclíticos, e a favor da idéia de que o conhecimento e a linguagem são possíveis.

Em minha dissertação de mestrado, estudei os fragmentos de Heráclito com o objetivo de compreender a visão heraclítica acerca da possibilidade, do objeto e do processo de aquisição do conhecimento.28 Vários fragmentos mostram que a questão do conhecimento foi tematizada explicitamente por Heráclito e que

28 Ver Ana Flaksman, A Questão do Conhecimento em Heráclito (Rio de Janeiro, Puc-Rio,

(32)

a possibilidade e a importância do conhecimento foram por ele afirmadas. Se, por um lado, o exame da questão do conhecimento em Heráclito diz respeito à formulação de sua ontologia, ao mobilismo nela presente, e aos efeitos desse mobilismo para o conhecimento, por outro, ele também diz respeito aos fragmentos em que o problema do conhecimento é expressamente chamado à baila. E foi principalmente nesses fragmentos que me concentrei.

De fato, um grande número dos fragmentos de Heráclito se refere diretamente à sabedoria e à ignorância, à compreensão e reconhecimento do lógos, à função cognitiva da alma, à importância – mas também à insuficiência – dos sentidos e da sensação para o conhecimento. E os fragmentos mostram que Heráclito afirmou a possibilidade do saber, criticou veementemente a ignorância dos homens e formulou enunciados para sustentar sua pretensão e reivindicação de conhecimento.

Reconheci em minha dissertação – e penso ser bom lembrar aqui – que Heráclito não formulou as questões relativas à cognição isolando-as ou separando-as dseparando-as questões éticseparando-as ou ontológicseparando-as, por exemplo. Portanto, quando trato da “questão do conhecimento” em Heráclito, esse “recorte temático” é feito com a consideração de que diversas noções epistemológicas têm também significado ético e ontológico, como, por exemplo, as noções heraclíticas fundamentais de

sophía e lógos.

Neste capítulo, retomarei e apresentarei alguns elementos do exame dos fragmentos de Heráclito que realizei em minha dissertação, para deles procurar extrair a visão heraclítica a respeito da possibilidade, do objeto e do processo de aquisição do conhecimento. Feito isto, buscarei mostrar de que modo essa visão de Heráclito contrasta com o relativismo e o “ceticismo”29 que são vinculados às

teses heraclíticas apresentadas no Teeteto. Esse contraste tornará patente a

29 É claro que Platão não se refere (pois sequer poderia fazê-lo) ao ceticismo e à tradição cética

(33)

necessidade de uma análise mais detalhada deste diálogo, bem como de uma distinção entre as teses expressamente formuladas por Heráclito ou a ele atribuídas, as teses sustentadas pelos seguidores que distorceram e estenderam muito suas idéias, e as teses que podem ser ou deduzidas a partir das doutrinas heraclíticas ou a elas filiadas, por encontrarem nessas doutrinas ao menos uma de suas condições e um de seus fundamentos.

2.2

O lógos heraclítico

Quando nos defrontamos com os fragmentos de Heráclito, percebemos logo a necessidade de investigar a natureza, os significados e as dificuldades encontradas na interpretação e tradução do termo lógos. Muitos intérpretes oferecem em seus estudos pequenos sumários dos significados de lógos, desde sua origem etimológica até seus usos correntes na época de Heráclito. Essas observações não são suficientes para esgotar os significados de lógos em Heráclito, mas são importantes para a sua compreensão, pois, por mais que Heráclito o torne um conceito peculiar de sua filosofia, ele não o dissocia de seu uso ordinário.

A raiz da palavra lógos, leg-, implica basicamente os sentidos de “colher” e “selecionar”. Daí viria o significado de lógos como “cálculo”, e então os sentidos de “medida” e “proporção”. Esse grupo de significados seria ao menos tão primário quanto as acepções de “enunciado” ou “discurso”. Outro desenvolvimento levaria aos sentidos de “fórmula”, “plano” ou “lei”.30 E haveria

ainda mais sentidos correntes do termo lógos no tempo de Heráclito, tais como “valor”, “reputação”, “fama”, “causa”, “motivo”, “argumento” e “a verdade sobre uma questão”.31

30 Cf. o sumário de significados apresentado por G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments

(op. cit.), p. 38.

(34)

De fato, parece haver consenso entre os estudiosos que no fragmento 39 de Heráclito32 – “Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames; seu lógos é maior que o dos demais.33” – lógos está evidentemente ligado aos sentidos de “valor”, “fama” e “reputação”. A grande maioria dos autores traduz e/ou interpreta lógos neste fragmento recorrendo a um desses termos, ou a um sinônimo qualquer. Não há também muita polêmica ou dificuldade em torno da tradução e interpretação de

lógos no fragmento 31, que diz: “Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar,

metade terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo lógos, tal como era antes de se tornar terra.”34 O lógos, aqui, é em geral traduzido e

interpretado como “medida” e “proporção”.

Os intérpretes de Heráclito em geral – tanto aqueles que consideraram a ordenação do discurso heraclítico um elemento fundamental para a apreensão de seu significado total, dividindo-o e organizando-o com o fim de favorecer sua concepção como um todo orgânico, quanto aqueles que, como Diels, acreditaram no estilo aforístico da obra heraclítica e na ausência de uma ordem deliberada que ligasse os aforismos uns aos outros – concordam que o fragmento numerado por Diels35 como fragmento 1, por sua composição e conteúdo, constituía a abertura ou proêmio do livro de Heráclito. O livro de Heráclito, portanto, começaria assim:

Deste lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo este lógos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se

32 Nesta tese, utilizarei a numeração e a edição dos fragmentos de Heráclito estabelecidas por

Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), bem como utilizarei a tradução dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Heráclito: Fragmentos

Contextualizados (Rio de Janeiro, Difel, 2002). Toda alteração por mim realizada nesta tradução

dos fragmentos será indicada em nota.

33Fragmento 39: e)n Prih/nv Bi¿aj e)ge/neto o( Teuta/mew, ou ple/iwn lo/goj hÄ tw½n

aÃllwn.

34Fragmento 31: puro\j tropaiì: prw½ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hÀmisu gh=, to\

de\ hÀmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kaiì metre/etai ei¹j to\n au)to\n lo/gon o(koiÍoj pro/sqen hÅn hÄ gene/sqai gh=.

(35)

comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados, como esquecem o que fazem dormindo.36

Uma das primeiras dificuldades que se apresentam na interpretação deste fragmento está relacionada à sua construção sintática. Já Aristóteles notou a ambigüidade ali presente, sem porém resolvê-la.37 A dificuldade a que Aristóteles se refere está presente na possibilidade de ligarmos o advérbio sempre (aeì) tanto ao particípio sendo (eóntos) quanto ao adjetivo ignorantes (axýnetoi). Ou seja, não é fácil definir se Heráclito teria afirmado que o lógos é sempre ou que os homens são sempre ignorantes. Na tradução apresentada, o advérbio aeì está sendo ligado ao particípio eóntos, o que me parece se justificar se relacionarmos o fragmento 1 a outros fragmentos.

Antes de estabelecer essa relação, porém, partamos para a interpretação da tradução do fragmento apresentada. Atentando para as primeiras palavras do fragmento, “Deste lógos” (toû dé lógou), vemos que a expressão é uma auto-referência, uma introdução da própria obra.38 O lógos, portanto, ao designar as palavras, ou a obra cuja exposição se iniciava, teria primeiramente o sentido de

36 Fragmento 1: tou= de\ lo/gou tou=d’ e)o/ntoj a)ei\ a)cu/netoi gi¿nontai aÃnqrwpoi kaiì

pro/sqen hÄ a)kou=sai kaiì a)kou/santej to\ prw½ton: ginome/nwn ga\r pa/ntwn kata\ to\n lo/gon to/nde a)pei¿roisin e)oi¿kasi, peirw¯menoi kai\ e)pe/wn kaiì eÃrgwn toioute/wn, o(koi¿wn e)gwÜ dihgeu=mai kata\ fu/sin diaire/wn eÀkaston kaiì fra/zwn oÀkwj eÃxei. tou\j de\ aÃllouj a)nqrw¯pouj lanqa/nei o(ko/sa e)gerqe/ntej poiou=sin, oÀkwsper o(ko/sa euÀdontej e)pilanqa/nontai.

37 Aristóteles diz o seguinte: “É uma regra geral que uma composição escrita deva ser fácil de ler e

portanto fácil de transmitir. Isso não pode ocorrer onde há muitas palavras ou expressões conectivas, ou onde a pontuação é difícil, como nos escritos de Heráclito. Pontuar Heráclito não é tarefa fácil, pois freqüentemente não podemos dizer se uma palavra determinada está ligada à que a precede ou à que a segue. Assim na abertura de seu livro ele diz [segue o fragmento 1]”. ὅλως δὲ δεῖ εὐανάγνωστον εἶναι τὸ γεγραµµένον καὶ εὔφραστον· ἔστιν δὲ τὸ αὐτό· ὅπερ οἱ πολλοὶ σύνδεσµοι οὐκ ἔχουσιν, οὐδ’ ἃ µὴ ῥᾴδιον διαστίξαι, ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου. τὰ γὰρ Ἡρακλείτου διαστίξαι ἔργον διὰ τὸ ἄδηλον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, οἷον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ αὐτῇ τοῦ συγγράµµατος· φησὶ γὰρ (Aristóteles, Retórica, 1407 b11).

38 Muitos comentadores concordam que o fato de Heráclito iniciar seu discurso falando “desse lógos” indica que ele está se referindo a seu próprio lógos, à sua própria obra, a seu próprio

(36)

“discurso”, “expressão verbal”, “palavra”. Esse discurso, por sua vez, seria a expressão peculiar do pensamento de um homem particular, a saber, Heráclito. No fragmento 108, “De quantos ouvi os lógous nenhum chega a ponto de conhecer o que, de todas as coisas apartado, é sábio”,39 também podemos observar o uso do termo lógos com o sentido claro e consensual de “discurso” ou “expressão verbal”. Portanto, até este ponto podemos afirmar que o termo lógos é usado por Heráclito reiteradamente com o sentido de “discurso”.

Entretanto, quando seguimos analisando o fragmento 1, nos deparamos com as palavras eóntos aeì, que vão apresentar aquele mesmo lógou – que foi antecedido pelo pronome demonstrativo “este” – como aquilo “que é sempre”. Se observávamos há pouco que o lógos é a palavra contingente expressa por um homem particular, agora nos deparamos com a afirmação de que ele é eterno. Além disso, o fragmento também afirma que “todas as coisas vêm a ser segundo este lógos”. Muito embora observemos novamente a ocorrência do pronome demonstrativo “este”, o fato de a passagem afirmar que “todas as coisas vêm a ser segundo este lógos” retira-lhe todo o caráter contingente e particular. Um lógos que determina o vir a ser de todas as coisas não pode ser senão comum e, como o fragmento explicita, eterno.40

Outro ponto importante a ser observado no fragmento 1 é a afirmação de que os homens são ignorantes “tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem”. Se tomarmos o lógos neste trecho simplesmente como o discurso de Heráclito, não poderemos responder à seguinte questão: como os homens poderiam tê-lo compreendido antes de o terem ouvido? O lógos, para poder ter sido compreendido pelos homens antes de o discurso de Heráclito ser proferido, teria

39 Fragmento 108: o(ko/swn lo/gouj hÃkousa, ou)deiìj a)fiknei=tai e)j tou=to, wÐste

ginw¯skein oÀti sofo/n e)sti pa/ntwn kexwrisme/non. Em nota referente à sua tradução deste fragmento, na qual, em vez de “lógous” , se lê “discurso”, Alexandre Costa (Heráclito.

Fragmentos Contextualizados, op. cit.) declara ter aberto uma exceção à sua resolução de não

traduzir o termo lógos, afirmando que “o contexto torna evidente o sentido de ‘discurso’”. Concordo com Costa, mas prefiro manter lógos sempre na forma original, apresentando seu sentido não em traduções, mas em comentários.

40 Nesta abordagem do fragmento 1 e da tensão entre dois lógoi distintos, um particular e um

comum, devo muito a uma série de textos, especialmente a Alexandre Costa, Thánatos: Da

Possibilidade de um Conceito de Morte a partir do Lógos Heraclítico (Porto Alegre, EdPUCRS,

(37)

de ter estado disponível e acessível a eles, independentemente de um discurso particular. Portanto, o lógos não pode ser somente o discurso de Heráclito.

Vemos, então, que há um contraste e uma tensão entre os dois lógoi que se mostram presentes no fragmento 1, isto é, entre o lógos particular (de Heráclito) e o lógos comum e eterno. Será possível conciliá-los? Parece que sim, pois o contraste entre a natureza de ambos os lógoi não implica uma discordância ou incompatibilidade. Se considerarmos que o lógos de Heráclito é fruto e portador de sua compreensão efetiva do lógos comum, “segundo o qual todas as coisas vêm a ser”, concordaremos que seu discurso particular estará de acordo com o lógos comum; não estará simplesmente com ele contrastado, mas antes, estará unido a ele, e até certo ponto com ele fundido e identificado. Portanto, já vemos a insinuação de que os lógoi comum e particular podem concordar em seu conteúdo e que, se são distintos em sua natureza, não são por isso simplesmente opostos e excludentes. Quando Heráclito critica os homens por não compreenderem o lógos, parece estar fazendo uma dupla advertência: em primeiro lugar, mesmo sendo o lógos aquilo segundo o que todas as coisas vêm a ser, os homens falham em compreendê-lo; em segundo lugar, mesmo com Heráclito expressando o lógos comum em palavras, ainda assim os homens falham em sua compreensão.

Voltando à questão da ambigüidade apontada por Aristóteles, se atribuirmos aeì a eóntos, veremos que a implicação desta afirmação, a saber, de que o lógos é sempre, será confirmada pelo fragmento 1 em conjunto com os fragmentos 75 e 30. Diz o fragmento 75: “Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas que vêm a ser no cosmo.”41 O fragmento 1 diz que as coisas vêm a ser segundo o lógos, e o fragmento 75 afirma que as coisas vêm a ser no cosmo. Se for possível afirmar que o cosmo é sempre, isto é, que as coisas vêm a ser sempre, tornar-se-á evidente que o lógos terá de ser sempre, pois como todas as coisas poderiam sempre vir a ser, se aquilo sob cuja medida elas vêm a ser não fosse também sempre? E, como veremos, a afirmação de que o cosmo é

sempre é feita no fragmento 30: “O cosmo, o mesmo para todos, não o fez

41 Fragmento 75: tou\j kaqeu/dontaj (oiåmai o( ¸Hra/kleitoj) e)rga/taj eiånai le/gei kaiì

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nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre (aeì) foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”42

Por outro lado, creio não ser preferível associar aeì a axýnetoi, pois, embora entenda que se pode compreender esse “sempre ignorantes” em um sentido não literal, fatalista ou universal, há fragmentos suficientes que destacam e criticam a ignorância humana, sem dar margem, como essa expressão daria, à idéia de uma impossibilidade de compreensão própria da natureza humana. Vejamos dois fragmentos, 116 e 113, em que Heráclito afirma a possibilidade cognitiva comum aos homens. Diz o fragmento 116: “Em todos os homens está o conhecer (ginóskein) a si mesmo e bem-pensar (sophronein).”43 O conhecer a si mesmo e o bem-pensar pertencem a todo homem, mas isso não impede que poucos se interessem em efetivar tais capacidades e que raros sejam os que realmente atingem o resultado de tais atividades, a saber, o autoconhecimento e o pensamento sensato. As capacidades de pensar sensatamente e de se autoconhecer podem permanecer irrealizadas, adormecidas, esquecidas. O fragmento 113, ao afirmar que “O pensar (phronéein) é comum a todos”,44 também indica que o pensar é de todo homem “por direito”, o que não garante que os homens o exercitem de modo adequado, do único modo que pode caracterizar a compreensão do lógos. Mais adiante serão analisados outros fragmentos em que o termo “pensar” também aparece, e nos quais veremos ainda mais indícios de que, se uma tal capacidade é dada ao homem, impedindo qualquer visão determinista sobre sua ignorância, a realização dessa capacidade requer um empenho específico, do qual o homem pode ou não se esquivar e do qual sua compreensão do lógos dependerá.

Podemos observar, na análise do fragmento 1 e nas palavras de alguns comentadores, a dificuldade implicada na tradução da palavra lógos, pois ela parece designar duas “coisas” distintas em sua natureza.45 Se o lógos for traduzido

42 Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, ouÃte tij qew½n ouÃte a)nqrw¯pwn

e)poi¿hsen, a)ll' hÅn a)eiì kaiì eÃstin kaiì eÃstai pu=r a)ei¿zwon, a(pto/menon me/tra kaiì a)posbennu/menon me/tra.

43 Fragmento 116: a)nqrw¯poisi pa=si me/testi ginw¯skein e(wutou\j kaiì swfroneiÍn. 44 Fragmento 113: cuno/n e)sti pa=si to\ frone/ein.

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simplesmente por “discurso”, como fazem alguns, corre-se o risco de dar a entender que o lógos é apenas o discurso verbal, particular, contingente de Heráclito. Entretanto, há quem o faça com esse propósito deliberado. Conche,46 por exemplo, além de afirmar que em todos os fragmentos é possível entender o termo lógos como “discurso”, diz que na maior parte dos fragmentos é possível entendê-lo como “discurso verdadeiro”. Esse autor não atribui ao lógos nenhum sentido próximo dos de “lei”, “fórmula”, “estrutura” ou “princípio regulador” das coisas que vêm a ser – como fazem muitos outros autores, na tentativa de resumir e expressar o significado do lógos comum do fragmento 1. O conteúdo objetivo do discurso verdadeiro não seria o lógos, e sim a “lei” da unidade dos opostos, tema diversas vezes mencionado por Heráclito. Para Conche, não há problema em afirmar que Heráclito declarou que “todas as coisas vêm a ser segundo este discurso”, pois aí não estaria dito que todas as coisas vêm a ser em função ou sob

a medida de um discurso contingente, mas que vêm a ser exatamente do mesmo modo como o discurso contingente descreve ou expressa. Essa concepção do lógos é a que, podemos assim dizer, lhe atribui uma natureza “lingüística”. Ou

seja, o lógos não teria realidade independente, nem se distinguiria dos discursos contingentes e verbais. Seria sempre um discurso verbal e descreveria, se verdadeiro, a lei da unidade dos contrários, que seria, esta sim, o princípio regulador de todas as coisas.

Há, entretanto, quem veja a questão com outros olhos. Muitos intérpretes vão afirmar a tensão e diferença entre o lógos que é discurso verbal e o lógos que não se pode restringir a ele, que é dele independente, que regula, dirige e governa o vir a ser das coisas e que, ao ser compreendido, revela a “lógica”, a “racionalidade”, a “estrutura”, o “princípio ordenador” em função dos quais todas as coisas vêm a ser. Nesse sentido, o lógos pode ser concebido como uma “lei”,

traduz por account. Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 35; W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 424; Damião Berge, O Logos

Heraclítico (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969), p. 62-89; e Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 93-100. Bollack e Wissmann traduzirão lógos, no

fragmento 1, por “discurso”, mas dirão que o termo grego guarda, neste fragmento, dois aspectos em tensão: o discurso ou a palavra contingente, e o conteúdo objetivo e eterno desse discurso. Cf. Jean Bollack e Heinz Wismann, Héraclite ou la Séparation (Paris, Minuit, [1972] 1995), p. 59-64.

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que pode ser descoberta, nomeada e descrita pelos homens (assim como, grosso

modo, a lei da gravidade ganha compreensão, nome e descrição em um discurso

científico contingente), mas que existe e sempre existiu independentemente deles e que, aliás, os engloba. Esta seria, como Conche propõe chamar, a interpretação “ontológica” do lógos.47

Com base nas análises precedentes do fragmento 1, creio que o lógos, nesse fragmento, não apresenta uma natureza nem puramente “lingüística”, nem puramente “ontológica”. E essa complexidade de sua natureza aparecerá novamente no fragmento 2: “Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento (phrónesin) particular.”48 Neste fragmento, vemos que a palavra lógos vem seguida pelo adjetivo comum (xynoû), que a qualifica de acordo com a “universalidade” ou comunidade também observada no fragmento 1. Novamente parece que Heráclito afirma que o lógos não pode se restringir à particularidade ou contingência de uma natureza puramente lingüística. Vale notar, entretanto, que, se Heráclito determina a natureza desse lógos fazendo-o ser acompanhado por um adjetivo, deve supor a existência de uma espécie distinta de

lógos, a saber, de um lógos de tipo contingente, particular.

Se Heráclito alude aqui à existência de um lógos particular, vemos que ele faz, ainda neste fragmento, um jogo de oposição explícita, usando os adjetivos

comum e particular. Mas já não é o lógos que é qualificado como particular, e sim

a phrónesis, o pensamento. O que está em jogo nesse contraste entre o lógos comum e o pensamento particular é novamente a crítica à ignorância, pois Heráclito sustenta mais uma vez que os homens podem compreender o lógos comum, isto é, podem pensar de acordo com esse lógos, mas não se interessam em compreendê-lo, não filiam suas idéias à comunidade representada pelo lógos, e consideram que seus pensamentos são privados, independentes e não-referidos ao

lógos comum. Se este fragmento trata explicitamente do lógos comum – objeto

por excelência do conhecimento – e da ignorância – o pensamento equivocado –, trata também, implicitamente, do lógos particular – que pode concordar ou

47 Cf. M. Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 23.

48 Fragmento 2: tou= lo/gou d' e)o/ntoj cunou= zw¯ousin oi¸ polloiì w¨j i¹di¿an eÃxontej

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