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Heráclito e o conhecimento: o conflito aparente entre os fragmentos e o testemunho de Platão

2.1

A questão do conhecimento em Heráclito

A leitura de Heráclito feita por Platão em seus diálogos pode provocar, num primeiro momento, uma enorme admiração e muito estranhamento. No

Teeteto, por exemplo, a interpretação dada à teoria do fluxo leva a filosofia

heraclítica a fornecer fundamentos ao relativismo de Protágoras e a implicar, no fim das contas, a impossibilidade do conhecimento e da linguagem. O estranhamento é produzido quando vemos que aquilo que Heráclito, em seus fragmentos, exige de “comum” ao conteúdo de nossos conhecimentos, aquilo que ele afirma ser o único objeto possível de conhecimento, mostra que, ao contrário, ele mais provavelmente se aliaria a Platão contra o relativismo de Protágoras e o radicalismo dos auto-intitulados heraclíticos, e a favor da idéia de que o conhecimento e a linguagem são possíveis.

Em minha dissertação de mestrado, estudei os fragmentos de Heráclito com o objetivo de compreender a visão heraclítica acerca da possibilidade, do objeto e do processo de aquisição do conhecimento.28 Vários fragmentos mostram que a questão do conhecimento foi tematizada explicitamente por Heráclito e que

28 Ver Ana Flaksman, A Questão do Conhecimento em Heráclito (Rio de Janeiro, Puc-Rio, Dissertação de Mestrado, 2001).

a possibilidade e a importância do conhecimento foram por ele afirmadas. Se, por um lado, o exame da questão do conhecimento em Heráclito diz respeito à formulação de sua ontologia, ao mobilismo nela presente, e aos efeitos desse mobilismo para o conhecimento, por outro, ele também diz respeito aos fragmentos em que o problema do conhecimento é expressamente chamado à baila. E foi principalmente nesses fragmentos que me concentrei.

De fato, um grande número dos fragmentos de Heráclito se refere diretamente à sabedoria e à ignorância, à compreensão e reconhecimento do lógos, à função cognitiva da alma, à importância – mas também à insuficiência – dos sentidos e da sensação para o conhecimento. E os fragmentos mostram que Heráclito afirmou a possibilidade do saber, criticou veementemente a ignorância dos homens e formulou enunciados para sustentar sua pretensão e reivindicação de conhecimento.

Reconheci em minha dissertação – e penso ser bom lembrar aqui – que Heráclito não formulou as questões relativas à cognição isolando-as ou separando-as dseparando-as questões éticseparando-as ou ontológicseparando-as, por exemplo. Portanto, quando trato da “questão do conhecimento” em Heráclito, esse “recorte temático” é feito com a consideração de que diversas noções epistemológicas têm também significado ético e ontológico, como, por exemplo, as noções heraclíticas fundamentais de

sophía e lógos.

Neste capítulo, retomarei e apresentarei alguns elementos do exame dos fragmentos de Heráclito que realizei em minha dissertação, para deles procurar extrair a visão heraclítica a respeito da possibilidade, do objeto e do processo de aquisição do conhecimento. Feito isto, buscarei mostrar de que modo essa visão de Heráclito contrasta com o relativismo e o “ceticismo”29 que são vinculados às teses heraclíticas apresentadas no Teeteto. Esse contraste tornará patente a

29 É claro que Platão não se refere (pois sequer poderia fazê-lo) ao ceticismo e à tradição cética propriamente ditos. Entretanto, numa primeira leitura do Teeteto, pode-se muito bem pensar que ele aponta para aspectos da filosofia heraclítica que, mais tarde, seriam considerados parte da temática cética. Vale lembrar que, mesmo que Sexto Empírico tenha buscado, em suas obras, distinguir o ceticismo “autêntico” (pirrônico ou suspensivo) de “ceticismos” impropriamente denominados, houve outras concepções e versões de ceticismo no próprio seio da tradição cética: mesmo a afirmação ou conclusão de que o conhecimento é impossível (que seria tomada como uma forma de dogmatismo negativo pelos pirrônicos) poderia ser considerada parte da via cética por outros.

necessidade de uma análise mais detalhada deste diálogo, bem como de uma distinção entre as teses expressamente formuladas por Heráclito ou a ele atribuídas, as teses sustentadas pelos seguidores que distorceram e estenderam muito suas idéias, e as teses que podem ser ou deduzidas a partir das doutrinas heraclíticas ou a elas filiadas, por encontrarem nessas doutrinas ao menos uma de suas condições e um de seus fundamentos.

2.2

O lógos heraclítico

Quando nos defrontamos com os fragmentos de Heráclito, percebemos logo a necessidade de investigar a natureza, os significados e as dificuldades encontradas na interpretação e tradução do termo lógos. Muitos intérpretes oferecem em seus estudos pequenos sumários dos significados de lógos, desde sua origem etimológica até seus usos correntes na época de Heráclito. Essas observações não são suficientes para esgotar os significados de lógos em Heráclito, mas são importantes para a sua compreensão, pois, por mais que Heráclito o torne um conceito peculiar de sua filosofia, ele não o dissocia de seu uso ordinário.

A raiz da palavra lógos, leg-, implica basicamente os sentidos de “colher” e “selecionar”. Daí viria o significado de lógos como “cálculo”, e então os sentidos de “medida” e “proporção”. Esse grupo de significados seria ao menos tão primário quanto as acepções de “enunciado” ou “discurso”. Outro desenvolvimento levaria aos sentidos de “fórmula”, “plano” ou “lei”.30 E haveria ainda mais sentidos correntes do termo lógos no tempo de Heráclito, tais como “valor”, “reputação”, “fama”, “causa”, “motivo”, “argumento” e “a verdade sobre uma questão”.31

30 Cf. o sumário de significados apresentado por G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 38.

De fato, parece haver consenso entre os estudiosos que no fragmento 39 de Heráclito32 – “Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames; seu lógos é maior que o dos demais.33” – lógos está evidentemente ligado aos sentidos de “valor”, “fama” e “reputação”. A grande maioria dos autores traduz e/ou interpreta lógos neste fragmento recorrendo a um desses termos, ou a um sinônimo qualquer. Não há também muita polêmica ou dificuldade em torno da tradução e interpretação de

lógos no fragmento 31, que diz: “Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar,

metade terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo lógos, tal como era antes de se tornar terra.”34 O lógos, aqui, é em geral traduzido e

interpretado como “medida” e “proporção”.

Os intérpretes de Heráclito em geral – tanto aqueles que consideraram a ordenação do discurso heraclítico um elemento fundamental para a apreensão de seu significado total, dividindo-o e organizando-o com o fim de favorecer sua concepção como um todo orgânico, quanto aqueles que, como Diels, acreditaram no estilo aforístico da obra heraclítica e na ausência de uma ordem deliberada que ligasse os aforismos uns aos outros – concordam que o fragmento numerado por Diels35 como fragmento 1, por sua composição e conteúdo, constituía a abertura ou proêmio do livro de Heráclito. O livro de Heráclito, portanto, começaria assim:

Deste lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo este lógos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se

32 Nesta tese, utilizarei a numeração e a edição dos fragmentos de Heráclito estabelecidas por Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), bem como utilizarei a tradução dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Heráclito: Fragmentos

Contextualizados (Rio de Janeiro, Difel, 2002). Toda alteração por mim realizada nesta tradução

dos fragmentos será indicada em nota.

33Fragmento 39: e)n Prih/nv Bi¿aj e)ge/neto o( Teuta/mew, ou ple/iwn lo/goj hÄ tw½n aÃllwn.

34Fragmento 31: puro\j tropaiì: prw½ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hÀmisu gh=, to\ de\ hÀmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kaiì metre/etai ei¹j to\n au)to\n lo/gon o(koiÍoj pro/sqen hÅn hÄ gene/sqai gh=.

comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados, como esquecem o que fazem dormindo.36

Uma das primeiras dificuldades que se apresentam na interpretação deste fragmento está relacionada à sua construção sintática. Já Aristóteles notou a ambigüidade ali presente, sem porém resolvê-la.37 A dificuldade a que Aristóteles se refere está presente na possibilidade de ligarmos o advérbio sempre (aeì) tanto ao particípio sendo (eóntos) quanto ao adjetivo ignorantes (axýnetoi). Ou seja, não é fácil definir se Heráclito teria afirmado que o lógos é sempre ou que os homens são sempre ignorantes. Na tradução apresentada, o advérbio aeì está sendo ligado ao particípio eóntos, o que me parece se justificar se relacionarmos o fragmento 1 a outros fragmentos.

Antes de estabelecer essa relação, porém, partamos para a interpretação da tradução do fragmento apresentada. Atentando para as primeiras palavras do fragmento, “Deste lógos” (toû dé lógou), vemos que a expressão é uma auto-referência, uma introdução da própria obra.38 O lógos, portanto, ao designar as palavras, ou a obra cuja exposição se iniciava, teria primeiramente o sentido de

36 Fragmento 1: tou= de\ lo/gou tou=d’ e)o/ntoj a)ei\ a)cu/netoi gi¿nontai aÃnqrwpoi kaiì pro/sqen hÄ a)kou=sai kaiì a)kou/santej to\ prw½ton: ginome/nwn ga\r pa/ntwn kata\ to\n lo/gon to/nde a)pei¿roisin e)oi¿kasi, peirw¯menoi kai\ e)pe/wn kaiì eÃrgwn toioute/wn, o(koi¿wn e)gwÜ dihgeu=mai kata\ fu/sin diaire/wn eÀkaston kaiì fra/zwn oÀkwj eÃxei. tou\j de\ aÃllouj a)nqrw¯pouj lanqa/nei o(ko/sa e)gerqe/ntej poiou=sin, oÀkwsper o(ko/sa euÀdontej e)pilanqa/nontai.

37 Aristóteles diz o seguinte: “É uma regra geral que uma composição escrita deva ser fácil de ler e portanto fácil de transmitir. Isso não pode ocorrer onde há muitas palavras ou expressões conectivas, ou onde a pontuação é difícil, como nos escritos de Heráclito. Pontuar Heráclito não é tarefa fácil, pois freqüentemente não podemos dizer se uma palavra determinada está ligada à que a precede ou à que a segue. Assim na abertura de seu livro ele diz [segue o fragmento 1]”. ὅλως δὲ δεῖ εὐανάγνωστον εἶναι τὸ γεγραµµένον καὶ εὔφραστον· ἔστιν δὲ τὸ αὐτό· ὅπερ οἱ πολλοὶ σύνδεσµοι οὐκ ἔχουσιν, οὐδ’ ἃ µὴ ῥᾴδιον διαστίξαι, ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου. τὰ γὰρ Ἡρακλείτου διαστίξαι ἔργον διὰ τὸ ἄδηλον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, οἷον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ αὐτῇ τοῦ συγγράµµατος· φησὶ γὰρ (Aristóteles, Retórica, 1407 b11).

38 Muitos comentadores concordam que o fato de Heráclito iniciar seu discurso falando “desse

lógos” indica que ele está se referindo a seu próprio lógos, à sua própria obra, a seu próprio

discurso. A expressão poderia ser interpretada como “Este discurso que estou agora iniciando...”. Vale sublinhar que a tradição literária da historie jônica costumava fazer referência ao próprio discurso na apresentação das obras. Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 66-67).

“discurso”, “expressão verbal”, “palavra”. Esse discurso, por sua vez, seria a expressão peculiar do pensamento de um homem particular, a saber, Heráclito. No fragmento 108, “De quantos ouvi os lógous nenhum chega a ponto de conhecer o que, de todas as coisas apartado, é sábio”,39 também podemos observar o uso do termo lógos com o sentido claro e consensual de “discurso” ou “expressão verbal”. Portanto, até este ponto podemos afirmar que o termo lógos é usado por Heráclito reiteradamente com o sentido de “discurso”.

Entretanto, quando seguimos analisando o fragmento 1, nos deparamos com as palavras eóntos aeì, que vão apresentar aquele mesmo lógou – que foi antecedido pelo pronome demonstrativo “este” – como aquilo “que é sempre”. Se observávamos há pouco que o lógos é a palavra contingente expressa por um homem particular, agora nos deparamos com a afirmação de que ele é eterno. Além disso, o fragmento também afirma que “todas as coisas vêm a ser segundo este lógos”. Muito embora observemos novamente a ocorrência do pronome demonstrativo “este”, o fato de a passagem afirmar que “todas as coisas vêm a ser segundo este lógos” retira-lhe todo o caráter contingente e particular. Um lógos que determina o vir a ser de todas as coisas não pode ser senão comum e, como o fragmento explicita, eterno.40

Outro ponto importante a ser observado no fragmento 1 é a afirmação de que os homens são ignorantes “tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem”. Se tomarmos o lógos neste trecho simplesmente como o discurso de Heráclito, não poderemos responder à seguinte questão: como os homens poderiam tê-lo compreendido antes de o terem ouvido? O lógos, para poder ter sido compreendido pelos homens antes de o discurso de Heráclito ser proferido, teria

39 Fragmento 108: o(ko/swn lo/gouj hÃkousa, ou)deiìj a)fiknei=tai e)j tou=to, wÐste ginw¯skein oÀti sofo/n e)sti pa/ntwn kexwrisme/non. Em nota referente à sua tradução deste fragmento, na qual, em vez de “lógous” , se lê “discurso”, Alexandre Costa (Heráclito.

Fragmentos Contextualizados, op. cit.) declara ter aberto uma exceção à sua resolução de não

traduzir o termo lógos, afirmando que “o contexto torna evidente o sentido de ‘discurso’”. Concordo com Costa, mas prefiro manter lógos sempre na forma original, apresentando seu sentido não em traduções, mas em comentários.

40 Nesta abordagem do fragmento 1 e da tensão entre dois lógoi distintos, um particular e um comum, devo muito a uma série de textos, especialmente a Alexandre Costa, Thánatos: Da

Possibilidade de um Conceito de Morte a partir do Lógos Heraclítico (Porto Alegre, EdPUCRS,

de ter estado disponível e acessível a eles, independentemente de um discurso particular. Portanto, o lógos não pode ser somente o discurso de Heráclito.

Vemos, então, que há um contraste e uma tensão entre os dois lógoi que se mostram presentes no fragmento 1, isto é, entre o lógos particular (de Heráclito) e o lógos comum e eterno. Será possível conciliá-los? Parece que sim, pois o contraste entre a natureza de ambos os lógoi não implica uma discordância ou incompatibilidade. Se considerarmos que o lógos de Heráclito é fruto e portador de sua compreensão efetiva do lógos comum, “segundo o qual todas as coisas vêm a ser”, concordaremos que seu discurso particular estará de acordo com o lógos comum; não estará simplesmente com ele contrastado, mas antes, estará unido a ele, e até certo ponto com ele fundido e identificado. Portanto, já vemos a insinuação de que os lógoi comum e particular podem concordar em seu conteúdo e que, se são distintos em sua natureza, não são por isso simplesmente opostos e excludentes. Quando Heráclito critica os homens por não compreenderem o lógos, parece estar fazendo uma dupla advertência: em primeiro lugar, mesmo sendo o lógos aquilo segundo o que todas as coisas vêm a ser, os homens falham em compreendê-lo; em segundo lugar, mesmo com Heráclito expressando o lógos comum em palavras, ainda assim os homens falham em sua compreensão.

Voltando à questão da ambigüidade apontada por Aristóteles, se atribuirmos aeì a eóntos, veremos que a implicação desta afirmação, a saber, de que o lógos é sempre, será confirmada pelo fragmento 1 em conjunto com os fragmentos 75 e 30. Diz o fragmento 75: “Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas que vêm a ser no cosmo.”41 O fragmento 1 diz que as coisas vêm a ser segundo o lógos, e o fragmento 75 afirma que as coisas vêm a ser no cosmo. Se for possível afirmar que o cosmo é sempre, isto é, que as coisas vêm a ser sempre, tornar-se-á evidente que o lógos terá de ser sempre, pois como todas as coisas poderiam sempre vir a ser, se aquilo sob cuja medida elas vêm a ser não fosse também sempre? E, como veremos, a afirmação de que o cosmo é

sempre é feita no fragmento 30: “O cosmo, o mesmo para todos, não o fez

41 Fragmento 75: tou\j kaqeu/dontaj (oiåmai o( ¸Hra/kleitoj) e)rga/taj eiånai le/gei kaiì sunergou\j tw½n e)n t%½ ko/sm% ginome/nwn.

nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre (aeì) foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”42

Por outro lado, creio não ser preferível associar aeì a axýnetoi, pois, embora entenda que se pode compreender esse “sempre ignorantes” em um sentido não literal, fatalista ou universal, há fragmentos suficientes que destacam e criticam a ignorância humana, sem dar margem, como essa expressão daria, à idéia de uma impossibilidade de compreensão própria da natureza humana. Vejamos dois fragmentos, 116 e 113, em que Heráclito afirma a possibilidade cognitiva comum aos homens. Diz o fragmento 116: “Em todos os homens está o conhecer (ginóskein) a si mesmo e bem-pensar (sophronein).”43 O conhecer a si mesmo e o bem-pensar pertencem a todo homem, mas isso não impede que poucos se interessem em efetivar tais capacidades e que raros sejam os que realmente atingem o resultado de tais atividades, a saber, o autoconhecimento e o pensamento sensato. As capacidades de pensar sensatamente e de se autoconhecer podem permanecer irrealizadas, adormecidas, esquecidas. O fragmento 113, ao afirmar que “O pensar (phronéein) é comum a todos”,44 também indica que o pensar é de todo homem “por direito”, o que não garante que os homens o exercitem de modo adequado, do único modo que pode caracterizar a compreensão do lógos. Mais adiante serão analisados outros fragmentos em que o termo “pensar” também aparece, e nos quais veremos ainda mais indícios de que, se uma tal capacidade é dada ao homem, impedindo qualquer visão determinista sobre sua ignorância, a realização dessa capacidade requer um empenho específico, do qual o homem pode ou não se esquivar e do qual sua compreensão do lógos dependerá.

Podemos observar, na análise do fragmento 1 e nas palavras de alguns comentadores, a dificuldade implicada na tradução da palavra lógos, pois ela parece designar duas “coisas” distintas em sua natureza.45 Se o lógos for traduzido

42 Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, ouÃte tij qew½n ouÃte a)nqrw¯pwn e)poi¿hsen, a)ll' hÅn a)eiì kaiì eÃstin kaiì eÃstai pu=r a)ei¿zwon, a(pto/menon me/tra kaiì a)posbennu/menon me/tra.

43 Fragmento 116: a)nqrw¯poisi pa=si me/testi ginw¯skein e(wutou\j kaiì swfroneiÍn.

44 Fragmento 113: cuno/n e)sti pa=si to\ frone/ein.

simplesmente por “discurso”, como fazem alguns, corre-se o risco de dar a entender que o lógos é apenas o discurso verbal, particular, contingente de Heráclito. Entretanto, há quem o faça com esse propósito deliberado. Conche,46 por exemplo, além de afirmar que em todos os fragmentos é possível entender o termo lógos como “discurso”, diz que na maior parte dos fragmentos é possível entendê-lo como “discurso verdadeiro”. Esse autor não atribui ao lógos nenhum sentido próximo dos de “lei”, “fórmula”, “estrutura” ou “princípio regulador” das coisas que vêm a ser – como fazem muitos outros autores, na tentativa de resumir e expressar o significado do lógos comum do fragmento 1. O conteúdo objetivo do discurso verdadeiro não seria o lógos, e sim a “lei” da unidade dos opostos, tema diversas vezes mencionado por Heráclito. Para Conche, não há problema em afirmar que Heráclito declarou que “todas as coisas vêm a ser segundo este discurso”, pois aí não estaria dito que todas as coisas vêm a ser em função ou sob

a medida de um discurso contingente, mas que vêm a ser exatamente do mesmo modo como o discurso contingente descreve ou expressa. Essa concepção do lógos é a que, podemos assim dizer, lhe atribui uma natureza “lingüística”. Ou

seja, o lógos não teria realidade independente, nem se distinguiria dos discursos contingentes e verbais. Seria sempre um discurso verbal e descreveria, se verdadeiro, a lei da unidade dos contrários, que seria, esta sim, o princípio regulador de todas as coisas.

Há, entretanto, quem veja a questão com outros olhos. Muitos intérpretes vão afirmar a tensão e diferença entre o lógos que é discurso verbal e o lógos que não se pode restringir a ele, que é dele independente, que regula, dirige e governa o vir a ser das coisas e que, ao ser compreendido, revela a “lógica”, a “racionalidade”, a “estrutura”, o “princípio ordenador” em função dos quais todas as coisas vêm a ser. Nesse sentido, o lógos pode ser concebido como uma “lei”,

traduz por account. Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 35; W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 424; Damião Berge, O Logos

Heraclítico (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969), p. 62-89; e Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 93-100. Bollack e Wissmann traduzirão lógos, no

fragmento 1, por “discurso”, mas dirão que o termo grego guarda, neste fragmento, dois aspectos em tensão: o discurso ou a palavra contingente, e o conteúdo objetivo e eterno desse discurso. Cf. Jean Bollack e Heinz Wismann, Héraclite ou la Séparation (Paris, Minuit, [1972] 1995), p. 59-64.

que pode ser descoberta, nomeada e descrita pelos homens (assim como, grosso

modo, a lei da gravidade ganha compreensão, nome e descrição em um discurso

científico contingente), mas que existe e sempre existiu independentemente deles e que, aliás, os engloba. Esta seria, como Conche propõe chamar, a interpretação “ontológica” do lógos.47

Com base nas análises precedentes do fragmento 1, creio que o lógos, nesse fragmento, não apresenta uma natureza nem puramente “lingüística”, nem puramente “ontológica”. E essa complexidade de sua natureza aparecerá novamente no fragmento 2: “Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se