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REINVENTANDO TRADIÇÕES: UM OLHAR SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE SUJEITOS QUEER NO CONTEXTO DAS QUADRILHAS JUNINAS DO CEARÁ 1

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Academic year: 2021

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REINVENTANDO TRADIÇÕES: UM OLHAR SOBRE AS

EXPERIÊNCIAS DE SUJEITOS QUEER NO CONTEXTO DAS

QUADRILHAS JUNINAS DO CEARÁ

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Thiago Silva de Castro (UFC)

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Antonio Cristian Saraiva Paiva (UFC)

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144º Encontro Anual da ANPOCS, GT 01: Arte, Cultura e Ciências Sociais: diferenças, agenciamentos e políticas. 2 Doutorando pelo programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará – UFC;

pesquisador vinculado ao NUSS – Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (E-mail: thiagonoda@hotmail.com).

3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará – UFC; Coordenador

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2 Reinventando tradições: um olhar sobre as experiências de sujeitos queer no contexto

das quadrilhas juninas do Ceará

Resumo

Se debruçando sobre a realidade das quadrilhas juninas cearenses, manifestação popular de grande importância nos fluxos culturais do estado, o artigo tem como objetivo refletir sobre os signos de gênero mobilizados por essa expressão cultural, focando nos impactos e ressignificações produzidos no contexto desses grupos a partir da intensificação da presença de pessoas LGBT e existências queer, como mulheres trans e sujeitos homossexuais com experiências de fluidez de gênero, no contexto das quadrilhas juninas. O texto propõe uma reflexão sobre o discurso da tradição atrelado às quadrilhas juninas como um mote reificador de aspectos sociais hegemônicos que naturalizam performaticamente determinadas ideias, sendo a binaridade de gênero uma das principais. Por outro lado, busca apresentar os modos encontrados pelos corpos e experiências destoantes do discurso cis-heterocentrado para fazer do processo social instituído pelas quadrilhas juninas um lugar apropriado para a expressão de suas subjetividades e sociabilidades.

Palavras-chave: Quadrilhas juninas; tradição; generificação; experiências queer; pessoas

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3 Introdução

Este texto consiste em um recorte dentro de um universo maior de pesquisa que visa compreender os agenciamentos dos participantes das quadrilhas juninas do Ceará, mais especificamente da cidade de Sobral, situada a aproximadamente 240 Km de Fortaleza, capital do estado. Interessado nessa manifestação artístico-cultural bastante popular nos fluxos culturais cearenses, o artigo tem como objetivo refletir sobre os signos de gênero mobilizados por essa expressão cultural, focando nos impactos e ressignificações produzidos no contexto desses grupos a partir da intensificação da presença de pessoas LGBT e existências queer, como mulheres trans, e sujeitos homossexuais com experiências de fluidez de gênero, no contexto das quadrilhas juninas.

Percebendo a quadrilha junina como uma manifestação ancorada em um discurso que aciona constantemente a ideia de tradição, procuramos interpretar essa expressão como pretensamente reificadora de ideias hegemonicamente inscritas na vida social cotidiana, sendo a perspectiva binária de gênero uma das principais, exemplificada pela generificação performática dos brincantes na construção dos personagens do cavalheiro e da dama. Todavia, rompendo as expectativas do discurso heterocêntrico das tradições juninas para as quadrilhas, que pressupõem grupos formados por indivíduos plenamente consonantes com as experiências socioafetivas, sexuais e de gênero do sistema cis-heterossexual, vê-se com cada vez mais frequência a presença de sujeitos queer nesses grupos, a ponto da participação de tais indivíduos ser hoje vista por muitos como fundamental para a manutenção dessa manifestação.

Motivados por essa contradição fundante do próprio processo social analisado, visamos buscar compreender e refletir acerca da forma como a inserção dos sujeitos em questão se dá no contexto das quadrilhas juninas, procurando perceber os modos como os modelos imagético-discursivos forjados pela perspectiva tradicionalista são burlados, bem como a forma como o próprio sistema generificado por ela proposto é ressignificado na prática cotidiana dos sujeitos. Cabe registrar que ao enfocarmos a manifestação das quadrilhas juninas, nos interessamos não apenas por sua face artístico-cultural ou de folguedo representativo das festividades típicas do calendário brasileiro, mas como um fenômeno social complexo, que assumiu um aspecto espetacularizado e criou uma rede mobilizadora de indivíduos ao longo de um extenso período que se repete anualmente. A quadrilha junina analisada aqui não é mais uma expressão folclórica reservada ao mês de junho, mas um processo social amplo, que articula diferentes

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indivíduos atravessados pelas mais diversas questões que se expressam na sociedade, devendo ser entendida a partir dessa perspectiva, não apenas do ponto de vista da performance artístico-cultural. É centrando nossa atenção aqui, que desejamos compreender como determinados corpos conseguem subverter os dispositivos dominantes de poder que buscam generificar as experiências conforme modelos padronizados.

Cavalheiros, damas e a generificação da quadrilha junina

A quadrilha junina é uma manifestação típica das festas juninas presente em todo território brasileiro, mas com grande expressividade na região nordeste do país, onde essa manifestação ganhou um conteúdo espetacularizado. O Estado do Ceará é um dos que se destacam nesse cenário, com grupos juninos que se mobilizam durante o ano quase todo visando construir trabalhos artísticos que serão apresentados nos chamados festivais de quadrilhas4 durante os meses de junho e julho de cada ano. Muitas mudanças ocorreram nessa expressão cultural ao longo dos anos, sobretudo nas três últimas décadas, principalmente no que se refere aos seus padrões estéticos, originando estilos que frequentemente se defrontam com discussões que dão conta da dicotomia tradicional/moderno.

Vale ressaltar, porém, que se por um lado os citados concursos juninos promoveram uma mudança nas concepções das quadrilhas juninas, reinventando estilos, discursos e modelos imagéticos, a inserção no campo das manifestações da cultura popular ainda as coloca como referenciadas por um conjunto de tradições. As chamadas tradições juninas, expressão que aparece frequentemente nos documentos e informes oficias do governo estadual no campo das políticas culturais voltadas a essas festividades no Ceará, tentam congregar uma série de práticas, festividades, folguedos e ritualidades entendidas como integrantes do chamado calendário junino. Assim sendo, a quadrilha junina aparece como parte desse conjunto de tradições, sendo considerada uma das principais manifestações das festas juninas cearenses, estando ela diretamente atrelada a determinados conteúdos e imaginários considerados típicos e tradicionais.

Dentro dessa lógica tradicionalista, a quadrilha junina, enquanto expressão típica das festividades juninas, seria fruto de uma apropriação feita pelo povo de uma dança de origem europeia, que teria sido ressignificada por ele e assumido novas características, cujas variações seriam inúmeras, dependendo da região onde é dançada. De acordo com Câmara Cascudo

4 Eventos onde os grupos competem entre si por premiações em dinheiro, que ocorrem em circuitos regionalizados

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(2001, p. 547), se tratava de uma dança palaciana do século XIX de caráter protocolar, formada por pares de damas e cavalheiros, que abria os bailes da alta sociedade da época. Com a queda do império, e a consequente queda dos hábitos da corte, e o surgimento da república, a quadrilha parece sobreviver entre as classes populares, em especial entre as populações camponesas, em sua versão imitada, ficando reservada a essa camada social. Cabe destacar, entretanto, como aponta Hugo Menezes Neto, que essa dança reaparece no cenário brasileiro no período de urbanização do país como uma espécie de antítese “[...] baseada na caricatura do homem do campo e da vida rural, a quadrilha matuta” (NETO, 2009, p.30). Conforme o autor, é esse modelo discursivo-imagético que reúne os códigos estéticos e narrativos da tradição em relação à manifestação em questão.

A incorporação da quadrilha ao universo das festas juninas provavelmente se deu em virtude das características de tais festividades que, segundo Luciana Chianca (2006; 2007), passam a ser vivenciadas pelos imigrantes das zonas interioranas e rurais, residentes nos centros urbanizados, como um momento nostálgico, onde podem reviver um passado saudoso, permeado de folguedos e manifestações consideradas típicas de seus lugares de origem. É nesse contexto que as festas juninas são apropriadas pela visão citadina, performadas como uma espécie de revisitação caricatural do universo campesino, que as institui como uma grande festa de interior, demarcando “ [...] a instalação de uma distância simbólica entre o “rural” e o “urbano”, que se tornará definitiva nas representações citadinas” (CHIANCA, 2006, p.55).

Cabe registrar que, no Nordeste, os códigos de ruralidade dos quais a tradição que abarca a quadrilha junina se vale estão constantemente atrelados ao Sertão, zona territorial que abrange a maior parte do Nordeste brasileiro. Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2011) aponta que as ideias de Sertão e de sertanejo – seu habitante nato – teriam sido centrais na construção de um imaginário acerca da própria região, um referencial que tende muitas vezes a excluir as zonas urbanas e o próprio litoral, pintando o Nordeste como uma grande área rural e seca, com pessoas de hábitos interioranos e simples, em contraste direto com áreas citadinas, sobretudo cidades como São Paulo e a própria região Sudeste como um todo. Não por acaso, durante o período junino, não apenas na zona nordestina, mas também em outras regiões, os códigos típicos dessas festividades costumam ser retirados de elementos culturais advindos dos estados do Nordeste, desde os ritmos musicais, passando pela culinária até a construção estereotipada de um linguajar. Albuquerque Júnior (2011) aponta, porém, que esse Nordeste é produto de uma invenção de séculos, em benefício da qual atuaram membros de uma elite regional decadente, intelectuais e artistas nordestinos, mas sobretudo o discurso produzido nos principais centros nacionais, situados no eixo sul-sudeste, acerca dessa região.

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Se por um lado a ideia de tradicionalidade que orienta a prática da quadrilha junina tem os códigos referenciados anteriormente como base, por outro, a divisão binária de gênero, que também aparece intimamente atrelada a essa construção, é mais um elemento que ajuda a compor o modelo imagético-discursivo acerca da quadrilha. As ideias de dama e cavalheiro, que formam pares que demarcam lugares e papéis distintos para homens e mulheres na dança, são parte ativa da tradição, que atua diretamente na modelagem e disposição dos corpos na manifestação. Sobre isso, no entanto, é necessário levar em conta, como bem lembra Rafael Noleto (2017, p.11), que nas suas mais disntintas práticas performáticas e acepções culturais, a dança popular ou erudita “[...] é, em grande parte, pautada em divisões binárias de gênero. Ou seja, a dança é um código performático generificado.”. Nesse sentido, aquilo que aparece como tradição no campo das quadrilhas juninas é parte de um dispositivo mais amplo, que orienta as práticas sociais dos sujeitos no mundo do qual essa manifestação artístico-cultural popular é uma extensão.

Judith Butler (2019) nos convida a pensar no gênero como uma norma que se expressa no nível do simbólico, sendo este entendido não como uma estrutura de significantes e significados universais, mas como um mecanismo que se representa na prática social e corporal dos sujeitos em suas interações diárias. Nessa perspectiva, o gênero não seria apenas um conjunto de modelos legados por uma matriz cultural estática e geral, dos quais os indivíduos se apropriam, mas uma forma de poder que institui o próprio quadro de inteligibilidade acerca dos sujeitos, produzindo assim a própria noção de binaridade de gênero como algo natural. Para a autora, as práticas binariamente generificadas não são necessariamente o gênero, mas um efeito seu enquanto norma. Elas funcionam como idealizações que atuam de modo retroalimentador, significando-o conforme se apropriam dele. Parece ser, então, nesse cenário que a quadrilha junina surge, como o efeito de um determinado uso do gênero enquanto mecanismo de poder compartilhado no mundo das danças populares, sendo nesse caso também balizada por dispositivos estéticos atribuídos a um determinado território regional.

Os códigos corporais generificados nas manifestações dançadas podem facilmente ser verificados nos mais variados estilos, sendo os movimentos, vestimentas e demais atitudes que instituem a performance inscritos na codificação dominante na sociedade no que se refere à produção e organização de papéis femininos e masculinos. Andréa Morais Alves (2004) traz de modo muito pertinente o exemplo das danças de salão nos bailes que pesquisou na cidade do Rio de Janeiro. Marcados pela procura de mulheres idosas, que buscam instrutores de dança mais jovens, esses bailes obedecem a um tipo de sociabilidade completamente marcada pela generificação dos corpos e atitudes que inicia na dança, mas transcende o salão. A autora chama

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essa lógica de cavalheirismo. Para ela, essa dinâmica se trata de um conjunto de regras de conduta que servem de guia nos espaços dos bailes, produzindo comportamentos esperáveis tanto da dama, personagem feminino, quanto por parte do cavalheiro, papel assumido pelos homens, que estilizam padrões comportamentais já cristalizados na vida cotidiana. No âmbito da dança de salão, o cavalheirismo representa a regra de conduta primordial, e estabelece uma assimetria estrutural entre os envolvidos que enquadra os papeis em uma ordem que não abre espaço para desestabilizações ou dúvidas quanto à generificação das performances, como bem demonstra Alves (2004) na citação a seguir:

O cavalheirismo expressa o controle do homem sobre a mulher, representando um tipo de relacionamento hierárquico que está também presente na vida cotidiana. É o homem que convida a mulher para dançar, é ele quem a leva de volta para seu lugar quando a dança termina, é ele quem comanda os passos através dos movimentos com a mão nas costas da mulher – que se chama “conduzir a dama”; ela, por sua vez, deve saber ler esses movimentos e para isso é socializada ao aprender a dançar. (ALVES, 2004, p.50).

Embora as danças de salão resguardem suas peculiaridades, é fato que esse ordenamento do qual se valem também é verificável em outras danças, sobretudo se são executadas por casais. A quadrilha junina, como já apontado, é a variação de uma dança de salão do século XIX, também constituída por esses pares binários, aspecto que mantém como uma das principais sobrevivências que fazem dela uma expressão típica. Nela, o par dama/cavalheiro também se faz presente, reforçando essa ideia instituída como regra básica da dança de salão. Pode-se dizer que a lógica do cavalheirismo também é um dos princípios fundamentais da quadrilha junina, já que os movimentos são executados quase sempre com os casais de mãos dadas, sendo o homem responsável por conduzir a mulher, ao menos no que se refere ao discurso acerca da performance dançada. Nesse contexto, os corpos em movimento tendem a ser moldados dentro de uma ideia binária que tem como efeito o estabelecimento de códigos corporais e estéticos específicos para damas e cavalheiros.

Rafael Noleto (2017) fala sobre uma heterossexualidade e cigeneridade coreográfica, ao se referir às festas juninas e mais especificamente aos concursos/festivais de quadrilhas, que reificam e corroboram imageticamente essa conduta como naturalizada. Em sua pesquisa com as quadrilhas juninas de Belém do Pará, verificou que os cavalheiros, dentro da performance dançada da quadrilha, expressam elementos que demarcam e distinguem uma masculinidade marcada por determinadas características geralmente relacionadas aos homens, como a força de trabalho do homem do campo e o interesse sexual pelas mulheres, aspecto que seria simbolizado implicitamente pelo ato de “cortejar a dama”. Tais traços, abarcados de modo geral, se encontram presentes na quadrilha junina dançada em todas as regiões, inclusive no

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Nordeste, ainda que resguardem algumas variações de cunho local. Já as damas, dentro dessa lógica coreográfica heterossexual, possuem uma importância mais estética, já que suas performances são construídas com base em requisitos como beleza, graciosidade e delicadeza, características essencialmente atribuídas ao feminino no interior dessa percepção. Toda a coreografia da quadrilha é construída visando a exibição das damas, com seus movimentos de saias exuberantes, que devem ser conduzidos pelo cavalheiro. Noleto, ao apontar tais aspectos, vai além, indicando que a quadrilha junina, enquanto performance, reifica aspectos de parentalidade e harmonia grupal pautados nessa ordem heterossexista, que se manifestariam até mesmo nas vestimentas dos participantes. Segundo ele,

[...] as roupas dos brincantes fazem referência a uma suposta e idealizada harmonia grupal, ou seja, um senso de comunidade pautado na perpetuação de laços afetivos e sexuais responsáveis pela continuidade de redes de parentesco que estão baseadas em uma heterossexualidade presumível e desejável. (NOLETO, 2017, p.16).

Embora os códigos corporais e estéticos do cavalheiro e da dama sejam bastante demarcados, parece haver uma continuidade entre ambos, já que as coreografias se fazem com ambos interligados pelas mãos. Mas, além disso, as roupas do casal costumam ser confeccionadas com o mesmo tecido e aviamentos, para que não reste dúvidas de que há uma ligação entre a dama e o cavalheiro, traço que dentro do discurso coreográfico que rege a quadrilha também teria, conforme o autor, a função de denotar uma ligação afetiva e/ou conjugal entre os personagens, ou ao menos uma suposta intencionalidade por meio do cortejo do homem à mulher. No Ceará, somado a toda essa atmosfera abordada, existe o fato de que, dentro do discurso das tradições juninas que rege os festejos, a quadrilha seria dançada em comemoração a um casamento, o que institui os personagens do noivo e da noiva como as principais referências para a construção da ideia do par binário cavalheiro/dama. Percebidos como os anfitriões da festa, eles não só reificam os traços generificados, mas legitimam a lógica heterossexual hegemônica como natural a partir da quadrilha enquanto ritual festivo, afirmando uma unidade que, conforme Butler (2019, p.67) seria “[...] o efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade do gênero por via da heterossexualidade compulsória.”. É assim que a quadrilha junina, enquanto elemento da chamada cultura popular, ou discurso oficial, institui uma reafirmação do mundo social mais amplo, dominado por lógicas heterocentradas.

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9 Sujeitos queer na quadrilha junina: o que ocorre quando experiências não heterocentradas entram na festa?

Apesar da lógica heterossexual e da binaridade hegemônica dos papéis sociais de gênero serem fortemente reificadas no discurso oficial das tradições juninas cearenses, o movimento das quadrilhas juninas competitivas, como podemos chamar os grupos que adentraram no universo espetacularizado dos concursos e festivais juninos, promoveram uma infinidade de alterações em suas práticas e concepções, a despeito da manutenção de alguns traços essenciais relativos a sustentação de um discurso tradicionalista acerca do folguedo. Para Hugo Menezes Neto (2015), que também se debruça sobre esse contexto, não é possível pensar as quadrilhas juninas dissociadas dos concursos, visto que eles se transformaram em grandes estimuladores e pontos referenciais para muitos grupos juninos, que fazem de sua participação nos festivais competitivos a culminância de seus trabalhos. Assim sendo, a produção e preparação desses grupos costuma estar voltada completamente para os citados eventos, que ocorrem em nível local, regional e estadual.

Toda essa dinâmica, que como também lembra o autor, faz de um brinquedo popular de características sazonais uma manifestação ancorada em um processo que exige atividades durante o decorrer do ano praticamente inteiro, atribui novos valores, pensamentos e interesses a tal expressão artístico-cultural. No campo estético, as inovações e a incorporação de elementos técnicos de expressões artísticas como o teatro e a dramaturgia certamente se destacam. No que se refere ao aspecto social, o próprio perfil dos sujeitos que participam da referida manifestação passa a estar mais consonante com as demandas e características do mundo contemporâneo, inclusive aquelas que, em sua própria origem, questionam perfis e padrões de comportamentos hegemônicos que não raro servem de base para discursos de ordem tradicionalista. Isso talvez ajude a explicar a expressiva presença de indivíduos marcados por aquilo que opto por chamar aqui de experiências não heterocentradas5 nas quadrilhas juninas,

fenômeno que hoje pode ser observado em vários estados, inclusive no Ceará.

Hayeska Costa Barroso (2017, p. 182), em sua pesquisa sobre as quadrilhas de Fortaleza, indica que a intensa participação de homossexuais masculinos e sujeitos trans nesse contexto se estende a diversos setores da produção dessa manifestação hoje, desde a coordenação dos

5 Por experiências não heterocentradas entendemos uma dimensão sociosubjetiva relativa a pessoas pertencentes

à sigla LGBT e outras existências queer, como mulheres travestis, transexuais e indivíduos homossexuais com experiências corporais de fuidez de gênero, que em alguma medida destoam dos perfis normativos referenciadores do gênero e da sexualidade enquanto normas.

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processos até o trabalho estético e as atividades artísticas. Para a autora, se a presença de tais indivíduos não tem conseguido romper completamente os modelos imagéticos consolidados, como a construção binária do par cavalheiro/dama, suas performances dentro desse universo se fazem sentir por meio de reinvenções e até mesmo provocando alterações de sentidos na tradição. Embora interprete a liberdade de expressão das condutas e práticas desses atores sociais como limitadas dentro desse contexto, em sua visão marcado por um sistema de gênero hegemônico e dominante, a autora é muito explícita em reconhecer que “O ingresso de novos agentes traz consigo novas práticas e representações, que podem afetar o habitus no campo, quer seja reproduzindo-o, quer seja adequando-se a ele, quer reequilibrando-o.” (Barroso, 2019, p.94).

Analisando o aspecto artístico dos trabalhos das quadrilhas juninas do Recife, em Pernambuco, mais especificamente a questão da relação de seus trabalhos com a musicalidade, Hugo Menezes Neto (2015) indica algo a ser considerado. Para ele, os quadrilheiros, como se definem os indivíduos participantes dos grupos juninos competitivos, não se percebem como agentes “degradadores da tradição”, entretanto, se colocam na condição de atores ativos na condução da incorporação “[...] dos avanços, retornos, continuidades e transformações.” (NETO, 2015, p. 111). Entendemos que se essa lógica pode ser lançada sobre a dimensão da performance artística da manifestação, ela também se adequa facilmente ao que se desenha no cotidiano vivido dentro do contexto dos grupos juninos, já que as diferentes (não)identidades se impõem, não tendo como passar despercebidas. Desse modo, vale a pena pensar que se, por um lado, a quadrilha junina se ancora em códigos sociais que se apresentam como naturais no campo mais amplo da sociedade, isso não significa que seus atores não o questionem em algum grau, nem que não implementem transformações processuais nesse campo, ainda que o discurso sobre a tradição se mantenha. A tradição, como aponta Éric Hobsbawm, não surge com a origem do mundo, mas é fruto de um processo ativo de invenção, que cria e/ou reelabora práticas “normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas” (HOBSBAWM, 2018, p. 8). Eduardo Di Deus (2014), ao escrever sobre a realidade das quadrilhas juninas de Rio Branco/AC, verifica que elas constituem um movimento cultural de grande importância na cidade, que se desenha nos bairros periféricos de seu território e se constitui como um relevante espaço de sociabilidades juvenis, fato que também é notório em relação aos grupos juninos do Ceará. Em meio às sociabilidades juvenis percebidas pelo autor, ele destaca uma grande presença de quadrilheiros que se identificavam como gays, categoria que, dentro do âmbito local investigado, surgia como uma espécie de termo guarda-chuva com o intuito de designar de forma geral diferentes experiências com o gênero e a sexualidade: homossexuais, bissexuais

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e o que ele classifica como transgêneros. Para ele, as quadrilhas surgem como grupos que “[...] configuram ambientes de sociabilidade que incluem pessoas discriminadas na sociedade mais ampla por suas experiências de gênero” (DI DEUS, 2014, p. 83).

O documentário O São João também é trans, produzido e dirigido por Thiago de Castro – um dos autores deste artigo – em 2018, mostra como a presença de mulheres travestis e transexuais nas quadrilhas juninas da cidade de Sobral, na região norte do Ceará, é um fato a ser considerado, por apontar o poder que essa manifestação possui na vivência e autolegitimação da identidade de gênero de tais pessoas, a despeito das tensões e contradições mobilizadas nesse processo de inserção. Embora as personagens, em geral, tenham descrito situações de preconceito e resistência relativas à aceitação social de suas identidades, tais situações sempre são descritas como fatos secundários em suas experiências nos grupos juninos. Em geral, destacam-se narrativas que dão conta de aceitação, respeito, consideração e oportunidade de viverem de modo mais pleno suas existências queer, falas que se constroem sempre dentro de um movimento comparativo entre o espaço da quadrilha e outros ambientes em que se inserem ou já se inseriram no cotidiano. Estes espaços, situados no contexto de uma cidade que, embora de porte metropolitano médio ainda cultiva uma cultura forjada em uma religiosidade católica e hábitos conservadores, são representados a partir de sua hostilidade ao que é significado como diferente.

Hugo Menezes Neto (2020), ao realizar uma análise do documentário, aponta como limitação da obra a ausência de crítica a respeito da falta de representações não binárias de gênero na quadrilha, entretanto, indica que isso não ocorre pelo fato de o filme enfocar a produção de sentidos e subjetividades mobilizada na experiência das próprias interlocutoras. Ao abordar essas existências em seu trabalho, Noleto (2016) categoriza tais pessoas como integrantes de um conjunto formado por sujeitos que, conforme sua análise, seriam portadores de uma feminilidade indesejada dentro do contexto das quadrilhas juninas, que por sua vez cumpriria a função de reprodução das normas sociais dominantes de gênero. Frisa-se que nesse conjunto, além de travestis e mulheres transexuais, segundo o autor, estariam inclusos outros indivíduos, como homens gays com comportamentos afeminados e/ou com experiência corporal de fluidez de gênero.

No caso das mulheres travestis e transexuais apresentadas no documentário, destaca-se que essa feminilidade dominante, inspirada nas mulheres cisgenero, não é identificada como destoante dos desejos das interlocutoras, que buscam exatamente “[...] se misturarem e serem lidas pelo público como parte de um conjunto de mulheres cis na “quadra junina”.” (NETO, 2020, p. 214). Assim sendo, a diferença residiria exatamente na existência de identidades

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12 plenamente identificadas com o padrão de feminilidade cultuado na quadrilha junina por parte de corpos socialmente lidos, a partir de uma lente normativa, como não femininos. Nesse caso, seguindo uma trajetória oposta a indicada por Noleto, o que parece “indesejada” aqui não é a performance de feminilidade trazida à tona, mas o corpo, que costuma trazer peculiaridades em geral impossíveis de serem invisibilizadas. A despeito disso, porém, a presença de tais pessoas dentro do contexto em questão provoca um tensionamento na norma, promovendo um inevitável movimento que, se conserva algo de enquadramento, também opera um desfazimento progressivo dela por meio dessa presença corporal que se naturaliza dentro do processo social, o que termina por superar questões sobre desejabilidade ou indesejabilidade relativas à expressão do gênero.

Para Paul Preciado (2017), o corpo pode ser percebido como um texto, “[...] um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados.” (PRECIADO, 2017, p.26). O autor é enfático ao apontar que a heterossexualidade – e aqui podemos acrescentar tranquilamente a cisgeneridade – não é um fruto produzido e plantado nos corpos pela natureza, mas um processo constante de reificação de códigos socialmente instituídos como naturalmente masculinos ou femininos. Por essa ótica, seria reducionista deduzir que corpos marcados como dissonantes da norma de gênero se limitam a reproduzi-la na íntegra, já que as performances de feminilidade e masculinidade cis-heterocentradas jamais conseguem ficar ilesas quando encarnadas por experiências corpóreo-subjetivas que, em alguma medida, escapam das inscrições consagradas de confluência entre o corpo e as expressões de gênero socialmente determinadas para ele. Quando os corpos riscados desse texto cis-heterocentrado se apropriam deste, algum tipo de fissura se produz, ao menos no campo visual e das representações.

Entre bichas e cavalheiros: masculinidades liminares

Chegar ao ensaio de uma quadrilha junina é se deparar com diferentes situações ocorrendo ao mesmo tempo, uma vez que esses momentos “[...] são o grande mote da sociabilidade dos indivíduos pertencentes ao meio junino competitivo.” (CASTRO, 2018, p. 122). Entender a dinâmica e os significados agenciados nesse contexto é uma tarefa que só consegue ser plenamente alcançável caso nos enveredemos por esse longo processo de produção, cujo tempo pode variar, mas em geral dura de nove a seis meses. É nos ensaios que o espetáculo ganha vida, onde as coreografias que os brincantes executarão ao longo de uma

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exibição de 35 minutos, que será repetida em diversos festivais competitivos ao longo de dois meses, é montada e exaustivamente treinada. Mas também é talvez neles que os corpos dos indivíduos se expressam da maneira mais despojada e se encontram mais desnudos, do ponto de vista das identidades e subjetividades de gênero e sexualidade normativas.

Se na manifestação cultural propriamente dita os códigos parecem mais demarcados do ponto de vista das performances generificadas, é em seus bastidores que essa linha parece se tornar mais tênue, menos rígida. Nesse contexto fica mais complicado falar em padrões, já que a diferença de portes físicos, etnias, traços, cabelos e comportamentos prolifera de todos os lados. Uma coisa, porém, parece ser recorrente nesse universo: a predominância de homens jovens homossexuais. Evidentemente, pessoas heterossexuais do sexo feminino e masculino, bem como outras pessoas pertencentes à sigla LGBT, como travestis, transexuais, lésbicas e bissexuais também compõem os grupos, mas certamente o perfil citado inicialmente aparece em maior número. Ao menos no lócus que observamos, o campo das quadrilhas juninas da cidade de Sobral/CE, essa realidade é visível.

Os momentos que antecedem o início do ensaio são marcados pela interação dessas pessoas, quando se reencontram, põem os assuntos em dia e se divertem por meio de uma sociabilidade tipicamente LGBT, onde traços da famosa linguagem Pajubá6 se fazem presentes, em conversas permeadas por gírias a ela relacionadas misturadas a termos de interesse do cotidiano quadrilheiro. As conversas entre os homens, em especial, chamam atenção pela expressividade, que em vários aspectos destoa da postura mais sóbria e contida que o personagem cavalheiro exige na dança. Corpos soltos, muitos gestos com as mãos e traços bastante afeminados nos modos de se expressar dão o tom das interações sociais nessas situações. É verdade que alguns indivíduos se mostram mais tímidos e menos expressivos, todavia, raramente não interagem com os demais, fazendo uso dessa linguagem a seu modo. David Le Breton (2019) chama atenção para o fato de que aquilo que classifica como movimentos significantes do corpo não são produtos herdados de uma provável matéria natural. Para ele, “[...] trata-se de marcadores sociais que assinalam a pertença cultural ou uma vontade de integração.” (LE BRETON, 2019, p. 64-65). A predominância da linguagem verbal e corporal aqui apontada nos leva a crer que tal comportamento corporal não configura uma exceção, mas uma espécie de uso tácito dentro do cotidiano que compõe o referido processo, indicando um sinal de pertencimento ao contexto em questão.

6 Modo como é chamada a linguagem composta por palavras, gírias e expressões comumente atribuídas à cultura

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Mas é preciso que se diga que essa corporeidade não se apaga totalmente quando esses rapazes passam da arquibancada7 onde se encontram e socializam ao centro da quadra em que ensaiam as coreografias. Percebemos de modo muito evidente que o ensaio é, para esses atores sociais, um momento mais flexível, muito embora não seja destituído de regras. Nos ensaios, diferente das apresentações, onde dançam de frente para comissões julgadoras que os avaliam, as pessoas podem “errar”, refazer performances e até improvisar. É aqui que conseguimos observar cavalheiros menos apegados aos códigos vigentes de uma masculinidade performada. Os corpos são menos rígidos, e quando se colocam em tal posição, frequentemente brincam com isso, aproveitam brechas na execução dos passos para dançar de modo mais livre e mais referenciado por seus comportamentos cotidianos. Pequenos gestos como uma mão na cintura ou o balançar de uma saia imaginária, traços tipicamente femininos no ambiente coreográfico da quadrilha junina, frequentemente se desenham como riscos que cortam ao meio o texto corporal esperado. Além disso, não é raro observarmos esses homens ocupando o lugar destinado às mulheres quando estas faltam os ensaios, formando pares de dois corpos socialmente lidos como masculinos, mas que por si mesmos cuidam de borrar na dança a corporeidade esperada pela generificação da manifestação cultural, o que em momento algum causa qualquer tipo de estranhamento.

O caso dos homens homossexuais nas quadrilhas juninas nos parece interessante para observar o modo como o corpo se institui fortemente a partir dos estímulos sociais, não dependendo apenas de determinações regulatórias de gênero. Ao conversarmos com esses atores sociais, algo em comum é narrado por praticamente todos eles: a maior aceitação de suas orientações sexuais dentro do espaço da quadrilha. Isso talvez ajude a explicar a naturalidade com que seus corpos fluem entre performances de gênero distintas no contexto dos ensaios dos grupos. Parte de nossos interlocutores narram histórias de dificuldade de aceitação por parte de familiares ou de enquadramento a performances heterocentradas nos espaços em que se inserem fora da quadrilha, como o profissional.

Para Didier Eribon (2008), em virtude da construção do mundo social ser pautada em uma visão forjada nas experiências heterossexuais, os homossexuais têm vivido historicamente em uma realidade que os relega a uma posição de inferioridade social, marcada pela injúria direcionada às suas práticas e subjetividades, que encontra ressonância no discurso cotidiano comum, mas tem sua origem no discurso religioso, jurídico, psiquiátrico e político. Diante disso, não raramente os homossexuais podem “[...] ser levados a desenvolver repertórios de

7 Em Sobral, os ensaios dos grupos juninos costumam ocorrer em quadras esportivas situadas nos bairros da cidade.

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comportamentos que são utilizados alternativamente em função dos diferentes públicos diante dos quais se encontram, passando de um tipo de gestualidade ou de atitude a outro, conforme as exigências da situação.” (ERIBON, 2008, p. 66). É assim, por exemplo, segundo o autor, que alguns gays podem se mostrar à vontade diante de um grupo de outros gays, quanto aos comportamentos e vocabulários, mas uma postura mais heteronormativa em seus ambientes de trabalho.

A sexualidade enquanto dispositivo histórico se configura como a rede de estimulação de corpos, prazeres e produção de discursos, conhecimentos e controles “[...] segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder.” (FOUCAULT, 2017, p. 115). Considerando o caráter heterossexual hegemônico desse dispositivo, aquilo que é interpretado como desviante dessa norma encontra apenas duas alternativas: subvertê-la ao custo do risco da injúria e outras violências ou dissimular, ao menos temporariamente, essa “dissidência”. O caso dos homossexuais nas quadrilhas juninas de Sobral/CE parece representar esse paradoxo, sendo o espaço cotidiano desses grupos o lugar onde seus corpos podem ser com mais naturalidade, ou ao menos sem tantas preocupações. E nesse contexto total, esse momento da preparação do espetáculo, dos ensaios, parece representar um lugar de liminaridade para tais sujeitos, que por si próprios já carregam consigo experiências sociais e subjetivas liminares.

Do ponto de vista da corporeidade, esse espaço material e simbólico dos ensaios representa uma espécie de processo ritual que visa instituir um padrão corporal, sobretudo no que se refere aos papéis de gênero a serem representados no espetáculo. No caso dos homens homossexuais, estes vivem durante todo o período de ensaios uma espécie de experiência de transição entre seus corpos cotidianos e a adequação a uma corporeidade fortemente generificada que visa originar o personagem do cavalheiro. Victor Turner (1974) chama atenção para o fato de esse processo de liminaridade se dar exatamente nesse movimento de passagem de um status a outro. Do ponto de vista da produção artística da performance do cavalheiro, o quadrilheiro, enquanto artista, é um sujeito liminar que incorpora um personagem. Os momentos onde essa construção processual se dá são exatamente os ensaios, oportunidades em que a performatização do cavalheiro ainda está em construção, portanto, seus códigos ainda permanecem mais fluidos, já que nas apresentações a reificação desses signos de gênero e sexualidade dominantes é estruturalmente mais rígida. Turner aponta esse estado liminar como um grau intermediário, em que as pessoas não estão nem aqui nem lá, no caso analisado, nem estão em seus corpos cotidianos, nem no corpo padrão generificado exigido pelo cavalheiro. Segundo o autor, pessoas e contextos liminares como o que aqui descrevemos “[...] podem ser

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muito criativas em sua libertação dos controles estruturais, ou podem ser consideradas perigosas do ponto de vista da manutenção da lei e da ordem.” (TURNER, 1974, p. 5).

Quando focamos o olhar nos bastidores da festa, no processo de ensaios e construção da quadrilha junina, queremos indicar que o modelo imagético-discursivo que conhecemos sobre essa manifestação em suas apresentações é apenas o produto pronto e acabado de um longo processo. Na verdade, é a menor parcela de uma totalidade maior. Considerando que a maior parte dos fluxos vividos pelos participantes das quadrilhas juninas se dá nessa preparação e admitindo-a como um processo liminar de transição e construção artística de corporalidades, é possível afirmar que a realidade vivida cotidianamente por esses grupos tem mais a ver com os processos liminares dos bastidores do que com a suposta reificação performática de papéis de gênero binários na apresentação pública da dança, que não passam de uma imitação caricatural da norma. Além do mais, pode-se dizer que a criatividade corpórea dos homens gays nos processos liminares da quadrilha, que, como já apontado, desafia a todo o momento a norma estabelecida pelo dispositivo de gênero e sexualidade vigente na sociedade, também impacta de algum modo na construção desse cavalheiro ancorado no discurso ordenador da tradição, hoje não sendo possível afirmar que essa performance continua a mesma de tempos atrás.

Seja como for, verifica-se nesse espaço da quadrilha uma espécie de ampliação dessa condição liminar que os homossexuais vivem na sociedade, situada entre a adequação ou questionamento da norma, mas sempre lida por esta como perigosa e desestabilizadora. Diante disso, talvez já não seja possível falarmos de uma mera reprodução por parte dos gays quadrilheiros dos códigos de uma masculinidade hegemônica, do mesmo modo que não se pode dizer que uma mulher trans não inclui nada de sua corporalidade na produção de uma feminilidade compartilhada do universo dos grupos juninos, limitando-se a imitar a cisgeneriade. É necessário pensar a quadrilha como esse espaço liminar, que não só reproduz, mas também produz e reinventa segundo lógicas que escapam às estruturas, afinal, como diriam Deleuze e Guatari (2012, p.103), “Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação”.

Considerações finais: para pensar as antiestruturas

As chamadas manifestações da cultura popular são grandes exemplos de como os dispositivos que historicamente pretendem ordenar a vida social atuam. Elas condensam em suas produções uma série de discursos, imagens e práticas instituídas como naturais ao longo da construção dos comportamentos tidos como referenciais em nosso cotidiano. Tais práticas

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artístico-culturais ritualizam e, no ato de ritualizarem, exageram o próprio “real”. Mas considerando que o que classificamos como real não surgiu no mundo por força da natureza, mas através da ação simbólica e social dos homens, cabe-nos refletir, a partir dessa ritualização das práticas e pensamentos usuais, sobre o conteúdo que os institui.

Os discursos que tentam dar conta de tradições não são novidade em nossa sociedade, eles estiveram presentes sempre que grupos dominantes instituíram seus paradigmas e padrões de comportamento como oficiais. O campo da cultura popular também recai nessa lógica essencialista, já que tenta dar conta de um grande inventário de práticas do povo, este próprio uma invenção que sempre se empenhou em construir uma história e cultura para chamar de suas. As quadrilhas juninas se tornaram uma expressão típica das festividades sazonais do Brasil, esse país que inventa e reinventa sua identidade ao longo dos séculos mantendo determinados traços como essenciais.

Embora determinados discursos e imaginários permaneçam, fazendo com que as quadrilhas juninas sigam representando lógicas sociais normatizadoras no nível do simbólico, sobretudo no que concerne aos papéis de gênero e sexualidade, é necessário olhar para os movimentos que têm se expressado nessa e em outras manifestações da chamada cultura popular. Encarar esses grupos como estáticos pode ser um equívoco, já que os fluxos sociais em que se expressam são bastante dinâmicos, provocando fissuras e ressignificando as próprias representações estabelecidas ao seu respeito.

Acreditamos, hoje, que as quadrilhas juninas precisam ser analisadas em sua totalidade, não tomando como base apenas sua performance artística e sua pretensa reificação de uma lógica binária de gênero. Elas não nos parecem apenas uma estandardização ou ampliação de uma imagem e discurso hegemônicos que visam cristalizar perspectivas heterocentradas. São processos sociais complexos, vividos também a partir de experiências cotidianas que desviam dessas normas, representando, por outro lado, um contexto liminar e antiestrutural capaz de agregar indivíduos dissonantes delas, em um movimento que também exerce seus impactos nos modos como a própria manifestação cultural em questão é pensada atualmente. Com o cuidado de não a reduzirmos à performance artística reproduzida durante o período junino, propomos uma leitura de seu processo social total, chegando à percepção de que ela é uma manifestação liminar, cujas ambiguidades e contradições são sua principal matéria, não o ordenamento proposto pelos discursos tradicionalistas que a sustentam, o que inclui os aspectos que concernem às questões de gênero e sexualidade. É preciso pensar que, se as tradições são inventadas, a ideia que esses novos atores da manifestação junina produzem hoje não serve a

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um discurso anacrônico, que tenta sobreviver apesar das mudanças, mas reelabora vivências e significados no ato de ser/fazer/viver.

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