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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS TALES ZELIC DE ABREU LIMA

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

TALES ZELIC DE ABREU LIMA

MULTICULTURALIDADES NO USO DE COGUMELOS PSICODÉLICOS E A PROIBIÇÃO DAS DROGAS

GUARULHOS 2021

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2 TALES ZELIC DE ABREU LIMA

MULTICULTURALIDADES NO USO DE COGUMELOS PSICODÉLICOS E A PROIBIÇÃO DAS DROGAS

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo

GUARULHOS 2021

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3 Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

Lima, Tales Zelic de Abreu

Multiculturalidades no uso de cogumelos psicodélicos e a proibição das drogas / Tales Zelic de Abreu Lima – 2021. – 1 f.

Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado). – Guarulhos : Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Orientador: Prof. Dr. Uirá Felippe Garcia.

Título em [inglês]: [Multiculturality in the use of psychedelic mushrooms and drug prohibition].

1. Psicodélicos. 2. Cogumelos. 3. Drogas. 4. Cultura. I. Profº. Dr. Uirá Felippe Garcia. II. Multiculturalidades no uso dos cogumelos psicodélicos e a proibição das drogas

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4 TALES ZELIC DE ABREU LIMA

MULTICULTURALIDADES NO USO DE COGUMELOS PSICODÉLICOS E A PROIBIÇÃO DAS DROGAS

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo

Aprovação: ____/____/____

Prof. Dr. Uirá Felippe Garcia (orientador) Universidade Federal de São Paulo

________________________________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Barbosa Ribeiro Universidade Federal de São Paulo

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5 AGRADECIMENTOS

Esse trabalho de conclusão de curso não teria sido possível sem o apoio de minha família e amigos, aos quais eu agradeço. Agradeço também a Angela Oliveira Bastos pela sua ajuda com o tema e apoio constante desde o início da concepção deste trabalho e por fim agradeço ao meu orientador Uirá Felippe Garcia por me acompanhar nessa jornada importante e sempre dedicar seu tempo com disposição e atenção.

Quero reservar um agradecimento especial aos dois entrevistados que me cederam seus sábados para contribuir com essa pesquisa e ao professor Rodrigo Barbosa Ribeiro por me ajudar a iniciar as discussões sobre o tema e me indicar obras importantes.

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6 “Visto que as drogas psicodélicas expõe-nos a níveis diferentes de percepção e experiência, usá-las significa entrar em uma aventura filosófica, obrigando-nos a confrontar a natureza da realidade com os nossos frágeis sistemas subjetivos de crenças. A diferença é a causa do riso, do terror. Nós descobrimos abruptamente que fomos programados todos esses anos, que tudo que aceitamos como sendo realidade é apenas uma construção social.”

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7 RESUMO

O presente trabalho visa desmistificar certas percepções acerca de substâncias psicoativas, em especial os cogumelos, no que diz respeito à sua história e recente popularização. Meu interesse está, sobretudo, em analisar a trajetória e as diferentes relações dos seres humanos com os “cogumelos mágicos”. Como contraponto e afim de fomentar o debate, analisarei a questão da proibição e da guerra às drogas, tentando entender o que faz de uma droga legal ou ilegal. Para tal, a pesquisa combinará a análise da bibliografia selecionada com o uso de entrevistas.

Palavras-chave: Psicodélicos. Cogumelos. Drogas. Cultura

.

ABSTRACT

This work aims to demystify certain perceptions about psychoactive substances, especially mushrooms, regarding their history and recent popularization. My interest is, above all, to analyze the trajectory and the different relationships between human beings and “magic mushrooms”. As a counterpoint and in order to foster debate, I will analyze the issue of prohibition and the war on drugs, trying to understand what makes a drug legal or illegal. To this end, the research will combine the analysis of the selected bibliography with interviews. Keywords: Psychedelics. Mushrooms. Drugs. Culture

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 9

CAPÍTULO 1: PSICOATIVOS E COGUMELOS ... 10

I. O USO DE PSICOATIVOS E O MORALISMO ... 10

II. A IMPORTÂNCIA DE UMA ABORDAGEM DAS CIÊNCIAS HUMANAS SOBRE O TEMA ... 11

III. A ABORDAGEM BIOMÉDICA E O CONCEITO DE “DROGAS” ... 13

IV. POR QUE FALAR DE PSICODÉLICOS? ... 15

V. O ESTUDO DOS PSICODÉLICOS E REFERÊNCIAS ... 16

CAPÍTULO 2: PLANTAS DOS DEUSES: FUNGOS E A DIVERSIDADE ... 18

I. O QUE SÃO SUBSTÂNCIAS PSICODÉLICAS? ... 18

II.O USO DE PSICODÉLICOS NA HISTÓRIA ... 20

III. COGUMELOS PSICOATIVOS NO BRASIL E NO MUNDO: MULTICULTURALIDADES NO CONTEMPORÂNEO ... 23

IV. RELATOS ... 26

CAPÍTULO 3: PROIBIÇÃO OU LEGALIZAÇÃO: UMA QUESTÃO CULTURAL ... 31

I. A LEI NO BRASIL ... 31

II. SOBRE A PROBIÇÃO DA MACONHA ... 32

CONCLUSÃO ... 36

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9 INTRODUÇÃO

O tema das substâncias psicoativas sempre se mostrou de extrema importância para a sociedade, visto o alvoroço social e político que surge sempre que esse assunto entra em voga, de um lado os que defendem sua liberação, do outro os que defendem sua proibição; uns afirmam que faz bem, outros que podem causar consequências terríveis; no entanto, como tudo nessa vida, a discussão não é tão simples quanto fazer bem ou mal. Como veremos nesse trabalho, a questão da proibição das drogas pelo mundo envolve muito mais do que uma defesa pela saúde da população, há motivações muito mais obscuras para tal. Ao mesmo tempo, o potencial medicinal de tais substâncias há muito é conhecido e há muito vem sendo frequentemente ignorado em decorrência de um estereótipo negativo em torno de muitas substâncias.

A fim de clarear a questão, este trabalho buscara mostrar uma visão ampla sobre o tema. No primeiro capítulo, discutiremos a noção de "droga", e o que esse conceito simboliza. No segundo capítulo, analisarei historicamente os cogumelos psicoativos e por fim no terceiro e derradeiro capítulo, farei uma análise e comparação entre a situação dos cogumelos e outras substâncias atualmente descriminalizadas no Brasil e a maconha, atualmente proibida sob a portaria n° 344 de 12 de maio de 1998.

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10 CAPÍTULO 1: PSICOATIVOS E COGUMELOS

I. O USO DE PSICOATIVOS E O MORALISMO

Historicamente, o âmbito das decisões pessoais se transformou radicalmente ao longo dos séculos. No mundo ocidental pós-iluminista as decisões pessoais ganharam espaço a ponto de contemplar questões filosóficas, científicas e religiosas; desde o século XX, a partir principalmente dos anos 60, a juventude vem reivindicando uma esfera cada vez maior de diretos sobre o próprio corpo e de escolha, no que se refere aos atos sexuais, estéticos e existenciais.(CARNEIRO, 2008). O uso de substâncias psicoativas também está inserido nesse quadro, mas qual sua relação?

As decisões pessoais são, se não determinadas, influenciadas pela esfera coletiva e por padrões impostos por cada sociedade e cultura, e tais padrões estão em constante mudança. A restrição ao uso de psicoativos é relativamente recente, enquanto o interesse do ser humano em torno de entorpecentes é antigo, boa parte destas substâncias são utilizadas há séculos e milênios de formas medicinais e religiosas (SIMÕES, 2008). O uso de cogumelos alucinógenos, por exemplo, foi primeiro registrado em povos nativos da região do México, onde sua utilização data de antes de Cristo, há também uma grande variedade de povos da Ásia e na África nos quais registros do uso secular de alucinógenos podem ser encontrados (SAMORINI, 1992). Portanto, podemos afirmar que o uso de psicoativos e sua relação com o ser humano também é determinado por imposições sociais e culturais que se transformaram ao longo dos séculos.

A virada do século XIX para o XX representou uma aproximação em direção ao moralismo e às políticas proibicionistas que vemos hoje em torno das questões dos psicoativos. O movimento que levou o mercado de drogas da legalidade à ilegalidade foi rápido e violento, desde as Guerras do Ópio na China à lei seca estadunidense nos anos 1920 (RODRIGUES, 2008). Em 1912 ocorreu a Convenção Internacional do Ópio, uma primeira tentativa de regulamentação e proibição do uso de certas substâncias. Todas essas ações foram os embriões do que viria a ser decidido posteriormente pela Organização das Nações Unidas no século XX (PAIVA, 2018).

Em 1971 ocorreu em Viena a segunda convenção da ONU cujo objetivo era organizar, controlar e regulamentar o consumo de entorpecentes pelo globo. A primeira reunião ocorreu dez anos antes, em 1961 em Nova Iorque, mas teve foco nas substâncias mais conhecidas na época, derivados da maconha, da coca e do ópio (Ibidem). Com o boom no consumo de

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11 psicodélicos e estimulantes sintéticos e naturais ao longo dos anos 60 e a declaração de guerra às drogas por Richard Nixon, a convenção de Viena prontamente se voltou para essas novas formas de psicoativos e incluiu em sua agenda substâncias como o MDMA, o LSD, o DMT, entre outras (Ibidem). Porém, tratar os psicoativos de forma unilateral e com “mão de ferro” exclui formas legítimas de consumo de certas substâncias, como é o caso de diversos povos do Brasil e de outras partes do mundo cuja relação com psicoativos é muito diferente daquela que a ONU argumenta ser uma relação “perigosa” e “danosa à sociedade”. Ao forçarem uma política proibicionista de uma grande variedade de substâncias, os órgãos internacionais parecem se esquecer que séculos atrás produtos como açúcar, café, chá, bebidas alcoólicas e o tabaco tiveram um papel central no estabelecimento de um “comércio mundial”; tais substâncias, antes consideradas exóticas e luxuosas, passaram a fazer parte do cotidiano de diversas sociedades ao redor do mundo, mesmo entre os mais pobres. As organizações e governos ignoram certos fatos ao desconsiderar a experiência estadunidense com a proibição de bebidas alcoólicas, que ao tentar coibir seu uso e sua comercialização, falhou em ambos os objetivos, demonstrando que a proibição gera, ao contrário do que se espera, uma valorização crescente das substâncias e enriquece os esquemas ilegais que estão por trás da produção. O mesmo acontece com o fenômeno da guerra às drogas que há décadas apenas fortalece o tráfico, mata e prende milhares todos os anos.1.

Em relação às justificativas científicas para essa proibição, parecem não faltar evidências seguindo o mesmo critério para que se aja mais firmemente em relação ao tabaco e ao álcool, porém, por conta da grande movimentação econômica que esses dois produtos representam para o mercado internacional essas duas substâncias acabam não sofrendo as represálias que outras sofrem.

II. A IMPORTÂNCIA DE UMA ABORDAGEM DAS CIÊNCIAS HUMANAS SOBRE O TEMA

Poucos fenômenos remetem a tamanhas e intricadas redes de significações históricas e culturais comparáveis e, ao mesmo tempo, têm se prestado a formas extremadas de simplificação conceitual e manipulação política como o uso de ‘drogas’. (Simões, 2008)

1 VICENZO, Giacomo. Guerra às drogas não funciona. O que podemos fazer? Disponível em:

<https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/07/13/como-surgiu-a-guerra-as-drogas-por-que-ela-falhou.htm.>

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12 Em função da transformação da questão dos psicoativos em uma questão de saúde pública ao longo do século XX, a biomedicina prevaleceu sobre esse tema por muito tempo como a principal área a tratar do uso, dos efeitos e das consequências do uso de psicoativos, enquanto as ciências humanas se voltavam para as questões que afetavam a sociedade mais claramente, como a violência e o tráfico. No entanto, se tratando de um tema tão complexo e antigo que é o uso de psicoativos, é mais do que necessário utilizar uma abordagem multidisciplinar para discutir suas questões. Devemos ter tanto o conhecimento fornecido pela biomedicina a respeito das substâncias, suas propriedades e consequências físicas e mentais de uso a curto, médio e longo prazo; passando pelas formulações históricas e jurídicas a respeito dessa discussão; quanto o conhecimento fornecido a partir de análises sociológicas e antropológicas no que dizem respeito às relações e motivações historicamente desenvolvidas entre psicoativos e seres humanos e aos sentidos que estão ligados à sua produção e seu uso por cada sociedade. Não podemos esquecer que o uso de qualquer substância é condicionado e estruturado por forças culturais e históricas mais amplas (SIMÕES, 2008).

Se analisarmos o uso de bebidas alcoólicas em nossa sociedade, por exemplo, podemos perceber facilmente uma variedade de atribuições, tanto positivas quanto negativas, historicamente associadas a seu consumo. O álcool, segundo diversas pesquisas2, é a droga mais consumida no mundo mesmo sendo frequentemente classificada como uma das substâncias mais perigosas3. Ao mesmo tempo que associamos as bebidas alcoólicas a situações negativas como a violência doméstica, acidentes automobilísticos e danos à saúde física e mental, somos instruídos através de propagandas e costumes a associar o uso de álcool a situações positivas, como a socialização, o lazer e celebrações. Até mesmo religiosamente temos uma visão mais positiva do que negativa do álcool, como acontece na religião cristã; o Livro do Eclesiastes descreve o vinho como o “gozo do coração e a alegria dos homens” e a bebida até hoje é vista como a representação do sangue de Cristo, sendo comum, inclusive, o consumo de vinho pelo padre durante a realização de missas católicas. Isso mostra, que o argumento, muito comum até, de que religiões ou crenças que se utilizam ou louvam psicoativos são exóticas ou inferiores é

2 https://www.globaldrugsurvey.com/wp-content/themes/globaldrugsurvey/results/GDS2019-Exec-Summary.pdf 3 https://www.addictioncenter.com/news/2019/08/15-most-dangerous-drugs/;

https://www.rehabspot.com/drugs/the-top-10-most-dangerous-drugs/;

https://www.economist.com/graphic-detail/2019/06/25/what-is-the-most-dangerous-drug;

Os três primeiros veículos colocam o álcool em segundo lugar, a publicação inglesa The Economist, através de uma pesquisa promovida pela revista científica The Lancet, classifica o álcool como a droga mais perigosa.

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13 problemático e fruto de uma série de preconceitos, tendo em vista que até mesmo a religião mais popular do mundo possui tais características.

Por conta das diversas relações históricas e sociais apresentadas aqui com relação ao uso de substâncias psicoativas, tanto religiosamente, quanto no que diz respeito às discussões filosóficas a respeito da liberdade de escolha e da liberdade dos indivíduos sobre si próprio, o estudo sobre o consumo, a produção e seus efeitos deve ser sim tratado pelas ciências humanas, até mesmo para desmistificar certos conceitos vistos como objetivos que na verdade podem e devem ser tratados subjetivamente, como é o caso da própria noção de “drogas”.

III. A ABORDAGEM BIOMÉDICA E O CONCEITO DE “DROGAS”

Apesar do uso milenar de certas substâncias, podemos dizer que atualmente, mais do que nunca, as “drogas” sofrem de um preconceito que causa inúmeras consequências para a sociedade, seja atrasando e inibindo estudos científicos que poderiam gerar diversos medicamentos e tratamentos a partir de tais substâncias, seja cometendo injustiças ao proibir o uso legítimo de substâncias por certas culturas, enquanto outras não sofrem quaisquer restrições. Neste trabalho, pretendo me debruçar tanto sobre os aspectos culturais do uso de psicodélicos e enteógenos, quanto sobre os aspectos relativos à legislação brasileira e a postura internacional a respeito do uso, cultivo e distribuição dessas substâncias. Para isso vou apresentar os motivos pelos quais as “drogas”, seu consumo e produção devem ser desvinculados de noções inflexíveis como certo e errado, bem e mal, quando na verdade devem ser vistas a partir do processo histórico pelas quais passaram e continuam passando. A trajetória do uso dessas substâncias pela humanidade é difusa e diversa, portanto, tratar do assunto tendo em vista apenas a interpretação utilizada pela ONU, por exemplo, é negar a importância que tais substâncias tiveram em milhares anos de utilização por diferentes povos e culturas ao longo dos anos.

A falta de uma maior diferenciação entre consumo pessoal e tráfico e uma classificação generalizante acerca do conceito de “drogas” por parte do Estado brasileiro, definida a partir das convenções da ONU, faz com que muitos povos não sejam contemplados de forma plena pela legislação. Em um país culturalmente vasto como é o Brasil, é extremamente necessário que as políticas de “drogas” levem em consideração as diversas especificidades presentes em

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14 nosso território, para que seja possível distinguir as implicações de suas variadas formas de consumo.4

Afinal, independentemente da diversidade de usos, o simples fato de se generalizar o conceito de “droga” gera inúmeras ramificações. A palavra “droga” sempre estará carregada de significados diversos, mesmo que atualmente esteja em torno de um estigma negativo. Na medicina, “droga” é sinônimo de medicamento, a origem da palavra vem do holandês antigo: droog, que significa mais especificamente “folha seca”, visto que antigamente a maioria dos remédios e medicamentos eram produzidos a partir de vegetais (CEBRID, 2002). Hoje em dia, a maioria dos medicamentos popularmente conhecidos, até são produzidos a partir de vegetais, mas passam por intensos e complexos processos químicos até chegarem às prateleiras das farmácias. Mas isso não significa que o uso tradicional de certas plantas deixou de existir. Como dito anteriormente, não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo, diversas plantas e fungos ainda são usados em rituais e como formas de cura, porém, devido a diferentes questões de ordens moral, cultural e política, e à generalização ao associar drogas sempre como algo negativo, muitas substâncias têm dificuldades em alcançar todo seu potencial científico e cultural, que assim poderiam agregar muito à sociedade. Falo mais especificamente dos psicodélicos ou alucinógenos e dos enteógenos5.

É necessário, porém, antes de começar a discorrer sobre alucinógenos e enteógenos, caracterizar e diferenciar certas substâncias a fim de evitar a confusão entre elas. Segundo a classificação mais comum na biomedicina, as drogas psicotrópicas (que alteram de alguma forma a atividade cerebral do usuário) podem ser separadas em três classes distintas6: Depressoras da Atividade do Sistema Nervoso Central, que diminuem a atividade cerebral, como o Álcool, Opiáceos e Ansiolíticos; Estimulantes da Atividade do Sistema Nervoso Central, que aumentam a atividade cerebral, como a Cocaína e Anfetaminas; e por fim, a classe que será a protagonista deste trabalho, as Perturbadoras da Atividade do Sistema Nervoso Central, que alteram as funções cerebrais, são alguns representantes dessa classe de psicotrópicos: a Psilocibina (proveniente de uma variedades de cogumelos), THC (oriundo da maconha) e LSD-25 (produzido sinteticamente). Esse grupo não altera quantitativamente a atividade cerebral, mas faz com que o cérebro funcione de maneira diferente, transformando os

4 http://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/03/drogas_e_cultura.pdf

5 Termo cunhado pelo etnobotânico Gordon Wasson, para se referir a substâncias psicoativas de uso ritual e

religioso. (COUTO, 2017)

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15 sentidos do usuário enquanto durarem os efeitos. Algumas dessas plantas e substâncias são consideradas por diferentes povos, como plantas sagradas, pois sua utilização está relacionada a entrar em contato direto com seres divinos ou mundos além do plano terreno.

IV. POR QUE FALAR DE PSICODÉLICOS?

Agora que já tratei de fornecer um panorama mais geral e os interesses da pesquisa, gostaria de situar um pouco melhor os meus próprios interesses em relação à essa temática.

Muito me interessa o uso contemporâneo de tais substâncias e como a cultura e seus significados sofreram mudanças até serem o que são hoje. Se cogumelos, cactos e outras plantas sempre foram importantes para povos diversos ao redor do mundo, hoje em dia estão em uma posição que vale a pena ser estudada e analisada considerando o contexto globalizado e altamente racionalizado que nos encontramos hoje. Tais substâncias foram, por muito tempo, utilizadas quase que exclusivamente de forma medicinal, ritual ou religiosa em sociedades específicas, no entanto, atualmente em nosso mundo, o uso de algumas delas vai além do escopo medicinal ou espiritual. Em um movimento que viu seu auge nos anos 60 e passou a se tornar cada vez mais globalizado, a cultura psicodélica se espalhou para diversas formas de manifestações estéticas, culturais e artísticas. O uso dessas substâncias passou a significar para a juventude da época uma válvula de escape perante uma sociedade de valores decadentes, cheia de conflitos sociais e guerras. Junto de grandes conjuntos musicais que marcaram época e personalidades importantes como o neurocientista e escritor Timothy Leary, o antropólogo Carlos Castañeda e seu hoje clássico trabalho “A Erva do Diabo”, e o escritor Aldous Huxley, que em 1954 publicou As Portas da Percepção a respeito de sua experiência com o uso da mescalina, o uso de psicodélicos foi amplamente difundido e popularizado na sociedade ocidental, tanto o uso “espiritual”, como uma forma dos indivíduos se libertarem das amarras da sociedade, quanto o uso recreativo.

A experiência psicodélica em si sempre me pareceu exótica, instigante e ao mesmo tempo perigosa. O poder de transformação e de alteração da consciência em uma substância natural sempre me cativou a pesquisar sobre o tema e quanto mais pesquisava, mais compreendia a complexidade e a grande variedade de seus usos e efeitos, afinal, tais substâncias são tão antigas quanto a própria humanidade. A magnitude da experiência em diversos relatos que cheguei a ler, me instigava a saber como seria a minha própria experiência, seria ela reveladora? Seria ela transformadora? Pessoalmente, posso falar que, sobretudo, me instigou a

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16 descobrir mais sobre esse mundo. O que me realmente fez escolher esse tema de pesquisa foi uma conversa:

“Como será que foi quando o primeiro ser humano comeu um cogumelo alucinógeno? Será que sentiu medo? Será que foi imediatamente informar aos outros? O que será que viu?”

Essas perguntas, infelizmente, são impossíveis de serem respondidas, e, por mais interessante que seja talvez nem caiba mais à antropologia e às ciências sociais concentrarem-se nas origens e difusão de fenômenos e eventos. Mas isso não impede que abordemos questões igualmente interessantes, referentes aos usos de algumas dessas substâncias. Em meio a essa discussão surgiu a ideia de pesquisar o uso de cogumelos na sociedade. Talvez não faça sentido estudar o primeiro ser humano a utilizá-lo, mas podemos, ao invés disso, estudar os “últimos”, levantando questões que façam sentido para as nossas vidas, hoje em dia.

Levando em conta tudo o que foi dito até aqui, a proposta desse trabalho está em situar, como foi dito, a questão das substâncias alucinógenas e enteógenas naturais encontradas, particularmente, no Brasil sob um escopo das ciências humanas para que possamos compreender todas suas dimensões. Será abordado sobretudo o Psilocybe cubensis, cogumelo alucinógeno encontrado em grande escala em solo brasileiro. Analisarei o uso, cultivo e as pesquisas em torno do cogumelo ao longo da história, datando desde seu uso ancestral por povos antigos do continente americano até a sociedade contemporânea. Faço questão de analisar a posição do Psilocybe cubensis e outras substâncias na legislação brasileira atual em relação ao uso, cultivo e a posse.

Antes da conversa que me fez decidir escrever sobre alucinógenos minha opção era falar sobre comunidades alternativas, tais quais as formadas pelos hippies da contracultura. O

uso de alucinógenos era um dos pilares de muitas dessas comunidades, então creio que esse tema de alguma forma teria sido abordado naturalmente pelo trabalho. Mas visto a pequena quantidade de estudos a respeito, especificamente do Psilocybe cubensis, achei interessante jogar uma luz sobre esta questão que, com certeza, merece mais atenção e desenvolvimento.

V. O ESTUDO DOS PSICODÉLICOS E REFERÊNCIAS

O interesse científico em torno dessas substâncias se desenvolveu rapidamente ao longo do século XX com a crescente popularização de substâncias como o LSD. Muitos desses estudos estavam interessados no potencial medicinal das substâncias alucinógenas e em seu uso

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17 psiquiátrico. Naquela época muitas substâncias estavam sendo estudadas e sintetizadas pela primeira vez em laboratório. Hoje em dia diversos estudos científicos ainda buscam descobrir novas utilidades para substâncias como a psilocibina, o DMT e o LSD no tratamento de diversas doenças.

O Brasil, que possui uma ampla e diversa cultura em torno do uso de psicoativos, não fica para trás no meio científico, com trabalhos sérios sendo realizados em diversas instituições e universidades, cujo estudos estão presentes na bibliografia deste trabalho, como por exemplo: o NEIP - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos e o CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, ligado à Universidade Federal de São Paulo. Alguns dos autores brasileiros que estão presentes na bibliografia são: Gilberto Velho um dos pioneiros no que se refere ao uso de substâncias no país; Beatriz Labate (2009), com seus diversos estudos a respeito do uso de psicoativos nas américas, Eduardo Viana e Henrique Carneiro. O últimos três estão presentes na coletânea de artigos sobre o uso de drogas do NEIP (2008).

Também fazem parte da bibliografia deste projeto, Anna Tsing (2015) e autores clássicos do meio como Albert Hofmann, responsável pela sintetização do LSD e pelo estudo de diversas substâncias ao longo do século XX e Carlos Castañeda, antropólogo e autor da clássica obra A Erva do Diabo (1968).

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18 CAPÍTULO 2: PLANTAS DOS DEUSES: FUNGOS E A DIVERSIDADE

I. O QUE SÃO SUBSTÂNCIAS PSICODÉLICAS?

Dentre os diversos tipos de substâncias psicoativas as mais fascinantes são sem dúvida as alucinógenas, enteógenas ou psicodélicas. A palavra “alucinação” significa, na linguagem médica, “percepção sem objeto” (CEBRID). Assim quando uma pessoa alucina, ela vê, ouve ou sente coisas sem que elas existam. Tal condição pode ser presenciada por seres humanos em casos de psicose e esquizofrenia ou em caso da ingestão de certas substâncias alucinógenas. Por esse motivo, tais substâncias também são conhecidas como “psicotomiméticas” por imitar os sintomas mais evidentes da psicose. O termo “psicodélico” tem origem grega e tem um significado próximo de “expansão da mente” (ibidem). Já o termo enteógeno foi cunhado por um grupo de etnobotânicos, dentre os quais se destaca Gordon Wasson com o intuito de afastar a conotação negativa em torno das substâncias em questão e seu significado literal, a partir do grego, seria “manifestação interior do divino”; esse termo se relaciona mais especificamente com o uso de certas substâncias psicoativas em rituais religiosos, e embora tenha ampla aceitação por parte dos usuários, seu uso não é muito visto na comunidade científica (COUTO, 2017). Para todos os efeitos, neste trabalho vou usar o conceito “psicodélico” por ser, a meu ver, o termo mais abrangente se tratando dos efeitos das substâncias em questão, visto que são muito mais do que apenas alucinações.

Há ainda um termo introduzido recentemente, que ainda há de ser mais utilizado pela comunidade científica, é o caso do termo “psicointegrador”, proposto por Michael J. Winkelman.

O termo psicointegrador surge como uma necessidade de integrar as diversas características dos efeitos dos psicodélicos (espirituais, afetivas, cognitivas, psicotomiméticas e psicoterapêutica) sob a perspectiva neurológica e neurofenomenológica. Visa estabelecer a capacidade do estado psicodélico em promover a emergência de conteúdos inconscientes para o campo da consciência, podendo ser reintegrados ao Self com nova reconfiguração, podendo promover transformações no sistema de conceitos e no comportamento (ESCOBAR, ROAZZI. 2010).

A experiência psicodélica é, segundo o Livreto Informativo sobre Drogas Psicotrópicas do CEBRID, muito maleável e assim, depende muito do contexto e da condição na qual se encontra o usuário. Os efeitos e a duração dos efeitos da ingestão de cogumelos psicodélicos

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19 (sejam eles crus, secos, cozidos ou a partir do chá) variam de acordo com a quantidade ingerida. Inicialmente podem variar entre náuseas, dores de cabeça, vertigem, dilatação das pupilas, aumento da pulsação, da pressão sanguínea e da temperatura corporal. Após o período inicial, o indivíduo verá um aumento da sensibilidade perceptiva (maior intensidade das cores e luzes), sinestesia (cores com sons e sons com cores, por exemplo), euforia, sensação de bem-estar, desinibição e o aumento do desejo sexual. Para além das alucinações, relatos descrevem que durante a experiência psicodélica os pensamentos ficaram "claros e afiados" e que "ele perguntava a si mesmo perguntas das quais imediatamente sabia a resposta" (GARTZ, 1996).

Esse caráter mais psíquico da experiência psicodélica é de extrema importância, sobretudo para o tratamento de enfermidades psicológicas e mentais.

"Autores sugerem que a ingestão de psilocibina e substâncias similares podem facilitar os sujeitos a experienciarem um estado de consciência que podem levá-los ao desenvolvimento de poderosos insights e à resolução de profundas questões existenciais e espirituais-bases para o comportamento apresentado no TOC" (ESCOBAR, ROAZZI, 2010).

Além do TOC (transtorno obsessivo compulsivo), estudos comprovam a efetividade da psilocibina no tratamento da depressão, alcoolismo entre outros transtornos mentais. Estudos semelhantes foram feitos com outros psicodélicos conhecidos como o LSD, no entanto, comparativamente, a psilocibina se mostrou mais eficaz por conta da menor duração de seus efeitos, o que facilita a administração da substância e menor número de ocorrências de flashbacks e casos de depressão pós-sessão (HOBBS, 2002).

Condições como sensibilidade, personalidade, expectativa do indivíduo sobre os próprios efeitos, ambiente e presença de outros indivíduos podem influenciar tanto positivamente, quanto negativamente para o rumo da “viagem” e podem ser a diferença de uma “boa viagem” para uma “má viagem”.

Tais condições e concepções são moldadas de acordo com cada sociedade e período histórico em que o usuário de dada substância se encontra. Sendo assim, podemos afirmar que a experiência de um indígena que utiliza uma substância na companhia de um curandeiro ou guia espiritual será substancialmente diferente da experiência de um jovem ocidental que utiliza a mesma substância recreativamente na companhia de amigos e esta será diferente da experiência de um indivíduo utilizando tal substância medicinalmente acompanhado de uma equipe de médicos e pesquisadores.

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20 II.O USO DE PSICODÉLICOS NA HISTÓRIA

As substâncias e plantas psicodélicas ao redor do mundo estão há séculos ligadas à rituais religiosos e às mais variadas noções de divino que podemos encontrar em diversos povos ao redor do mundo. Alguns exemplos dessas plantas são: o peyote (Lophophora williamsii), muito comum no México, como descrito por Carlos Castañeda; a jurema preta (Mimosa hostilis ou Mimosa tenuiflor), tradicionalmente usada por indígenas do norte e nordeste brasileiro; a argyreia (Argyreia nervosa), originaria da Índia e introduzida em diversas outras partes do mundo; e os chamados “cogumelos mágicos” (Psilocybe cubensis, Psilocybe mexicana, Amanita muscaria). Tais plantas possuem uma história milenar e registros de seu uso estão espalhados por todas as partes do mundo. O peyote tem uma rica história, sobretudo na américa do norte (ANDERSON, 1996), a jurema preta está historicamente relacionada aos povos indígenas do nordeste brasileiro (SOUZA, 2008), e os cogumelos possuem ligações com povos de diversas regiões do globo (GARTZ, 1996).

A bebida ritual soma é citada diversas vezes ao longo dos Vedas hindus, sendo exaltada por suas qualidades e caracterizada como uma substância divina. A verdade é que o conhecimento a respeito da identidade das plantas que compunham a bebida se perdeu e antropólogos especulam que fosse preparada em parte ou inteiramente a partir dos cogumelos Psilocybe cubensis ou a Amanita muscaria (WASSON, 1968) O uso de cogumelos está amplamente distribuído em diversas culturas: seu uso também foi registrado em diferentes povos pagãos em certas partes da Europa; na África, desenhos que datam de 7 a 9 mil anos fazem referência ao uso de cogumelos psicoativos (GARTZ, 1996). E na América, o uso de cogumelos pelo povo Mazateca do México (WASSON, 1957), ficou particularmente conhecido ao redor do mundo.

Alguns dos registros mais antigos a respeito do uso de cogumelos psicoativos nas américas têm origem na chegada dos espanhóis ao “novo mundo”. Documentos escritos pelo frade Bernardino de Sahagun no século XVI descrevem o uso de cogumelos psicoativos conhecidos como teonanácatl7 na língua náuatle (MATSUSHIMA et al, 2009). No entanto, os cogumelos psicodélicos só passaram a gozar de uma crescente popularidade na sociedade ocidental a partir de meados do século XX, por conta, sobretudo, de um acontecimento específico.

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21 Em 1957 o etnobotânico e micologista Gordon Wasson publicou um artigo na revista Life chamado Seeking the Magic Mushroom8. Nele, Wasson descreve sua visita ao povo Mazateca na cidade de Huautla de Jiménez no estado mexicano de Oaxaca, com o intuito de participar de uma velada, uma cerimônia de cura que se utiliza de cogumelos do gênero Psilocybe. Apesar de ter deixado as informações a respeito da localização do ritual e das pessoas que o auxiliaram em segredo em sua publicação na revista, algum tempo depois as informações verdadeiras vieram a público, assim o povo Mazateca e María Sabina, a mulher que guiou e apresentou Wasson aos honguitos, como são conhecidos os cogumelos, e às veladas, ficaram internacionalmente conhecidos. O povo de Huautla de Jiménez se viu no centro do turismo psicodélico ao longo dos anos 60; todos os anos, mais e mais jovens, até mesmo celebridades, chegavam na cidade à procura de María Sabina e dos famosos “cogumelos que geravam visões”. Apesar de um ganho financeiro inicial, a repercussão mundial sobre as veladas, causou diversos problemas para María Sabina e o povo Mazateca.

Primeiro que muitos desses jovens não possuíam o conhecimento nem mesmo o desejo de entender o verdadeiro significado a respeito das veladas, estavam atrás apenas da “viagem” proporcionada pelos cogumelos. Segundo que o fluxo intenso de pessoas atraídas pelos cogumelos na região chamou a atenção das autoridades mexicanas, que passaram a atuar contra essa movimentação chegando até mesmo a acusar María Sabina de tráfico de drogas. Com a atenção indesejada, a tradição Mazateca se viu ameaçada e o que antes era um ritual sagrado,

8 À Procura do Cogumelo Mágico (tradução livre).

Figura 1 - Psilocybe cubensis encontrado in natura. Fonte: ROCKFELLER, Alan.

2019. Disponível em:

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22 foi se tornando cada vez mais banalizado pelo uso desregrado dos cogumelos pelos turistas ocidentais.

O uso de muitas substâncias psicoativas no Brasil e na América, não só, mas principalmente na modernidade, envolve um sincretismo entre diversas culturas, como crenças indígenas, cristãs, africanas e esotéricas conforme essas substâncias são inseridas em diferentes culturas e povos. Neste caso as veladas incorporam elementos indígenas com elementos católicos. A cerimônia mazateca usa uma imagem do menino Jesus conhecida como Santo Niño de Atocha, muito popular nos povos de origem hispânica da América Latina e do sudoeste dos Estados Unidos. Além disso, os cogumelos chamados de honguitos também são conhecidos como ninõ santo, em referência direta ao Santo Ninõ, o menino Jesus (BRISSAC, 2008). Leituras da bíblia fazem parte da cerimônia de cura, além de cânticos indígenas proferidos pelos curandeiros e curandeiras, alguns desses cânticos ficaram conhecidos através de gravações na voz de María Sabina.

FIGURA 2 - Gordon Wasson durante sua primeira velada. Podemos notar a presença de imagens cristãs, com destaque para a

figura do Santo Niño de Atocha, à esquerda. WASSON, Gordon. Seeking the magic mushrooms. LIFE MAGAZINE, 1957. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=Jj8EAAAAMBAJ&lpg=PP1&pg=PA100#v=onepage&q&f=false

Outro exemplo muito comum é a ayahuasca: tradicionalmente de uso indígena por povos amazônicos, vem crescendo em popularidade nas últimas décadas graças a grupos como o Santo Daime e a União do Vegetal, que utilizam a bebida em conjunto com uma série de práticas e simbolismos do cristianismo, tradições afro-brasileiras e esotéricas. O chá da ayahuasca é visto como um condutor que leva ao autoconhecimento e a Jesus Cristo, o

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23 autoconhecimento por sua vez, nos leva à paz interior e à boas ações ao invés de más (ANDRADE, 1988).

III. COGUMELOS PSICOATIVOS NO BRASIL E NO MUNDO: MULTICULTURALIDADES NO CONTEMPORÂNEO

Apesar de seu momento no holofote a partir do ensaio de Wasson, falar de cogumelos psicodélicos pode ser um grande desafio por este acabar sendo ofuscado no meio acadêmico e na sociedade ocidental em geral por outras substâncias mais difundidas midiaticamente como o LSD ou a ayahuasca. Mesmo assim, me proponho a apresentar uma visão mais específica sobre os fungos.

Se passaram décadas na sombra das substâncias citadas acima nos últimos anos, os "cogumelos mágicos" ao menos conquistaram seu próprio espaço dentro da cultura psicodélica contemporânea. Em diversos países, em função da forma como as leis anti-drogas funcionam, os cogumelos são a alternativa mais fácil para quem está atrás de experiências psicodélicas. Mesmo no meio científico, os cogumelos estão ganhando cada vez mais espaço por ser de uso mais prático do que substâncias como o LSD, por exemplo, já que seus efeitos duram menos e o número de incidentes é menor, facilitando assim a administração da substância.

Os cogumelos no geral são velhos conhecidos dos seres humanos e estão presentes em diversas culturas ao redor do globo, seja como parte de rituais, seja na culinária. A antropóloga Anna Tsing destaca o caráter de “espécies companheiras" dos cogumelos em sua relação com os seres humanos desde a antiguidade. A prática de colher cogumelos se mostrou tão importante quanto outras plantas que faziam parte da dieta de povos caçadores e coletores.

Mas não é apenas com a espécie humana que os cogumelos mantêm essa relação de companheirismo. Os fungos no geral são importantes para diversas espécies de plantas que, através da simbiose, mantêm uma relação mutuamente benéfica na maioria dos casos, nos quais a planta fornece os recursos necessários para o fungo se desenvolver e em troca recebe do fungo os recursos que precisa para sobreviver.

O uso contemporâneo de cogumelos alucinógenos no Brasil se dá nesse contexto de sincretismo e de multiculturalidades, onde diferentes significados são atribuídos à substância e a seu uso, seja num contexto ritual/espiritual, seja em um contexto de uso recreativo. O Brasil,

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24 com sua vasta população e diversas culturas, vem desenvolvendo sua própria cultura psicodélica, muito calcada na difusão e interação de crenças místicas com plantas psicoativas de uso tradicional. Na realidade, segundo o Global Drug Survey 2020, o Brasil ocupa a 4ª colocação no ranking de países que mais consomem LSD e a 6ª colocação para usuários de cogumelos. Isso mostra que o Brasil possuí um número cada vez maior de indivíduos, sobretudo jovens, que fazem parte de uma geração que assim como outros movimentos contraculturais pelo mundo, buscam subverter a relação que temos com psicoativos e se interessam pelas experiências proporcionadas por tais substâncias. Os usuários e entusiastas dos “cogumelos mágicos” no Brasil são favorecidos pela legislação, que será tratada adiante e pela grande biodiversidade de cogumelos que estão presentes em solo nacional.

Em 2015 um projeto foi criado com o objetivo de desenvolver uma série de mapas a partir de contribuições anônimas de cultivadores e usuários a respeito da localização e da incidência dos principais cogumelos psicodélicos encontrados em solo brasileiro, sendo eles: Psilocybe cubensis, Panaeolus cyanescens e Amanita muscaria (VENTICINQUE, 2017).

Analisando o mapa, podemos notar que a incidência dessas três variedades de cogumelos psicoativos é ampla em diversas regiões do país, sobretudo o Psilocybe cubensis. No entanto, apesar da variedade de cogumelos, a prática de coletá-los para consumo deve ser feita com cautela e apenas com o devido conhecimento. A característica mais perigosa dos cogumelos psicoativos talvez seja a de serem facilmente confundidos com outras espécies venenosas, cuja confusão é responsável por boa parte dos registros de mortes e incidentes relacionados aos cogumelos. Para a sorte dos usuários brasileiros, não é necessário se arriscar tanto assim para conseguir tais cogumelos.

Os cogumelos psicoativos são encontrados no Brasil, tanto naturalmente, como foi dito, quanto disponíveis para compra. Apesar da legislação brasileira seguir as diretrizes determinadas pelas convenções internacionais do século XX e proibir a psilocibina e a psilocina, os fungos em si não são amparados pela lei, o que permite que sejam facilmente adquiridos em lojas on-line; não há qualquer registro de punição legal pelo consumo dos cogumelos (RABIN, 2015). Além dos cogumelos, há ainda uma variedade ampla de plantas psicoativas que podem ser adquiridas on-line, como a jurema, argyreia, além de certas plantas que fazem parte do preparo da ayahuasca.

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FIGURA 3 - Mapa interativo indicando a ocorrência de cogumelos dos tipos Psilocybe cubensis, Panaeolus cyanescens e

Amanita muscaria em solo nacional. Disponível em: https://www.google.com/maps/d/edit?mid=zDLH8r0HRjas.kNLPHHK8-Stg

FIGURA 4 – Exemplo de site especializado na venda de plantas e substâncias psicoativas naturais de uso tradicional.

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26 IV. RELATOS

A seguir, mostrarei a transcrição de duas entrevistas realizadas afim de demonstrar o caráter multicultural do uso de cogumelos na atualidade. Nas entrevistas, podemos perceber a diferença de significado e da importância que cada indivíduo atribui à experiência psicodélica em si e de onde vêm as referências e influências dos respectivos indivíduos que os fizeram chegar aos cogumelos. As entrevistas foram realizadas remotamente, através do uso da internet. Ambos entrevistados são homens e me são conhecidos há alguns anos: o primeiro cultiva e vende sua produção, além de consumir, como será mostrado, o conheci através do contato de uma amiga que já o conhecia; o segundo entrevistado é um amigo de longa data, cujo uso dos cogumelos me era sabido já há algum tempo. Por conta da relação dos dois com os cogumelos, seus nomes surgiram naturalmente como opções para uma entrevista, e assim foi feito.

ENTREVISTA 1

Como você conheceu os cogumelos? E qual foi seu primeiro contato?

Foi com um amigo, que já trabalhava com produção dos cogumelos. Comecei a trabalhar com ele e a tomar também. Só, aí, então comecei a ter o conhecimento mais intenso da medicina. Faz quanto tempo?

8 anos.

E desde então você toma frequentemente? Além de cultivar também. Sim, tomo doses menores no dia a dia, e doses mais forte quando consagro. Qual a frequência dessas doses? Todos os dias?

Doses menores no dia a dia, quase todos os dias. O cogumelo, tem propriedades para vários tratamentos, isso varia de acordo com a dosagem.

E como você diria que o uso dos cogumelos impacta na sua vida e no seu dia a dia? Impactaram e muito, eu era viciado em drogas, cocaína, crack, cigarro e álcool, fui viciado por mais de 30 anos. As medicinas sagradas expandem a mente, a comunicação entre os neurônios. Isso permite maior contato com divindades (seres extremamente evoluídos, feitos de luz). Estes seres nos amam, pois somos criações deles. E foram eles que me mostraram o caminho que eu estava seguindo e o caminho que eu podia seguir. Assim larguei todas as drogas e a vida

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27 promíscua que eu tinha. Hoje só tomo medicinas, como ayahuasca, cogumelos, maconha e rapé. Hoje me sinto livre e com uma linda missão a cumprir, achei o meu propósito.

Na época que você começou a tomar os cogumelos você já pensava nisso? Você começou a tomar por esse motivo, ou por algum outro motivo?

Tomava como tomava qualquer droga, só depois fui entendo do realmente se tratava. Antes eu achava que era só mais outra droga, depois fui entendendo; aí tomei ayahuasca e cada vez mais me aprofundado nas medicinas, para entender de verdade a nossa existência e o porquê existimos. Hoje aprendi as dosagens das medicinas de forma que posso ministrá-las com segurança.

Como você costuma consumir os cogumelos? Existe algum protocolo que você segue ou busca seguir?

Quando tomo no dia a dia, só procuro escolher o momento certo do dia para tomar e assim ter um aproveitamento maior.

Quando tomo em consagração, limpo toda a casa, me alimento até 2 horas antes de consagrar, para vir de estômago vazio. Tomo um catalisador, para prolongar os efeitos, preparo a casa, climatizando-a com músicas xamânicas e palo santo no ar, afinal é um culto de consagração. Tomo um longo banho e me arrumo com as melhores roupas e adereços, pois vou me relacionar com divindades.

Qual esse catalisador geralmente?

Arruda da Síria, pode ser Jacube também. Também conhecido como Mariri ou Hamalas. Você costuma se reunir com outras pessoas nessas ocasiões?

Às vezes sim, outras vou apenas eu.

Podemos dizer que sua relação com os cogumelos é uma relação altamente espiritualizada certo?

Sim, totalmente. Tem o cunho científico, sim, porém é relacionado com o mundo espiritual. Existem influências de diferentes culturas nessa sua relação com os cogumelos?

Todas as religiões estão relacionadas, são apenas formas diferentes que estas divindades se apresentam para nós. Como deuses gregos, deuses indianos, anjos da guarda, espíritos da mata,

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28 são todos a mesma coisa, vindos como manifestação visual (miração, ou imagens em 3D). A medicina expande a mente e nos proporciona maior contato.

Então, você acha que mais pessoas deveriam experimentar os cogumelos?

Com certeza, muitas pessoas vão precisar, pois em microdosagem, os cogumelos tratam a depressão e a ansiedade, doenças psicológicas de agora e muito mais no futuro. Outras pessoas usam em doses mais fortes, para cura de vícios em drogas, álcool e tabagismo. Outras pessoas, que sentem seu chamado. Outras que precisam descobrir-se de verdade. Outras que precisam quebrar o ego... Eu vejo a medicina com muitas aplicações.

Como você descreveria a experiência?

Quando estamos na força, estamos em contato com quem nos conhece melhor que nos mesmos, ele nos conhece, até nossas vidas anteriores. O propósito da humanidade é se desenvolver como espécie. Porém desenvolver o espírito permite um desbloqueio do cérebro, assim também evoluímos na matéria, uma mente equalizada e feliz promove uma saúde melhor e qualidade de vida, bem como preservação do corpo do envelhecimento. Pensamentos de alta vibração só tendem a espelhar e retornar mais positivos. Existe a peia9, é quando estamos fazendo mal para nós mesmos ou para outra situação... é pesado, sim, porém muito bom, nos dá uma oportunidade de melhorarmos. Enfim, o propósito do ser humano, é o contato com divindades, pois eles, nos deram tudo, tecnologia, religiões e a própria vida, estão presentes 100% o tempo todo. Mas as pessoas aprendem que: aquela voz que fala com você, dentro da mente é a voz da consciência. Só que não. São divindades conversando telepaticamente através da nossa consciência. Quando conseguirmos levar a este entendimento para mais pessoas, mais pessoas poderão se desenvolver como espécie e como ser.

ENTREVISTA 2 Há quanto tempo você usa cogumelos?

Desde 2016.

9A peia é popularmente conhecida entre os adeptos do culto do Santo Daime como surra do daime.

Expressa-se por vômitos, diarreias, tremedeiras, mal-estar, ou qualquer outro tipo de evento desagradável pelo qual possa se encontrar o sujeito sob efeitos do potente alucinógeno de origem indígena. SILVA, Leandro Okamoto da. Marachimbé chegou foi para apurar: Estudo sobre o castigo simbólico, ou peia, no culto do

Santo Daime. Dissertação de Mestrado: Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia

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29 Com que frequência você usa ou usava cogumelos?

Até 2018 consumia com mais frequência (uma vez por mês ou mais), hoje em dia, em torno de uma vez a cada 6 meses.

Como você conheceu os cogumelos?

Consumi e conheci em festas de música eletrônica, raves, amigos que consumiam.

Como você costuma consumir os cogumelos? Existe algum protocolo que você segue ou busca seguir?

Tem duas regras que eu sigo: Precisa ser em eventos sociais adequados (festas/raves, junto de outras pessoas que vão consumir também), e mantenho um tempo de pelo menos 3 meses entre um consumo e outro. Compro o cogumelo desidratado, trituro, e jogo em um copo com um pouco de água, ingerindo-o.

Como e por que começou a usá-los?

Tive meu primeiro contato através de um colega de escola que comprou algumas gramas. Comecei a consumir em algumas festas, como alternativa para outras drogas recreativas mais caras, como LSD.

O que os cogumelos significam para você e para sua vida?

Ao contrário de muitos amigos que conheço, tenho uma visão mais cética da coisa. Da forma que usei, em ambientes recreativos, sem noções de dosagem, sem acompanhamento profissional e pela falta de qualquer espiritualismo que eu associe ao seu consumo, sinto que o significado é meramente recreativo.

Os cogumelos têm ou já tiveram algum impacto na sua vida ou no seu dia a dia?

Acho que o impacto está bem associado ao significado que citei antes, no meu caso, o uso foi recreativo, trouxe com ele boas memórias e momentos agradáveis, sem nenhuma grande consequência negativa ou sequela visível dos seus usos. Porém, minha experiência pessoal me faz acreditar que as alterações que ele causa pode sim ter usos terapêuticos. Em ambientes controlados, com acompanhamento profissional.

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30 Não muito diferente das que tive no consumo de outras drogas recreativas, nos momentos em que consumi, me sentia mais alegre, mais “bobo” e me divertia rindo da minha própria incompetência lógica em alguns momentos. Falava algo que não fazia sentido, fazia um comentário do tipo “Tô muito louco né” e ria disso. Senti também algo que eu descreveria como uma ampliação dos sentidos, não em nenhum sentido místico, mas o simples fato de que um som, imagem ou qualquer outra fonte de estímulo externo que geralmente passaria batido tinha uma importância maior nos meus processos cognitivos.

Você acha que mais pessoas deveriam usar cogumelos?

Embora possa soar um pouco hipócrita da minha parte, já que as experiências que tive e pretendo ter no futuro, foram recreativas e sem nenhum tipo de controle, e mesmo tendo plena consciência de que esse consumo acontece e continuará acontecendo nesses contextos (E nesses casos, o importante é que todos que o façam, tenham noção de riscos, dosagens, efeitos e todas as informações relevantes), ainda acho que o melhor caminho para todos que o consumam seja o uso terapêutico, em casos onde este se mostre efetivo, em ambientes controlados, com acompanhamento profissional.

• • •

Como podemos ver, cada entrevista apresenta uma visão distinta, dentre as muitas que existem em nossa sociedade. Sendo o objetivo do presente trabalho, apresentar o aspecto multicultural do uso dos cogumelos psicoativos pela humanidade, as entrevistas nos servem como um excelente exemplo dessa multiculturalidade e de um mundo globalizado, onde diversas culturas passaram a coexistir em um mesmo lugar. Cada um dos entrevistados nos apresentou uma visão única e exclusiva de si próprio em relação com os cogumelos, relação essa, condicionada por seus contextos sociais, culturais e políticos nos quais estão inseridos.

Os relatos reforçam a ideia de que as substâncias psicoativas, para serem completamente compreendidas, devem ser observadas e analisadas sob um ponto de vista diverso, sempre prezando por diversas fontes a respeito do tema, de preferência de diversos contextos.

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31 CAPÍTULO 3: PROIBIÇÃO OU LEGALIZAÇÃO: UMA QUESTÃO CULTURAL

I. A LEI NO BRASIL

Como vimos, é consideravelmente fácil conseguir certas substâncias psicoativas no Brasil, como cogumelos, casca de jurema, argyreia, entre outros, sendo possível encontrar essas plantas a venda até mesmo na internet. Enquanto, por outro lado, o panorama em torno da maconha nunca pareceu realmente avançar na direção de um afrouxamento das restrições impostas, mesmo medicinalmente, o avanço em nosso país é mínimo se comparado com outros países. Acho válido para a última sessão deste trabalho, analisar comparativamente a situação de algumas plantas para tentarmos compreender os motivos que tornam tão complicada a descriminalização da maconha no Brasil.

Os cogumelos e outras substâncias naturais possuem apenas seus princípios ativos oficialmente proibidos no Brasil segundo a portaria n°344 de 199810, enquanto no caso da maconha, possui tanto seu princípio ativo (Tetrahidrocanabinol), quanto a própria planta (Cannabis sativa) presente na lista de substâncias controladas pela ANVISA.

Um dos principais motivos que me despertou interesse é o fato de a maconha ser, comparativamente, mais inofensiva se tratando de seus efeitos imediatos, que são bem mais brandos: ela não causa alucinações como cogumelos e não atrapalha as funções motoras como o álcool o faz. Ao mesmo tempo, seu potencial medicinal é gigantesco, com diversos medicamentos sendo desenvolvidos todos os anos para o tratamento de diversas doenças. Ainda assim, a maconha é uma das substâncias mais visadas pelas políticas antidrogas. O que faz a maconha ser então tratada de forma tão distinta quanto outras substâncias, aparentemente, mais danosas e imprevisíveis? A partir de uma análise histórica e comparativa, podemos afirmar que fatores culturais, políticos, econômicos e o racismo foram determinantes para a proibição da maconha em boa parte do mundo.

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32 II. SOBRE A PROBIÇÃO DA MACONHA

A maconha é utilizada pelo ser humano a pelo menos 5000 anos, com variadas formas e utilidades. Estamos acostumados a tratar a maconha apenas como uma droga, porém, o cânhamo, forma da Cannabis sativa utilizada industrialmente, é muito utilizado em diversas partes do mundo na produção de papel, cordas, materiais de construção e tecidos, mercado que dominava a cerca de 100 anos atrás. O cânhamo estava presente até na indústria automobilística, com combustíveis sendo desenvolvidos a partir da planta. No entanto, sua proibição foi amplamente defendida e incentivada por uma nova indústria que se formava, que com poder e influência na mídia, infiltrou na opinião pública noções negativas a respeito da maconha:

Então, com o lobby da indústria petroleira e de tecidos sintéticos, saiu o empurrão que faltava para a criminalização da cannabis. Após isso, uma guerra de interesses ajudou a enterrar, de vez, a reputação da planta. Reportagens negativas sobre maconha em um jornal cujo dono era um importante produtor de papel, sem qualquer fundamento científico, decretaram a pena de morte da cannabis. (CAMPOS, 2020)

Até então, seu uso como medicina e psicoativo foi amplamente difundido com o passar do tempo, chegando em todos os continentes. No início do século passado, no Brasil e no mundo, a maconha era considerada um medicamento útil para o tratamento de diversas doenças e condições e amplamente difundida. Porém, ao mesmo tempo que seu uso como medicina crescia, crescia também seu uso por pessoas que queriam apenas “sentir coisas diferentes” (CEBRID). Os excessos dos usuários da planta fizeram com que a maconha chamasse a atenção das autoridades e fosse proibida em diversos países ao longo de todo o século XX e as ramificações dessas ações, tanto cultural, quanto juridicamente podem ser sentidas até hoje.

FIGURA 5 – Propaganda das cigarrilhas Grimault, descritas como “cigarros índios”, datada do início do século XX. Disponível

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33 No entanto, como disse, a proibição da maconha se conecta com diversos fatores e um desses fatores é o racismo e o processo de escravidão, sobretudo nas américas, em países como Estados Unidos e Brasil. Em 1830, o Brasil se tornou o primeiro país a criar uma lei proibindo a maconha, mais especificamente no Rio de Janeiro em 4 de outubro de 1830. O texto dizia:

É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em 3 dias de cadeia. (DÓRIA., 1958 apud MOREIRA, 2019).

Como vemos, a lei deixa bem claro que sua principal intenção é impedir que escravos utilizem a planta ao definir a pena mais rigorosa para quem consumisse a droga do que para quem a vendesse, visto os traficantes eram, em sua maioria, brancos de classe média. De fato, até meados do século passado, o uso da planta no Brasil esteve associado sobretudo à cultura negra:

A literatura produzida nesse período aponta duas principais reuniões coletivas em que haveria consumo de maconha: os cultos de religiões afro-brasileiras e o chamado “clube de diambistas”, expressão que pode ser encontrada pela primeira vez em uma das obras de Francisco de Assis Iglésias (MOREIRA, 2019).

Podemos apontar esse como um dos motivos para a maconha sofrer retaliações enquanto outras substâncias passam quase despercebidas. O uso da maconha era muito difundido entre a população negra, escravos ou não, enquanto o uso de cogumelos e outras plantas psicoativas se restringia praticamente aos povos indígenas, que se encontravam consideravelmente mais isolados e em menor quantidade, dessa forma, tais substâncias não se difundiram com tanta facilidade na cultura nacional como a maconha (MOREIRA, 2019). De fato, em 1938 a primeira

lei nacional a proibir o plantio, a posse e o consumo, tinha como foco, sobretudo, o ópio em suas formas variadas, mas também a maconha e a cocaína. É interessante notar a ausência de substâncias usadas tradicionalmente por povos indígenas ou por praticantes de religiões afro-brasileiras, como o cogumelo, ayahuasca, entre outras.

Essa ausência me faz questionar o motivo para tal. Seriam essas plantas desconhecidas para as autoridades brasileiras? Ou talvez na época, tais substâncias ainda não eram vistas como uma ameaça social, como já acontecia com a maconha, a cocaína e com o ópio; algo que viria a acontecer em 1971, com a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas em Viena, em decorrência da popularização do uso de cogumelos e outras formas de substâncias psicodélicas ao longo dos anos 60, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Independente do motivo, podemos perceber que após o pioneirismo em políticas proibicionistas no século XIX, o Brasil

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34 passou a seguir as decisões estrangeiras baseadas nas convenções organizadas pela ONU para criar sua própria política proibicionista. Política essa que viria a se endurecer ainda mais após o golpe militar de 1964, que tiraria a questão das drogas do campo da saúde pública para colocá-la definitivamente no campo policial e bélico (CARVALHO, 2011).

FIGURA 6 – Manchete do jornal O Globo de 28/08/1930 alertando sobre os perigos da maconha. Fica clara a associação entre

a planta e a cultura africana. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/maconha-dos-anos-30-ao-seculo-xxi-17173228

Enquanto isso, a perseguição à maconha nos Estados Unidos se deu inicialmente com o grande fluxo imigratório de mexicanos no início do século XX, levando consigo o hábito de fumar cigarros de Cannabis. A partir daí os mesmos motivos utilizados no Brasil foram empregados: a proibição e perseguição à maconha e seus usuários foi usada como justificativa para sistematizar o racismo contra uma minoria. A partir dos anos 30, os EUA intensificaram a repressão aos narcóticos com o recém-criado Federal Bureau of Narcotics.

Com os EUA sendo a grande potência ocidental por quase todo o século XX, suas decisões políticas, quaisquer que fossem, influenciavam o mundo todo. Com a política antidrogas não foi diferente, influenciando diretamente o Brasil em certos momentos.

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35 Na realidade, o Brasil sofreu muita influência estadunidense ainda no início do desenvolvimento de sua própria política antidrogas. No final do século XIX diversos movimentos surgiram no Brasil inspirados por movimentos proibicionistas norte-americanos, tais como a “Liga Anti-Álcool" e o “Movimento Pró-Temperança”. Em 1921, o presidente Epitácio Pessoa sancionou um artigo com uma série de leis que proibiam e regulamentavam diferentes substâncias, incluindo a regulamentação em torno do comércio de bebidas alcoólicas no país, influenciada pela Lei Seca estadunidense de 1920, período que marcou uma grande popularização da maconha nos Estados Unidos devido à falta de álcool (CARVALHO, 2011).

Com o decorrer do século XX, a maconha viu sua popularidade crescer vertiginosamente a partir dos anos 60, assim como outras substâncias. Segundo o Global Drug Survey de 2020, a maconha é a segunda droga mais consumida no mundo atualmente, com quase 65% dos participantes da pesquisa tendo declarado que consumiram a droga nos últimos 12 meses, ficando atrás apenas do álcool, que registrou 94%11.

Essa popularidade, que se espalhou pelo mundo todo, tornou a maconha parte importante da cultura e da economia de nosso mundo globalizado. Criou-se em torno dela toda uma cultura envolvendo sua utilização, assim como houve com as substâncias psicodélicas; assim como foi demonstrado com os cogumelos, a maconha também se encontra em um contexto multicultural e diversificado. O uso ritual e tradicional da planta é praticado por diversos grupos de diferentes culturas, sendo muitas vezes ressignificado para um contexto moderno; ao mesmo tempo, o uso recreativo da maconha também ganhou força a partir da década de 1960.

O uso da maconha no Brasil tem origem na população negra, como já foi dito. Nos Estados Unidos, o uso esteve fortemente associado não apenas com essa população, mas também com os imigrantes mexicanos. Também é interessante notar a relação que a maconha possui com a música norte-americana, principalmente com o jazz, servindo como um expoente de sua utilização e popularização no início do século XX12. Sendo o jazz um fenômeno nascido

da cultura negra, reafirmamos aqui a maconha como um símbolo moderno de resistência racial e cultural, que se tornou cada vez mais forte com o passar do tempo, se associando a diversos

11 Disponível em:

https://www.globaldrugsurvey.com/wp-content/uploads/2021/01/GDS2020-Executive-Summary.pdf

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36 outros gêneros musicais e culturas urbanas e suburbanas pelo mundo, como o reggae e o hip hop, por exemplo.

Outro fator que favorece as plantas psicoativas que são descriminalizadas no Brasil é o fato de serem, em sua maioria naturais do nosso país, dessa forma, muitas dessas plantas e fungos são encontrados naturalmente em território nacional, dificultando o controle e a proibição. Enquanto a maconha é uma planta exótica, tendo sido introduzida pelos escravos trazidos da África; sua incidência natural é rara.

Podemos inferir dessa análise que a proibição da maconha se tornou uma justificativa vazia para a manutenção da chamada “guerra às drogas”, uma vez que a legalização e descriminalização da maconha reduziria consideravelmente os investimentos estatais nessa guerra que é usada muito mais como um mecanismo repressivo contra minorias do que como uma forma de realmente prevenir o abuso de tóxicos. A maconha, em função da alta popularidade, funciona como a vitrine de toda essa operação e é, com folga, a substância mais apreendida pela polícia federal no Brasil13. Se fossem tão populares e tão rentáveis quanto a maconha, a cocaína, etc. podemos ter certeza de que a legislação acerca dos cogumelos e outras substâncias de uso tradicional passariam por mudanças.

CONCLUSÃO

Ao fim deste trabalho espero que as informações reunidas aqui possam contribuir para a discussão acerca do uso de psicoativos, e que ajude os leitores interessados a desmistificarem certas noções que nos são incutidas como a dualidade entre o certo e o errado, sempre muito presente acerca deste tópico, quando na verdade, o que nos é ensinado como algo absoluto e natural, é apenas uma visão dentre muitas outras possíveis, como foi apresentado aqui. Que este trabalho tenha trazido novas “velhas” informações que são ignoradas em prol de uma política que há muito se mostrou fracassada, mas que se recusa a partir, e que mostre que há outras formas de se abordar o problema além da repressão cega e sistemática, ao invés disso, usemos uma abordagem multidisciplinar e multicultural, que leve em consideração o uso histórico dessas substâncias e não apenas uma visão unilateral ditada por interesses de um pequeno grupo e imposta ao mundo todo, ignorando suas perspectivas tradicionais e seus respectivos povos. Dessa forma, que sigamos o caminho da descriminalização ao invés da proibição a fim de

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(37)

37 diminuir a violência e o encarceramento por razões que muitas vezes não representam uma ameaça real à sociedade.

Ao mesmo tempo, podemos nos beneficiar das diversas utilizações que tais substâncias podem oferecer à sociedade, e para isso, a ciência deve ser ouvida, e não ignorada como muitas vezes vem acontecendo. A ciência em torno do uso de psicodélicos ainda está longe de atingir o seu potencial. Da mesma forma como vem acontecendo com a maconha, a pequenos passos, os psicodélicos hão de ganhar seu próprio espaço em nossa cultura e assim propiciar novos usos para nós, de forma que se mostrem úteis em diversos tratamentos e em casos diversos. Nos é necessário desesteriotipar as plantas e demais substâncias psicoativas e ter um olhar firme e realista sobre suas possíveis utilizações.

Em meio a um período de diversos retrocessos, que esse trabalho sirva como um reduto para aqueles que busquem expandir a discussão ao invés de encerrá-la e que possa contribuir para a difusão de um tema que ainda se mostra escasso.

Referências

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