Gabriel Borowski
Uniwersytet Jagielloński w Krakowie
Paraíso de vermes: O Cortiço de Aluísio
Azevedo e Cidade de
Deus de Paulo Lins
“(... ] o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dor mem misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão. ” Aluísio Azevedo, O Cortiço “Para ele não existia paz, arrependimento [... ]. Tinha o poder de trazer à tona a violência do fundo dos homens e multiplicá-la a seu bel-prazer. [... ] Era ele senhor de seu desengano, dono da ruindade de nunca perdoar, de aniquilar o que não coubesse nos liames de sua compreensão bandida, de inventar coisas que o outro não tinha feito para ter motivos para exercer a sua crueldade. Era um verme sob o signo de gêmeos. ”
Paulo Lins, Cidade de Deus
O
processo da
formação
da
nacionalidade
no
consciente
coletivo
da
sociedade
brasileira
foi
fortemente marcado
pela
obra
de
José
de
Alencar,
cujos
romances mais
famosos,
como
O
guarani
ou
Iracema
são
exemplos
modelares
da
literatura
romântica adaptado
ao solo
brasileiro. É
idealizada
a
figura
do índio
e suas relações com
o
branco,
e
quase
apagada
a do
negro,
deixou
vestígios
importantes
na história
da
nação e
da
sua literatura, tendo
auxiliado
a
definição da
nacionalidade.
No
entanto, a
idealização,
marca
fundamental
do
romantismo
brasileiro, embora
inteligível
no
contexto
da
formação do
mito
de
fundação, não
correspondia às profundas
transfor
mações
políticas
e
sociais
que
surgiam
no
país
ao
mesmo tempo: conse
quências
da
guerra
com Paraguai,
movimento abolicionista, decadência
do Império
e
posterior
proclamação
da
República,
migração
da
população
camponesa
para
cidades,
introdução
do
capitalismo
e
outros.
Sob
essa ótica,
torna-se
necessário concordar
com
Silviano
Santiago
ao
considerar
que
Alencar
não
era
um
espelho da sociedade [1982 apud
Sommer,
2004:
167].
Todavia,
a
sociedade
de
então
exigia
um
retrato que
revelasse
os
aspectos
da
realidade
social que
ultrapassariam
os
limites
da
representação
romântica.
Pois,
“numa
nova era
republicana
mesmo
as
elites
não
poderiam
mais
louvar
a
beleza
de
Iracemas”,
diz
Eva
Paulino
Bueno
[1992:
367,
tradução
nossa],
o que se torna
mais
visível ao enfren
tar
os
exemplos
de
prostituição,
alcoolismo, perversões sexuais, doenças,
condições
precárias
de
vida
e
outros
1
,
cada
vez
mais salientes
na
segunda
metade
do
século
XIX.
Quem
retratou
esse território
ignorado nas
representações da
vida
da
nação
brasileira foi
exatamente esse que,
segundo
seu
próprio
irmão,
escrevia o
que não podia
pintar
2
-
Aluísio
Azevedo.
Ainda
antes
de escrever
a
Paul
Vachias em 1912
que
seu
coração
“
não
pertence
aos
felizes
e bem
dotados
pela
sorte”
,
mas
sim
“
pertence
aos
míseros,
aos
mesquinhos,
aos
desamparados”
[Azevedo,
1912]
o autor
mostrava
já seu
interesse
pela
reali
dade
da
população
marginalizada do
seu
tempo,
cujo
resultado
é
O
Cortiço,
romance
em
que
se
conta
a
história
da
comunidade
de
moradores
de
uma
estalagem
carioca
em
meados
do
século XIX, incluindo
elementos e
vultos
praticamente
ausentes da
literatura
antes
da
introdução
da escola naturalista
no Brasil: homem
efeminado,
prostitutas, capoeiras
e
alcoólicos,
bem como
trabalhadores
explorados
pelos
capitalistas
ou
pobres lavadeiras cobertas
de
suor,
em
contraste explícito
com
os moradores
de
um sobrado
vizinho,
Paraíso de vermes.
73
representantes
da
elite
local.
É
essa gente
pobre
o
verdadeiro
protagonista
do
romance que
foi
o
primeiro
no Brasil
a
trazer no
título
uma referência
direta
a uma coletividade
[Almeida,
2007:
7].
A
obra
de Azevedo
foi
muito impactante
e
importante
a
ponto
de
Bezer
ra
de
Freitas
considerá-la necessária para entender a
vida
social brasileira
marcada
por
contradições internas
e
o caos
étnico
[apud Klave,
1976: 176,
tradução
nossa].
Os
mecanismos inscritos
na vida da
comunidade da classe
baixa,
determinada
pelo
mesmo
“habitat
”
(empregando o verbete ecológico
no
contexto
social
como
Azevedo
usava
o
método
científico
na
produção
literária), e
expostos
de
uma
maneira
legível
podem, portanto,
facilitar
a
percepção
e
compreensão
de
outras
imagens
da
população
marginal
na
literatura.
Na verdade,
embora
desde
a
publicação de
O Cortiço em
1890
a
imagem
da
coletividade desamparada não
desaparecesse
1 completamente
da
literatura brasileira,
um
pouco
mais
que um
século
depois
o público
leitor
volta
seu
olhar
de
novo para
uma
comunidade
muito
parecida
à
da
obra
de
Azevedo.
Esse
fato
deve-se
à
publicação
do
romance Cidade
de
Deus
de
Paulo
Lins
em
1997, cuja
ação
é
situada numa das favelas
cariocas,
e
o lançamento do
filme homónimo
de
Fernando
Meirelles
e Kátia
Lund
em
2002".
Postos
em
análise, os
coletivos
retratados
nos romances, ainda
que
remotos
em
termos do
momento
histórico (e, portanto,
da
realidade
social)
revelam
muitas analogias
quanto
à
construção
dos personagens,
do
espaço
e
das relações entre
eles,
divergindo,
entre outras diferenças,
quanto
ao
emprego
de
linguagem.
Neste
papel marcam-se
algumas
referências
possíveis
entre
duas
imagens.
Embora
em ambos
os casos a função
do protagonista seja
desempenha
da
pela
coletividade,
alguns
personagens
se
destacam.
No caso de
O
Cortiço,
em
que
sobressai
o aspecto
sócio-econômico
da
realidade
da estalagem,
são os
vultos
do capitalista
João
Romão,
do
trabalhador
Jerônimo
ou
da
lavadeira
Rita
Baiana,
enquanto
Cidade
de
Deus se
concentra
na
exposição
da vida
do crime:
bandidos,
assaltantes e
traficantes
como Inferninho,
Tu-tuca,
Martelo, Zé Miúdo, Sandro Cenoura ou Pardalzinho.
Todavia,
essas
preferências
não delimitam
as
obras
de
uma
maneira
fixa,
pois
o
mundo
do
trabalhador
e o
do bandido,
não
sendo
universos
remotos,
cruzam-se,
como prova a presença
de
Zé
Bonito,
de
Cidade
de Deus
(que
antes
de
sua
transformação é
trocador de
ônibus,
professor
de
caratê
e
estudante
do
segundo
grau)
ou
de
Firmo
de
O
Cortiço
(que é
capoeira
brigante).
Como
nota J.
Lowell
Lewis em
relação
às
obras
de
Jorge
Amado, o
es
critor
consideraria os praticantes da
capoeira “bambas
” (“
valentões”
)
bem como “mestres
do
sensual
”, modelos
do
brasileiro
carnavalesco,
do
amante,
dançarino
e bebedor
[1999:
546].
No
caso
das
obras
em
questão,
esse
padrão
é
realizado
pelo
amante de
Rita
Baiana,
Firmo
(e, com menos
importância,
por
seu amigo, Porfiro), e
por Passistinha
de
Cidade
de
Deus
- ambos
capoeiras
habilidosos
que
fora
da
hora
do combate
se
entregam
à
música
e
aos amores.
Enquanto
o
primeiro
toca
violão
e
canta,
o
segundo
é
um
passista
premiado
de
escola
de
samba
5
.
À
figura
do macho
guerreiro
contrapõe-se o
vulto
de
Albino, “
sujeito
afeminado, fraco”
[Azevedo,
2004:
40],
sempre
com
“a
sua
calça
branca
engomada,
a
sua
camisa
limpa,
um
lenço ao pescoço,
e, amarrado
à
cin
ta,
um
avental que
lhe
caía sobre
as
pernas como
uma
saia”
[Azevedo,
Paraíso de vermes...
75
2004:
40],
que
durante
o
Carnaval
aparece
“
vestido
de
dançarina”
[Aze
vedo,
2004:40]
e que
“era lavadeiro
e
vivia
sempre
entre
as
mulheres,
com
quem
já
estava
tão
familiarizado que
elas
o
tratavam
como
a
uma
pessoa
do mesmo sexo”
[Azevedo,
2004:40]. Este
tipo de homem,
posto
em
cena
pelo
naturalismo,
corresponde no romance
de
Lins
ao
travesti
6
Ari,
irmão
de
Inferninho,
“de
botas
marrons, minissaia
de
napa
preta, camisa
de
seda
amarela,
peruca
cor
de fogo,
brincos
grandes,
anéis
de
prata,
bolsa
a
tiracolo
azul
e
uma
gigantesca
pinta
desenhada
no lado
esquerdo
do
rosto
”
[Lins,
2003:
43].
“
A Marilyn Monroe
do
morro
do
São Carlos
”,
como
Albino,
sofre
perseguições
e
é
sujeito
à
zombaria
(até
aos
atos
de
violência) dos
outros.
Pode-se
também
observar
uma
evolução
dos
personagens,
em
conseqiiência
da
qual
se
tornam
“amadurecidos” como
representantes
da
sensibilidade feminina
em
corpo masculino, tomando seu
lugar
na
comu
nidade respectiva: Albino instala-se
numa
das
novas
casas
da
Avenida
São
Romão; Ari
até
estabelece
uma
família,
tendo marido
“que
comprou
uma
casa
num
lugar
tranqiiilo,
aparelhou-a
com
todo bom gosto.
Não
deixava
mais
Ana
Rubro Negra [Ari]
ir
para
a
viração, era
agora mulher
de
um
homem só,
e,
para
dar
mais
encanto
a
sua
vida,
deixou
que
ela
adotasse
o bebê de
uma amiga
que fora
presa”
[Lins
2003; 319]. Como
se
vê,
no
segundo caso
a
transformação
é
radical
e acompanhada
pela profunda
mudança
de
consciência
do
próprio
gênero7
.
O
homem
de
Ana
Rubro
Negra,
Doutor
Guimarães,
antes de
se
inclinar
ao
travesti
era
esposo
e pai, portanto
torna-se
óbvia
a reconfiguração
do
modelo
da
família
que
surgiu, sua
passagem
à
homossexualidade
(pois,
Ana
Rubro
Negra, do
ponto
de vista
biológico,
é
macho) e
à
vida com um
transexual
e
ex-prostituta,
criando
filho
de
uma mulher detida. É
um
dos
Sobre os prostitutos afeminados no Brasil: Kulick [1997].
exemplos
da
abordagem
do tema
da sexualidade humana com
suas
variantes
e
desvios.
Na obra
de Azevedo,
que
foi
uma
das
primeiras
a
introduzir esses
assuntos
na
literatura,
além
da
imagem
de
Rita Baiana,
mulata
sensual,
cheia de “
uma graça
irresistível,
simples, primitiva, feita toda de
pecado,
toda
de
paraíso,
com
muito
de
serpente
e muito
de
mulher
” [Azevedo,
2004:
67],
da cocote
Léonie
forçando uma
menina
impúbere
ao coito
lesbiano,
e de
Leocádia
que deixa
Henrique
servir-se
dela
em
troca
de
um
coelho,
em
O
Cortiço
aparece
uma
imagem
da
mulher
prostrada, abatida
pelas dificuldades e
depois
violada.
É
a
mulher
de
Jerônimo, Piedade, que
depois
de
o
marido tê-la
abandonado
se
põe no
caminho
da
decadência,
chegando
“
ao
extremo
dos extremos
”
,
até
que
“
homens malvados
abusavam
dela,
muitos
de
uma
vez,
aproveitando-se
da
quase
completa
inconsciên
cia
da
infeliz
”
[Azevedo, 2004:
179].
No
mundo cru
de
Cidade
de Deus,
há
muitos exemplos de
estupros
brutais,
como
o coito
anal
forçado
por
Tutuca numa
paraibana ou
a
violação sexual
da
mulher
de
Zé
Bonito
(que
é
uma das causas
do
conflito
posterior),
incluindo
estupros
das
crianças
de
quinze (cometido por
Espada
Incerta)
e
até
de
nove anos
de
idade
(por
Bira).
Para
lá desses
atos criminosos,
existem
também
exemplos de
outros
comportamentos
sexuais
que possam ser
controversos:
a
relação
entre
um
rapaz
jovem
e
uma
mulher
madura
(Maguinha
e
Te)
ou
os
experimentos
sexuais
da
mulher
cearense. Mesmo
os
abortos
não
escapam
desse
retra
to,
com
exemplos
de
Mosca (que, afinal, morre
durante
a
interrupção
de
gravidez)
e
Berenice
que
ajuda
no aborto
quando
seu homem,
Inferninho,
a
está procurando.
Essa
prática,
conhecida
havia
séculos
entre
as
mulheres,
também
aparece
na
obra do final do
século
XIX.
A
prova
é
a
expressão
de
alegria
de
João
Romão
por não
ter
tido
filhos
com
a companheira
negra:
“
Abençoadas
drogas
que
a Bruxa
dera à
Bertoleza
nas duas
vezes
em
que
esta
se sentiu
grávida!”
[Azevedo,
2004:
125].
Torna-se
então
óbvio
que
a
sexualidade é
um
elemento importante nos
romances
e
os
exemplos extre
mos, como
de
Ana
Rubro
Negra,
não
são
retratos isolados
e
inscrevem-se
num contexto
mais
amplo.
Paraíso de vermes..
77
nos
States
de
vez
em quando
”
[Lins,
2003: 45]
ou
o
de
João
Romão
de
“uma
vida
inteira,
completa, real
(...);
uma
vida
fidalga,
de
muito
luxo,
de
muito
dinheiro;
uma
vida
em
palácio, entre mobílias
preciosas e
objetos
esplêndidos”
[Azevedo, 2004:
95].
31W
Torna-se inteligível o
desejo comum
de
fuga
de
sua
camada
social,
do
mundo marcado
pela
pobreza
e
pelo
crime e,
ao
mesmo
tempo,
do
destino
cujos
avisos
são
os
próprios
genitores. O
último
fator
leva
freqúentemente
ao
crime
em
vez
de
o
afastar,
como
no
caso
de
Lúcia Maracanã
de
Cidade
de
Deus
que
rouba comida
da
feira
para
evitar
a
humilhação de
sua
mãe
que
depois
da
feira
recolhia
legumes
do
chão.
Martelo, assaltante, ainda
criança
“
jurara
para
si
mesmo
que
não
passaria
pelas
necessidades
que
passava
com
os
pais
” [Lins, 2003: 41]
e entrou
na
via
de
delinquência.
Entretanto,
muitos
personagens
do
livro
seguem
os
caminhos
percorridos
por seus pais,
sem
notarem
que
multiplicam
exemplos da
patologia
so
cial,
cujas
vítimas
são eles próprios
na
verdade. Inferninho
pensa
em
sua
família: “o
pai,
aquele
merda,
vivia
embriagado nas
ladeiras
do
morro
do
São
Carlos;
a mãe
era
puta
da
zona,
e o
irmão [Ari],
viado
”
[Lins, 2003:
25]
e
como
assaltante
dá
passos
muito
semelhantes
aos
de seu
pai.
Anos
passados, já depois
da
sua
morte,
“o
filho
de
Inferninho
sentia
o
dever de
ser
tão
perigoso
quanto
fora seu
pai. Berenice,
sua
mãe,
agora
alcoólatra,
quando não
tinha
o
que
comer
em
casa o incentivava, dizendo que seu
genitor nunca
levara
desaforo
para
casa
e
nunca
a
deixara
passar
fome
”
[Lins,
2003:
352]. No
romance de
Aluísio
Azevedo,
Jerônimo e
Piedade
representam pais que tentam
proteger
sua filha e
lhe
assegurar
uma
vida
melhor
metendo-a
num
colégio. O
pai
“
a
queria
com outro saber
que
não
ele,
a
que
os
pais
não mandaram
ensinar
nada
”
[Azevedo,
2004:
52],
mas,
afinal,
a
filha
acaba
por
achar-se
no cortiço
de João
Romão,
mudar-se
para
a
estalagem
abjeta
do
Cabeça
do
Gato
com
a
mãe
alcoólica
e, como sugere
o
narrador,
repisará no
caminho
de
Pombinha, tornando-se meretriz.
Como
“
o
cortiço
estava
preparando
uma
nova
prostituta
naquela
pobre
menina
desamparada, que
se
fazia
mulher
ao
lado
de uma
infeliz
mãe
ébria
”
[Azevedo,
2004:178],
Cidade
de
Deus
prepara seus
jovens para
o narcotráfico,
de
modo
que
os planos da nova geração
não
passam
daquela
atividade.
“
O
que
é
mais
perto
dos
jovens
das favelas
não
é só
o
crime
”
,
diz
MV
Bill, rapper
oriundo da
Cidade de
Deus,
“É
o bêbado,
o
desempregado,
possibilidade num mundo
de
impossibilidades”
[apud Correia, 2007:98].
Como
exemplo
pode
servir
o
vulto
de
Otávio,
ainda jovem
que
“gostava
dessa
onda
de avião [aquele que vai buscar
droga para o
usuário]. Ele
mesmo disse
que queria
ser
traficante quando
crescesse,
mas
até
pegar
consideração
para
ser
vapor
[avião]
e depois
segurança
[bandido armado
que
protege
a
vida
dos donos],
até
numa
boca
[ponto de
venda
de
droga]
teria de
esperar
os
mais
antigos
morrerem,
serem
presos, ou, então, matar
todo mundo
que
nem
fez
Miúdo
[líder
do
tráfico
local]
”
[Lins,
2003:258].
No
consciente
coletivo
dos
bandidos
favelados,
esse
destino
é
considerado
a
única
oportunidade
de melhorar
o
nível
da
vida e evitar a
pobreza
extrema,
e os
que
conseguem
são
respeitados
pela
comunidade
por
possuírem poder
e
dinheiro
8.
No
romance
de
Azevedo,
o
povo
humilde admira
Pombinha,
que
depois
de
se
ter
tornado cocote
“na
Avenida
São
Romão
era,
como
a mestra
[prostituta
Léonie],
cada
vez mais
adorada
pelos
seus velhos e
fiéis
companheiros
de
cortiço
”
[Azevedo,
2004:178].
A
relação entre
o
espaço
social e
as possibilidades
de
seus
habitantes
em
ambas
as
obras se
torna ainda mais
saliente ao
analisar
os
traços
do de
terminismo
naturalista no
romance de Azevedo
e
construções
semelhantes
no de
Lins’
.
Acha-se,
em O
Cortiço,
um
caso
explícito
do
determinismo
de
meio
em ação
na
transformação
de
português
Jerônimo
que,
sujeito
à
influência
do Novo
Mundo,
“
se
abrasileirou
para sempre”
. A Cidade
de
Deus,
favela
carioca,
é
um
espaço
social
fechado
que
define vários
aspectos
da
vida
dos
habitantes
de uma
maneira
que
pode ser
chamada
de
determinista em
termos
do
determinismo de
meio
e educação.
Além
do exemplo
acima referido de
Otávio,
há também
o
de
Tutuca
que
“quis
Como mostra a história de Alberto, entrevistado pelo jornal Visão, que “aos 11 anos foi olheiro (...), aos 12 vapor, aos 14 gerente do pó de cinco (cocaína vendida em sacos de cinco reais) e aos 16 anos já só respondia ao dono da favela, o líder do tráfico. Gerava lucros entre os 70 mil reais (...) por semana e os 30 mil reais (...)’’
[em: Correia, 2007: 91].
Paraíso de vermes.
79
ser
bandido
para
ser
temido
por todos,
assim
como
foram
os
bandidos
do
lugar onde
morou
”
[Lins,
2003: 29],
embora
seu
pai
fosse
um
homem
honesto
que
“não
bebia,
um homem que
vivia
da
casa
para
o trabalho,
do
trabalho para
casa
”
[Lins,
2003:29] e
muitos
outros. Por
outro lado,
Inho,
que
se
toma
depois Zé Miúdo,
familiarizado
com o
crime
na favela
Macedo
Sobrinho,
muda-se
para
Cidade de
Deus,
onde
continua
seu
procedimento
delinquente,
estabelecendo,
por
si
mesmo,
um
meio
social
favorável
para
o
desvio
da
nova
geração.
Apenas
alguns
conseguem
abandonar
o
crime,
como
Martelo
(que
encontra a fé e,
em
consequência,
consegue emprego,
estabelece
família,
tem
filhos
e
começa
a
pregar
o
Evangelho) ou
Marisol,
Daniel
e
Rodriguinho.
Todavia, o
que
chama atenção no último caso
é
que
os
bandidos
deixam
a
vida
do crime,
paradoxalmente,
devido
ao
dinheiro
dos
assaltos
nas
zonas
ricas
da cidade,
que
conseguiram
por
serem
brancos
e,
portanto,
não
atraírem
o
olhar da
polícia rondando
o
lugar. Sob
essa
ótica,
o
determinante
talvez seja
a
raça10.
A limitação
do espaço
destaca-se
na ausência do controle policial
sobre
a
favela,
que
tem suas
próprias leis
e
sua organização
interna.
Na
verdade,
as
relações
entre
os
criminosos
e os “representantes
de ordem
”
frequentemente
se
reduzem ora
ao
tráfico de
armas
de fogo
arranjado
pelos
policiais
corruptos, ora
à
confrontação
em
que
sofrem
até
civis inocentes
11,
como
a criança atingida
pela bala
perdida
durante a
perseguição
de Tutu
ca12
.
Naquelas
situações
o
coletivo
se
põe em
oposição
à
ordem
oriunda
“
de
fora”,
afirmando
o
caráter fechado
do
espaço.
O
mesmo
fenômeno
tem lugar
quando o cortiço
de João
Romão
tenta
“
agüentar”
a
invasão
policial, “
defender a
estalagem
”.
Como
explica
o narrador: “
A polícia era
o
grande
terror daquela
gente,
porque,
sempre
que
penetravam
em
qual
quer
estalagem,
havia
grande estropício: à capa
de evitar
e
punir o
jogo
e
a bebedeira,
os
urbanos
invadiam
os quartos,
quebravam
o
que lá
estava,
punham
tudo em
polvorosa. Era
uma
questão de
ódio
velho
”
[Azevedo,
2004:
104].
As
reações
das
comunidades
comprovam
a existência
de
um
universo
interno
que
não
admite
entrada
de
uma
ordem
forçada
do exterior,
o
que
corresponde
ao
destaque posto pelos autores
na construção
de
um
cenário
delimitado, tendo
a população como
protagonista
coletiva e seu
nome
como
título
do romance.
Outra
oposição
presente
na
definição do
espaço
é
a
diferença
explí
cita entre
o
cortiço
de
João
Romão
e
o
sobrado
vizinho de
Miranda, que
corresponde no
livro de
Lins
ao
contraste
entre
a
favela
e
“o asfalto
”
(as
ruas onde
vive
a
classe
média
[Correia,
2007: 93]).
Os
representantes
dos
universos disjuntos
encontram-se, mas
raramente cruzam,
reforçando
Ambos tema desenvolvidos também em Elite de Tropa [Soares, Batista e Pi- mentel, 2008], especialmente nos capítulos “Tarja Preta e Fitinha Azul" e “Justiça Doméstica”.
Paraíso de vermes .
81
as
superstições
e
os
preconceitos entre
si.
Todavia,
é interessante
notar
a
dependência
mútua
entre
as
classes populares
e
a classe
média ou alta.
Lavadeiras e engomadeiras
que
constituem
a
maioria
das
protagonistas
femininas
na
obra
de
Azevedo,
mas também
pedreiros
e
muitos
outros
habitantes
da
estalagem,
ganham
a
existência
assegurando
o
nível
de
vida
a
que
a
camada social mais
alta
se
acostumou. No
Rio
de
Janeiro
de
hoje,
“
a
zona
sul
[a
mais
rica
do
Rio] é
sustentada
pelos serviços
das
pessoas
das
favelas,
desde
as
empregadas
domésticas,
aos
porteiros, jardineiros.
São
eles
que fazem a
zona
sul andar.
”,
afirma
Zuenir
Ventura,
autor
do livro
Cidade
Partida
[apud Correia, 2007:
98].
Sob
essa
ótica, a
organização
dos
cenários
dos
romances,
embora
restritos em termos
do
espaço
social da
ação,
deve
ser
interpretada
num
contexto
mais
amplo,
incluindo
relações
com
o
exterior.
Tendo
ilustrado a construção
do espaço fechado,
é
imprescindível
sublinhar
que
“
delimitado
”
não
quer
dizer
“estagnado”
e,
à
vista
disso,
a
estalagem
e
a favela
passam por
transformações
sucessivas.
O
cortiço
reconstruído
depois do
incêndio
“
já
não
era
o
mesmo;
estava
muito di
ferente;
mal
dava
idéia do
que
fora
”
[Azevedo,
2004:
161],
revelando
mu
danças
quanto
ao
nível da
vida,
à
comunidade
habitante
e à
organização
interna.
Como
se fosse um
animal
feroz,
“
ia já
lançando
os
dentes
a
uma
nova
camada social
que,
pouco
a pouco,
se
deixaria arrastar
inteira
lá
para dentro”
[Azevedo,
2004:162].
Como
se vê,
a
entrada
de
João
Romão
na
nova
classe
social
é
seguida
pela
evolução
de
sua estalagem,
enquanto
o
Cabeça
do
Gato,
cortiço
inimigo, cai
na desmoralização e
se torna
um
lugar
cada
vez
mais
perigoso,
ficando
“
o
verdadeiro
tipo
da
estalagem
flu
minense”
[Azevedo,
2004: 179],
“paraíso
de vermes
”
[Azevedo,
2004:179]
nas
palavras
do
narrador.
No
caso
de
Cidade de Deus,
esses
“
vermes13” são
os
criminosos,
com
Zé Miúdo,
líder
local
do
narcotráfico,
como
modelo
(chamado
pelo
narrador,
por
uma
coincidência
provavelmente
acidental,
de
“um
verme
sob o signo de
gêmeos”
[Lins, 2003: 417]). No
entanto,
a
favela
também
sofre
mudanças,
passa
de
uma
comunidade
heterogénea
de
cariocas
e
paraibanos,
em
que no perfil criminoso
domina
a figura
do
assaltante
(
“
bicho-solto
”
), à
população
marginal
da
favela,
com
uma
relativa
harmonia
étnica, mesmo
que
submissa à
atividade organizada
das
gangues
e
às
regras
do
narcotráfico. A violência,
espalhando-se
pela Cidade
de
Deus,
muda
os
motivos
da entrada no
caminho
do
crime,
que
se
tornam
irracionais: “
Antigamente,
comentavam
pasmados
os
moradores,
somente
os
miseráveis,
compelidos
por seus
infortúnios, se
tornavam
bandidos.
Agora
estava
tudo
diferente,
até
os mais providos
da
favela,
os
jovens
estudantes
de
famílias estáveis,
cujos
pais
eram bem
empregados,
não bebiam,
não
espancavam
suas esposas,
não
tinham
nenhum
comprometimento
com
a
criminalidade,
caíram
no
fascínio da
guerra.
Guerreavam por motivos
banais:
pipa, bola de
gude,
disputas
de
namoradas
”
[Lins,
2003:366]. Essa
passagem sublinha,
ao
mesmo tempo,
o
papel do meio
social
na
determi
nação
do
comportamento
dos
personagens, como
no
caso
já
referido
de
Tutuca,
bandido
desmoralizado
embora
filho
de
um
pai
honesto.
Os meios
da
criação do ambiente
e
da
exposição
dos
personagens
nos
romances
em
questão
diferem,
entre
outras
divergências,
ao
nível
da
linguagem. O
narrador de O
Cortiço
usa
uma
linguagem
quase
poética,
marcada
pelos
numerosos recursos estilísticos, na descrição da
volúpia
14
e
uma
concreta, mas
relativamente
polida nas
cruas exposições
do feio
e
do
repugnante15
.
À
primeira
vista
torna-se claro
que
o vocabulário do
Paraíso de vermes.
83
narrador
de
Cidade
de
Deus,
tão
diferente,
é fortemente
influenciado
pela
linguagem
coloquial
da
favela à que
se
refere.
A
semelhança
pas
sa da
concordância
do
registro da língua,
dando
até
impressão
que
as
falas
dos
personagens e
as
descrições do
narrador
são
iguais quanto ao
emprego
do
calão
e
da
gíria
particular do
narcotráfico.
Em comparação
com a
linguagem
do
narrador do
romance
de
Azevedo,
expressões
usa
das
na exposição
em
Cidade
de
Deus
parecem
até
obscenas e nojentas16
ou extremamente
brutais17
.
A
justificativa
dessa
preferência
pelo
calão,
dada
em
outra
narrativa
recente,
Elite
de Tropa,
não é
suficiente18
,
pois
o
emprego
do vocabulário
no
romance
de
Lins
tem
um
objetivo
claro
de
impactar
o
leitor,
sendo
mais
próximo à
estilização.
Essa
tendência
para
representar
os
elementos
repugnantes
do
real de
uma
maneira
chocante
e, ilusoriamente, mais
franca
possível poderia ser
considerada
dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra” [Azevedo, 2004: 170].
Exemplo da cena amorosa entre Manguinha e Tê: “«A vida é muito boa», pensou quando fez desabrochar de dentro das garras da cueca o caralho do viciado. Abo- canhou-o no primeiro segundo. Manguinha sentiu nojo no começo, mas o apetite da velha o fez gozar em pouco tempo. (...) Carcou fundo na velha. O maconheiro, não sabia por quê, se lembrava de sua mãe, da namorada, dos amigos... (...) Tê se esparramava nos quatro cantos da cama: nem suas filhas, que eram novas, não tinham varizes, peito caido, possuíram dentes, tinham conseguido um jovem tão bonito. (...) Quando Manguinha gozava, Teresona abocanhava-lhe o pau com apetite. Era feliz" [Lins, 2003: 93].
Exemplo do cadáver de Filé com Fritas, bandido muito jovem: "O corpo do me nino era somente um amontoado de sangue. (...) A crise de nervos da mãe de Filé de Fritas tentando juntar sua cabeça distribuída pelo chão parecia um ataque epilético. (...) Um pedaço da cabeça num lado da viela, um dos olhos solto, intato, como se estivesse olhando para ele [Zé Bonito], pequenos pedaços ensanguentados espalhados, e somente a parte de baixo do rosto presa ao pescoço” [Lins, 2003: 339].
traço
comum
de uma
estética
particular
presente
em outros livros
já
mencionados,
nomeadamente
o referido
acima
e
Estação
Carandiru.
No
entanto, contrastando
com
os
afins,
a
exposição
em
Cidade
de
Deus
leva
marcas
de
um
poetização
específica
e, sendo
considerado
“a
epopeia
da
favela
”,
começa
por
uma
invocação
à
personificação
de
poesia,
na
qual
metáforas
dos
elementos
da
fala
se
cruzam
com imagens até
fisiológicas,
o
lírico
com
o cru, o
belo
com
o
feio,
como
acontece
no
romance inteiro.
Para fazer
um retrato veraz da
estalagem,
segundo Domingos
Bar
bosa,
Azevedo
entrava
nos
subúrbios em
roupa
esfarrapada,
alugava
um
apartamento
podre
e
examinava o
cotidiano
da
classe
baixa,
fazendo
inú
meras entrevistas
com
os
moradores do
cortiço
[apud
Klave,
1976:
109,
tradução nossa].
Paulo
Lins
revela
em
“
Notas
e
agradecimentos
”
numa
das edições do seu
livro: “
Este romance
se
baseia
em fatos reais.
Parte
do
material
utilizado
foi
extraído das entrevistas
feitas para
o
projeto «Crime
e
criminalidade
nas classes
populares» da
antropologa
Alba
Zaluar,
e de
artigos
nos
jornais O
Globo,
Jornal
do
Brasil
e O Dia" [Lins, 2003: 419].
Como
ex-favelado,
o
autor
também
confessa:
“
Mostrei o que
eu
vivi.
Eu
passei
por tudo
aquilo
”
[Lins
apud
Ribeiro, 2003:
130].
Como se
vê, am
bos
os escritores
empregavam
o método
empírico
a
fim de
entender os
mecanismos
que
funcionavam
na
comunidade
do
“
paraíso
de vermes
”
de
Azevedo,
e
que determinavam
a vida dos
“vermes
”
de
Lins.
Portanto,
deveria
tornar-se
inteligível
a
semelhança
entre
dois
retratos
da
camada
social baixa,
em
que os
mesmos
processos
influem
as
populações
imorta
lizadas depois nos
romances.
Agradeço
à
Profa. Dra.
Regina Przybycień
(UFPR)
pela
orientação
e
apoio.
Streszczenie
Paraíso de vermes..
85
autor uznał najsłynniejsze dzieło brazylijskiego realizmu/naturalizmu - pochodzące z końca XIX wieku O Cortiço Aluízio Azevedo. Zostaje ono zestawione z Cidade de Deus, powieścią Paulo Linsa z 1997 roku. Założeniem pracy jest wykazanie podobieństw świata przedstawionego, a w szczególności kreacji postaci, otoczenia i ich wzajemnych relacji.
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