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The handle http://hdl.handle.net/1887/32581 holds various files of this Leiden University dissertation

Author: Rodrigues, Walace

Title: O processo de ensino-aprendizagem Apinayé através da confecção de seus

instrumentos musicais

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CAPÍTULO 3. OS INSTRUMENTOS MUSICAIS APINAYÉ

Entre os Apinayé a música tem a força de intensificar os laços sociais, míticos, sobrenaturais e culturais através de seu uso nas cerimônias rituais. Os artesãos especializados (produtores de objetos musicais) se responsabilizam por fazer instrumentos e os cantores por cantar, dançar e tocar para outras pessoas (público, audiência) em performances bastante atendidas. Se no passado os instrumentos de sopro eram bem difundidos, hoje em dia somente os maracás, os bastões de ritmo e o canto resistiram enquanto objetos musicais mais correntes.

Também, podemos notar que o fazer musical Apinayé é um comportamento aprendido e repassado de geração a geração. A música se coloca, assim, como um fenômeno social com forte caráter conjuntivo (de aproximação entre os participantes). Cantores e dançarinos, durante uma performance musical, organizam sons e possibilitam uma forma simbólica de comunicação na inter-relação entre indivíduos que cantam e tocam instrumentos e o público participante, que não recebe a música passivamente. Coloco aqui uma passagem de Merriam (1964) que justifica este ponto:

Music is a uniquely human phenomenon which exists only in terms of social interaction; that it is made by people for other people, and it is learned behavior. It does not and cannot exist by, of, and for itself; there must always be human beings doing something to produce it. In short, music cannot be defined as a phenomenon of sound alone, for it involves the behavior of individuals and groups of individuals, and its particular organization demands the social concurrence of people who decide what it can and cannot be. (MERRIAM, 1964, p. 27).

Os instrumentos musicais contribuem, assim, nessa interação entre indivíduos em sociedade. Eles podem ser tocados sozinhos ou em grupo, ou mesmo acompanhado por cantos. Coloco aqui uma passagem de Franz Boas (1955) sobre a universalidade dos instrumentos musicais:

Among musical instruments one type is of universal distribution: the percussion instruments, or perhaps better instruments for producing noises that carry the rhythm of the song. In the simplest cases these are sticks which boards or other resounding objects are struck. (BOAS, 1955, p. 342).

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De acordo com a monografia de Curt Nimuendajú, de 1939, os Apinayé utilizavam-se de alguns instrumentos musicais para acompanhar cantos e danças em cerimoniais festivos. Os instrumentos musicais Apinayé não tinham, segundo Curt Nimuendajú, funções mágicas ou sobrenaturais, como para outros grupos indígenas. Este parece ser mais um equívoco de Nimuendajú, já que com este trabalho tive como verificar que os Apinayé detêm um sistema musical fortemente ligado à esfera sobrenatural dentro de sua rica vida cerimonial.

Os Apinayé não tem um termo para definir “objetos musicais” ou “objetos para emitir sons”, mas isso não significa que não compreendam a riqueza material e imaterial que estes objetos são capazes de criar e os laços que estes objetos são capazes de produzir e reforçar.

Por outro lado, Karl Gustav Izikowitz, pesquisador sueco de organologia indígena das Américas Central e Sul, num estudo metodologicamente comparativo de instrumentos musicais publicado em 1935 e intitulado “Musical and other Sound Instruments of the South American Indians: a Comparative Ethnographical Study”, remete-se aos vários tipos de instrumentos musicais confeccionados pelos Apinayé no começo do século XX, como veremos mais adiante neste trabalho.

Os instrumentos musicais Apinayé auxiliam, como já informei, a aumentar a força de coesão social deste grupo. Estes objetos ajudam a estreitar laços naturais e sobrenaturais e dão vida aos cerimoniais quando utilizados durante as performances deste grupo (lembramos que os instrumentos musicais Apinayé sempre acompanham canto e dança). A relação entre performance, ritual e música na sociedade Apinayé pode ser compreendida também através de uma comunicação significante “fabricada”, conforme a passagem abaixo de Rafael de Menezes Bastos (2007) citando Ellen Basso:

Recordo que Basso identifica os ritos kalapálo como musicais, por entender que é através da performance musical que a comunicação é neles fabricada. No contexto desta identificação, a sequencialidade em foco explicita-se pelo fato de os repertórios musicais da região — na grande maioria das vezes, parte de complexas cadeias intersemióticas, conforme foi abordado anteriormente — organizarem-se em sequencias (ou sequencias de sequencias) de cânticos (sejam eles canções ou vinhetas), de peças instrumentais ou voco-instrumentais. Essas sequencias, assim como as sequencias de sequencias, frequentemente ancoram a cronologia do dia e da noite e são por ela ancoradas. É possível que também o façam naquelas de outros ciclos temporais, como os meses, as estações etc., compondo calendários musicais (BASTOS, 2007, p. 298-299).

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Também Maria Ignez Cruz Mello (2006) deixa ver que a performance ritual dos indígenas das terras baixas da América do Sul, onde a música tem papel central para estas sociedades, são lugares (espaços artísticos e rituais) de criação e potência significativas no mundo ameríndio, conforme a passagem abaixo:

Vê-se que, através de toda a elaboração estético-ritual, detectada desde o tratamento detalhista na construção motívica dos cantos, passando pela transferência destes cantos de um gênero sexual a outro, e por re-elaborações de fatos do cotidiano que são inseridos nos moldes dos cantos, todo este processo, enfim, só surge durante a performance, que acaba por dar concretude ao mito e significado às questões existenciais (MELLO, 2006, p. s/n).

Portanto, a performance ameríndia, enquanto espaço de potência ritual, e onde a música está sempre presente, rememora os mitos e os reforça, como veremos mais adiante. Portanto, a música apresenta toda sua força agentiva e seu papel central na vida natural (sociocultural) e sobrenatural (ligada aos espíritos, aos karõ) ameríndia exatamente no momento da performance ritual, onde a força agentiva do ritual se instaura e onde o cantado, o tocado e o recitado se tornam ação.

Também, como nos diz o pesquisador Tiago de Oliveira Pinto (2001), a performance musical indígena nos deixa perceber a música como um processo de significação social capaz de abranger várias esferas da vida do grupo pesquisado:

A etnografia da performance musical marca a passagem de uma análise das estruturas sonoras à análise do processo musical e suas especifidades. Abre mão do enfoque sobre a música enquanto "produto" para adotar um conceito mais abrangente, em que a música atua como "processo" de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além dos seus aspectos meramente sonoros. Assim o estudo etnomusicológico da performance trata de todas as atividades musicais, seus ensejos e suas funções dentro de uma comunidade ou grupo social maior, adotando uma perspectiva processual do acontecimento cultural (PINTO, 2001, p. 227-228).

Para além das sequencias das composições dos repertórios cantados, a música ancora, através da performance, a vida ritual dos Apinayé, como pude verificar na cerimônia do Megrẽ Môx, onde cantar, dançar e rememorar o morto, do pôr-do-sol até o sol se levantar no dia seguinte, fabricam uma sorte de comunicação que não pode ser traduzida em palavras, mas somente em performance musical que toma forma na cerimônia ritual.

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Aqui destaco alguns pontos importantes para a compreensão da confecção destes instrumentos para os Apinayé e sua relevância na vida social e cerimonial deste grupo, além de mostrar a metodologia deste trabalho e ampliar conceitos relativos ao sistema musical Apinayé.

3.1- A metodologia utilizada na pesquisa de campo

É importante informar que esta tese é fundamentada sobre as bases da consistente bibliografia teórica sobre os Apinayé (Curt Nimuendajú, Roberto DaMatta, Francisco Edviges Albuquerque, Odair Giraldin, Severina de Almeida e Cassiano Sotero Apinagé, entre outros autores). Também, as pesquisas de campo (basicamente entrevistas) vêm a acrescentar dados mais atuais e novos às pesquisas teóricas anteriormente executadas. Além disto, esta tese tenta focar nas formas de ensino-aprendizagem tradicional através da confecção de instrumentos para fazer música, algo nunca antes pesquisado sobre este povo. No entanto, este trabalho não é um trabalho etnográfico, mas de cunho etnográfico e se utiliza, em sua forma, da pesquisa participante.

Para tanto, os indígenas deram-me autorização gravada para usar o material recolhido nas entrevistas para minhas pesquisas. Também o cacique (pahi) Roberto DaMatta, da aldeia Patizal, autorizou-me, por escrito, a entrar em sua aldeia quando eu desejasse para fazer meus estudos. Também, tenho autorização escrita desse cacique, do presidente da Associação União das Aldeias Apinajé (PEMPXÀ) e da FUNAI para desenvolver minhas pesquisas. A autorização da FUNAI central, em Brasília, tardou muito em sair, principalmente pela burocracia envolvida no processo e por eu ter tido uma gripe no período dos exames médicos.

Também, como professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT) desde novembro de 2011, sempre estive em contato com os Apinayé na universidade, na cidade de Tocantinópolis e indo às festividades que eles gentilmente me convidavam. A partir deste momento comecei a registrar minhas visitas às aldeias.

Quando eu visitava as aldeias para minha pesquisa, sempre levei mantimentos variados (principalmente arroz, carne e café), sempre busquei comprar o

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artesanato local e compreender como o confeccionavam, sempre comi com eles, sempre me banhei nos ribeirões das aldeias, como eles, e sempre os respeitei profundamente.

Bruno Aluísio Braga Fragoso, coordenador da FUNAI/CTL de Tocantinópolis, nunca interferiu nas visitas de não-indígenas às aldeias, desde que convidados pelos próprios Apinayé. Grupos de alunos, das escolas da cidade ou da universidade, sempre foram bem vindos para conhecer as aldeias Apinayé e sempre foram muito bem tratados.

Voltando mais especificamente à meu processo de pesquisa, busquei fazer entrevistas pontuais através das perguntas formuladas por Anthony Seeger (1987) em seu artigo intitulado “Novos horizontes na classificação dos instrumentos musicais”.

As perguntas foram as seguintes: Como são produzidos e tocados esses instrumentos? Como é produzido o som em determinado instrumento? Porque razão isto é feito de uma maneira e não de outra? Quando e em que ordem são manufaturadas as diversas partes de um instrumento musical? Quem pode ver, participar ou ajudar? A que grupos é vedado? Como se afina este instrumento? Instrumentos diferentes tocados ao mesmo tempo conversam entre si? Como os instrumentos estudados interagem com o corpo do tocador (ex: posição requerida)? A percussão depende dos movimentos do corpo do tocador (ex: chocalhos)? Podem ser tocados em conjunto? Há alguma relação dos tocadores entre si? O que é tocado (ex: música instrumental, vocal ou uma mescla das duas)? Onde é tocada a música? Onde são fabricados, guardados e tocados os diversos instrumentos? Há horários específicos para produção e/ou uso da música e dos instrumentos musicais? Quem toca e quem canta (ex: sexo, faixa etária, posição social, participação ou não em um evento musical)? Quem é a plateia? Os instrumentos musicais tem alguma relação com os mitos deste povo? Qual o lugar de importância do instrumento musical e da música nesta sociedade? Por que se toca este instrumento desta maneira? Por que tocar flauta em vez de ficar quieto? Por que é bonito? Quais os princípios que determinam a beleza de um instrumento, de um som, de uma música?

No entanto, durante a efetiva pesquisa de campo, verifiquei que não seria possível seguir um formulário pronto de perguntas, pois as entrevistas aconteciam em ritmo de conversas informais e iam sendo direcionadas por mim dentro da linha de perguntas de Anthony Seeger, porém seguindo o ritmo e as informações dadas pelos colaboradores entrevistados.

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Optei, então, primeiramente, por gravar a autorização oral dos colaboradores para o uso das imagens e informações nos meus estudos e, seguidamente, falar sobre os processos de ensino-aprendizagem tradicional dos instrumentos musicais e a confecção destes. Parte das entrevistas foi gravada em curtos vídeos como prova efetiva de que as entrevistas aconteceram e para deixar ver quem foram os colaboradores.

Durante as entrevistas fiz muitas anotações (como um diário de campo pessoal) e estas informações deram a base mais consistente aos dados recolhidos. A dificuldade de alguns Apinayé, principalmente os mais idosos, em falar um português claro e a inabilidade deste pesquisador em falar a língua Apinajé foram motivos para não gravar toda a duração das entrevistas, focando somente nas partes que acreditei mais importantes para este trabalho.

Minhas visitas às aldeias Apinayé foram sempre durante o dia e poucas vezes fiquei para dormir. Quando dormia, levava minha tenda e bastante comida para a casa onde estaria ligado (a casa de Ana Rosa e Cassiano, na aldeia São José; a casa de Roberto da Mata, na aldeia Patizal; e a casa de Paulo Laranja, na aldeia Palmeira).

Minha base foi mesmo a aldeia Patizal, onde o cacique Roberto da Mata e sua família me recebiam muito bem. Não acredito que haja pesquisa de campo que não crie laços de afeição. Acabamos gostando mais de lidar com certas pessoas e sempre as visitamos. E como passamos mais tempo com estas pessoas a quem mais nos afeiçoamos, são elas que acabam nos informando, efetivamente, como é a vida dentro da daquela sociedade.

Ainda, vale informar que somente visitei as aldeias ligadas à aldeia São José (as aldeias mais a oeste da TI), e não as aldeias ligadas à aldeia Mariazinha, talvez por ser mais abertamente acolhido pelo grupo oriundo da São José, principalmente pela família de Ana Rosa e Cassiano Apinagé (estes dois são casados e trabalham como professores na escola da aldeia) que me abriram as portas de sua casa.

Porém, apesar da pesquisa de campo se colocar como um estudo de caso para esta tese, as fontes bibliográficas mostram sua força tanto para a base empírica desta pesquisa quanto para a prática. Utilizo uma passagem de Clifford Geertz (2008) onde ele mostra que um estudo somente se constrói baseado em outros estudos, e é isto que tento construir nesta tese:

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Em vez de seguir uma curva ascendente de achados cumulativos, a análise cultural separa-se numa sequencia desconexa e, no entanto, coerente de incursões cada vez mais audaciosas. Os estudos constroem-se sobre outros estudos, não no sentido de que retomam onde outros deixaram, mas no sentido de que, melhor informados e melhor conceitualizados, eles mergulham mais profundamente nas mesmas coisas. Cada análise cultural séria começa com um desvio inicial e termina onde consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual. Fatos anteriormente descobertos são mobilizados, conceitos anteriormente desenvolvidos são usados, hipóteses formuladas anteriormente são testadas, entretanto o movimento não parte de teoremas já comprovados para outros recém-provados, ele parte do tateio desajeitado pela compreensão mais elementar para uma alegação comprovada de que alguém a alcançou e a superou. Um estudo é um avanço quando é mais incisivo – o que quer que isto signifique – do que aqueles que o procederam; mas ele se conserva menos nos ombros do que corre lado a lado, desafiado e desafiando. (GEERTZ, 2008, p. 18).

Tentei, ainda, buscar compreender os instrumentos musicais Apinayé dentro de seu contexto histórico-social de produção e uso atual, pois eles ainda são produzidos e ainda há artesãos reconhecidos que os confeccionam. Conforme informa Berta Ribeiro (1989), há que conhecer-se o povo com o qual se coopera:

No caso da abordagem antropológica, exige-se o levantamento do mesmo contexto: a época do estudo e do colecionamento, o grupo indígena, a área cultural em que está inserido, o campo prioritário da arte a que se dedica, que deve ser analisado com mais rigor, e finalmente, o produto. Essa seria a metodologia de pesquisa, o modo pelo qual se chegaria ao discurso visual partindo do contexto. Deve-se considerar, ainda, que no caso dos povos ágrafos, as manifestações mágico-religiosas e a rede de relações sociais se expressam através da arte. Por essa via, comunicam-se ideias e comportamentos, cuja decodificação só se torna possível através do profundo conhecimento da organização social, da cosmologia e de outros aspectos da cultura aos quais a arte intimamente se vincula. (RIBEIRO, 1989, p. 24).

Ainda, tentei entender a confecção dos objetos musicais como produtos de mentes humanas, não me interessando em encaixá-los em padrões fixos de organologia, porém me utilizei da classificação Hornbostel e Sachs como uma informação a ser fornecida ao leitor deste trabalho.

A experiência do ensinar e aprender através da confecção dos instrumentos musicais foi, efetivamente, o foco deste trabalho, tentando-se descobrir formas educacionais que poderiam ser incorporadas e utilizadas por todos nós. No entanto, sempre tendo em mente que o sistema musical de uma sociedade indígena não se desliga dos vários aspectos da vida natural e sobrenatural desta sociedade.

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Ainda, as entrevistas feitas, as observações anotadas, os objetos coletados (todos os objetos coletados foram comprados por mim ao preço primeiramente oferecido pelo mestre artesão ou me foram dados de presente) e a busca bibliográfica sobre os Apinayé, seus costumes e instrumentos musicais deram as bases para a escritura desta tese e da análise do que foi visto e estudado.

Entre os vários materiais utilizados pelos Apinayé para confeccionar seus instrumentos musicais estão, principalmente, as cabaças (Crescentia cujete), as coités (Cucurbita lagenaria), as fibras de buriti (Mauritia flexuosa) e de outras palmeiras da região e sementes variadas.

Vale lembrar que o pesquisador kupẽ que visita uma aldeia não é um indígena e nunca o será, por mais longo tempo que viva numa aldeia e goste de um povo. Isto nos mostra claramente a força da cultura de cada um de nós, algo que não temos como controlar.

Por último, para localizar cronologicamente o leitor deste trabalho, vale lembrar que as pesquisas bibliográficas e as entrevistas que resultaram nesta tese se deram durante os anos de 2012, 2013 e 2014.

3.2- Os instrumentos musicais Apinayé na literatura específica sobre este grupo étnico, os verificados na pesquisa de campo e os artesãos de instrumentos musicais

Se as culturas indígenas brasileiras são basicamente orais, nelas a música se coloca quase como uma extensão natural do ato de falar, de se comunicar. Entre os Apinayé, o maracá, os bastões de ritmo e as batidas de pé no chão marcam o ritmo a ser seguido pelos cantores/dançarinos. Os cantos, nas festividades culturais, acontecem acompanhados ritmicamente pelo maracá do cantor principal.

Hoje em dia, os instrumentos musicais confeccionados pelos Apinayé são instrumentos utilizados somente em performances rituais. O sistema musical deste povo se relaciona diretamente com a esfera social e a sobrenatural, equilibrando-as. Lembro, aqui, que este povo, como outros do grupo Jê, sustentam seu mundo cultural através do equilíbrio entre as metades.

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Nos grandes rituais (as “festas de cultura”, como os Apinayé chamam seus rituais tradicionais) deste povo, o maracá se coloca como objeto central ao acompanhar o canto de um cantor puxador e daqueles que o respondem. Hoje em dia, as festividades culturais tradicionais deste povo são os casamentos, as corridas de tora e as celebrações para os espíritos (karõ) dos mortos (como o Megrẽ Môx e a tora grande), a festa da primeira chuva, o dia do índio e o Krát (a festa dos enfeites).

Sobre as festividades de casamento, Emílio Dias Apinajé, citado por Francisco Edviges Albuquerque (2008), nos relata como se celebra o casamento com um tradicional moquém:

Quando há casamento na aldeia, os índios fazem moqueado de mandioca. Eles vão para roça, arrancar mandioca, enquanto os outros vão arrancar a batata-doce. Depois levam pra aldeia, para descascar e ralar a mandioca. As mulheres fazem moquém, mas para isso, elas buscam lenhas e pedras. Preparam o bolo, que é uma mistura de massa de mandioca com carne de caça ou vaca. As mulheres vão cortar as folhas de bananeira, para colocar a massa de mandioca, juntamente com a carne, para fazerem o bolo, que, em seguida, é levado para o moquém, que já está preparado para receber o bolo. As pedras são retiradas para fora do moquém, onde o bolo é colocado, depois elas são colocadas de volta em cima do moquém. Em seguida, os homens cobrem o moquém com folhas de bananeira e palhas de coco babaçu. Ao ser coberto com terra, o bolo demora bastante para assar, depois de assado, é retirado do moquém, para comer. Assim é preparado o bolo de mandioca, ou paparuto Apinayé. (DIAS APINAJÉ, Emilio apud ALBUQUERQUE, 2008, p. 226).

Os Apinayé são extremamente exigentes na confecção de seus instrumentos musicais. Não há decorações ou adereços “desnecessários”, já que o maracá é um objeto de “trabalho” do cantador, para além de ser um objeto incluído dentro de uma estética própria deste povo. Há gravações básicas nos maracás, em forma de ranhuras ou de pirogravuras. Algumas poucas vezes se utilizam de penas e plumas coloridas para decorar o artefato.

Vale ressaltar que os Apinayé não concebem, como nós, um grupo de objetos para fazer música. Eles não têm, em sua língua, uma tradução para “instrumentos musicais”. Os objetos para fazer música são nomeados um a um, o que marca a especificidade de cada objeto, sem agrupá-los.

Curt Nimuendajú (1983) descreve alguns objetos musicais Apinayé em seu livro “Os Apinayé”: “pequenas flautas de taboca com uma cabacinha esférica aposta e dois furos para os dedos” (p.23); os cacetes que utilizavam para dar compasso

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batendo-os no chão (p. 38, 39); maracá usado pelo cantador (p.39, 48, 109 e 114); o próprio corpo, dando “...um estalo com o dedo indicador metido na boca” (p. 44); flauta dupla (p. 52 e 54); cinto maracá de cascos de veado (p. 87); buzinas e apitos (p. 87); e pequena clarineta com cabaça de ressonância (me-e-i ratág-re) (p. 87).

De acordo com Curt Nimuendajú, a produção e uso dos instrumentos musicais Apinayé são atribuições masculinas (idem, p. 76) e o maracá é um instrumento profano: “...o maracá, que, entre os Apinayé, como entre os Timbira Orientais e os Xerente, não é o instrumento do pajé, mas do cantador, sendo um instrumento de música inteiramente profano, sem nenhuma significação mágica.” (idem, p. 109). Este instrumento é utilizado pelo cantor para acompanhar o canto e a dança.

Sobre esta última observação de Curt Nimuendajú, tive a oportunidade, com este estudo, de revisá-la, pois o maracá, como outros instrumentos musicais Apinayé, são utilizados pelo cantor durante as cerimônias rituais (performances musicais) deste povo e ajudam a reforçam a conexão dualista entre o mundo natural (da vida social) e o sobrenatural (dos espíritos).

Voltando à tipologia dos instrumentos musicais Apinayé, também, o professor Estêvão Pinto (1938) nos deixou uma breve passagem sobre alguns instrumentos musicais de sopro e rítmicos utilizados por alguns indígenas pertencentes ao grupo Jê, conforme a passagem a seguir:

Os jês conheciam as flautas de taquara, com orifício para sopro nasal de uso feminino (botocudos, caingangues, apinajés); as gaitas de folhas verdes, os apitos e os bastões de ritmo (botocudos, caingangues); o maracá (caingangues, coroados, aveicomas, craôs); "as trombetas" ou buzinas (craôs, caingangues). (PINTO, 1938, p. 149).

Ainda, o pesquisador sueco Karl Izikowitz, em seu livro “Musical and other Sound Instruments of the South American Indians: A Comparative Ethnographical Study”, de 1935, revela os vastos estudos comparativos (ainda influenciado por uma visão evolucionista) que fez em acervos etnográficos de museus do norte da Europa. O rico acervo de museus etnográficos de Gotemburgo, Berlim, Londres, Dresden, Frankfurt, Hamburgo, Copenhague, Munique, Viena, Estocolmo e Stuttgart foi a base para analisar comparativamente os instrumentos musicais de várias culturas “'agrafas” da América do Sul.

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Izikowitz se utilizou da metodologia Hornbostel e Sachs (onde os instrumentos musicais são classificados pelo tipo de som que é produzido pelas características dos instrumentos, sejam estes de percussão, sopro ou corda) para a classificação dos objetos de cultura material. Ele busca identificar e comparar objetos musicais dentro das seguintes categorias: idiofones (idiofones de percussão, linguafones e idiofones de fricção); membrafones (tambores); cordofones; e aerofones (aerofones livres, de válvula e flautas). Os estudos de Izikowitz podem ser considerados os mais importantes na área de organologia indígena da América do Sul, por isso os tomo como referência principal para esta parte do texto.

Figura 13 – Chocalhos Apinayé confeccionados com cabaça de ressonância. Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 101.

Aqui vou me deter nos instrumentos musicais Apinayé (e os que têm relação direta com os Timbira) descritos por Karl Izikowitz (sendo que a maioria deles foi coletada por Curt Nimuendajú e Emil-Heinrich Snethlage19 e enviada para museus europeus) e os objetos encontrados em minha pesquisa de campo. Utilizarei-me aqui da mesma ordem 19

O ornitólogo (estudioso de distribuição das aves) alemão Emil-Heinrich Snethlage (1897-1939) viajou pelos interiores do Brasil e coletou objetos etnográficos de indígenas brasileiros para museus europeus.

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de classificação dos objetos utilizada por Izikowitz em seu livro, e baseado no sistema Hornbostel e Sachs.

O objetivo desta forma de análise é verificar o que ainda se produz e suas mudanças de confecção, tentando, assim, compreender as transformações culturais pela via dos instrumentos musicais e objetos para produzir sons.

O maracá Apinayé (gôhtàx)

Classificação Hornbostel e Sachs:

1 IDIOPHONES - The substance of the instrument itself, owing to its solidity and elasticity,

vibrates and may radiate sound without requiring stretched membranes or strings;

11 Struck idiophones - The instrument is made to vibrate by being struck upon;

111 Idiophones struck directly - The player himself executes the movement of striking;

whether by mechanical intermediate devices, beaters, keyboards, or by pulling ropes, etc., is immaterial; it is definitive that the player can apply clearly defined individual strokes and that the instrument itself is equipped for this kind of percussion.

Como já foi informado, o principal objeto musical confeccionado atualmente pelos Apinayé é o maracá (gôhtàx). De acordo com Curt Nimuendajú (1983, p. 109) o maracá Apinayé não tinha poderes “mágicos”, já que não era utilizado por “curandeiros”, “feiticeiros” ou “xamãs” para auxiliar na cura de enfermos ou enfeitiçados. Porém, podemos afirmar, a partir do que vimos em campo, que este instrumento musical tem poderes sobrenaturais nos rituais onde os espíritos dos mortos (karõ) são relembrados. O maracá Apinayé tem um poder sobrenatural de um spirit catcher, já que auxilia na reverência aos deuses mitológicos (sol e lua) e na aproximação com os espíritos dos mortos, como verificado por mim na cerimônia do Megrẽ Môx.

Os Apinayé acreditam que somente a terra e a água são os únicos elementos que não tem espíritos, porém todos os outros elementos da natureza o tem. Assim, o poder do maracá Apinayé como objeto ritual e sobrenatural parece ter sido subestimado por Curt Nimuendajú.

Além disto, os maracás Apinayé são obrigatoriamente confeccionados com cabaça (e não com coités), um material que está ligado mitologicamente aos entes

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sobrenaturais (sol e lua) criadores deste povo. Essa utilização exclusiva de cabaça parece ser mais uma confirmação da ligação do maracá Apinayé com a esfera mitológico-sobrenatural deste povo.

Sabemos que Curt Nimuendajú, quando esteve entre os Apinayé, estava imbuído da lógica científica de seu tempo (poderíamos dizer que era uma lógica mais positivista), bastante diferente da visão antropológica atual de se entender as várias culturas ao redor do mundo (que tenta compreender as relações significativas no âmbito das teias de significações culturais).

Podemos dizer, ainda, que as pesquisas de hoje em dia buscam a potencialidade viva dos objetos culturais nas sociedades onde são confeccionados e utilizados. Estes objetos de cultura material estão engendrados das relações sociais, culturais, sobrenaturais e cosmológicas da sociedade a que se referem, articulando a esfera do material com a do imaterial. Neste sentido, o maracá é objeto ativo no complexo musical, social, cultural, mitológico e sobrenatural Apinayé. Karl Izikowitz (1935) nos deixa a seguinte descrição de um maracá:

Characteristic for the hollow rattles of instruments is that they consist of a hollow receptacle (Gefäss) in which are enclosed pellets of stone, hard seeds, or some other suitable material which, when the instrument is shaken beat against one another or against the sides of the receptacle and thereby produces a rattling sound. (IZIKOWITZ, 1935, p. 96).

Também, podemos ver na literatura etnomusicológica atual a variedade de sentidos, de propósitos e a diversidade de práticas musicais e de instrumentos para fazer música entre os indígenas da terras baixas da América do Sul. Um exemplo claro disto é a forma variada como o maracá é confeccionado e utilizado pelas várias etnias nacionais, servindo, até, como referência para outros instrumentos musicais, como vemos na passagem de Marília Stein (2010) sobre as pesquisas de Deise Lucy Montardo:

Enquanto entre os Kaiowá e os Nhandeva o termo mbaraka nomeia um chocalho globular com sementes dentro, instrumento ritual muito importante, entre os Mbyá e os Chiripá o instrumento correspondente em termos de centralidade ritual é também chamado mbaraka, porém refere-se ao violão Guarani de cinco cordas. (STEIN, 2010, p. 4).

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Ainda, o maracá Apinayé (gôhtàx) ainda continua a ser confeccionado pelos artesãos especializados (como os das figuras 13, 14 e 15), porém, já não mais ornamentado com penas ou com cabos trançados em palha. Eles são de cabo curto (não existindo maracás de cabo longo entre este povo), têm o recipiente confeccionado de cabaça (Crescentia Cujete), utilizam-se de sementes como partículas dentro da cabaça e há uma quantidade variada de furos. Os Apinayé amarram as extremidades da cabaça ao bastão com fibras vegetais para fixá-la, diferentemente de vários outros indígenas que se utilizam de cera (como os Waiwai).

As cabaças, entre os Timbira, entram na fabricação de apitos, buzinas e maracás. No entanto, a cabaça e a coité (ambas da família Crescentia Cujete) produzem sons distintos, de acordo com o artesão Carlos Krikatí. Segundo este Krikatí, a coité20 é melhor para ser usada em maracás. Ele me informou, ainda, que na aldeia Mariazinha se encontra um pé de coité. A coité é um fruto que, após lavado e seco, se torna uma excelente caixa de ressonância. Além de ser utilizada em berimbaus (instrumento musical afro-brasileiro) e como recipiente para vários objetos e líquidos.

Porém, através das narrativas de Curt Nimuendajú (1939) sabemos da importância mitológica das cabaças para os Apinayé (conforme já informado anteriormente nesta tese).

O professor Francisco Edviges Albuquerque (2012), no livro “Arte e Cultura do Povo Krahô”, organizado por ele, coloca a descrição de dois indígenas Krahô sobre a confecção dos maracás, chamados de Cuhtoj na língua Krahô. A primeira descrição é de Leonardo Krahô:

Maracá é feito somente pelos homens que cantam com ele. O Maracá é muito fácil de fazer. Ele é uma fruta, que sai da planta e vira maracá. Quando tiver uma no pé, o homem tira-a, fura os dois lados e coloca na panela, bota no fogo, deixa ferver para as sementes ficarem moles. O homem tira do fogo, retira todas as sementinhas dele, bota pra secar. Depois, é só enfeitar o cabo e cantar com ele. (ALBUQUERQUE, 2012, p. 201).

A segunda descrição é de Luciano Caprãn Krahô:

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A coité é utilizada, também, na confecção de berimbaus (cordofone afro-brasileiro com caixa de ressonância).

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Primeiro, as pessoas pegam a planta do Maracá, colocam no lugar certo para crescer e dar fruta. Passado um ano, o pé de Maracá já vai dar frutos, e as pessoas tiram o Maracá e furam bem no meio com faca. Depois colocam na água quente, fervendo na panela, para tirarem o miolo de dentro do Maracá. Passadas algumas horas, tiram o Maracá da panela, retiram todo o miolo e cortam uma vara. Pegam algumas sementes, colocam dentro do Maracá. Testam o Maracá para ver se ficou bom e presta pra cantar. O cantor canta com Maracá em qualquer festa e depois vende o Maracá para os brancos. (Idem, p. 212).

Também podemos incluir aqui a explicação gravada de Paulo Laranja, da aldeia Palmeira, sobre como se confecciona uma maracá Apinayé, conforme coloco a seguir:

A gente pega no seu Ozila, lá que tem a cabacinha ai. A gente pega, né? Ai fura, fura e bota dentro d`àgua. Bota água dentro pra amolecer o que tem dentro, né? Vai derramando e botando... Esquenta bota e vai alimpando, alimpando, até quando tá limpo. Depois agente bota no sol pra secar. Quando tá bem sequinho, ai fura. Dá uns quatro ou três, depende da cabaça. Se for grande faz quatro furados, se for pequeno só faz três furados. Ai caça uma madeira boa mesmo pra fazer o cabo pra poder não quebrar, pra não dar um som muito confuso e pra não quebrar. (PAULO LARANJA APINAGÉ, 2012).

Claudio Zannoni e Pedro Moura (2010), em seu artigo “A música dos povos indígenas do Maranhão”, descrevem como ocorre a confecção de um maracá indígena no Maranhão. Neste estado os grupos indígenas se utilizam da coité ao invés da cabaça. Segue a descrição:

A cuité passa por um processo de limpeza interna que pode durar vários dias. Após furada, coloca-se no seu interior água para amolecer o miolo que está no seu interior e através de pedriscos, que são colocados junto com água, passa-se a sacudir a cabaça até saírem todas as sementes. Esse processo pode durar vários dias, dependendo da compactação do miolo. Após limpa a cuité é colocada para secar. Enfim, são inseridas várias sementes secas, as quais variam pelo tamanho e pelo som que se deseja obter do instrumento, e finalmente é inserido um cabo de madeira que perpassa a cuité. (MOURA; ZANNONI, 2010, p. 30).

(17)

Figura 14 - Maracá confeccionado por seu Camilo, 2012. Fotografia de Walace Rodrigues.

(18)

Figura 16 - Maracá confeccionado por seu Albino Apinagé da aldeia Boi Morto e utilizado pelo cantor Zé Cabelo, 2012. Fotografia de Walace Rodrigues.

Há, no entanto, uma diferença fundamental na confecção do maracá Krahô e o Apinayé: o maracá Krahô é feito pelo próprio cantor que vai utilizá-lo, enquanto o Apinayé é feito por um artesão reconhecido como um trabalhador etnicamente especializado pelo grupo, ou seja, um mestre artesão. Esta divisão de trabalho demarca habilidades pessoais e especificidades culturais em cada indivíduo dos grupos, apesar de os dois grupos (Krahô e Apinayé) pertencerem ao mesmo tronco Jê (Timbira).

Ainda, sobre o maracá confeccionado pelos grupos Jê (Timbira), Zannoni e Moura (2010) informam sobre as características estéticas gerais dos maracás dos grupos Jê, alguns também habitantes do Estado do Maranhão:

Entre os povos Jê/Timbira, os maracás não apresentam adorno plumário nem a pigmentação da cabaça. A decoração aparece somente em alguns casos. Quando isso ocorre, os desenhos são feitos com pigmento natural (suco de jenipapo ou carvão vegetal) em linhas que se cruzam no sentido vertical ou horizontal, dividindo a peça em quatro partes (MOURA; ZANNONI, 2010, p. 31).

Albuquerque (2012) nos deixa ver que os Krahô (grupo indígena também Timbira ocidental e que ainda vive de forma mais tradicional que os Apinayé) produzem,

(19)

atualmente, maracás (Cuhtoj), cabacinhas (flauta globular chamada de Cuhkõnre) e Buzinas (Patwy). Estas últimas confeccionadas com cabaças de maior tamanho, para servirem como caixa de ressonância, e com um tubo sonador de taboca (bambu Guadua Weberbaueri), onde fazem um furo para o sopro.

O primeiro maracá com o qual tive contato foi confeccionado por seu Camilo Apinayé. Este senhor, falecido em 2012, já não confecciona nenhum instrumento musical, porém era reconhecido como o artesão mais hábil e importante entre os Apinayé. Conheci, em coleções particulares, alguns de seus instrumentos musicais, como buzinas confeccionadas com imensas cabaças para ressonância.

Roberto DaMatta não faz nenhuma menção aos instrumentos musicais dos Apinayé, se importando, basicamente, com a vida social e as relações de parentesco. Também, sobre o mito da criação Apinayé, DaMatta não o menciona de forma relevante. Este pesquisador corrige as observações de Curt Nimuendajú em dois pontos: o primeiro sobre a falsa anomalia Apinayé e o segundo sobre o número de kiyê, que são dois ao invés de quatro.

Um colaborador desta tese, Francisco Dias Apinagé, me informou que aprendeu a confeccionar instrumentos musicais com seu avô Estevão Laranja Apinajé. Disse que seu avô lhe mostrou que tinha que pegar uma cabaça de bom tamanho (“...hoje em dia é difícil de conseguir uma cabaça de bom tamanho para maracá”, disse ele), abrir um orifício para colocar água quente para tirar o que há dentro e deixar no sol para secar. Depois, há que buscar um pedaço de madeira forte, porém macia de trabalhar, para fazer o cabo do maracá (ele não se lembrava do nome da madeira, mas me disse que é de um pau de uma árvore que tem folhas que fedem e servem para remédio) e marcá-lo com um canivete. Seu Francisco me comentou, ainda, que usou sementes pretas secas (também não se lembrava do nome da semente, somente que a planta desta semente dá flores vermelhas) dentro do maracá (vide figura 15).

Chocalho de fieira de casco de veado (karanhỹho mẽprehti)

Classificação Hornbostel e Sachs:

112 Indirectly struck idiophones - The player himself does not go through the movement

(20)

intention of the instrument is to yield clusters of sounds or noises, and not to let individual strokes be perceived;

112.1 Shaken idiophones or rattles - The player executes a shaking motion;

112.11 Suspension rattles - Perforated idiophones are mounted together, and shaken to

strike against each other;

112.13 Vessel rattles - Rattling objects enclosed in a vessel strike against each other or

against the walls of the vessel, or usually against both.

Outro instrumento musical de percussão Apinayé é o chocalho de fieira. Karl Izikowitz (1935, p. 35) nos diz que este chocalho parece ser um elemento cultural muito antigo e que para os Apinayé ele era tido como um verdadeiro instrumento musical.

Aqui, utilizo-me de uma passagem de Izikowitz (1935) onde ele nos relata, pelas vias das informações de seus colegas pesquisadores (quem coletaram os objetos para o Museu de Gotemburgo), alguns detalhes sobre os chocalhos de fieiras Apinayé:

According to a verbal report by Dr. SNETHLAGE, who has lived for some time among the Apinayé Indians, the men dance with staffs on which a hoof rattle is fastened. In the collections at the Gothenburg museum accumulated by Mr. NIMUENDAJÚ there are rattles which were used by a young boy and worn at the instep. It is interesting that a child's bearing-band from this tribe is furnished with clusters of deer hoofs. (IZIKOWITZ, 1935, p. 38).

Assim, de acordo com a passagem anterior, um chocalho de fieira Apinayé confeccionado com cascos de veado (vide figura 17) tinha funções específicas: na dança para o homem adulto, para o jovem rapaz em sua cerimônia de iniciação e como amuletos de crianças pequenas. Neste último caso não tendo função de instrumento musical, mas sobrenatural.

Também, durante minhas pesquisas entre os Apinayé não encontrei nenhum chocalho de fieira. Tive a oportunidade de ver um chocalho de fieira Apinayé em uma coleção particular, porém era confeccionado com cabaças de pequeno tamanho (vide figura 18) e não com unhas de veado. A figura 9 também mostrava um chocalho de fieira confeccionado com cabacinhas para amarrar na cintura, porém de origem Krahô.

(21)

Figura 17 – Chocalhos de fieiras confeccionados com fibras e miçangas naturais e unhas (cascos) de veados. O chocalho “c” é o chocalho Apinayé. Em língua Apinayé este chocalho se denomina karanhỹho

mẽprehti. Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 34.

Figura 18 – Chocalho de fieira Apinayé. Feito com lágrima de Nossa Senhora (Coix

lacryma-jobi) e cabacinhas (Família das Cucurbitáceas), entre outros materiais. Autoria desconhecida. Fotografia de

(22)

Vi chocalhos de fieira sendo confeccionados e utilizados entre os Krahô da aldeia Pedra Branca. A figura 19 mostra um destes chocalhos. Ele foi confeccionado com tiriricas (Cyperus rotundus) da região do município de Itacajá, lágrimas de Nossa Senhora (Coix lacryma-jobi) e com frutos secos de canela-tatu (da família das Lauráceas). Seu lugar de colocação é a perna do dançarino/cantor.

Figura 19 – Chocalho de fieira Krahô. Feito com tiririca (Cyperus rotundus), lágrima de Nossa Senhora (Coix

lacryma-jobi) e cascas de canela-tatu (frutos de uma árvore da família das Lauráceas). Confeccionado por

Luís Pinto Krahô da aldeia Pedra Preta, 2012. Fotografia de Walace Rodrigues.

Colares de conchas para corrida de toras (mẽõ prepre)

Classificação Hornbostel e Sachs:

112.111 Strung rattles - Rattling objects are strung in rows on a cord. Necklaces with

rows of shells.

Outro importante objeto sonoro Apinayé a destacar aqui é o colar de conchas utilizado nas corridas de tora (cf. IZIKOWITZ, 1935, p. 56-57). A figura 20 mostra um destes colares antigos e a figura 21 mostra dois colares confeccionados com conchas na aldeia São José, em 2013.

(23)

Nestes colares o som é emitido quando as conchas se chocam entre si durante a corrida. Estes colares são objetos confeccionados ainda hoje. Eles são feitos pelas mulheres e são vastamente utilizados nas corridas de toras. As conchas para a confecção destes colares vêm das margens do rio Tocantins. De acordo com Izikowitz (Idem, p. 57), as conchas podem ser substituídas por cascos de animais, como as de veado campeiro (Ozotoceros Bezoarticus).

Figura 20 - Colar Apinayé de conchas para corrida de toras. Em língua Apinayé significa mẽõ prepre.

Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 57.

Figura 21 - Colares Apinayé confeccionados com miçangas plásticas industrializadas e conchas. Confeccionados em 2013 na aldeia São José. Foto de Walace Rodrigues.

Bastão de ritmo (kôjamrêx)

Classificação Hornbostel e Sachs:

(24)

O bastão de ritmo é um objeto que serve para dar ritmo ao canto, sendo tocado para este fim. O bastão de ritmo é, ainda hoje, confeccionado e usado. Tive a oportunidade de presenciar a performance do cantor Miguel em um casamento Apinayé na aldeia Furna Negra, em 2012, utilizando-se de um bastão de ritmo (vide figura 23).

Alguns materiais como cascos, sementes secas, penas, miçangas, entre outros, podem ser amarrados a um bastão de ritmo utilizado em danças. Este objeto musical é um elemento cultural entre os indígenas Uitoto (AM, Perú e Colômbia), Macuxi (AP), Ticuna (Colômbia, Perú e AM), Desana (AM), e outros mais, conforme a seguinte passagem de Karl Izikowitz:

I have frequently called attention to instruments which consist of a stick with a sound instrument applied, as for instance jingle rattles, gourd rattles, the stamping tube, membrane drums, etc. In many places the Indians use staffs without any sound instrument attached, thus, for instance the Chiriguano have long staffs decorated with feather. (IZIKOWITZ, 1935, p. 143).

Figura 22 - Bastões de ritmo dos Uitoto (AM), Macuxi (AP), Ticuna (AM), respectivamente. Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 91.

Figura 23 - Cantor Miguel em performance na casa da noiva durante ritual de casamento na aldeia Furna Negra, 2012. Note seu bastão de ritmo (kôjamrêx) adornado com penas e miçangas. Fotografia de Walace

(25)

Zunidor Apinayé

Classificação Hornbostel e Sachs:

4 Aerophones - The air itself is the vibrator in the primary sense. In this group also belong

reed instruments sounded by a flow of air in which the reed is the primary vibrator;

41 Free aerophones - The vibrating air is not confined by the instrument;

411 Displacement free aerophones - The air-stream meets a sharp edge, or a sharp

edge is moved through the air. In either case, according to more recent views, a periodic displacement of air occurs to alternate flanks of the edge Whip, sword-blade.

Outro objeto musical que consta no livro de Izikowitz (1935, p. 209-211) e que não vi em minha pesquisa de campo foi o zunidor. Josué Apinajé me confirmou, em 2014, que já não se fazem zunidores e que ele nunca viu um zunidor Apinayé. Também, não há palavra em uso na língua Apinayé para tal instrumento.

O zunidor é um objeto aerofônico composto de um bastão onde se amarra uma corda com uma lâmina (geralmente de madeira). Ao rodar esta lâmina contra o ar, produz-se uma vibração que cria sons. A rapidez ou lentidão com que se roda a lâmina determina as variações dos sons produzidos. A figura 24 mostra um zunidor Apinayé do Museu de Gotemburgo. Note que tal zunidor não tem nenhum tipo de decoração:

(26)

Vários povos indígenas brasileiros se utilizam de zunidores como instrumentos musicais, entre eles os Mehinaku (MT), os Kuikuro (MT) e os Trumai (MT), entre outros. Os três grupos mencionados são da região do Alto Xingu.

Buzinas

Classificação Hornbostel e Sachs:

42 Wind instruments proper - The vibrating air is confined within the instrument itself; 421 Edge instruments or flutes - A narrow stream of air is directed against an edge to

excite a column of air in a tube or a body of air in a cavity.

Outro instrumento aerofônico confeccionado pelos Apinayé, de acordo com Karl Izikowitz, são as chamadas buzinas (o referido autor usa o termo trompets, em inglês, para estes objetos musicais). Izikowitz encontrou, entre as coleções de objetos Apinayé, os seguintes instrumentos musicais: buzina simples, buzina de madeira e buzina de chifre de boi. Utilizo uma passagem de Izikowitz sobre os materiais utilizados nas buzinas e sobre as buzinas simples:

…there is no real scarcity of natural tube material in South America. For trumpets, which demand thicker tubes, we also find plenty of natural materials. As a rule the Indians use species of bamboo and other reed-plants, Cecropia, palm trunks – which are generally easily hollowed out – Lagenaria stems, etc. End-blown trumpets in these materials occur among the Karayá, Canella, Apinayé, Warrau, and Carib. The tube is cut in such a way that a node is left in one end and pierced for the purpose of blowing into the instrument. The other end is either open altogether or has a similar pierced node. (Idem, p. 216).

Esse tipo de buzina simples da qual fala o autor foi encontrado em minha pesquisa de campo, mas somente em uma coleção particular e todas executadas por Camilo Apinayé. Meu colaborador Paulo Laranja me informou que sabia fazer buzinas (de chifre de boi e simples de cabaça), mas não mencionou a buzina de madeira.

Tal buzina de madeira tem um orifício para soprar em uma extremidade. Ambas extremidades do tubo são confeccionadas de entalhes em madeira, sendo estas extremidades juntadas a um tubo central de bambu ou taboca. De acordo com Karl

(27)

Izikowitz, este tipo de buzina ocorre somente entre os Apinayé, na boca do rio Amazonas, entre os Munduruku (AM e MT), Juruna (MT) e Yurimagua (AM e Peru) (Idem, p. 220), basicamente na região ao redor do rio Amazonas.

Karl Izikowitz relata, ainda, uma buzina mais complexa, pois tem uma caixa de ressonância na ponta oposta à aquela do orifício de sopro. Este objeto foi visto por mim em coleção particular e com caixas de ressonância de vários tamanhos, geralmente de cabaças grandes e abertas ao final. Seu Camilo Apinayé confeccionou a maioria destas buzinas que vi em coleções particulares. Izikowitz as descreve da seguinte maneira:

To this group I have counted those instruments which at one end of the tube have a resonator or bell consisting of a gourd, a piece of coarse bamboo, or some other suitable material. This trumpet consists of two pieces – the tube and the bell. The tube is often made of some species of bamboo or reed-plant or something similar. (Idem, p. 232).

A buzina com chifre de boi tem uma estrutura muito similar à da buzina mais complexa, porém se substitui a cabaça de ressonância por um chifre de boi. Essas buzinas mais complexas, de acordo com Karl Izikowitz, parecem ser um elemento cultural das áreas do Brasil central, principalmente entre os Jê mais ao norte e entre várias tribos Tupi (Idem, p. 235). Paulo Laranja me explicou como se faz uma buzina de chifre de boi:

Pega um chifre reto. Tem aquele desse tamanho. Chifre de gado. Ai agente pega uma só e raspa tudinho, bem raspadinho, e ai corta bem certinho. Desse tamanho assim. Ai corta uma taboca desse tamanho. Ai, ai corta bem certinho pra colocar aqui no chifre. E bem aqui, bem aqui é tampado. Do lado de lá é tampado. E agente faz um buraco desse tamanho assim, quadrado assim. Pra poder soprar. Ai dá uma buzina que escuta longe. Uma buzina bem boa mesmo (PAULO LARANJA APINAGÉ, 2012).

Ainda, foi-me informado por Paulo Laranja, que as buzinas, depois das festas de cultura, são vendidas ou trocadas, caso haja algum interessado. Isso mostra que estes objetos são realmente confeccionados para uso nas festividades culturais Apinayé.

(28)

O linguista Francisco Edviges Albuquerque (2008), em seu livro “Português intercultural”, coloca o relato de um indígena Krahô sobre a utilização da buzina entre os Krahô:

A buzina é um instrumento musical muito utilizado pelo indígenas Krahô. Este instrumento está desaparecendo aos poucos. Ela é feita de cabaça grande com doi furos pequenos, um na ponta por onde sai o som, e o outro embaixo onde é enfiado o canudo, ou seja, um bambu ou uma taboca com um buraquinho por onde é soprado o som. Este instrumento é usado à noite, para animar a festa. Serve para despertar os jovens de madrugada. Porém, a buzina é um instrumento muito difícil de usar. Não é qualquer pessoa que sabe usar para animar a festa. Existem pessoas com habilidade para usá-la. Se alguém quiser usar a buzina, tem que que se dedicar bastante. (ALBUQUERQUE, 2008, p. 265).

Outro aerofone Apinayé é o que Izikowitz chama de clarineta Apinayé. É um instrumento de menor dimensão do que aquele das buzinas e tem como que uma língua, uma palheta, dentro da caixa de ressonância, conforme a figura 25. Também não encontrei este instrumento musical em minhas pesquisas de campo.

Figura 25 - “Clarineta” com paleta na cabaça de ressonância. Meei ratágre de acordo com Curt Nimuendajú. Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 259.

(29)

Flauta Timbira (xiwiwire)

Classificação Hornbostel e Sachs: 421.121 (Single) side-blown flutes; 421.121.11 Without fingerholes.

Quanto às flautas21, Karl Izikowitz encontrou as seguintes flautas confeccionadas pelos Apinayé: flauta Timbira, flauta globular, flauta nasal, flauta globular com caixa de ressonância, apito Mataco e flauta de Pan. A flauta Timbira é um objeto de cultura material que pode ser encontrado entre todos os povos Timbira. É um objeto de sopro simples de ser confeccionado e geralmente está ligado a um cordão para o pescoço, podendo este cordão ter ou não enfeites. Não encontrei, entre os Apinayé, nenhuma flauta Timbira, apesar da simplicidade de design de tal objeto. Abaixo segue uma imagem da flauta Timbira:

Figura 26 – Flauta Timbira, aqui um modelo Apinayé (xiwiwire). Confeccionada com a ponta de uma cabaça e com somente um orifício para sopro. Note a forma de tocá-la com o dedo indicador. Imagem do livro de

Karl Izikowitz, 1935, p. 280.

21

Devemos notar que Izikowitz se utiliza de nomes de instrumentos musicais europeus para classificar os instrumentos indígenas analisados por ele. Por exemplo, o apito Mataco ele chama de flauta.

(30)

Sobre o xiwiwire, Paulo Laranja me explicou que “todos” fazem este instrumento (a flauta Timbira) para tocar (talvez por sua simplicidade de confecção), mas em minhas pesquisas de campo não encontrei nenhuma flauta Timbira confeccionada por um Apinayé. Coloco aqui a descrição de Paulo Laranja de como se faz tal flauta:

Tem a casca grande e tem o casca grossa. Agente tira um pedaço desse tamanho e com faquinha vai rapando, rapando, rapando assim... Ai, cumpridinho, faz uma vara desse tamanho assim e vai afinando assim com a ponta. Ai vai, pega uma faca, pra fazer a boca, pra fazer o buraco ali, né? De dentro, né? Depois que faz o buraco dentro, ai faz um buraquinho bem miudinho aqui pra poder soprar por ele. Ai mete o dedo assim: xiwiwire, xiwiwire, xiwiwire, xiwiwire. É o instrumento na festa de cultura. Isso ai todo mundo faz pra tocar, todo mundo faz ai. (PAULO LARANJA APINAGÉ, 2012).

Figura 27 – Gravura de um guerreiro Apinayé publicada nos relatos das expedições de François Castelnau, entre 1850 e 1859. Note as flautas Timbira (xiwiwire) penduradas no colar.

(31)

Podemos notar na figura 27 (uma imagem do século XIX), retratando um guerreiro Apinayé, como visto por François Castelnau, duas flautas xiwiwire penduradas em um colar. Pelas informações que obtive junto aos Apinayé, este instrumento é utilizado atualmente somente como instrumento nos festejos culturais, podendo servir, também para chamar as pessoas, como vi acontecendo entre os Krahô.

A figura 27 deixa ver que o xiwiwire poderia ter sido usado, no passado, com outras finalidades, talvez como instrumento de alerta nas caçadas, nos antigos acampamentos de jovens (pẽpjê mẽ), ou como sinalizador de localização, entre outras utilidades.

Flauta globular (mẽõhi)

Classificação Hornbostel e Sachs:

421 Edge instruments or flutes - A narrow stream of air is directed against an edge to

excite a column of air in a tube or a body of air in a cavity.

421.141 (Single) notch flutes;

421.141.22 Stopped single notch flutes with fingerholes.

A flauta globular (tipo ocarina) ainda é muito comum entre os Krahô, porém, também não a vi entre os Apinayé. Elas são um brilhante exemplo de utilização dos materiais naturais para a confecção de instrumentos musicais. A flauta globular Krahô (chamada simplesmente de cabacinha ou Cuhkõnre em língua Krahô) da figura 28 foi confeccionada pelo artesão Luís Pinto Krahô, da aldeia Pedra Branca, em Itacajá, com cabacinha, unhas de veado e miçangas de tiririca.

Tais flautas globulares podem ter, de acordo com o artesão Luís Pinto Krahô, quatro ou seis orifícios para os dedos, e estes orifícios são sempre feitos em forma circular, como vemos na imagem anterior. O artesão utiliza-se de uma imagem pirográfica para marcar o lugar dos furos.

Ainda, de acordo com Karl Izikowitz, “...é razoável supor que os mecanismo para variação de notas veio a existir por acaso através de diferentes métodos de esculpir a extremidade distal22” (IZIKOWITZ,1935, p. 280, tradução minha) das flautas, sinalizando 22

(32)

para alguma forma de notação não-escrita (algo que não verifiquei na pesquisa de campo).

Figura 28 - Flauta globular Krahô (tipo ocarina) com o furo para sopro e outros quatro para os dedos, 2012. Fotografia de Walace Rodrigues.

Figura 29 – Detalhe de flauta globular Apinayé (tipo ocarina), de 1937. Imagem de peça da Coleção Etnográfica Curt Nimuendajú do Museu Paraense Emílio Goeldi (DUARTE; SILVA, 2014, p. 53).

(33)

Essas flautas globulares são conhecidas, ainda, como ocarinas por suas características de confecção. Elas possuem, geralmente, uma forma oval e tem alguns furos para os dedos e um bocal em seu corpo para o sopro. As ocarinas Timbira são confeccionadas a partir de cabaças pequenas e bem arredondadas.

Também, os pesquisadores Pedro Paulo da Cunha Moura e Cláudio Zannoni (2010) nos dão uma definição de uma flauta globular Jê, porém a confecção pode sofrer variações, a exemplo da quantidade de furos:

As flautas globulares encontradas entre os Timbira não possuem aeroduto: são feitas de um tipo de cabaça pequena e com colo. As dimensões variam entre 3,5cm (a maior) e 1,7cm (a menor) de diâmetro e geralmente estão presas a um colar, integrando a franja de um chocalho aberto. Este, quando utilizado somente para sinalização, é chamado de colar-apito. Estão classificados aqui como colar-flauta globular por entender que o apito produz apenas um som, uma vez que possui um orifício de entrada e outro de saída do ar. Não é o caso da flauta globular, que tem um furo maior e quatro menores. (MOURA; ZANNONI, 2010, p. 32).

Na descrição de Marcelo Xooco Krahô (cf. ALBUQUERQUE, 2012) a flauta globular Krahô, também confeccionada pelos Apinayé no passado (cf. NIMUENDAJÚ, 1980, p. 23), é descrita da seguinte forma:

A Cabacinha é um instrumento muito bonito. Não é qualquer pessoa que sabe tocar a cabacinha. Só os homens sabem tocar. Ela é feita pelos homens. É tirada e colocada na lama, para amolecerem as sementes. Depois de muitos dias, eles tiram e colocam ao sol para secar. Quando seca é necessário fazer um furo maior para derramar as sementes e depois fazem mais quatro furos, enfeitam com penas, linha de tucum ou tiririca e pronto. (ALBUQUERQUE, 2012, p. 204).

As cabacinhas (ou flautas globulares, ou ocarinas) parecem ter servido como instrumentos sonoros e de sinalização, conforme nos mostrou a figura 27 de um guerreiro Apinayé, preparado para as intempéries da vida no cerrado e para as longas viagens de caça.

Ainda, Izikowitz nos diz que a flauta globular Timbira é confeccionada com uma pequena cabaça, que pode ter dois ou quatro furos para os dedos, que, tipicamente, os Timbira as levam ao pescoço como colares e que somente são encontradas entre os Jê e os Schiriana (RR) (cf. IZIKOWITZ, 1935, p. 286-287).

(34)

Figura 30 - Flautas globulares Canela e Apinayé (mẽõhi). Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 286.

Flauta nasal (sem nomeclatura em língua Apinayé) Classificação Hornbostel e Sachs:

421 Edge instruments or flutes - A narrow stream of air is directed against an edge to

excite a column of air in a tube or a body of air in a cavity.

421.121 (Single) side-blown flutes.

Um interessante instrumento musical Apinayé mencionado pelo pesquisador Karl Izikowitz foi uma flauta nasal Apinayé do Museu de Gotemburgo, da coleção de objetos coletados por Curt Nimuendajú. Utilizo-me da passagem de Karl Izikowitz sobre este instrumento musical:

In NIMUENDAJÚ's collection from the Apinayé in the Gothenburg Museum there is also a nose flute which is closely related to the instruments mentioned above. It is 19.5 cm long and consists of an entirely open tube. An excision at the septum marks the point where the nose should be held. It is very easy to blow the flute in this manner. It lacks stops altogether but the tone may be varied by opening and closing the open distal end. (IZIKOWITZ, 1935, p. 304).

(35)

Figura 31 - Flauta nasal Xerente. Fotografia de Curt Nimuendajú, de 1937. Fonte:

http://img.socioambiental.org/v/publico/Xerente

Uma imagem que poderia ilustrar bem essa flauta nasal Apinayé (que também não encontrei sendo confeccionada hoje em dia e tão pouco existe palavra em língua Apinayé atual para definí-la) pode ser a da figura 31, de um Xerente, em 1937, tirada por Curt Nimuendajú. Há que notar o movimento do dedo indicador para variar o tom e ter a flauta nasal desta imagem em relação ao tamanho menor da flauta Apinayé descrita por Izikowitz (esta última com somente 19,5 cm).

Ainda, Karl Izikowitz nos informa que a área onde está distribuída a flauta nasal é, sem dúvida, a parte leste da América do Sul, particularmente Guiana (hoje Guiana Francesa) e nas tribos Jê (cf. IZIKOWITZ, 1935, p. 328).

(36)

Mataco (apito, sem nomeclatura em língua Apinayé) Classificação Hornbostel e Sachs:

420 Edge-tone instruments that are not flutes.

Outro objeto Apinayé para fazer música descrito por Karl Izikowitz é o que ele chama de Mataco whistle, que é um tipo muito simples de flauta ou apito. Aqui utilizarei o nome de apito Mataco23. Geralmente o orifício do som é situado no meio da flauta, sendo possível soprar pelas duas extremidades. Também não encontrei este objeto em minhas pesquisas de campo entre os Apinayé. Utilizo algumas informações de Izikowitz sobre este tipo de flauta Apinayé:

As a rule the Mataco whistles are quite small. The length usually varies between 5 and 15 cm. Exceptions from this rule are found in a sort of large Mataco whistles from the Apinayé which are made from paxiuba palm. The whistles are generally ornamented, but the Kayapó and Bororó wind white cotton threads around theirs and decorated them with red feathers. (IZIKOWITZ, 1935, p. 334-335).

Figura 32 - Apito Mataco Apinayé. Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 334.

23

(37)

Figura 33 - Apito Mataco duplo Apinayé, de 1937. Imagem da Coleção Etnográfica Curt Nimuendajú do Museu Paraense Emílio Goeldi (DUARTE; SILVA, 2014, p. 55).

Flauta globular com caixa de ressonância (pàtwàre) Classificação Hornbostel e Sachs:

421 Edge instruments or flutes - A narrow stream of air is directed against an edge to

excite a column of air in a tube or a body of air in a cavity;

421.11 End-blown flutes - The player blows against the sharp rim at the upper open end

of a tube.

Uma outra forma de flauta Apinayé que menciona Karl Izikowitz é a flauta globular com caixa de ressonância (que somente encontrei em coleção particular). Ele nos dá como exemplo deste tipo as flautas dos Canela e dos Apinayé. Estes dois povos construíam estes instrumentos utilizando um tubo condutor de ar com produtos da natureza (bambus e sementes de frutas), conforme a passagem abaixo:

The Apinayé and Canella are the only tribes that have globular flutes with airducts which are not made of clay, metal or some other amorphous material. Their instruments consist of a reed which is tied or waxed to a small nut or a gourd. The reed is wound around with cotton thread and is cut obliquely in the end which is stuck into the fruit-shell. At the point where this incision begins there is a small deflector of wax. This resembles very much the Mataco (Idem, p. 357-358).

(38)

Figura 34 - Flauta globular com caixa de ressonância Apinayé (pàtwàre). Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 358.

Flauta de Pan (sem nomeclatura em língua Apinayé) Classificação Hornbostel e Sachs:

421.112 Sets of end-blown flutes or panpipes - Several end-blown flutes of different

pitch are combined to form a single instrument;

421.112.2 Stopped panpipes.

Outro tipo de flauta descrita por Karl Izikowitz e que, infelizmente, não encontrei na pesquisa de campo e nem em coleções particulares, foi a flauta de pan (ou flauta de pã) Apinayé. De cordo com a ligadura dos tubos de bambu, Izikowitz relata que este tipo de flauta ocorre, entre os indígenas brasileiros, no norte do rio Amazonas, entre os povos do rio Negro, entre os Palikur (AP) e Apinayé (1935, p. 388). Coloco, aqui, uma passagem deste autor sobre a flauta de pan Apinayé:

In the territories watered by the upper Amazon and the Rio Negro, the construction of the pan-pipes is much better. They are well cut in the distal end, have often string wound round the proximal end, the ligature is carefully made with a stick, and they are

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almost always blown in pairs. The territory in which such pan-pipes are found stretches down to the Chipaya in Bolivia from Quito, over northeastern Peru, the Rio Negro, and to the Palikur and Apinayé. (Idem, p. 401).

Pião de coco (gôhkon kaxkep) Classificação Hornbostel e Sachs:

4 Aerophones - The air itself is the vibrator in the primary sense. In this group also belong

reed instruments sounded by a flow of air in which the reed is the primary vibrator;

412.22 Whirling aerophones - The interruptive agent turns on its axis.

Um outro objeto de cultura musical Apinayé que encontrei na pesquisa bibliográfica é um tipo de brinquedo: um pião de coco com orifícios por onde passa o ar. Através de um cordão se consegue a rotação do coco que, assim, emite sons. Tão pouco encontrei tal objeto nas pesquisas de campo. Coloco, abaixo, a imagem deste objeto:

Figura 35 - Pião Apinayé (gôhkon kaxkep) e pião Palikur. Imagem do livro de Karl Izikowitz, 1935, p. 267.

Conversando com Josué Apinajé, da aldeia Cocal Grande, ele me informou que, quando criança, ele chegou a fazer muitos peões de coco para brincar e que ainda se confeccionam estes brinquedos, no entanto não vi nenhum destes peões em minhas visitas aos Apinayé.

Referências

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