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Cadernos de Divulgação Científica

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Academic year: 2022

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VOLUME 2 2018

ÆGYPTOLOGUS

Cadernos de Divulgação Científica

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ÆGYPTOLOGUS

Cadernos de Divulgação Científica

VOLUME II

2018

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ÆGYPTOLOGUS – Cadernos de Divulgação Científica

Diretor, Editor:

Ronaldo G. Gurgel Pereira, Post-doc.

CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa

Onassis Fellow, University of the Aegean, Department of Mediterranean Studies Coordenadora, Editora Assistente:

Catarina Bernardes Neves Miranda

CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa

Volume 2 – Lisboa – Junho de 2018 Venda Proibida

ISSN: 2184-0474 Para citar a obra:

Gurgel Pereira, R. G., Miranda, Catarina B. N., (orgs.), Aegyptologus – Cadernos de Divulgação Científica – vol. 2, Lisboa, 2018.

Link: http://www.aegyptologus.com/cadernos/biblioteca/

Capa:

Udjat – Fragmento de relevo lítico em mármore (Nr. de Inventário: E 38).

Museu Nacional de Arqueologia – Lisboa.

© CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS:

Direção-Geral do Património Cultural / Arquivo de Documentação Fotográfica (DGPC/ADF). Fotógrafo: José Pessoa (1993).

www.

aegyptologus

.com

CONTACTO@AEGYPTOLOGUS.COM

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ÍNDICE

ANÚNCIO EDITORIAL DO SEGUNDO VOLUME ... 3

ESTUDOS ... 5

ETNICIDADE E MULTICULTURALISMO:UM ESTUDO DE CASO DAS ESTELAS FUNERÁRIAS DE ABIDOS DURANTE O EGITO ROMANO (30AEC-395 EC) ... 6

CARTOGRAFIAS DO ALÉM:O MUNDO DOS VIVOS E O UNIVERSO DOS MORTOS NO ANTIGO EGITO ... 13

AGÉNESE DO TEMPO E DA MEMÓRIA DO ANTIGO EGIPTO:CONTRIBUTOS DO PAPIRO WESTCAR E DA LISTA REAL DE SETI I EM ABIDOS ... 19

“CONFRATERNIZAI COM SUA MAJESTADE NO VOSSO CORAÇÃO!” ... 26

OUSO MEDICINAL DO PÓ DE MÚMIA NA FRANÇA DE LUÍS XIV ... 33

APROTECÇÃO MÁGICA DA «PRIMEIRA INFÂNCIA» NO EGIPTO ANTIGO ... 39

AFORGOTTEN COLLECTION:RE-INTRODUCING THE EGYPTIAN ARTIFACTS IN BRAZILS NATIONAL MUSEUM TO EGYPTOLOGY ... 43

ENTREVISTA ... 48

MARIAHELENATRINDADELOPES ... 49

RESENHA ... 57

JESSICA ALEXANDRA MONTEIROSANTOS:“UMA EGIPTÓLOGA PORTUGUESA” ... 58

APÊNDICE ... 60

GUIDELINES ... 61

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Anúncio Editorial do Segundo Volume

ÆGYPTOLOGUS: Cadernos de Divulgação Científica lança o seu segundo volume. Esta publicação é dedicada a todos os estudantes de língua portuguesa que nutrem interesse pelo Egito antigo e que procuram manter-se a par dos trabalhos mais recentes na disciplina. Oferecemos um espaço para a apresentação de investigações de graduação e pós-graduação realizadas, nomeadamente, por estudantes de instituições brasileiras e portuguesas, facultando também ao leitor a possibilidade de contactar os investigadores e respectivos orientadores para colaborações, discussões ou consultas.

Falar de Egiptologia em Portugal ou no Brasil é falar de vitórias e desafios. A Egiptologia produzida em língua portuguesa ainda é precária em muitos aspetos. Primeiramente, porque (ainda) não há profissionais devidamente capacitados em número satisfatório.

Também ocorrem dificuldades no acesso a bibliografia primária e secundária – ora por incapacidade linguística do estudante ora por limitações estruturais das bibliotecas. Isso para não mencionar a falta de apoios e de financiamentos para o estudo da Antiguidade nas universidades. Mas é inegável que a partir do século XXI a Egiptologia portuguesa e brasileira iniciaram uma nova etapa no seu desenvolvimento. Criaram-se diversas parcerias institucionais, recebendo, assim, muitos estudantes a coorientação de especialistas estrangeiros. Outros conseguem desenvolver parcialmente ou integralmente os seus estudos e projectos em instituições na Europa ou nos Estados Unidos. E cresce o número dos que têm tido a oportunidade de participar em missões arqueológicas no Egito.

Em meio a esse ambiente auspicioso, é sempre bom relembrar os desafios adiante, e não apenas os de ordem conjuntural. Ao contrário do que é costume, queríamos deixar neste comentário ao status quo da disciplina duas notas relativas aos desafios colocados à pessoa do egiptólogo, não pelas circunstâncias do seu meio, mas por ele mesmo. Falamos nomeadamente da importância da qualidade humana na qualidade da obra. A Egiptologia, assim como ocorre com todas as áreas, de Humanidades ou outras, é uma disciplina que exige do egiptólogo um compromisso de constante aprendizagem - um processo que requer paciência, perseverança e humildade. A estas qualidades, acrescenta-se a necessidade profissional da interdisciplinaridade, por daí poderem sempre advir abordagens frutíferas ao desenvolvimento do nosso conhecimento de um dado tema.

Posto isso, é de notar que, apesar de tudo, há sempre muito ao alcance de cada um que pretende enveredar por esta área, vivendo em Portugal ou no Brasil. Mais a mais, a Academia encontra-se muito recetiva à historiografia dos países com menor tradição na

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área, pois sem o peso das grandes escolas historiográficas e dos grandes nomes, há uma forte possibilidade para a introdução de perspetivas inovadoras e de diferentes metodologias, sempre bem-vindas ao debate científico.

Dito isso, fazemos convite à leitura do novo volume dessa série, com votos de que promova um melhor entendimento de como se desenvolve a Egiptologia produzida em língua portuguesa.

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira., Editor.

Rodes, 29 de Maio de 2018.

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Estudos

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Etnicidade e Multiculturalismo: Um estudo de caso das Estelas Funerárias de Abidos durante o Egito Romano (30 AEC - 395 EC)

Beatriz Moreira da Costa (B.A. em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro) beatrizmoreira190@hotmail.com

Pesquisa de Mestrado em História Social pela Universidade Federal Fluminense Bolsista de Mestrado CNPq (Início: 04/2018)

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, Instituto de História, Universidade Federal Fluminense.

Resumo: Nossa pesquisa tem como objeto de análise os processos de identificação e negociação social presentes na sociedade egípcia durante o período de dominação romana tomando como ponto de partida as estelas funerárias de Abidos.

Palavras-chave: Egito Romano; Abidos; Estelas Funerárias.

Introdução

O que chamamos como ‘Egito Romano’ é uma abstração espaço- temporal que enquadra a história do território egípcio antigo de 30 AEC até 395 EC. Sabe-se, através dos documentos do período que diversas culturas residiram e/ou entraram em contato com a população egípcia, que neste ponto da história já era internamente diversa dada à conquista persa e ptolomaica dos períodos anteriores. Ainda assim, a imagem que se propaga no senso comum sobre o Egito Antigo é a de um território inabalável, livre de contatos, tradicionalista e com fronteiras naturais que garantiram, ao

longo do tempo, uma estabilidade político-religiosa. Já a Roma Antiga, sociedade a qual nesta equação é o poder que ocupa o Egito, aparece como o grande Império expansionista que submeteu tudo e todos ao seu domínio.

Diante dessa situação, como equacionar e analisar o intenso contato entre o Egito e Roma a partir de Augusto (30 AEC – 395 EC)? E, mais especificamente, como entender as rupturas e permanências da produção material funerária produzida a partir deste contato em um local de culto tradicionalmente egípcio como Abidos, na Tebaida?

A primeira tarefa é identificar as lacunas dos grandes modelos

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7 interpretativos. Um dos equívocos mais

recorrentes, como evidenciado no parágrafo anterior, é o entendimento de que as duas sociedades correspondem a dois blocos monolíticos cultural e socialmente uniformes e que mediante o contato tais blocos continuam vedados, sem modificações expressivas. Ou ao menos sem modificações expressivas na sociedade mais “dominante” – Roma –, enquanto os egípcios – “inferiores” - foram subjugados e “romanizados”1. Esses postulados geraram inúmeros estudos que se prestaram a analisar elementos “puramente” egípcios e elementos “puramente” romanos (ou gregos), ignorando a faceta do contato como reformulador de identidades.

A segunda, porém igualmente importante, é a elaboração de um quadro teórico-conceitual que proporcione as chaves de interpretação necessárias para analisar tamanha complexidade. Para isso, recorreremos a estudos mais recentes na área das Ciências Humanas e Sociais, como subsídio para análise dos fenômenos decorrentes de tais contatos.

Portanto, matizaremos o importante quadro teórico desenvolvido por Pierre Bourdieu que nos viabilizará a análise da interação entre os agentes sociais e a sociedade, levando a cabo conceitos como habitus, campo, estratégia e

1 Perspectiva ligada aos estudos de apropriação cultural e aculturação, tendo em vista a

negociação. Buscaremos contribuições ainda de teóricos da etnicidade, para entender a aplicabilidade e os limites do conceito em nosso estudo. Assim como elencaremos quais as especificidades das práticas funerárias abidianas durante o Egito Romano e como podemos entendê- las a partir destas noções operatórias.

Proporemos, ainda, uma análise da cultura material e das imagens contidas nesta materialidade a partir da aproximação entre Arte e Agência, defendida por Alfred Gell (1998).

Etnicidade e a proficuidade do Estruturalismo Genético

Pensar o Egito Romano através de pressupostos teóricos como identidade étnica e etnicidade é um dos caminhos que os historiadores e arqueólogos têm percorrido. No entanto, a definição de ambos os conceitos é proposta diferentemente conforme a corrente escolhida. Por isso, entendemos ser de imensa importância traçar brevemente as contribuições teóricas dos autores mais proeminentes e como a nossa opção teórico-metodológica se situa diante dessa diversidade. No entanto, tal tarefa não poderá ser cumprida neste texto, devido à proposta do editorial da revista. Assim, seremos

supremacia de elementos provenientes da Roma Antiga.

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mais diretos no que tange a nossa opção teórica, de viés bourdiesiano.

Os caminhos propostos por Pierre Bourdieu em seu livro O Poder Simbólico (1992) são de imensa importância para a nossa questão. Seu delineamento sobre etnicidade dialoga intensamente com a sua formulação teórica acerca da relação entre os agentes sociais e a sociedade. O sociólogo reconhece a interdependência das estruturas e dos agentes para a construção de uma visão do mundo social a partir do estruturalismo genético.

Ao matizar agência e estrutura, Bourdieu teoriza noções operatórias que buscam demonstrar como os agentes sociais e as estruturas interagem e se interpenetram. Assim, a questão da etnicidade não poderia ser analisada pelo autor de forma diferente. Para Bourdieu (1992: 113), os agentes participam de uma luta de classificações que condiciona a luta pela identidade étnica.

E a luta de classificações é uma luta pelo poder de impor os princípios de divisão do mundo social, criando e desfazendo grupos.

Os princípios de divisão do mundo social estão ligados, assim, com a imposição de percepções do grupo sobre outro grupo e sobre si mesmos. O auctor, através do discurso performativo, que possui autoridade (auctoritas), produz a existência de elementos de categorização

que antes estavam no plano do vir-a-ser.

Assim, o auctor enuncia o ser e modifica o ser ao enunciá-lo, pois consagra, santifica, sanciona os critérios. A potencialidade de trazer a existência o que foi enunciado faz parte do que Bourdieu chama de magia social, ou seja, o poder “quase” mágico que as palavras possuem de transformar a realidade a partir da objetivação das percepções de mundo, desde que sejam proferidas pelo auctor (BOURDIEU, 1992: 117).

A luta de classificações levada a cabo por tais grupos é uma luta propriamente simbólica, que possui relações de forças simbólicas, a partir de uma dominação simbólica e uma possível subversão que também se dará primordialmente de forma simbólica (ainda que uma luta simbólica possa ter efeito no econômico, por exemplo, por isso também ter efeito no real). Nesta relação de forças simbólicas, existem, segundo o autor, duas formas de ação dos grupos ou indivíduos mais desfavorecidos/ dominados. Existe a luta isolada, isto é, quando o indivíduo é levado a aceitar a categorização dominante da sua identidade, pois na esfera das interações cotidianas, não possui os meios necessários para a subversão. Mesmo que tal aceitação seja submissa ou revoltada, há a busca pela assimilação de sua identidade com a

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dominante, visando eliminar o estigma.

A assimilação é demonstrada através da amenização do seu estilo de vida, do seu vestuário, da pronúncia, ou até mesmo a assimilação e aproximação da perspectiva dominante e legítima destas categorias. Por outro lado, existe a luta coletiva, que consiste na inversão das relações de forças simbólicas que não visa eliminar o estigma e sim propor novas visões de mundo que produzirão novos estigmas (BOURDIEU, 1992:

124). A posse da identidade legítima é o que está em jogo, mais especificamente as vantagens simbólicas que estão ligadas a posse desta identidade.

O Egito Romano é, em nossa perspectiva, uma sociedade multicultural. Ou seja, uma sociedade que conta em seu interior com uma população diversa em termos de origem, religiosidade, costumes, tradições, etnicidade, crenças. Essas diferenças coexistem em um mesmo território, mas não de forma totalmente pacífica nem conflituosa. E isso se dá dessa forma, pois tais grupos se influenciam simultaneamente e de maneira dinâmica.

Há, assim, o compartilhamento das diferenças e possíveis similitudes, sem que se perca, necessariamente, o que os torna únicos.

Por isso, concordamos com o pressuposto de que o Egito durante o domínio romano foi o palco do contato

entre diversos grupos de pessoas em todo o seu território e esse contato proporcionou o compartilhamento de ideias, circulação de capital simbólico e cultural, troca de hábitos e costumes, contrapondo assim a ideia de que não existiam blocos culturais homogêneos interpenetráveis. No entanto, essa premissa não dissolve por completo a identidade de grupo como unidade.

Sabe-se que a documentação oficial, como as tributações, tratava a população recortando-a em grupos étnicos com o objetivo de diferenciar a taxação a partir deste critério. Mas a documentação de cultura material, mais ligada às práticas cotidianas, muitas das vezes não condiz com o discurso oficial, trazendo-nos uma polifonia que excede a categorização proposta pela voz

“dominante”. Não podemos resumir tais categorias à marginalidade. Ou seja, por mais que não possamos falar de egípcios, gregos, romanos, etc., como grupos étnicos monolíticos, isso não quer dizer que não existissem tais categorias de agrupamento no seio dessa sociedade.

Entendemos, seguindo a linha de pensamento de Bourdieu, que a etnicidade é uma maneira de mobilizar a cultura de forma política. Para nós, um dos propósitos desse uso político da cultura é o da negociação social, ou seja, o caminho traçado por agentes sociais que buscam uma mediação para o

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conflito cultural/ social que não seja, no entanto, nem estritamente submisso e tampouco estritamente revoltado. Neste sentido, a ideia de estratégia também é crucial, pois nos permite entender a linha de ação de indivíduos e grupos dentro do jogo social. Para Bourdieu, estratégia não se resume à intencionalidade, decisões previamente calculadas e voluntarismo irrestrito dos agentes, mas sim a linhas de ação orientadas e estruturadas que formam configurações condizentes e socialmente inteligíveis (BOURDIEU; WACQUANT, 1995:65).

Arte e Agência: as Estelas Funerárias de Abidos

Em nossa pesquisa, escolhemos analisar cerca de 40 estelas funerárias romanas provenientes de Abidos, sítio arqueológico da região da Tebaida (Alto Egito). Para isso, utilizaremos o Catálogo das Estelas Greco-Romanas do Alto Egito publicado em 1992 por Aly Abdalla. Abidos (nome grego da antiga Abedju) foi um dos principais centros de culto do deus Osíris desde princípios do Reino Antigo (c. 2682 AEC).

Para além do auxílio do quadro teórico-conceitual esboçado anteriormente, a complexidade de lidar analiticamente com essa documentação exige ainda uma metodologia que nos ajude a traçar o caminho mais adequado visando alcançar as respostas para

nossos problemas. Isto é, necessitamos de um escopo metodológico que dê conta da análise das estelas de acordo com a sua múltipla condição: cultura material e imagem. Para isso, escolhemos recorrer ao método proposto pelo antropólogo Alfred Gell (1998) em seu livro “Art and Agency: An Anthropological Theory”. Não é o propósito deste artigo tratar mais especificamente tal metodologia, tarefa a ser realizada em publicações futuras.

Resumidamente, agência é o potencial de ação do indivíduo que gera mudança no mundo social. Por isso falamos, por exemplo, que grupos e indivíduos são agentes sociais. Os agentes sociais não possuem agência pura e simplesmente, eles exercem-na.

Lado a lado da agência, está a estrutura, em uma relação dialética. Se pensarmos em termos bourdiesianos, a relação social se dá na articulação entre ação e estrutura, mas tendo esta segunda uma determinação mais enfática na definição da primeira.

A cultura material é um resultado do exercício da agência por sujeitos e grupos. Ulpiano Bezerra de Meneses (1983: 112) definiu-a como o “segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem”, sobressaindo, assim, a ação humana como operante da materialidade. Para Marcelo Rede (2012:

147), a cultura material é “produto e

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vetor das relações sociais”, ou seja, é produto porque é tributária da ação humana que transforma e cria, através das relações sociais, a partir do meio físico. E também é vetor já que se concebe como suporte – estrutura – pelo qual tais relações se efetivam.

Dessa forma, ao analisarmos as estelas funerárias erigidas em Abidos, temos acesso à cultura material que se distingue por ter sido criada por uma sociedade multicultural. A iconografia das estelas possui elementos ditos tradicionalmente egípcios, gregos e romanos. O morto pode ser representado diante de uma mesa de oferendas, acompanhados por deuses egípcios ligados ao ambiente funerário, como Osíris, Anúbis, Upuaut. Ou então pode estar de pé, sendo frequentemente levado por Anúbis para Osíris, que se encontra sentado em um trono, ao lado de Ísis. As inscrições epigráficas estão em grego e demótico. É comum que a inscrição providencie informações, tais como o nome do morto – ou dos mortos, quando há mais de uma pessoa representada na estela –, sua origem familiar e, raramente, aparecem menções acerca de quem estava governando no período.

Considerações Parciais

Então, como podemos pensar a tradição e a inovação artística em nosso objeto de estudo? Consideramos que

após a finalização da análise de toda a documentação a partir desse aporte teórico-metodológico, poderemos demonstrar que os agentes envolvidos na confecção, materialização e consumo dessas estelas funerárias mobilizaram os elementos étnicos em voga no Egito Romano como uma forma de posicionamento político-cultural. Isto é, uma vez que tendo em mente – conscientemente ou não - as regras do jogo social, os agentes atuaram de forma a negociar as tensões internas do campo:

um indivíduo que é habitante de uma sociedade multicultural como o Egito Romano, escolheu ser enterrado em um local de culto religioso tradicionalmente egípcio, respeitou os decoros ritualísticos (o que pode ser evidenciado pela manutenção da ideia principal da estela), mas incorporou elementos novos condizentes com a sua agência. Agiu, assim, limitado pela estrutura, mas exerceu um potencial de inferência nas relações sociais. Como diria Bourdieu (1995: 68): “As estratégias dos agentes dependem de sua posição no campo, quer dizer, na distribuição do capital específico, assim como a percepção que tem do campo, isto é, de seu ponto de vista sobre o campo [...]”.

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Referências bibliográficas

ABDALLA, Aly. Graeco-Roman Funerary Stelae from Upper Egypt.

Liverpool: University of Liverpool Press, 1992.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.

Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1992.

__________; WACQUANT, Loïc.

Respuestas: por una antropología reflexiva. México: Editorial Grijalbo, 1995.

GELL, Alfred. “Art and Agency: An Anthropological Theory”. Oxford:

Clarendom, 1998

MENESES, Ulpiano Bezerra de. “A cultura material no estudo das sociedades antigas”. In Revista de História, nº 115, 1983. 103- 117.

REDE, Marcelo. “História e Cultura Material”. In: CARDOSO, Ciro;

VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

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Cartografias do Além: O mundo dos vivos e o universo dos mortos no Antigo Egito

Keidy Narelly Costa Matias (MA. em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

keidylmatias@gmail.com

Pesquisa/ investigação de Mestrado em História e Espaços pela UFRN Bolsista de Mestrado/ CAPES

Orientador: Profa. Dra. Marcia Severina Vasques, Departamento de História, UFRN.

Resumo: Estudo acerca da visão egípcia de além, a partir da classificação e da análise do Livro dos Mortos de Ani (XIX Dinastia), e delimitação de uma cartografia do mundo dos mortos a partir da visão de mundo dos vivos.

Palavras-chave: cartografias do além, movimento, oferenda/alimento.

Apresentação da pesquisa

Este relato de pesquisa versa sobre a dissertação de mestrado desenvolvida junto ao Programa de Pós- Graduação em História e Espaços, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH/UFRN), entre os anos de 2014 e 2016, intitulada “Cartografias do Além: o mundo dos vivos e o universo dos mortos no Antigo Egito”, sob orientação da Profa. Dra. Marcia Severina Vasques.

O mundo egípcio dos mortos era pensado como uma recriação do mundo dos vivos, ou seja, tudo o que um homem fazia em vida se constituía em

uma ação em potencial a ser realizada no Além. Essa ideia, demasiado estranha para os padrões das religiões ocidentais, abarcava ainda outro aspecto: a morte física não indicava o esgotamento do homem — esse fato trágico somente ocorria aquando da existência de uma segunda morte, essa sim, temível, que decretava a não-existência do indivíduo no cosmos.

O enfrentamento da morte é também o ato de encarar o desconhecido

— e isso é inerente à condição humana

—; os egípcios, ao contrário do que pensam muitos escritores, não eram obcecados pela morte, aliás, tanto gostavam da vida que o mundo dos

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mortos era uma extensão da existência terrena. A Duat, habitação dos mortos ditos justificados (ou justos de voz) era governado por um deus morto, Osíris;

constituía-se no espaço de recebimento dos mortos. Vários campos, lagos, portões e guardiões faziam parte desse mundo — era direito e dever, de cada egípcio, preparar-se para enfrentar esse novo mundo, ou seja, quando um egípcio se preocupava com os rituais e cerimoniais de seu enterramento, ele estava preocupado com a vida; não com a morte.

A Duat era uma recriação da terra do Egito (Kemet) e o homem justo de voz adquiria o direito de usufruir desse espaço, tal como quando vivo:

alimentando-se e se movimentando.

Osíris, o inerte, apesar de ligado à ideia de morte enquanto acontecimento e conceito, deveria dar lugar à luz de Rê, ou seja, à ação. Todo o morto era chamado de Osíris, mas essa associação não eliminava o desejo do homem de comer, de andar, de ver a luz, enfim, de fazer tudo o que fazia em vida. A Duat se constitui, portanto, como um espelho do mundo dos vivos.

A religião, no Egito Antigo, não pode ser dividida da vida prática/

cotidiana. Tudo está inerentemente encadeado e faz parte do mesmo cosmos, inclusive os mundos dos vivos e o dos mortos. Diante do exposto, resolvemos

utilizar como fonte o Livro dos Mortos de Ani, escriba real que viveu durante o Novo Império (1550-1070 a.C.), no governo de Ramessés II (1298-1235 a.C.), a fim de identificarmos aspectos referentes à natureza do mundo dos vivos e do universo dos mortos, investigando como o segundo aparece como cartografia do primeiro.

Hipótese e objetivos

O Livro Egípcio dos Mortos se constitui em uma prova que demarca a preocupação do homem com o porvir;

estabelecia-se como elemento integrador do homem no cosmos. O Livro era uma espécie de manual que prevenia o morto acerca dos perigos do post-mortem e suas fórmulas serviam para garantir as benesses da outra vida. O mundo dos mortos egípcio oferecia, portanto, a continuação da vida terrena aos que passavam pelos rituais funerários — expressão maior do desejo de continuar existindo no Além. Considerando que magia e religião são conceitos inseparáveis no Egito Antigo e que a preocupação com a morte é inerente ao homem, pensamos que, no caso do Egito Antigo, o mundo dos mortos era concebido como um espelho do mundo dos vivos.

Com vistas à comprovação dessa hipótese, delimitamos quatro

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objetivos, um geral e três específicos, a saber, a) analisar como o espaço dos mortos era concebido pelos egípcios antigos, b) relacionar os motivos recorrentes com aspectos da vida cotidiana e religiosa, c) identificar os principais motivos recorrentes presentes no Livro dos Mortos que ligam o “mundo terreno” ao “universo concebido”, e d) estabelecer correlações entre a terra do Egito e o universo dos mortos enquanto espaço concebido.

Os motivos recorrentes: o movimento e a oferenda/

alimento

Em leituras prévias do Livro dos Mortos de Ani, que conta com 65 capítulos, divididos em 37 lâminas, observamos que os dois motivos mais recorrentes são o movimento, que associamos ao deus Rê, e a oferenda/

alimento, que associamos ao duplo de Rê, Osíris. Como “motivo recorrente”, entendemos a preocupação central ou secundária de cada capítulo do Livro e, assim, verificamos que, em todas as fórmulas do Livro, o morto se preocupa com a alimentação e com o ato de se movimentar no universo dos mortos.

Metodologicamente, utilizamos a proposta de Paul Barguet (1967: 15- 16), em sua obra intitulada Le Livre des Morts des Anciens Égyptiens, que divide

esta fonte em quatro etapas, considerando a jornada do morto no além, a saber:

1. Capítulos 1 a 16: ‹‹Sair à luz do dia›› (prece); caminhada em direção à necrópole, hinos ao sol e a Osíris.

2. Capítulos 17 a 63: ‹‹Sair à luz do dia›› (regeneração); triunfo e realização; impotência dos inimigos;

poder sobre os elementos.

3. Capítulos 64 a 129: ‹‹Sair à luz do dia›› (transfiguração); poder de se manifestar sob diversas formas, de utilizar a barca do sol, de conhecer certos mistérios. Retorno à tumba;

julgamento diante do tribunal de Osíris.

4. Capítulos 130 a 162: textos de glorificação do morto, a serem lidos no curso do ano, em certos dias de festa, para o culto funerário; serviço de oferendas. Preservação da múmia pelos amuletos [funerários].

Assim, classificamos em tabelas os motivos recorrentes da oferenda/ alimento e do movimento, identificando como os 65 capítulos do Papiro de Ani são abarcados na delimitação de Barguet. Identificamos quais capítulos aparecem em cada uma das 37 lâminas do Papiro de Ani e, em seguida, trabalhamos cada capítulo separadamente, expondo os porquês de o considerarmos pertencente ao motivo

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recorrente da oferenda/ alimento e/ ou do movimento. Por fim, após esta classificação detalhada, escolhemos alguns capítulos do Livro dos Mortos de Ani e os analisamos de maneira aprofundada, com vista a atingirmos o objetivo da pesquisa e a verificação da hipótese.

Percebemos que as menções aos motivos recorrentes da oferenda/

alimento e do movimento aparecem em todos os capítulos do Livro, algo que indica que, no universo dos mortos, o morto almejava continuar sua vida da mesma maneira que no mundo terreno, alimentando-se e movimentando-se. Em outras palavras, o universo dos mortos era uma cartografia do mundo dos vivos no Antigo Egito, e os mencionados motivos recorrentes se alinham às divindades Osíris e Rê, assim como a espaços do mundo dos vivos, formando os seguintes esquemas: a) Osíris, a alimentação, o Ka e o tempo linear e b) Rê, o movimento, o Ba e o tempo cíclico.

As ideias desenvolvidas na dissertação culminaram em duas cartografias, que seguem.

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Representação de Keidy Matias (2016: 121).

Cartografia do além egípcio, com a localização dos Campos de Juncos e de Oferendas (MATIAS, 2016:

172).

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As duas cartografias acima demonstram o universo dos mortos como uma continuação do mundo dos vivos; o Campo de Juncos como uma associação a Rê e ao movimento, ao passo que o Campo de Oferendas se associa ao deus Osíris e ao princípio do alimento/

oferenda. Mesmo o Nilo, sem o qual a sociedade egípcia não teria se desenvolvido da mesma maneira, possuía no Nun o seu duplo no universo dos mortos. Assim, concluímos que os motivos recorrentes do movimento e do alimento/ oferenda funcionam como elos entre os dois mundos, e o universo dos mortos era um espelho ordenado do mundo dos vivos.

Referências bibliográficas

BARGUET, Paul. Le livre des morts des anciens Egyptiens (Littératures anciennes du Proche-Orient). Paris: Les Editions du Cerf, 1967.

MATIAS, Kidy Narelly Costa.

Cartografiasdo além: o mundo dos vivos e o universo os mortos no antigo Egito.

199f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

Disponível em: <

https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/1 23456789/22440 >. Acesso em 01/02/2018.

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A Génese do Tempo e da Memória do Antigo Egipto: Contributos do Papiro Westcar e da Lista Real de Seti I em Abidos

André Patrício (PhD. Fellow em História Antiga, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa) andrehagpatricio@gmail.com

Investigação de Doutoramento em História Antiga pela Universidade Nova de Lisboa Orientadores: Professora Doutora Maria Helena Trindade Lopes, Departamento de História da Universidade NOVA de Lisboa; Doutor Ronaldo G. Gurgel Pereira, CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa.

Resumo: Pretende-se estudar noções de “Tempo Mítico” e “Tempo Real”, “Tempo Linear” e “Tempo Cíclico”. Ao mesmo Tempo, será possível estudar conceitos como

“Manipulação de Memória”, “Memória Colectiva” e “Memória Individual” aplicados à civilização do Antigo Egipto.

Palavras-chave: Arqueologia, Tempo, Memória

Introdução

Muito do que hoje é entendido sobre a mentalidade dos antigos habitantes do Vale do Nilo é o resultado de um complexo trabalho baseado essencialmente em inferências feitas de elementos iconográficos, literários ou meramente textuais. Estas fontes retratam o carácter existencial do antigo Egípcio, de uma forma lata, e porque não dizer as suas filosofias de vida. Tornam- se elementos que proporcionam uma visão do que era ser Egípcio e viver num estado governado por um deus que retornava ao Egipto em sucessivas encarnações, que tendiam para o infinito.

Olhando para além do religioso e do mágico, encontra-se o aspecto humano dos habitantes desta extraordinária Civilização. Revelam-se as mentes que usavam de estratagemas complexos para manter uma história com pretensões eternas, não se inibindo de para isso ir alterando a percepção do presente para manter faraós sem descendência real, ou sem direito divino, no Trono de Hórus. Começa-se cedo na investigação a notar uma intervenção na mentalidade colectiva. Se a intenção era recriar a história, esquemas mentais forneciam a chave para criar as ferramentas de manipulação. Vemos este

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exercício amiúde. Quando se pensa num exemplo, ocorre de imediato o esforço de Hatshepsut para garantir a sua legitimidade.

Torna-se então claro que um trabalho focado nos elementos primordiais que formam a mentalidade egípcia seria um interessante objecto de estudo. As linhas de exploração poderiam ser variadas, mas, relativamente ao período histórico do Império Novo, detecta-se uma ausência de estudo de elementos relacionados com características humanas elementares, como a capacidade de recordar. Esta simples ideia gera de imediato perguntas em ritmo acelerado.

Como poderiam estratégias propagandísticas funcionar e alterar a percepção da realidade? Como é possível alterar sequer a percepção da realidade de toda uma Civilização? Como conseguia tal feito tomar lugar de forma suficientemente rápida para ser eficaz?

Aqui entra um dos mais curiosos elementos que os antigos Egípcios tão bem pareciam controlar, a Memória nas suas mais diversas manifestações:

individual, colectiva, cultural. Posta a Memória como tema central, sabe-se que dela é indissociável o Tempo. É necessário entender a forma como no Antigo Egipto era vivida esta dimensão.

Conhecem-se os dois Tempos Egípcios, o cíclico e o linear, tão frequentemente

alterados, descontinuados e rescritos.

Será assim que se compreende que o estudo a efectuar terá de incluir também esta dimensão física. Entende-se que a extraordinária capacidade de ver o Universo de uma forma tão singular e de se deixar influenciar pelo mesmo, sem dar lugar ao aparecimento de incoerências vivenciais, é extremamente egípcia.

Em busca de elementos que ajudem na compreensão do Tempo e da Memória do Antigo Egipto, de como estes constructos tomavam forma na mentalidade do povo nilótico, encontram-se exactamente aquelas refinadas ferramentas que alteravam a realidade, o passado, o presente e até o futuro: a literatura e as inscrições em estruturas monumentais.

Esta Tese foca-se, para melhor compreender tão importantes aspectos da mentalidade egípcia, em dois exemplos preciosíssimos, um literário – o Papiro Westcar -, e um escolhido especialmente por caracterizar o Tempo Absoluto egípcio na perfeição – a Lista Real de Seti I. Tomando a posição central na questão do Tempo Cíclico - compreenda-se este conceito como um paralelo feito com o Tempo não Absoluto - o Papiro Westcar será analisado numa tentativa de chegar aos contextos camuflados pelo cariz

(23)

21 impressionante dos seus contos

fantásticos.

A Memória, o Tempo, o Papiro Westcar a Lista Real de Seti I serão, portanto, o corpus de estudo que aqui se apresentará numa incursão pela temática da mentalidade e costumes do Antigo Egipto, um tema que beneficiará enormemente de uma abordagem integrativa, onde diversas outras ciências ajudarão a desvendar novas informações que se ambiciona permitam um maior enriquecimento do estado actual do conhecimento.

Apresentação da Relação dos Pontos Centrais da Tese

Um dos primeiros aspectos de partida desta Tese passa pela análise exaustiva do Papiro Westcar e de uma questão tão simples quanto: “e se o que este papiro descreve, acima de tudo como o descreve, teria outra intenção?”.

O seu conteúdo é extremamente rico e pode dar lugar a diversas interpretações de qual o significado dos seus contos fantásticos - o mesmo já é defendido pelas análises de Derchain1, Bertrand2, entre tantos outros. De igual modo, este papiro permite também o entendimento do fenómeno de Tempo Cíclico, algo também visto no mundo egípcio nos seus

1 DERCHAIN, (1986: 15-21).

2 BERTRAND, (2015).

calendários lunares, solares, anuais, muito como o que sucede na nossa própria existência. Portanto esta obra literária já fornece mais do que seria inicialmente esperado de um conjunto de contos de entretenimento.

Entretanto, há uma consciência de que, passando todas as análises de conteúdo, existe um padrão que permite estabelecer uma ligação com uma ferramenta de legitimação fundamental no Império Novo – as Listas Reais. Pois em todo o Papiro Westcar, a cronologia está presente e é central. Kadish3 estabelece uma ligação entre o Papiro Westcar e o Tempo.

Do Tempo, é indissociável a Memória.

Os quatro pilares que suportarão esta Tese surgem naturalmente interligados, apesar de nunca terem sido analisados em conjunto.

O Papiro Westcar e a Lista Real de Seti I4, a escolhida por ser a mais compreensiva e, de acordo com os conhecimentos actuais, a mais precisa, estabelecem ainda uma articulação muito natural com estes dois grandes conceitos, Tempo e Memória, respectivamente.

3 KADISH, (2001: 405-409).

4 BRAND, (2000).

(24)

22 Analise-se brevemente esta

questão.

Em todas as realidades Humanas, o Tempo apresenta uma rigidez linear, o chamado Tempo de Newton1. É o mais simples, o mais intuitivo. Existe, contudo, um outro “tipo” de Tempo, similar na sua essência, mas onde se pode colocar a hipótese de maleabilidade por oposição à rigidez absoluta do seu similar. Apesar da sua orientação única, o Tempo Relativo que ecoará na exposição matemática de Einstein2, Hartle3, Wald4 ou de Hawking5 será vital. Esta nova visão de Tempo permite uma análise e maior compreensão do que era aquilo a que os Egípcios se referiam como nHH e Dt, ou “Real e mitológico”, onde trabalhos de Dunand6, Hornung7, Pomian8, Nowotny9 são imprescindíveis e ainda urge a integração da compreensão dos conceitos de Tempo de identidade e Tempo Imaginário de Castoriadis10, onde é estabelecida uma interessante ponte com o subtema do Tempo como dimensão do social. O Tempo está inevitavelmente ligado à Memória, aliás, como Ricoeur11 tão brilhantemente o discute. Também a este tão largo conceito estão interligados o

1 NEWTON, (2010).

2 EINSTEIN, (2014).

3 HARTLE, (2003).

4 WALD, (1984).

5 HAWKING, (2001).

6 ZIVIE-COCHE, DUNAND, (2004).

7 HORNUNG, (1992).

Papiro Westcar e a Lista Real de Seti I, se usarmos as mesmas ferramentas para os analisarmos e procurar para o que poderão realmente ter servido, para além da sua função como elemento literário e elemento informativo histórico, respectivamente.

Antes deste passo, vejamos os tipos de Memória mais comuns e que se propõe poderem ser alterados com o recurso a ferramentas adequadas.

Todorov12 estuda a Memória do ponto de vista filosófico, uma forma fundamental de estudo, que neste caso permite compreender a facilidade com que pode ser executada a manipulação da Memória - os seus conteúdos e os seus constructos. Assmann fala longamente no aspecto da Memória cultural, dos seus símbolos e elementos escolhidos para futuramente serem recordados13. Nesta categoria encaixam na perfeição o Papiro Westcar e uma Lista Real.

Assmann14 trabalha ainda um outro tipo de Memória central na civilização egípcia, o da Memória colectiva que nada mais é do que, muito simplificadamente, uma unificação da Memória cultural e das diversas

8 POMIAN, (1984).

9 NOWOTNY, (1993).

10 CASTORIADIS, (1975: 209-215).

11 RICOEUR, (2000).

12 TODOROV, (2000).

13 ASSMANN, (2011: 37).

14 ASSMANN, (2006: 210-224).

(25)

23 vertentes da Memória individual. Porque

o que torna toda a questão da Memória num aspecto de elevado interesse é que, tal como o Tempo, é fluída, maleável, adaptável e modificável. A compreensão de Schatcer1 e da Memória individual é, talvez, uma das peças finais mais valiosas na forma como esta Tese se está a construir. Há o puramente biológico, o puramente psicológico e depois o essencialmente cultural.

E é neste ponto que os antigos Egípcios foram mestres.

Compreenderam aspectos fundamentais da psique humana e a forma como os mesmos interagiam entre si, tarefa que a nossa civilização apenas há pouco mais de um século começa a analisar recorrendo a ciências como a física ou a psicologia clínica e experimental. Loftus fornece importantes pistas sobre a maleabilidade da Memória humana focando os seus estudos no “efeito da desinformação” e ainda na “criação de falsas Memórias” 2. Ambos são aspectos da Memória individual, cultural e colectiva.

Os antigos Egípcios usavam técnicas de manipulação de Memória extremamente familiares a estas há pelo menos quatro milénios atrás.

Tudo isto é mais do que coincidência, é a compreensão de um

1 SCHATCER, (1997).

povo, dos seus constructos mais elementares, mas mais dificilmente visíveis, pois são universais. Saber manipular tais elementos é um feito genial. Esta Tese pretende analisar como tudo poderá ter eventualmente sido feito.

Conclusões

Esta Tese pretende ser pluridisciplinar na sua essência.

Entende-se que apenas assim se poderá fornecer uma nova visão para a compreensão de dois aspectos centrais na mentalidade dos Egípcios que habitaram a Kemet: por um lado, a sua perspectiva e vivência da dimensão Temporal, por outro, a Memória e de como esta foi gradualmente restruturada, muitas vezes dentro de uma só geração, alterando aspectos fundamentais ligados à Memória individual para criar uma nova Memória cultural e, eventualmente, colectiva. O corpus deste estudo será assim formado pela análise crítica da bibliografia existente, das referidas fontes iconográficas e das fontes literárias. A título de exemplo da necessidade de uma visão crítica, desafia-se o leitor a olhar para a linha da Lista de Seti I onde estão enumerados os faraós da dinastia XVIII. Encontra-se uma linhagem historicamente correcta entre Ahmose e Tuthmose II, seguindo

2 LOFTUS, HOFFMAN, (1989: 100–104).

(26)

para Tuthmose III até Amenhotep III...

depois Horemheb. Nesta leitura, Hatshepsut, Amenhotep IV, Smenkare, Tuntankhamon e Ay foram simplesmente excluídos. É um exercício simples que ilustra perfeitamente a relatividade da história, um reflexo da Memória Cultural, da Memória Colectiva, de quem a relata e de todo um conjunto das intenções a qualquer relato associado. Enquanto que, por um lado, o Tempo e a Memória são conceitos trabalhados sem qualquer outro tipo de fontes que não bibliográficas, o mesmo não se passa com as Listas Reais ou o Papiro Westcar.

A iconografia da Lista Real de Seti I forneceu um interessante mapa relativamente ao Templo Linear, assim como a análise do Papiro Westcar forneceu uma clara distinção entre o Tempo Mítico e o Tempo Real, quando contraposto ao Tempo Linear, Newtoniano.

Os resultados parecem, para já, prometer uma interessante nova visão do Tempo e da Memória e do que poderá formar o centro da mentalidade egípcia relativamente a estes conceitos, com base nos seus constructos mais fundamentais.

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(28)

“Confraternizai com Sua Majestade no Vosso Coração!”

O Fenómeno Lealista no Império Médio Inicial

Marcus Carvalho Pinto, (MA em História, Egiptologia, Universidade Nova de Lisboa) marcus.carvalhopinto@hotmail.com

Investigação de mestrado em Egiptologia pela Universidade Nova de Lisboa Bolseiro de investigação do CHAM – Centro de Humanidades.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Helena Trindade Lopes, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Resumo: Caracterização do fenómeno político ao qual denominamos Lealismo, aprofundando a sua significação e problematizando os elementos que o constituem.

Fenómeno circunscrito ao Império Médio, o foco é o reinado do faraó Senuseret I.

Palavras-chave: Lealismo, Império Médio Inicial, Senuseret I.

Introdução

O objetivo ao qual aqui nos propomos é o de sintetizar os argumentos e os resultados obtidos na investigação que foi finalizada com a defesa de uma dissertação de mestrado1, em 2016.

A questão central da investigação prendia-se ao Lealismo, compreendido não como um subgénero da literatura, que de tal forma estaria circunscrito a um par de obras literárias datadas do Império Médio, mas sim como um fenómeno político com um grande espectro de influência na sociedade egípcia. Assim, a proposta era a de definir e perceber o

1 PINTO, (2016).

Lealismo através do conjunto de relações entre o soberano e seus súbditos, conectados através de uma ideologia de Estado, na qual os reflexos das decisões individuais eram sentidos coletivamente.

Este fenómeno foi estudado no contexto de restauração do poder faraónico após o Primeiro Período Intermédio, fase durante a qual a XII dinastia implementou um amplo projeto político- cultural. A pesquisa centrou-se especialmente no Império Médio Inicial e no reinado de Senuseret I, altura em que alguns dos elementos que utilizámos para analisar o Lealismo foram criados e

(29)

27 em que outros chegaram ao seu apogeu

de desenvolvimento. Tem-se como marca o forte entrelaçamento da política com a capacidade argumentativa e a literatura.

A Construção de um Fenómeno:

O Conceito de Lealismo

Apesar de datado do Império Médio, as origens do fenómeno Lealista são encontradas ainda no Império Antigo, seguido pelo contexto de perda do poder faraónico e da unidade territorial experienciado durante o Primeiro Período Intermédio. Com a reunificação, durante a XII dinastia, a fórmula que se calcava na fidelidade dos nomarcas foi revista e o Lealismo foi criado e aprimorado. O recuo temporal justifica-se pela necessidade de se perceber os elementos que serviram para afirmar a ideologia real e a soberania, bem como para salvaguardar a unidade do domínio faraónico.

O primeiro momento, experienciado durante o Império Antigo, caracteriza-se pela progressiva perda de poder por parte do monarca e da casa real devido a fatores como a complexificação da burocracia para além do círculo real, as reformas de transferência de terras da Coroa para os templos, uma

1HORNUNG, (1978: 52).

administração local com maior autonomia e a acentuação da prática de casamentos das filhas reais com membros não-reais da oficialidade, como forma de assegurar a fidelidade.

Se, por um lado, temos um crescente interesse na racionalização da administração das províncias, a integração das elites num espectro mais amplo da administração conduziu a um cenário em que, mais do que as elites locais necessitarem das benesses do poder central, era a realeza que se tinha tornado dependente da fidelidade dos grandes do reino, tendo de se conformar com a limitação da sua política.1

O segundo momento dá-se após a queda do Império Antigo, com a dissolução da unidade territorial e o início do processo de expansão tebana, a partir do reinado de Intef I. Esta fase culminou com o reinado de Mentuhotep II, que consegue novamente unificar o país, marcando o começo do Império Médio. Para além de importantes reformas políticas e administrativas, que incluíram a mudança da capital e a adoção da prática da corregência, o Império Médio Inicial foi marcado pela coexistência de características que apontam para uma administração altamente centrada e de traços de um sistema descentralizado, com os nomarcas a deterem um alto nível

(30)

28 de independência.1 Ao contrário do que

se presenciou no Império Antigo, esta integração era gerida de forma a fortalecer o poder central e não o inverso.

O processo de criação e afirmação de uma nova dinastia, bem como o de reunificação do Estado, foi acompanhado de um movimento de cariz ideológico. Os governantes da XI dinastia, não só se apresentaram como verdadeiros monarcas, apresentaram-se como os defensores de um projeto de Estado que visava a unidade. Mesmo após Mentuhotep II, esta é uma marca que não foi apagada e que se seguiu nos reinados da XII dinastia. A temática da união e da soberania faraónica tornam-se centrais para este projeto de Estado. Esta afirmação é sustentada pela interpretação do desenvolvimento do protocolo real dos faraós do Império Médio Inicial, primeiro sinal da proclamação real,2 bem como pela análise de fontes iconográficas como, por exemplo, a Capela de Mentuhotep II, em Dendera.

Ambos revelam não apenas o desejo de legitimação, mas também a sua relação com o projeto de reunificação do Egipto.

No Império Médio, em especial durante o reinado de Senuseret I, desenvolver-se- ia uma ideologia que procurava governar a sociedade em harmonia, através da

1 GRAJETZKI, (2013: 225).

2 POSTEL, (2004: 2-5).

eloquência e explanação.3 Neste cenário, o Lealismo torna-se numa estratégia- chave para garantir a governabilidade, a unidade e a soberania, com o Estado passando a promover e a impor a lealdade dos seus súbditos. O conceito de Lealismo pode, portanto, ser definido como um fenómeno político do Império Médio, cujo desenvolvimento maior é experienciado durante o reinado de Senuseret I. Centrando-se na relação do faraó com os seus súbditos, ao mesmo tempo em que se apoia em fundamentos culturais, explora-os e modifica-os com o intuito de assegurar a unidade territorial e a soberania faraónica. O Lealismo calca-se numa conceção de mundo em que as decisões pessoais têm um reflexo na sociedade como um todo.

Para atingir o seu objetivo, promove e impõe a lealdade através da utilização da máquina administrativa e ideológica do Estado, não deixando espaço para a neutralidade.

A Base Política de Senuseret I:

Identidade, Memória Cultural e Lealdade

Tendo por base os elementos do plano de ação de Senuseret I, apontados por Detlef Frank, destacamos os que julgamos ser os três principais: em

3 ASSMANN, (2002: 118).

(31)

29 primeiro, o desejo de comemoração,

usando a pedra como suporte para promover a identidade cultural e a memória; em segundo, a procura pela promoção da reciprocidade, ou o que o autor chama de ideal social de comportamento e, em terceiro lugar, a lealdade ao faraó como forma de garante do bem-estar comum, contrapondo-se à aniquilação daqueles que se opuserem a ele.1

A análise que propomos procurava explorar alguns conceitos formadores da identidade cultural egípcia e a sua interdependência com a existência do Estado faraónico. Para tal, o ponto de partida foi o desenvolvimento da ideia de que Maat atuaria, nos campos políticos e sociais, como uma manifestação da religião invisível e de que a existência de uma sociedade em união calca-se numa estrutura conectiva.

A argumentação apresentada apoia-se, principalmente, nos conceitos de religião invisível e memória cultural, da forma como são desenvolvidos por Jan Assmann.2 Defendemos que Maat atuaria como o princípio formador de uma identidade cultural, transversal à sociedade egípcia na sua totalidade.

Igualmente, defendemos que a religião invisível, caracterizada pelo princípio de

1 FRANK, (2001: 395).

2 ASSMANN, (2006); ASSMANN, (2011).

Maat, foi passível de ser institucionalizada através do campo político e moral, por via da memória cultural. Esta, por sua vez, atua na manutenção da coesão entre gerações, sendo capaz de comunicar e de transmitir um universo simbólico, cuja continuidade era da responsabilidade do Estado faraónico.

Quanto à memória cultural, é importante ressaltar que está sujeita a formas institucionalizadas de mnemotécnica e que possui transmissores especializados, entre os quais, os escribas.3 Numa esfera letrada da sociedade, os indivíduos têm acesso à participação na memória cultural através dos textos culturais, sendo possível aceder a esta realidade através da literatura, como veremos adiante. Porém, para outras esferas, manifestações de uma ordem distinta também são possíveis como, por exemplo, através da atividade construtora, visto que transmitem igualmente o simbolismo da unidade do grupo. Esta questão é desenvolvida através do caso da Capela Branca, inserindo esta estrutura no contexto do plano construtivo de Senuseret I, entendendo-a como suporte para a promoção de uma memória cultural, integrada no princípio de Maat e atuando como meio de expressão e de

3 ASSMANN, (2011: 37-39).

(32)

30 renovação da consciência identitária e

conectiva da sociedade egípcia.

A memória cultural é uma das componentes da estrutura conectiva, atuando num nível social e temporal e fornecendo um universo simbólico. Uma outra componente da estrutura conectiva pressupõe uma área comum de experiência, expectativa e ação, caracterizada pela adesão às mesmas leis e valores, provendo confiança e orientação.1 No campo político, esta estrutura pode ser observada através da aplicação de Maat pelas ações do governo, enquanto, no campo social, pode ser observada através da solidariedade e reciprocidade (numa ação ativa de memória).2 A reciprocidade pressupõe a memória, sendo que esta é a condição da existência da outra. Sem passado não há ação e o que a memória estabelece é justamente o espaço para o desdobramento da ação social.3

As raízes da estrutura conectiva são responsáveis pela formação de uma manifestação da identidade e da consciência egípcia e, ao serem encontradas nas manifestações sociais da religião invisível caracterizada por Maat, temos como resultado uma capacidade de reflexão e de perceção de uma

1 Ibidem, 2-3.

2 Ibidem, 210-211.

consciência muito mais ampla.

Desenvolvemos o argumento de que é através do foco na relação do indivíduo com a instituição faraónica que o Lealismo encontra a sua base de apoio, inserido numa lógica de retórica da decisão, que cobra uma escolha íntima e pessoal por parte do indivíduo, mas que afeta toda a sociedade através da estrutura conectiva.

A Literatura Lealista e o Lealismo na Literatura

Central ao entendimento do fenómeno do Lealismo é a sua relação com a literatura. Muito embora, por limitações de espaço, não consigamos desenvolver e apresentar os elementos da análise, apresentaremos os pressupostos pelos quais esta foi conduzida. O ponto de partida para o trabalho desenvolvido foi discutir a interpretação e análise literária, discorrendo sobre o papel da literatura e da cultura escrita na sociedade do Império Médio.

A análise baseou-se no conceito de texto cultural, compreendido como central para tudo que pode ser definido como tradicional e relevante para uma sociedade, ao mesmo tempo que desempenha uma função identitária.

Estão, desta forma, inseridos no seio da

3ASSMANN, (2002: 128).

(33)

31 memória cultural, sendo que na sua

composição encontram-se os textos normativos (que transmitem o conhecimento prático, oferecem orientação para a tomada de decisões e codificam o comportamento social) e os textos formativos (que definem a autoimagem do grupo, bem como o conhecimento que reforça a sua identidade e motiva a ação comunal).1 Por outro lado, não se ignorou que a literatura também servia como válvula de expressão para as preocupações intelectuais no que tange à integração social do indivíduo, como as expectativas sociais frente à realidade, apresentando-se como um modelo dialético para a nova elite intelectual.2 Desta forma, é possível explorar conceções discordantes existentes num mesmo discurso. Para tal, os principais conceitos de análise foram os de topos e mimesis, que transmitem tanto as expectativas ideológicas da sociedade quanto os questionamentos e respostas individuais.3

Neste sentido, a análise divide-se em dois momentos. No primeiro, são abordados os princípios do lealismo, através da análise d’As Instruções Lealistas e d’As Instruções de um Homem ao seu Filho. Pretende-se perceber os aspetos normativos e

1 ASSMANN, (2006: 37, 104); ASSMANN, (2011: 122-123).

formativos deste fenómeno. No segundo, são exploradas as respostas individuais, através de uma análise que procura revelar as tensões, contradições e subversões que permeiam a realidade do Lealismo. Para tal, são utilizadas duas narrativas: A História de Sinuhe e As Instruções de Amenemhat.

Conclusão

Com esta investigação demonstrou-se como o Lealismo pode ser percebido como um fenómeno político do Império Médio, com um enfoque no indivíduo e na sua relação com o faraó. Inserido num contexto em que a lealdade é vista como qualidade política, ganha espaço apelando à consciência e às virtudes individuais.

Apelava também ao elo destas, à estrutura conectiva e às manifestações sociais da religião invisível.

Demonstrou-se, igualmente, como este fenómeno pode ser verificado através da literatura, que se apresentava como um modelo dialético de uma elite letrada, sendo capaz de expressar as expectativas sociais e as respostas individuais face à realidade.

2 LOPRIENO, (1996a: 404, 414).

3 LOPRIENO, (1996b:45-47).

(34)

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