Há cinco vezes mais
pessoas interditadas pelos tribunais que há 20 anos
Tribunais decretam mais interdições devido
àinversão da pirâmide etária
edo envelhecimento da população.
Governo quer alterar paradigma
do regime de incapacidades
plO/11Tribunais decretam cinco vezes
mais interdições do que há 20 anos
Regime jurídico de 1966 revela-se
desfasado da realidade actual. Pirâmide etária inverteu-se, população envelheceu
e há um maior reconhecimento dos direitos das pessoas com incapacidades
Saúde mental Ana Cristina Pereira
Sinal dos tempos: não pára de au- mentar o número de pessoas de- claradas pelos tribunais incapazes de gerir assuas vidas eos seus bens (interditas) ou só os seus bens (ina- bilitadas). OGoverno tem na gave- ta desde Abril do ano passado uma proposta de alteração do regime de incapacidade.
As estatísticas doMinistério daJus- tiça mostram ocrescimento constan- te de acções declarativas findas nos tribunais judiciais de l.ainstância:
559 interdições decretadas em 1996, 1080 em
2006,
3136 em 2016. Eas das inabilitações, que saltaram de15 em 1996 para 43em2006epara 259 em 2016. Um instituto multiplicou por cinco eo outro por 17em ape- nas 20anos. Háum consenso-
nos meios académicos emédicos-
em torno da necessidade dealterar ore- gimejurídico de incapacidades. "É urgente", defende António Leusch- ner, presidente do Conselho Nacio- nal de Saúde Mental. Onormativo foi aprovado em 1966 e, entretanto, opaís transformou-se.Primeira grande mudança: a espe- rança média de vida, que era de61,1 anos para oshomens e66,7anos para asmulheres em 1960,estava nos 77,6 anos para oshomens enos 83,3 anos para asmulheres em 2016, de acordo com osúltimos dados divulgados pe- lo Instituto Nacional de Estatística.
"A idade éum factor de risco para ademência", lembra Rosa Encarna-
ção, responsável pelo serviço dePsi- cogeriatria do Hospital de Magalhães Lemos, no Porto. "Vivemos mais tempo, temos mais pessoas com de- mência." E adoença de Alzheimer e outras demências estão na origem de grande parte destes processos.
"Muitas vezes, as famílias não pe- dem ainterdição porque sedão bem, resolvem ascoisas", nota Rosa Encar- nação. Aexperiência de Rosário Zin- cke, que faz parte dos corpos sociais da associação Alzheimer Portugal e que enquanto advogada trata de pro- cessos desta natureza, diz-lhe que as famílias tendem aevitar chegar a este ponto, que equipara oadulto aum menor. Viu isso lá em casa, quando opai adiou o mais possível aacção que, em seu entender, retirava dig- nidade àmãe.
Tudo se pode complicar quando osfamiliares não seentendem quan- to ao modo de gerir avida da pessoa diminuída nas suas capacidades ou osseus bens
-
ouquando não há um familiar que assuma tais responsabi- lidades. As instituições, torna Rosa Encarnação, estão "aficar cheias" de pessoas que entraram conscientes e setornaram dementes. Recorrem ao Ministério Público, aentidade que, para além da família, pode desenca- dear um processo de incapacidades.Declarada aincapacidade, o tri- bunal nomeia um tutor ou curador, consoante setrate de uma interdição ou deuma inabilitação. OCódigo Ci-
vil indica a ordem de preferência da pessoa aescolher para desempenhar esse papel: ocônjuge (excepto seesti- ver separado oufor incapaz), ospais, os filhos maiores, preferindo ofilho mais velho, amenos que otribunal entenda que um dos outros dá mais garantias. António Leuschner, como presidente do conselho de adminis- tração doHospital Magalhães Lemos, étutor de cerca de
40
pessoas. "É uma situação anacrónica", suspira."Aminha capacidade de efectivamen- te desempenhar o cargo detutor é quase uma impossibilidade. Éurgen- tetornar claro como isto seresolve."
Direitos das pessoas
Segunda grande mudança: oregime de incapacidades aplica-se apessoas com deficiência mental, cegueira ou surdez-mudez e, desde 1966,saiu um conjunto de leiseconvenções a esti- pular que essas pessoas sãoiguais às outras, ainda que com "capacidades diminuídas" ou "necessidades espe- ciais". As anomalias físicas, por sisó, deixaram de contar. Enão basta um diagnóstico de anomalia psíquica, como síndrome de Down, autismo, paralisia cerebral, Alzheimer ou es- quizofrenia. Épreciso uma avaliação feita por um perito certificado para determinar seaquela doença acarre- tauma incapacidade e,se sim, que tipo de incapacidade.
A inabilitação assume que apessoa perdeu parte das suas capacidades.
"A interdição parte da ideia de que a pessoa não consegue fazer nada, o que contraria anova tendência para valorizar ao máximo ascapacidades de cada um", sublinha Fernando Viei- ra, psiquiatra no Serviço de Psiquia- tria Forense, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. "Se apessoa tiver alguma capacidade, nem que seja só um bocadinho, não deve ser substituída nessa capacidade, deve serapoiada nessa capacidade."
Rosa Encarnação dá o exemplo dademência: "A pessoa tem capa- cidades pelo menos durante algum tempo". A doença pode estar numa fase inicial, média ou avançada. "Há coisas que não consegue fazer ehá coisas que consegue fazer etem de ser apoiada naquilo que consegue", corrobora Fernando Vieira.
Escolher o tutor
"Hoje, estive aver uma senhora es- pectacular de 83 anos", conta Victor Mota, responsável pela Unidade de Internamento de Longa Duração/Do- entes Difíceis do Hospital Magalhães Lemos, amiúde chamado para fazer perícias desta natureza. "Ela está na fase inicial da demência. Apesar de não ter capacidade para administrar os seus bens, não está tão condicio- nada que não deva ser levada em
consideração a sua opinião sobre a nomeação do tutor."
O regime actual não diz que a pessoa pode escolher o seu tutor.
Operito, porém, viu naquela mu- lher "uma janela que não deve ser descartada pelojuiz". Equando isto acontece faz questão de pôr no rela- tório. Parece-lhe do mais elementar bom senso ter isso em consideração.
"A
idade
é umfactor
de risco paraademência",
lembra Rosa Encarnação, responsável pelo serviço dePsicogeriatria
do Hospital deMagalhães
Lemos, noPortoNas directrizes internacionais, a expressão "pessoas incapazes" vai sendo substituída
por
"maiores acompanhados". É oque consta na proposta que aministra Francisca Van Dunem recebeu em Abril das mãos dos directores das faculdades de Direito das Universidades deLis- boa ede Coimbra, osprofessores Pe- dro Romano Martinez eRui Manuel de Figueiredo Marcos, edos deca- nos dos civilistas António Menezes Cordeiro eAntónio Pinto Monteiro."A ideia éacabar com ainterdi- ção, trocar um modelo de substitui- çãopor um modelo de acompanha- mento", resume Fernando Vieira.
"Há necessidade de encontrar um modelo mais flexível, de tal forma que apessoa não seja substituída na sua vontade, mas apoiada na suavontade."
acpereira@publico.pt
Governo quer alterar paradigma. Em vez de incapazes, haverá maiores acompanhados
Anuncia-se uma mudança de para- digma no regime de incapacidades.
OGoverno tem em cima da mesa uma proposta que dá "primazia à autonomia da pessoa, cuja resposta deve ser respeitada eaproveitada até ao limite do possível". Em vez de incapazes, haverá maiores acom- panhados.
Há dois anos, aquando das cele- brações evocativas dos 50anos do Código Civil, as faculdades de Di- reito das Universidades de Lisboa ede Coimbra aceitaram colaborar na revisão do regime das incapaci- dades dos adultos, previsto no Có- digo Civil. Em Abril do ano passa- do, aministra da Justiça, Francisca Van Dunem, recebeu oresultado entregue pelos directores daque- las faculdades, os professores Pedro Romano Martinez eRui Manuel de Figueiredo Marcos, epelos decanos dos civilistas António Menezes Cor- deiro eAntónio Pinto Monteiro.
Volvido quase um ano, oprojecto de proposta tem estado aser tra- balho pelo Governo mas ainda não foi aprovado emreunião de secre- tários de Estado. Aguarda um pa- recer prévio do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, informa fonte doMinistério daJus- tiça. Só depois deverá fazer o seu caminho: Conselho de Ministros e Parlamento.
Odocumento, aque oPÚBLICO teve acesso, propõe uma mudança total. Em vez de dois institutos (um de interdição eum de inabilitação), um único (o regime de maior acom- panhado). Em vez de um modelo de substituição, um modelo de acom-
panhamento "em que apessoa in- capaz é simplesmente apoiada na formação e exteriorização da sua vontade enão substituída na sua vontade".
Ao sintetizar os fundamentos, a proposta refere "a primazia da au- tonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada eaproveitada até aolimite do possível; asubsidia- riedade de quaisquer limitações ju- diciais à sua capacidade, sóadmissí- veis quando oproblema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de protecção e de acom- panhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; aflexi- bilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação".
Aideia é abrir espaço para que exista uma resposta individualiza- da. Aprópria pessoa vulnerável ou
diminuída
nas suas capacidades passaria apoderrequerer
acom- panhamento (além do cônjuge, do unido de facto, de um parente e do Ministério Público). Também teria apossibilidade de designar quem a vai acompanhar.Oacompanhamento limitar-se- ia ao necessário. Salvo decisão expressa
por
umjuiz,
a pessoa deveria manter "liberdade para a prática de diversos actos pessoais, designadamente: liberdade de ca- sar, de se unir de facto, de procriar, de perfilhar, de adoptar, de exercer responsabilidades parentais, de sedivorciar".
Se aproposta avançar, o processo passará ainda aser qualificado co-
mo urgente. Ojuiz ficará obrigado a contactar pessoalmente com a pes- soa. Eserá possível rever asinterdi- ções einabilitações decretadas ape- dido dopróprio, do acompanhante ou do Ministério Público.
O Governo
anterior
chegou a aprovar uma proposta de altera- ção do regime de incapacidades em Agosto de 2015. Quando chegou à Assembleia da República esbarrou na nova maioria. Oactual Governo apontou-lhe "fragilidades jurídicas eaxiológicas". A proposta mantinha osinstitutos tradicionais dainterdi- ção eda inabilitação eprevia a sua aplicação acidadãos que apresen- tassem apenas deficiências físicas.Ana