S O B R E
RETROVERSÃO-FLEXÃ
DISSERTAÇÃO INAUGURAL APKESENTADA X
Escola Medieo-CiruFgiea do Porto
L- *£—-tHZ-zZ!^ S*
t&LjV' *£' « ^ s s ^ ^ ^ a í@/7 J
SOBRE
ARETROVERSÃO-FLBXÃO
UTERINA
Dissertação inaugural PO tiMANOEL JORGE FORBES DA COSTA
P O R T O
TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL 06 —Rua da Fabrica —6fi
1888
CONSELHEIRO-DIRECTOR
VISCONDE DE OLIVEIRA
SECRETARIO
RICARDO D'ALMEIDA JORGE
CORPO DOCENTE
Professores proprietários
í,a Cadeira—Anatomia dcscriptiva
e geral João Pereira Dias Lebre. 3.a Cadeira—Physiologia Vicente Urbino de Freitas.
3-a Cadeira—Historia natural dos
medicamentos e materia m e
-dica Dr. Jose Carlos Lopes. 4-a Cadeira—Pathologia externa c
therapeutica externa Antonio Joaquim de Moraes Caldas. 5.a Cadeira—Medicina operatória. Pedro Augusto Dias.
o.a Cadeira— Partos, doenças das
mulheres de parto c dos
rc-c e m - n a s rc-c i d o s . Dr. Agostinho Antonio do Souto. 7-a Cadeira—Pathologia interna e
therapeutica interna Antonio d'Olivcira Monteiro. 8.a Cadeira—Clinica medica . . . Antonio d'Azevedo Maia.
9.a Cadeira—Clinica cirúrgica . . Eduardo Pereira Pimenta.
I 0 .a Cadeira—Anatomia
pathologi-ca Augusto Henrique d'Almeida Brandão. l l .a Cadeira—Medicina legal, h y
-giene privada e publica e
to-xicologia Manoel Rodrigues da Silva Pinto. I 2 .a Cadeira—Pathologia geral,
se-meiologia e historia medica. Illidio Ayres Pereira do Valie. Pharmacia Isidoro da Fonseca Moura.
Professores jubilados
Secção medica \ M o Xavier d'Olivcira Barros.
I José d A n d r a d e Gramacho.
Secção cirúrgica Antonio Bernardino d'Almeida. ( Visconde de Oliveira.
Professores substitutos
Secção medica í Antonio Placido da Gosta.
\ Vaga.
Secção cirúrgica Ricardo d'Almeida Jorge. ( Cândido Augusto Correia de Pinho
Demonstrador de Anatomia
A Escola nao responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e enuncia-das nas proposições.
à m i n h a s i r m ã s e a meus irmãos
i saudosa memoria de meu (Berilo irmão LÉ
A EX."" S.\R.a
A MINHAS TIAS E A MEUS TIOS
A. M I N H A T I A A Ex.™ Snr.a
©. Jloóepáa (9arcãna c¥Õries c/e J//la^amâes
A E X » SNR.»
H ff mm %m $mhm k §IM
Á EX.MA SNR.A
Ás EX.MAS SNR.AS
'aUa (QfeííeU-a <&<iâóoó uMeu&
Ao meu amigo e condiscípulo
ARTHUR CARDOSO PEREIRA
AOS MEUS AMIGOS
Hyres Ornellas dç Vasconcellos.
Hlfredo da Gosta Correia Leite..
José Domingues de Oliveira Junioí?.
Professor jubilado
da Escola Medico-Cirurgica do Porto
homenagem ao clinico illustre e ao distincto professor.
AO CORPO DOCENTE
DA
Escola Medico-Cirurglca cio Porto
AO MEU PRESIDENTE
O 111.™0 Ex.'™ Snr.
Dr. Agostinho Antonio io Souto
ALGUMAS PALAVRAS INDISPENSÁVEIS
. . . c u m verdadeiro egoísmo da nossa parte, que nada justifica, estudar nas nossas escolas de medicina com todo o pos-sível desenvolvimento, juntamente com as doenças geraes, as doenças que são priva-tivas do homem, e deixar completamente no esquecimento an que são privativas da mulher, como se a mulher não constituísse metade da população, não fosse o alvo dos nossos carinhos, dos nossos maiores cuida-dos, como se não fosse a nossa companheira mais necessária, a nossa amiga mais sin-cera e mais extremosa.
J. M. ALVES BRANCO, ( I )
Nos tempos em que era nulla a
experimenta-ção scientifica, a medicina, mais que nenhum
outro ramo de conhecimentos humanos, ia
cres-cendo e medrando, apparentemente, á custa de
invenções engenhosas, e de phantasias subtis,
produetos refinados e pacientemente
engendra-dos nos cérebros engendra-dos sábios de profissão.
N'es-ses tempos de dogmatismo, o modo de ser
in-tellectual corrente era a abstracção; não se
de-duzia, induzia-se; não se via, imaginava-se;
(Í) Discurso na sessão solemnc de 3 de dezembro de ú na Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa.
não se investigava,, adivinhava-se. A
experi-mentação era nulla e a observação falsamente
orientada, só dava na maior parte das vezes
re-sultados enganosos.
O desenvolvimento da medicina, crescendo
pari passu com o das demais sciencias, base
es-sencial da sua existência, e sendo estas então
um complexo informe de cousas, poucas
ver-dadeiras, falsas a maior parte, e quasi todas
in-congruentes, era conclusão inevitável que só o
progresso em todos os ramos de
conhecimen-tos humanos, accentuando-se por um modo
apparentemente repentino, numa epocha de
transição violenta e necessária, poderia
deter-minar, illuminado por novas luzes e sob uma
orientação completamente différente, a
sup-pressão de muitos, a systematisação racional
d'alguns já existentes, e a rasgada abertura de
largos âmbitos a novos conhecimentos
me-dicos.
O edifício absurdo e falso tão lentamente
construído sobre hypotheses extravagantes e
cimentado por theorias impossíveis,
sumidou-ro impsumidou-rofícuo de tantas intelligencias fecundas
e desorientadas, ruiu emfim e de vez ao
des-pontar a aurora radiante do século presente:
os seus destroços, porém, não foram de todo
inúteis, e as poucas sementes sãs que
esterili-sam entre os improfícuos e volumosos materiaes
da gigantesca molle, espalhando-se num solo
3
virgem, germinaram e cresceram á custa de
im-portantes elementos novos, dando origem á
ar-vore cheia de seiva da medicina moderna.
De facto, o século presente, o século das
sciencias biológicas, tem visto desde o seu
co-meço, gradual mas progressivamente, um tal
desenvolvimento das sciencias naturaes em
ge-ral, e da medicina em especial, que pode-se
bem affirmar sem receio de errar que os
pro-gressos d'estas sciencias, durante o presente
sé-culo, tem sido muito maior, que durante todos
os séculos precedentes, decorridos desde
Hip-pocrates.
Indubitavelmente, as sciencias physicas tem
concorrido para este fim, por uma parte
extre-mamente importante : os meios de diagnostico,
fundados no conhecimento e applicação dos
ri-gorosos phenomenos da physica e da chimica,
embora longe ainda da perfeição desejada e
pre-cisa, para lá caminham dia a dia a passos
agi-gantados.
A instrumentação therapeutica, admirável
de engenho e precisão, e soffrendo de dia para
dia novos aperfeiçoamentos, tornou-se
com-plemento necessário e efficaz da mão, o mais
extraordinariamente perfeito apparelho natural
que o homem possue, e assim permitte a
ex-ploração e tratamento de campos e lesões,
an-teriormente inaccessiveis ao diagnostico e á
therapeutica.
* * *
A medicina, entrando assim em campo
novo, cresceu, subdividiu-se e multiplicou-se
por forma tal, que
;analogamente ao que se dá
nos organismos vivos com a divisão do
traba-lho physiologico, necessária foi a sua divisão
em grupos limitados, que separadamente
estu-dados, mais profícuos resultados dessem.
Crearam-se assim em commuai, como
fi-lhas-de uma mesma mãe e mais ou menos
de-pendentes umas das outras, as diversas
espe-cialidades. Apenas nascidas, muitas cresceram
e desenvolveram-se rapidamente; a
ophtalmo-logia, as doenças de pelle, a pediatria, a
obste-trícia, as doenças venéreas, as doenças nervosas
e a gynecologia. Em todos os tempos, porém,
devia sobre si mais particularmente chamar a
attenção, como uma das principaes, a
gyneco-logia, as doenças privativas a metade da
huma-nidade.
E comtudo póde-se dizer que a que menos
se tem adiantado e aperfeiçoado é esta mesma.
Será por carecer de importância? ninguém o
dirá; tem tanta importância como a tem o
es-tado hygido do seu objecto; qual a razão, pois,
de tal despreso?
Por muito tempo a anatomia, graças ao
su-persticioso respeito e sagrado terror tributado
5
aos últimos despojos humanos, impedindo o
único modo proveitoso de estudar tal sciencia,
foi apenas a enumeração corrida das partes
vi-síveis do corpo humano, e a enunciação
d'al-gumas invisíveis e suppostas, tiradas por
ana-logia, do exame d'organismos mais inferiores.
Tal respeito, que muito tempo levou a
desarrei-gar, impediu que a anatomia, substrato
mate-rial de todas as sciencias medicas, progredisse
tanto e tão depressa como era necessário para
o desenvolvimento da pathologia. Mais tarde,
vencido á custa de incessantes esforços tão
im-portante obstáculo, se o anatómico, de ferro
em punho, ia desvendar em exames
necropsi-cos os mysterios contidos na bacia feminina,
era comtudo o clinico que, tomado de recatado
temor e pouco certo na topographia de região
tão occulta, (porque nem sempre, ou antes,
ra-ras vezes o clinico era anatómico), se
esquiva-va o mais possivel a macular a doente com as
suas mãos profanamente exploradoras, ou, o
que era mais provável, a rebaixar-se a si
mes-mo no exame de regiões consideradas menos
nobres. O tempo corria de fidalguias para a
medicina. Dando como escudo a ignorância
voluntária e como divisa o «noli me tangere»
á pathologia feminina, os adeptos de Esculápio
adoptavam sobretudo um modo de proceder
commodo e extremamente simples; acceito
se-melhante accordo, eliminava-se por uma vez e
sem mais forma de processo, as doenças
pro-prias das mulheres, que o mesmo é dizer
me-tade da pathologia humana.
Havia íncommodo do baixo ventre? era
cousa propria de mulheres, que não merecia o
menor cuidado do clinico; queixava-se a
pa-ciente de perturbações nas funcções genitaes?
era ou falta d'uso ou demasiado exercício; e
mais se não queria saber. Era tal e tamanho o
receio de ter de arcar de frente e de perto com
a verdadeira séde de taes incommodos, que a
etiologia dos mesmos era exilada para
mui-to longe, para os espaços inter-planetarios.
Os causadores do mal, com effeito, eram a
lua, os cometas, as marés, e outros différentes
phenomenos cósmicos. Isto que estamos aqui
dizendo, longe de ser phantasia, é a expressão
exacta do verdadeiro estado dos espiritos
rela-tivamente á gynecologia, e n'um tempo ainda
bem proximo de nós; poderemos até dizer que
em alguns logares é o verdadeiro estado
pre-sente.
Quem d'isto custar a convencer-se, não tem
mais que 1er os seguintes exemplos:
Nos fins do século passado, e ainda no
principio d'esté, era tal a desconsideração em
que cahiam, em Inglaterra, os medicos que
fos-sem parteiros ou tratasfos-sem doenças de
mulhe-res, que o Gollegio dos medicos de Londres
chegou a declarar n'um documento publico
7
«que a arte dos partos era indigna de occupar
a attenção de um homem bem educado»! Mais
ainda: se algum cirurgião se propozésse
candi-dato a examinador, devia declarar, sob sua
hon-ra, que nos últimos cinco annos não tinha
to-cado n'uma mulher que estivesse em trabalho
de parto. E isto dava-se na Inglaterra, paiz que,
juntamente com os Estados-Unidos, é o que
mais progressos tem feito n'esta
importan-tíssima especialidade, e o que mais distincto
logar hoje occupa, sob este ponto de vista; e
os cirurgiões inglezes, que hoje são dos
pri-meiros entre todos, elevaram-se principalmente
em operações gynecologicas, e é tal o respeito
que essa intelligente e practica nação tem pelos
seus cirurgiões que, primeiro que aos simples
medicos, os cobre de honras e benefícios.
O que não terá sido nos outros paizes, e
mormente em Portugal!
E' interessante debaixo d'esté ponto de
vis-ta, e é ao mesmo tempo um triste exemplo do
desgraçado estado da medicina legal entre nós,
o seguinte caso :
Em 1881, um juiz de um dos tribunaes de
Lisboa, mandou, não se sabe porque lei,
exa-minar só por uma parteira uma creança de 9
an-nos, que se dizia ter sido victima de um
atten-tado ao pudor!
De forma que em grande parte pela falta
dos conhecimentos anatómicos, e em parte
também pela repugnância dos próprios clínicos
mais do que por opposição das doentes, os
exames e explorações manuaes, tão necessários
para o diagnostico das lesões dos órgãos
geni-taes femininos não se faziam, e portanto a
gy-necologia não poderia ter existência real. A
cavidade pélvica da mulher com todo o seu
conteúdo continuava a ser uma como mysteriosa
boceta de Pandora que distribuía os bens assim
como os males femininos, cuidando-se
unica-mente de aproveitar os primeiros e
despresan-do-se tratar os segundos.
Felizmente, porém, veio o tempo em que
a abstracção medica dominante baixou a
tran-smuttar-se n'uma materialisação menos
bri-lhante mas mais proveitosa, e a anatomia veio,
como devia e era necessário, fornecer as bases
para uma pathologia verdadeira e para uma
cli-nica possivel.
Só modernamente tal evolução se deu, e só
modernamente é que existe e tem existido a
gynecologia como verdadeira sciencia.
E geralmente sabido que Hippocrates, o
gé-nio portentoso que fundou como real e effectiva
a medicina, conheceu melhor ou peor e escreveu
sobre algumas das doenças das mulheres; nos
seus dous livros acerca d estas doenças, falia de
inflammação catarrhal do utero, de desvios,
etc. ; que 200 annos antes de Christo, Sorano,
o Novo, escreveu um tratado sobre o utero e
9
annexos; que o mesmo fez Celso; que Galeno
e Aecio fallavam do especulo, melhor descripto
por Paulo d'Egina. Mas á parte a consideração
de que estas figuras eminentes eram excepções
raras, e de modo nenhum a expressão do
ver-dadeiro estado de conhecimentos da maioria
dos clínicos então existentes, os seus livros
es-tavam tão eivados de erros e tão cheios de
ab-surdos, que não se pôde dizer que existisse
en-tão a gynecologia com os caracteres de sciencia
tal como nós hoje comprehendemos esta
pa-lavra.
Os poucos dados por elles fornecidos, tão
pouco exactos eram e sobretudo tão
incoorde-nados, que precisas foram novas investigações
sobre os mesmos assumptos.
Foi assim que Récamier, o fundador da
mo-derna gynecologia franceza, generalisou o uso
do especulo, em 1801.
Antes de Récamier é justo citar, como
ten-do contribuiten-do, em França, para a constituição
de gynecologia, Astruc e Garengeot.
Portugal também no século dezeseis não
foi dos menos honrados sob este ponto de
vis-ta; em 1546 nasceu em Lisboa o primeiro
gy-necologista portuguez e um dos primeiros do
seu tempo, o distinctissimo medico Rodrigo
de Castro. Publicando a sua importantissima
obra De universo, mulierum medicina, conquistou
por consenso unanime, um logar egual, senão
superior, ao dos primeiros que na Europa
en-tão cultivavam este ramo especial da
medi-cina ( i ) .
Infelizmente, porém, a gynecologia entre
nós apenas foi representada por este nome, que
não teve successores.
Em França, além de Récamier, cita-se como
um dos fundadores da gynecologia Vigarous.
Transmittido este impulso inicial á Inglaterra
pelo celebre discípulo de Récamier, Bennet, ahi
se propagou por forma tal, que esta nação
con-quistou um dos primeiros senão o primeiro
lo-gar em gynecologia.
Não citamos nomes, que de resto são hoje
bem conhecidos de todos os que se occupam
de litteratura medica, porque não estamos a
fa-zer historia.
Este movimento propagou-se,
augmentan-do extraordinariamente, aos Estaaugmentan-dos-Uniaugmentan-dos, e
ainda á Allemanha; a França, faz dia a dia
in-cessantes esforços para retomar o logar que lhe
compete e para se pôr ao nivel das nações
prece-dentes; a Bélgica, a Suécia, a Italia e a mesma
Hespanha seguem em différentes graus este
movimento em prol da gynecologia; todas
es-(i) Veja-se a este propósito os importantíssimos artigos, publicados nos « Archivos de Historia da Medicina portugueza», n,n8 2, 3 e 4 (3887-1888), pelo distinctissimo professor da
Es-cola do Porto o Ex.mo Snr. Pedro Augusto Dias, um dos
11
tas nações teem sociedades e revistas de
gyne-cologia e obstetrícia. E Portugal?
Ouçamos uma voz de todo o ponto
aucto-risada, um vulto que, anda assim, contribuiu
para se poder dizer que em Portugal, não
ob-stante o despreso a que estão votados
assum-ptos tão importantes, ha alguém que seja capaz
de reconhecer o estado lastimoso em que se
encontram alguns ramos do ensino medico, e
a necessidade urgente de cuidar do
importan-tíssimo estudo das doenças das mulheres:
«E em Portugal?
Nada. A gynecologia não tem historia, não
tem sociedade nem livros, nem jornaes. A
gy-necologia como especialidade nem é
conhe-cida... E' doloroso observar a pouca
consi-deração com que no nosso ensino medico
offi-cial se tratam os estudos gynecologies; é
ver-dade que as nossas escolas teem clinicas de
mulheres, mas estudam-se ahi as pneumonias
ou as bronchites, os embaraços gástricos ou
as sezões, as fracturas ou as deslocações, as
ul-ceras de pernas ou as différentes manifestações
do escrophulismo ou do nervosismo. Das
doen-ças do utero e dos seus annexos, muito pouco;
apenas ás vezes se mostram alguns casos. Mas
como poderia o professor de clinica tratar com
a individuação precisa as doenças especiaes das
mulheres, se o tempo lhe não sobra para
mos-trar as doenças geraes, sua principal obrigação?
E' doloroso, repetimos, pensar em como os
alumnos sahem das escolas sem fazerem idêa
da pathologia uterina, nem da maneira de usar
dos diversos modos de exploração.
Para uns tudo são metrites; outros, que
fo-ram bastante felizes para verem introduzir um
especulo, maravilha vêr como usam d'esse
ins-trumento em todos os casos e como só com
esse meio de exploração decidem do volume
do utero ou das causas de uma menorrhagia
pertinaz. Metrites internas, ovarites, affecções
dos annexos, hematoceles peri-uterinos,
pe-quenos e às vezes mesmo grandes myomas,
pelvi-peritonites, paralysias uterinas, différentes
desvios do utero, emfim todas as cousas mais
particulares, mais minuciosas, as que
consti-tuem realmente a especialidade gynecologica
ficam desconhecidas, desconhecimento que
ex-põe o futuro facultativo a commetter erros tão
prejudiciaes á saúde das doentes, como á sua
reputação de medico... E' necessário sahirmos
d'esté atrazo indesculpável, d'esta rotina
vergo-nhosa».
Estas palavras pronunciadas em 1881
pe-rante a Sociedade das Sciencias medicas de
Lisboa, pelo distinctissimo cirurgião José Maria
Alves Branco, um dos raríssimos clinicos que
entre nós se tem occupado da gynecologia,
re-velam o estado desgraçado em que no nosso
i3
ensino medico existe o estudo das doenças das
mulheres.
Effectivamente feliz o alumno que
obser-vava a introducção do especulo; na sua practica
futura era o muito que se atreveria a fazer. O
emprego das mãos, o toque digital, o
verda-deiro e principal sentido do cirurgião era cousa
de todo desconhecida. A palpação bimanual
combinada nem sequer se suppunha que
po-desse existir.
Objectar-nos-hão, como já nos tem
aconte-cido, que isto de gynecologia na practica civil é
cousa muito pouco possível, pela difficuldade
grande a estabelecer o diagnostico, causado pelo
acanhamento e pudor (bem mal entendido na
questão que nos occupa), quasi invencíveis que
a mulher manifesta a taes exames.
Falta-nos a practica para respondermos por
nós mesmos a esta objecção, em certo ponto
verdadeira, mas muito exagerada;
respondere-mos porém com o testemunho de clínicos
au-ctorisados, que dizem que tal temor mais
per-tence ao medico do que á doente; pois que
com habilidade, póde-se facilmente
proce-der á exploração digital, com as necessárias
precauções e sem fazer grande alarde de meios
ou palavras para socegar a doente que é
preci-samente o que mais a atemorisa.
Demais, se assim fosse, porque é então que
empregam a torto e a direito o especulo, isto é
o sentido da visão, que é exactissimamente o
que mais fere o pudor da mulher?
-Ninguém negará, suppomos nós, que mil
vezes antes uma mulher consentirá no exame
digital a coberto, que no exame visual. E'
por-tanto uma falta de habito e um desprezo
injus-to por parte do clinico a principal causa da
sup-posta grande difficuldade ao diagnostico exacto.
Convimos, porém, em certo ponto que este
em virtude mesmo da região, offereça uma certa
difficuldade maior pelo menos, que a
explora-ção d'outra qualquer região; o que de modo
nenhum admittimos é que tal difficuldade seja
invencível uma vez que o clinico apresente
to-das as condições precisas e as garantias
indis-pensáveis á practica séria da gynecologia, o que,
infelizmente nem sempre acontece.
Objectar-nos-hão ainda, que o estudo da
gynecologia constituindo por si só uma
espe-cialidade importante, é essa exactamente a
prin-cipal difficuldade ao seu estudo, por isso
mes-mo que nós nas nossas escolas não podemes-mos
nem estamos em estado de cultivar
especialida-des.
Não nos convence o argumento pelas
se-guintes razões.
Em primeiro logar, se é certo que a
gyne-cologia, em parte e n'um certo sentido, é uma
especialidade, não é menos certo também que
em outro não o é.
15
A gynecologia occupa-se de metade das
doenças da humanidade; a cada passo da sua
vida clinica e onde quer que se encontre, o
me-dico ha-de forçosamente achar-se em frente de
casos gynecologicos; que fará n'este caso?
cru-zará os braços? ou, mandará, caso seja
possí-vel, para o extrangeiro, a doente, tractar-se, ás
vezes de cousas bem simples, com o simples
pretexto de que a doença pertence a uma
espe-cialidade e portanto não está nas suas
attribui-ções? Ridículo papel que desempenha então e
sobretudo que graves prejuízos ás vezes não
causa â doente a sua ignorância?
N'estes casos a gynecologia não é uma
es-pecialidade no sentido commum da palavra, é
nada menos que metade da generalidade.
Convimos que os casos menos vulgares,
mais difficeis e complicados sejam tão somente
da competência de numero limitado de homens
excepcionalmente habilitados com longa
pra-ctica e dotados dos requisitos necessários para
o estudo completo de taes casos; mas isto, que
então é uma verdadeira especialidade, não é o
mais vulgar; o mais vulgar, o que mais vezes se
encontra, são os casos triviaes, de todos os dias.
Portanto n'este sentido, longe de ser uma
espe-cialidade, a gynecologia deve entrar nos
conhe-cimentos e na educação technica de todo e
qualquer medico.
mesmo que fosse uma especialidade só
culti-vada por numero limitado de adeptos não
se-ria a gynecologia muito mais necessáse-ria que
qualquer outra especialidade?
E no entanto, sabe-se que está prestes a
passar a realisação o desígnio de se crear cursos
especiaes de ophtalmologia, de doenças nervosas
e de medicina legal.
E comtudo a gynecologia que se nos
anto-lha como muito mais importante do que
qual-quer das precedentes sciencias, fica
completa-mente ao abandono. E é assim que em
Portu-gal, havendo meios para crear d'uma assentada
3 especialidades não ha meios de crear uma aula
em que se estudem as doenças das mulheres.
Os turcos ainda tomam o pulso ás mulheres
atravez da gaze nós fazemos menos alguma
cousa: suppomos que as mulheres não teem
doenças para não nos encommodarmos com
ellas.
* * *
Fomos suficientemente felizes para nos
podermos convencer practicamente durante este
ultimo anno do nosso tirocínio escolar da
im-portância capital do estudo practico da
gyneco-logia, assim como do estado lastimoso em que
entre nós se acha esta sciencia quer na practica
civil quer na hospitalar.
>7
Já no curso de clinica cirúrgica, já no de
clinica medica, nos podemos convencer da
fre-quência extraordinária dos casos
gynecologi-cos ; observamos algumas, relativamente
fre-quentes, operações de gynecologia e
procura-mos por todos os meios ao nosso alcance
adex-trar-nos nos modos de exploração e
diagnos-tico dos casos mais vulgares d'esté estudo, para
não se poder dizer de nós o que dizia em 1881
Alves Branco de alguns dos alumnos d'esse
tempo_ «que eram bastante felizes para ver
in-troduzir um especulo».
Isto devemos principalmente aos cuidados
dps nossos digníssimos professores de clinica
cirúrgica e de clinica medica, o primeiro
procu-rando obter para as suas enfermarias de
mulhe-res o maior numero possível de casos
gyneco-logicos, com aspecto cirúrgico, mais vulgares ;
o segundo determinando desde o principio do
anno lectivo tratar na secção de homens os
ca-sos de doenças geraes, propondo-se aproveitar
na secção de mulheres e dentro dos possíveis
limites e circumstancias materiaes, as doenças
proprias ás mesmas.
* * *
Fácil será perceber que o nosso fim, ao
lan-çar mão do assumpto cujo nome serve de
ti-tulo a este pequeno e resumido trabalho, foi
exactamente este: mostrar que nos tinha
im-pressionado a verdade de tudo quanto atraz
dei-xamos dito.
A razão porque escolhemos designamente
um dos capítulos dos desvios uterinos, foi o
termos observado alguns casos d'estes estados
tão frequentes e notarmos que nem sempre são
tão innocentes como se diz.
De modo nenhum suppomos estar á altura
de tratar não só este mas outro qualquer ponto
da pathologia feminina, o que unicamente
pre-tendemos é mostrar a necessidade impreterível
d'uma reforma que melhore, ou mais
exacta-mente, que inicie entre nós o estudo das
doen-ças das mulheres.
Indubitavelmente, é um trabalho cheio de
imperfeições; para elle peço a benevolência do
digníssimo jury a quem ha-de ser presente,
ro-gando-lhe respeitosamente que entre em
con-sideração com o pouco tempo que pôde dedicar
a este trabalho, quem de modo algum, queria
descurar dos trabalhos infinitamente mais
im-portantes e proveitosos, próprios ao curso do
5.
0anno. E' esta mesma a principal razão que
não nos permittiu ainda comprehender a
utili-dade, ou vantagem prática da lei que obriga o
alumno apenas termine o seu curso, a
apresen-tar um trabalho qualquer escripto.
No emtanto, e seja como fôr, procuramos
por todos os modos possíveis estudar bem o
■y
assumpto que escolhemos, apresentando as
ideas que vemos expressas nos gynecologistas
contemporâneos a respeito da materia e que
mais nos convenceram.
* * *
Dividimos este trabalho em quatro partes :
na primeira recordamos os pontos principaes
da posição e relações normaes do utero, conhe
cimento este absolutamente indispensável para
o estudo de qualquer anomalia de posição do
mesmo órgão; na segunda procuramos fazer
sobresahir a importância que tem o estudo dos
deslocamentos e principalmente da retroversão
nexão: é sabido que passa geralmente como
sendo de pouca ou mesmo nulla importância
o facto de o utero estar n'esta ou naquella
posição, e é em virtude mesmo de tão gratuita
hypothèse, que não se estuda os desvios uteri
nos j é facto reconhecido que ha muitos desvios
uterinos que não tem consequências de maior
e que nenhum incommodo causam ás suas por
tadoras, mas é também um facto, tanto ou mais
averiguado, que ha alguns desvios uterinos inten
samente perturbadores do estado normal da saúde das
mulheres que os tem e por consequência dignos e
merecedores de toda a attenção e de todo o es
tudo.
Na terceira parte estuda-se as différentes
sec-ções que constituem o estudo completo de
qualquer doença a saber: a etiologia e
pathoge-nia, os symptomas eo diagnostico, reservando,
porém, para estudar separadamente, o
trata-mento que constituirá a quarta parte.
P A R T K I
POSIÇÃO E MEIOS DE FIXAÇÃO NORMAES DO UTERO
L'anatomie est Ia base de l'édifice mé-dical.
CRUVEILHIEU. — Anal, descrip.
Sendo evidente que não podemos satisfatoria-mente conhecer as anomalias de posição de um ór-gão, sem previamente conhecermos a sua posição nor-mal, começaremos, tratando de um importante des-locamento uterino, por descrever, muito summaria-mente, a posição e a direcção do utero e os seus meios de fixação e contenção, demorando-nos mais especialmente nos pontos que tenham estreita ligação com a forma particular de desvios uterinos, que to-mamos para assumpto d'esté trabalho.
A posição normal do utero tem sido e ainda é assumpto de discussão para muitos gynecologistas, sendo certo que ainda hoje o que uns consideram como normal outros suppõem ser pathologico.
E' o que immediatamente salta aos olhos, lendo os auctores que modernamente tem escripto sobre anatomia e gynecologia; nas obras importantes de Cruveilhier, Luschka e Henle, o utero é representado com o fundo tocando na concavidade do sacro, de maneira que a direcção ficava sendo de traz para diante e de cima para baixo, que é o que hoje cha-mamos retroversão ; Claudio de Marburg considera como única posição normal do utero aquella em que elle se encosta tão intimamente ao sacro como os pulmões ás costellas; e como estes poderíamos citar ainda outros anatómicos abalisados.
Em i855 e 1857 porém, Braun Spaeth e Bennet já escreviam que a verdadeira posição normal era a anteflexão, dizendo os dous primeiros que normal-mente se deveria sentir a quasi totalidade da super-ficie anterior do utero atravez da parede vaginal an-terior, e affirmando o ultimo que esta anteflexão con-genita facilmente se poderia tomar como accidental e ser tratada irracionalmente como um estado mórbido; o mesmo dizia Aran (Archives générales de Méd.
i858), sustentando serem falsas a maior parte.das antefiexões uterinas. Depois d'estes, Panas, Goupil e sobretudo Schultze, tem contribuído para se conside-rar como normal a anteversão-flexão do utero, dentro de certos limites, bem entendido, pois que não
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mos concluir d'estas opiniões que não exista o estado
pathologico anteflexão, mas somente que a anteflexão
não é um estado pathologico do utero tão vulgar co-mo ainda hoje escrevem muitos senão a maior parte dos auctores modernos.
De que provém, pois, esta incerteza em deter-minar a posição de um órgão importantíssimo, este desaccordo tão notável dos gynecologistas? Creio que duas razões principaes, egualmente importantes o ex-plicam ; a primeira é que muitos dos anatómicos que consideravam como normal a retroversão baseavam a sua opinião em exames cadavéricos; ora é bem sa-bido de todos quanto é impróprio este meio para de-terminar posições exactas de órgãos no estado vivo; na maior parte das vezes encontra-se o órgão no es-tado de rigidez notável como é natural tratando-se de um musculo morto; geralmente encontra-se o utero apoiado sobre a parede pélvica posterior ou sobre a superficie anterior do recto, isto em virtude da situa-ção do cadaver e do pezo do órgão; ora nada d'isto se dá com o órgão no estado vivo, e portanto no esta-do normal. Hach cita esta-dous casos que mostram niti-damente a verdade d'isto : tendo verificado em uma mulher durante a vida uma anteflexão bem pronun-ciada, vinte e quatro horas depois de morta encon-trou o utero em retroflexão; n'um outro caso a ante-versão em vida tinha sido substituída depois de morta por uma retroversão; em ambos os casos a bexiga estava vazia. Vê-se, portanto, quanto é inexacto e
jeito a erros o exame cadavérico para verificar a exa-cta posição do utero durante a vida.
A segunda razão é que o utero embora tenha uma posição média que se pôde considerar como normal relativamente ao individuo e relativamente á generalidade dos indivíduos, gosa no emtanto de uma mobilidade grande que o faz apresentar no mes-mo individuo, e intermittentemente, posições variá-veis, circumstancia esta que é essencial ao bom des-empenho da sua funcção physiologica e ao dos ór-gãos circumjacentes. Comeffeito, sendo dado um certo e determinado espaço, a cavidade da pequena bacia, para conter o utero, a bexiga e o recto, de modo que estes três órgãos occupem esse espaço sem intervallos apreciáveis, e devendo dois d'estes órgãos (excluímos a hypothèse da gravidez), augmentar periodicamente de volume, é claro que o não poderão fazer senão diminuindo o volume de um para augmentar o de ou-tro e portanto o órgão que lhes fica intermediário, o utero, ha-de forçosamente occupar posições différen-tes; assim augmentando a bexiga de volume atirará com o utero que se lhe encosta á parede posterior e superior, para traz ; no estado de deplecção o utero apoiar-se-ha sobre a bexiga, d'onde anteversão phy-siologica. Vê-se portanto que o utero é um dos ór-gãos que mais difficuldades apresenta para a deter-minação da sua posição normal; e é por isso que Emmet diz que é impossível estabelecer qual é na bacia a verdadeira posição do utero.
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riavel e muito n'um mesmo individuo, é-o ainda mais de individuo para individuo.
No estudo que estamos fazendo da posição do utero, que, como acabamos de ver, é um estudo muito complexo e indispensável para a boa comprehensão do desvio uterino de que queremos tratar, é necessá-rio desde já considerar ordenadamente e por partes os seus diversos factores; teremos pois a descrever primeiramente a forma e a posição do utero no estado de vacuidade da bexiga e do recto; em segundo lo-gar as alterações physiologicas da posição do utero considerada n'esse mesmo estado, finalmente em ter-ceiro logar a relação entre as posições do intestino e do utero.
Quanto á primeira circumstancia apenas consi-deraremos a forma sob o ponto de vista da relação angular entre o eixo do corpo e o eixo do collo. E' admittido pela maior parte dos auctores, Schultze, Verneuil, Aran, Richet, filiaux, (1) e antes d'estes por Velpeau, Boullard, Piochaud, que o eixo maior do corpo do utero forma com o eixo do collo um an-gulo obtuso aberto para baixo no estado de deplecção da bexiga e para diante no estado de plenitude; al-guns mesmo como Klob, Martin chegam ao exaggero de medir este angulo dizendo que é de i65 graus, formando a vagina com o collo um angulo de 155 graus; como muito bem observa Schhultze, estas
medições não podem ter sido feitas senão n'um cada-ver com utero em retrocada-versão.
Comtudo um anatómico de grande auctoridade, Sappey, (i) não admitte este angulo, mas sim a di-recção rectilínea do eixo do corpo com o do collo do utero; e Bandl affirma também que quando o utero é extirpado e examinado post-mortem, raras vezes se encontra a anteflexão, mas sim a direcção rectilínea do eixo total do órgão ; cumpre comtudo objectar que a extirpação do utero implica a secção dos ligamen-tos utero-sagrados assim como a ausência da pressão intra-abdominal que são as duas principaes causas que no individuo vivo sustentam a anteflexão, de modo que um utero em leve flexão durante a vida, pôde apresentar-se completamente rectilíneo depois de ti-rado do cadaver.
Admittimos portanto que o utero physiologica-mente está em anteversão e anteflexão levephysiologica-mente pronunciada, que comtudo não se deve confundir com a anteflexão exaggerada, que Schutze chama « ante-flexão pathologica».
No estado de vacuidade da bexiga e do recto, a face anterior do utero, assenta sobre a parede supe-rior da bexiga ; esta é a posição que Schutze consi-dera como normal, de maneira que o eixo do corpo fica proximamente horisontal; não obstante Schultze
(i) Traité d'anatomie descriptive, 3.mo edit., tome IV, pag. 753.
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empregar um meio engenhoso de achar esta direcção servindo-se de um instrumento composto de uma sonda e um esquadro, (i) ê provável comtudo que este mesmo meio contribuísse para collocar indevi-damente o utero em anteversão e em anteflexão ; de modo que não se pôde dizer que a direcção do utero seja horisontal mas muito inclinada para diante; além de Schultze também Pirogoffe Van de Warker apre-sentam nos seus schémas o utero normalmente quasi horisontal. Deve-se notar que ha alguns que descre-vem como normal a direcção quasi vertical do gran-de eixo; é assim que o apresenta o clássico schema de Kohlrausch, tantas vezes copiado pelos auctores dos livros d'anatomia, que representa a posição do utero quando a bexiga está em plena distensão; ora nôs suppozemos anteriormente como normal o estado de vacuidade do mesmo órgão assim como o do re-cto, visto que é o estado que existe durante mais tempo no caso de saúde, pois a distensão plena quer da bexiga quer do recto é pouco duradoura e exige normalmente a sua prompta evacuação.
Consideremos agora as alterações physiologicas da posição do utero, isto é, todas as outras posições
que elle pôde affectar além da que ficou descripta como normal na maior parte do tempo.
Já dissemos que a mobilidade do utero é uma das principaes senão a principal condição do seu re-gular funccionamento physiologico ; a mobilidade do utero como um todo, isto é, a sua deslocação total, é de 2,5 a 5 centímetros; como já dissemos também, as principaes causas da sua deslocação physiologica são a bexiga e o recto; a bexiga á medida que se vae enchendo vae repellindo o utero para traz de modo que quando plenamente distendida pela urina, o utero está na posição em que o representa Kohl-rausch, isto é em retroposição, com o fundo quasi tocando na concavidade do sacro e por tanto com o seu eixo maior quasi vertical ; desde o momento que a bexiga se esvasia, o utero vai cahindo para diante collocando-se de novo em anteversão; n'este movi-mento o fundo descreve um arco de circulo cujo an-gulo mede de 45 a 60o (pelo esquadro de Schultze).
Não é só a bexiga que tem influencia nas posições do utero; no estado de replecção do recto a columna fecal que se accumula de cima para baixo impelle ne-cessariamente para diante a porção vaginal do collo que lhe é contigua ; se a bexiga está cheia, e se não houve augmento na flexibilidade do utero, como não ha logar para uma anteversão que naturalmente se deveria produzir no estado de vacuidade da bexiga, então o utero é obrigado a endireitar-se, a tomar uma posição quasi vertical e é impellido para cima e um pouco para diante; é n'estas condições que o
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présenta o desenho de Kohlrausch. Esta alteração da posição uterina é, no estado normal, transitória, visto que só se produz quando ha accumulação fecal na parte do recto que fica inferior ás pregas de Douglas, e como a replecção d'esta parte do recto é de pouca duração, é também pouco demorada a causa de des-locamento d'origem rectal. Notemos ainda que esta mesma causa impelle o fundo do utero um pouco para a direita.
Resta-nos tratar da terceira condição: influencia do intestino delgado. Como se sabe, as ansas intesti-naes apoiam-se sobre 'o utero e os seus annexos, e sobre elle exercem pressão notável, a ponto de deixa-rem as suas impressões na base e face posterior. De-paul em 1864 apontava este facto como uma prova
irrecusável da acção dos intestinos sobre o utero. Esta pressão das ansas intestinaes é uma das prin-cipaes causas que contribue para conservar o utero em anteversão. Geralmente no estado de vacuidade da bexiga e suppondo o utero na sua forma mais fre-quente, de anteversão, o intestino não occupa o fundo do saco peritoneal utero-vesical, mas sim a bolsa de Douglas, excepto na sua parte mais profunda; desde o momento em que a bexiga, distendendo-se, impelle o utero para traz, os intestinos são obrigados a sahir da bolsa de Douglas; nos casos de retroversão e re-troflexão esta bolsa está completamente vasia;
note-se que ha quem diga que esta bolsa jamais contém intestinos, opinião completamente errónea.
Concommittante com o intestino actua a pressão intra-abdominal, que é um factor importante para a conservação da situação normal do utero; segundo Schatz, na posição vertical pôde ser avaliada pelo peso de uma columna d'agua da altura de om,3o. E' fácil de reconhecer o seu effeito, observando a porção vaginal do collo por meio de um spéculo cheio ou univalve; d'esté modo vê-se essa porção retirar-se para traz, caso a bexiga esteja vasia, porque a pres-são abdominal actua principalmente sobre a face pos-terior do utero, e na occasião da inspiração, e é sa-bido que estando normaes os meios de fixação do utero, e suppondo fixa a inserção da vagina no mesmo, o corpo e a parte vaginal do collo podem considerar-se como os dous braços de uma alavanca do primeiro género.
E' claro que o effeito da pressão intra-abdominal é augmentado por todas as causas que obrigam a funccionar os músculos abdominaes, como são o es-forço e o canto, o salto, etc.
Temos até aqui estudado, da maneira que nos parece mais conveniente para o nosso fim, tudo quanto diz respeito á posição normal do utero; resta-nos uma parte não meresta-nos importante, egualmente in-dispensável como preparação prévia para o estudo
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de qualquer desvio uterino, e que entra como factor importantíssimo principalmente no capitulo da pa-thogenia dos mesmos desvios; é o estudo dos meios de fixação do utero.
Seremos, n'este ponto o mais breve possível para não occupar demasiado espaço, e porque o nosso fim não é fazer um estudo d'anatomia do utero.
Póde-se dizer que todos os órgãos e tecidos que structuralmente constituem o pavimento pélvico, são meios de fixação do utero; a vagina, a bexiga, as pregas peritoneaes e os diversos ligamentos do utero contribuem em maior ou menor gráo para este fim.
Passemol-os rapidamente em revista.
A vagina continúa-se com o utero ou insere-se n'elle abraçando o collo ao nivel da união do terço inferior com o terço médio; as fibras musculares su-perficiaes que tem em geral uma direcção longitudi-nal, atraz vão continuár-se com a camada externa da tunica muscular do collo do utero, em quanto que adiante vão inserir-se nos ramos ischio-pubicos, de modo que o utero póde-se considerar como appenso superiormente á vagina como uma flor ao seu pedí-culo, e como a vagina inferiormente está como que implantado no plano perineal do pavimento pélvico, segue-se que o utero está dependente emquanto á si-tuação, em parte pelo menos, dos movimentos d'esté pavimento; além da tunica muscular, também a mu-cosa da vagina continua em cima com a do utero. Dizem os auctores modernos e de boamente o
cre-mos, que a inserção da vagina no utero é de uma grande solidez.
Savage negou-se a admittir isto, Gaillard Tho-mas mesmo, posto não o negue, diz que não a consi-dera digna de grande importância. Observemos com-tudo que a celebre experiência de Stoltz, que extir-pando a vagina notou que o utero se conservava no seu logar, prova somente que esse órgão tem outros meios de fixação, além da vagina.
Notemos desde já que estando a vagina estrei-tamente ligada á bexiga pela sua parede anterior (se-pto vesico-vaginal), e pela parte posterior ao corpo perineal e recto (septo recto-vaginal), é claro que o utero indirectamente, por intermédio da vagina, está dependente, em parte, dos movimentos d'estes 2 ór-gãos; mas muito mais o está directamente pelos li-gamentos de que vamos occupar-nos.
Effectivamente são estes, a par da vagina, os principaes meios de fixação do utero. São em numero de 6 dos quaes 2 lateraes que o prendem ás paredes latcraes da excavação da bacia, ligamentos largos; 2 anteriores, que o prendem ao pubis, ligamentos
re-dondos; e dous posteriores que o prendem ao sacro, ligamentos ittero-sagrados.
Os ligamentos largos, formados por duas pregas
doperitoneu dirigidas dos bordos do utero para as pa-redes lateraes da bacia, quadriláteros, verticalmente estendidos, tem a forma de duas azas largas, ao lado do utero, que dividem transversal e verticalmente a cavidade pélvica em duas outras cavidades, uma
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terior para a bexiga, outra posterior, destinada ao re-cto. A dissecção d'estes ligamentos mostra que são compostos de duas laminas separadas por uma ca-mada cellulosa, que serve de substracto a vasos e nervos; cada uma d'estas laminas comprehende um folheto soroso, superficial, e um muscular pro-fundo.
O primeiro continua-se por todos os lados com o folheto superficial de todo o peritoneu, com o da bexiga, com o dos ligamentos utero-sagrados, etc.; o folheto muscular, intimamente adhérente ao soroso, é constituído por fibras lisas entrecruzadas predomi-nando comtudo a direcção transversal ; o anterior é continuação das fibras musculares superfkiaes da face anterior do utero e continua fora com o liga-mento redondo; o posterior das da face rectal do mesmo órgão e por fora continua até á symphyse sacro-iliaca.
Esta constituição indica desde já que estes liga-mentos tem firmeza notável, que impede o utero de se deslocar ou desviar para um ou outro lado.
Ha aqui uma circumstancia digna d'attençao; quando o utero augmenta durante a gravidez, enche o espaço que medeia entre os dois folhetos dos liga-mentos, de maneira que estes deixam d1existir; porém depois do parto, reconstituem-se mas não voltam completamente ao estado primitivo, ficam relaxados e portanto pouco podem obstar aos desvios e abai-xamentos uterinos. Isto explica o facto de se acharem muito expostas a quedas do utero, as mulheres do
campo, que geralmente se levantam cedo de mais de-pois do parto.
Vemos portanto que a grande influencia dos li-gamentos largos na conservação da situação e posição normal do utero, nas virgens e nulliparas, é diminuí-da em alto gráo, senão de todo abolidiminuí-da, nas mães, mormente multiparas.
Ligamentos redondos. —Do comprimento medio
de 14 centímetros, estes ligamentos estendem-se das partes anterior e lateraes do utero até ao orifício ex-terno dos canaes inguinaes, que atravessam, indo per-der-se nos sacos dartoicos dos grandes lábios, depois de ter dado algumas fibras á parede inferior do ca-nal inguica-nal e á espinha do pubis; achatados e lar-gos na sua parte interna, proximo ao utero, vao-se tor-nando cylindricos e diminuindo de volume á medida que se approximam dos canaes inguinaes.
Na sua composição entra o peritonei! (aza ante-rior do ligamento largo) fibras musculares striadas e lisas, artéria, veias, tecido elástico e tecido conjun-ctive; as fibras musculares striadas nascem da pa-rede inferior do canal e da espinha do pubis, e tendem-se pelos ligamentos até meia distancia do es-treito superior e do utero, sem, porém, chegarem a este órgão.
As fibras musculares lisas nascem das partes la-teraes do utero, principalmente da sua metade supe-rior. Não continuam porém até á extremidade ingui-nal do ligamento, de modo que este tem apenas só fibras lizas no seu terço interno, só fibras striadas no
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seu terço anterior ou externo, e ambas as espécies no seu terço medio. As funcções d'esté ligamento são reconduzir a madre para a sua posição normal de anteversão, quando d'ella tenha sido desviada pela replecção da bexiga.
Ligamentos posteriores ou ittero-sagrados. — Formados por numerosas fibras musculares lizas, além de tecido conncctivo, alguns vasos e poucos nervos, envolvidas pelo peritoneu, estendem-se das partes lateraes e inferior do corpo do utero, ás ter-ceira e quarta vertebras sagradas, immediatamente por dentro da symphyse sacro-ilica. A extremidade anterior insere-se na união da face posterior da ma-dre com a parede posterior da vagina, de maneira que sustentam não só o utero pela sua extremidade inferior mas também a vagina pela sua parte superior e posterior. A forma é a de um crescente de conca-vidade voltada para dentro, forma apropriada a con-tornar o recto, ao qual na sua passagem enviam al-gumas fibras, d'onde o nome que também se lhe tem dado de lig. recto-uterinos. Os auctores inglezes cha-mam a estes ligamentos, pregas de Douglas e ao fundo do saco peritoneal recto-uterino chamam bolsa de Douglas, que tem importância capital em gynecologia sob todos os pontos de vista.
Esta bolsa, limitada adiante por parte da face posterior da porção supravaginal do collo e pelos 3 centímetros superiores da parede posterior da vagina, a contar na inserção no utero, pôde ser occupada em casos de retroflexáo pronunciada do utero, pelo corpo
d'esté órgão, que os dedos exploradores introduzidos na vagina sentem em forma de saliência ou
proemi-nência notável no fundo de saco posterior da vagina. Os ligamentos utero-sagrados contribuem pode-rosamente para sustentar o utero na sua situação normal; como os outros ligamentos, na gravidez alongam-se e como depois do parto não adquirem as dimensões primitivas, o utero adquire uma maior mobilidade, principalmente nas multiparas, e cede mais facilmente sob a pressão das vísceras abdomi-naes.
Os ligamentos vesico-uterinos de alguns auctores, constituídos por feixes estendidos do utero á bexiga, ou não existem ou são rudimentares (Sappey), de
modo que não teem importância alguma.
Ficam pois assim estudados os diversos meies de fixação do utero, estudo importantíssimo, sem o qual não se poderia efficazmente estudar ou compre-hender a theoria dos desvios uterinos.
Releve-se-me o ter sido um pouco longo n'esta primeira parte, mais longo do que desejava, atten-dendo a que em questões de anatomia, a parte mais rigorosa e mais exacta das sciencias medicas, ou se não diz nada ou se diz com clareza e precisão, tanto mais indispensáveis por se fallar na ausência de pre-parações ou exemplares naturaes que são sempre a
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explicação mais intelligivel e clara de qualquer as-sumpto d'esta sciencia.
Na parte seguinte tractaremos da questão que tem sido e ainda é tam debatida, mas cuja existência se vai evidenciando progressivamente á medida que a importantíssima e ainda nova sciencia da gynecolo-gia se vai aperfeiçoando dia a dia.
I M P O R T Â N C I A P A T H O L O G I C A DA RETROVERSÃO-FLEXÃO
W h e n I consider that by far the greater number of patients w h o attend for a d vice on uterine complaints suffer from r e -troflexion a n d its various effects on the system, I need offer no apology for b r i n -ging this very important subject under your notice fur discussion.
MURDOCH CAMERON, professor adjunto
de obsteiricia na Universidade de Glasgow ( ï ) .
A questão da importância dos desvios uterinos tem sido objecto das mais contradictorias opiniões, das ideias mais oppostas por parte dos gynecologis-tas ; essa importância tem soffrido aigynecologis-tas e baixas con-forme o modo de ver de cada pathologista e, o que mais tem contribuído para esta incerteza, de cada
(i) Communicaçãoá Sociedade gynecologica e obstétrica de Glasgow, in «The Glasgow Medic. Jour.», n.° 6, junho, 1887.
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clinico. Nem isto admira porque, como vimos já na primeira parte, antes de se discutir, de se acceitar ou recusar a sua importância, é obvia a necessidade do perfeito conhecimento da symptomatologia d'essas anormalidades de posição, e mais ainda em que sen-tido ou até que ponto se deverá tomar esta palavra como estado pathologico, o que importa, antes de tudo, o conhecimento perfeito da normalidade de po-sição do órgão, conhecimento que, como sabemos, não existe, ou pelo menos é ainda assumpto de du-vidas por parte de alguns.
Antes de encetarmos qualquer ordem de consi-derações a este propósito, cumpre desde já fazer uma restricção; o utero pode estar desviado simplesmente por defeito nos seus meios de fixação normaes ou na sua forma, e pode estar desviado permanentemente por meios de fixação anormaes, por adherencias; quanto a esta segunda hypothèse ninguém discute a sua importância pathologica, por isso não trataremos d'ella n'este logar; tratamos tão somente da que é assumpto litigioso, isto é, da primeira hypothèse.
Dissemos que esta importância tem sido ora exaggeradamente augmentada, ora nimiamente de-primida e lançada á conta unicamente de perturba-ções próximas, só por acaso concommittantes; medi-cos antigos attribuiam aos desvios uterinos grande somma de males que as mulheres apresentavam, como a hysteria, diversas paralysias, dores abdomi-naes e perturbações funccioabdomi-naes do utero, etc., etc.
Vel-peau, Valleix e Simpson, sustentavam em i854, a importância, para elles capital, dos deslocamentos uterinos; como todas as opiniões radicaes e por isso mesmo affastadas da verdade, este modo de ver te-ve os seus contradictores, Aran, Bennett e Becque-rel, que, em importantes discussões levantadas no seio da Academia de Medicina de Paris, affirmavam que os desvios uterinos não sendo acompanhados por alguma lesão de textura, não criam nenhuma per-turbação constitucional, não levantam nenhuma desor-dem séria, não são, emfim, culpados do extenso rol de culpas, com que o illustre Velpeau e seus sequazes os accusavam ; havia dôr? incommodo de mais cui-dado? o deslocamento era apenas epiphenomeno de uma lesão mais grave; com taes premissas, é claro que sendo cohérentes na prática, tiravam como con-clusão a inutilidade de todo o tratamento próprio, a condemnação dos pessarios.
A regra sempre verdadeira in medio est virtus mostra evidentemente a falsidade de uma opinião que contradiz outra exaggerada, quando no ardor da discussão sustenta asserção egualmente absoluta mas radicalmente contraria. Entre os pathologistas d'esté segundo grupo citemos, como exemplo claro do que acabamos de dizer, Scanzoni : « as flexões do utero não são seguidas de nenhum perigo; e não tem im-portância senão quando complicadas por alguma al-teração de textura do órgão.» Lemos vários auctores, pathologistas distinctos e clínicos experimentados que se tem esforçado em accumular valiosos argumentos
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ladeados por volumosas estatísticas, melhor ou peior interpretadas, com o fim de sustentarem os seus en-contrados modos de vêr ; apreciamos as suas obser-vações e meditamos n'ellas, applicando-as tanto quan-to possível ao estudo de alguns, pouquíssimos, casos clínicos que podemos observar; isto fizemos sem
par-ti-pris, sem qualquer opinião preconcebida, tão
so-mente com o legitimo desejo de estudar consciencio-samente tão litigioso assumpto. Vamos* pois expor em resumo o que alguns dos principaes gynecologis-tas concluem das suas observações e o que as suas estatísticas permittem deduzir.
E' frequente, é mesmo geral a opinião de que as versões e flexões do utero existem e frequentíssimas vezes em muitos indivíduos, sem que por isso soffram incommodo importante ; d'onde, dizem, se deve im-mediatamente concluir que os ditos estados do utero não tem importância, e como corollario, tira-se a sup-posição de que uma mulher em perfeito estado de saúde pôde ter, ou se pôde esperar que tenha um desvio ou flexão do utero.
Dous distinctos gynecologistas modernos Vedeler (de Christiania) e Herman (de Londres), recentemente (i883 e 1884) apresentaram estatísticas desenvolvidas de que procuraram deduzir esta ultima conclusão.
As estatísticas de Vedeler, colligidas em Chris-tiania, mostram que em 3o 12 casos os desvios e fle-xões uterinas são frequentíssimas.
Ora as estatísticas podem, quando conveniente-mente interpretadas, dizer muito, mas podem também
não dizer nada, ou o que é mais notável, provar exa-ctamente o contrario do que pretende quem as cons-titue, quando não são mais que um amontoado de casos por assim dizer mudos que parece quererem substituir ao valor real de cada caso a forca numeri-cal de muitos sem significação.
Examinemos pois a estatística de Vedeler nos seus diversos elementos.
As inspecções feitas em virgens e em mães de-ram a seguinte proporção por cento :
Ahteflexão 5 4 % Anteversáo 12 ., Retroflexáo 8 » Retroversão . . . 10 » Posição normal i5 „ Prolapso . . o,5 »
Note-se desde já que o que elle chama anteflexão e anteversão é a posição mais frequente, emquanto que a que elle chama normal é representada por pe-queníssima proporção. Muito provavelmente a maior parte dos casos pertencentes ás duas primeiras posi-ções, pertencem ao que nós na primeira parte d'esté trabalho chamamos posição normal, attribuindo elle esta ultima designação á posição de Kolrausch, como fazem muitos escriptores de anatomia; nem por ou-tro modo se pôde conceber a estatística visto que elle divide as anteflexões em 3 gráos : primeiro, em que o corpo faz com o collo um angulo obtuso; se-gundo, em que o angulo é recto proximamente ;
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ceiro, em que é agudo ; ora o terceiro gráo, casos ex tremos, é com certeza raríssimo comparado com os ontros dois e mesmo o segundo que já é pathologico, não pôde racionalmente contarse como muito vulgar, portanto a maior parte das anteflexões absolutas de Vedeler devem pertencer ao primeiro gráo que é a forma normal do utero ; demais não admira que n'uma estatística tão numerosa de 3o 12 casos, uma pequena fracção da totalidade das mulheres examina das estivessem com a bexiga repleta e portanto apre sentassem o utero era posição quasi vertical (de Kol rausch), que seria o que elle descreve na estatística com o nome de posição normal (i5 o/°).
Vejamos agora como elle decompõe a sua esta tística. sa a s—■ CD m CP S cã
1
<P3 em / utero são 7 % 8 71 II 3 414 casos Virgens \ ' » doente 6 3 70 17 3 52 » / » são Mães ' 3i 25 108 19 i5 1090 » / » são Mães ' ( » doente 38 26 94 25 15 ioo5 »Façamos-lhe a critica. Como já disse, não pode-mos deixar de suppôr que a maior parte dos casos que elle designa sob o titulo posição normal, são ver-dadeiras retroversões, e pelo contrario a maior parte dos casos, 2 terços pelo menos, que elle classifica co-mo anteflexões e anteversões entram na posição que nós na primeira parte d'esté trabalho supposemos como normal para o utero. Sommando pois a percen-tagem do quadro posição normal com a percenpercen-tagem
retroversão, temos 18 e 20 o/° respectivamente para o
utero são e doente das virgens, e õo e 63 °/o Pa r a ° utero são e doente das mães.
Uma razão, posto que não muito forte, que nos confirma mais no modo de apreciar esta estatística é a comparação com uma outra estatística de Emmet, também numerosa (2070 casos) em que o numero das versões 38 °/o> é proximamente egual ao numero das versões da estatística de Vedeler, se sommarmos as três parcellas posição normal, retro e anteversão, o que dá 37 %•
Ha porém um ponto importante a esclarecer n'esta estatística, e vem a ser, qual a base da dis-tincção do utero são e do utero doente. O fim de Vedeler era procurar estabelecer comparação entre os casos em que os indivíduos examinados estavam em perfeito estado de saúde e aquelles em que elles apre-sentavam doença manifesta ou se queixavam de al-gum incommode Salta á vista a dificuldade de tal tentativa ; antes de tudo, o que se deverá entender por saúde perfeita ? saúde é um termo relativo e
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feita é uma qualidade tão rara que não está em máo campo quem a quizer negar, diz com razão Hewitt.
Mais fallaz ainda é o seu critério das queixas; effectivamente quem não sabe que muitos medicos desprezam quasi completamente, lançando á conta de phantasia, alguns symptomas subjectivos, aos quaes outros ligam talvez demasiada importância?
E1 certo que muitas vezes as doentes exaggeram, quando não inventam, symptomas de somenos im-portância c quasi nulla significação; mas também não é menos certo que frequentemente, já por desleixo, já por ignorância, o clinico passa por de alto, ou despreza completamente, symptomas que, bem apreciados, for-neceriam ás vezes elementos importantíssimos para o diagnostico, que d'est'arte fica defeituoso e incom-pleto.
Um bom diagnostico é a maxima dificuldade e a maior perfeição da clinica.
Na estatística supramencionada o critério funda-mental de que se serviu Vedeler, e que foi o de estado mórbido ou são do utero, commetteu elle uma falta imperdoável; evitou contar entre os symptomas de não
perfeito estado de saúde, a dysmenhorrêa, que o é, e
importantíssimo.
Por isto se vê que a conclusão que Vedeler tira da sua estatística, a saber que as flexões e desloca-mentos existem na mesma proporção no utero sadio e no utero doente, não é legitima nem de modo ne-nhum acceitavel.
investi-gacão das perturbações produzidas, era o das queixas formuladas pelas doentes.
Supponhamos que effectivamente seja verdade, o que comtudo é raro, que uma mulher não se queixe relativamente ao assumpto de que tratamos; have-mos inferir d'aqui que ella esteja em perfeito estado de saúde? E ' claro que não
Na maior parte das doenças chronicas, os pri-meiros estádios das alteraçõ -s de um dado órgão, não provocam perturbações funccionaes, que se traduzam objectiva e subjectivamente por uma maneira im-portante; e comtudo nem por isso deixa o individuo de estar effectivamente doente, como mais tarde re-conhecerá devido aos progressos da doença.
Mostra isto que a accusação de symptomas por parte das doentes é uma circumstancia muito relativa, que pôde ter ou não ter importância, e que depende por muito do clinico.
A pathologia d'esté assumpto está ainda muito longe de ser completamente conhecida ; não podemos pois dizer, nem dizemos, que toda e qualquer flexão seja necessária e fatalmente acompanhada de sym-ptomas, ou de perturbações do lado do utero; mas a
these que affirmamos é a grande correlação entre mui-tas perturbações uterinas e um certo numero de fle-xões e versões do órgão.
Effectivamente é notável o observar-se que gran-de numero gran-de mulheres que apresentam os sympto-mas chamados uterinos, apresentam ao mesmo tempo
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flexões e versões do utero; d'aqui é natural dedu-zir-se uma certa relação de causa a effeito.
Até agora temo-nos referido á opinião de Vede-ler sobre a importância em geral das flexões e ver-sões uterinas, e tanto mais demoradamente quanto mais conhecido é que Vedeler é um gynecologista dis-tincto e auctorisado e portanto não podemos deixar passar sem reparos uma asserção que outros não me-nos distinctos especialistas não perfilham; haja em vista o nome auctorisado de Graily Hewitt, de Lon-dres, cuja opinião ou modo de ver mais nos convence.
Uma consequência importante e muito frequen-tes vezes dependente dos desvios e flexões é a dys-menorrhea.
Vedeler n'uni trabalho sobre a dysmenhorrêa em relação com as flexões e vários outros estados do utero, basea-se em duas series de observações, uma de 252 mulheres que não tinham dysmenhorrêa e que o consultaram por doenças sem relação com o utero, outra de ioo mulheres dysmenhorreicas. Com-parou as mulheres nulliparas não dysmenhorreicas com as nulliparas dysmenhorreicas, porque só assim se podia estabelecer relação, e o resultado foi o se-guinte :
flexões flexões de
pronunciadas todos os graus
160 nulliparas não dysmen. 29 °/0 64 °/0
82 » dysmen.. . 3 5 % 7 6 % nota-se uma differença de 6 °/o a favor da segunda classe de mulheres com flexões pronunciadas e de
12 °/o a favor das mesmas com todas as flexões. Basta attender a estes numéros dados pela mesma estatística de Vedeler, para se não acceitar a olhos fechados a asserção do auctor de que não existe re-lação alguma entre as flexões e a dysmenhorrêa.
A negação de tal relação não cabe somente a Vedeler.
Herman (de Londres) n'um trabalho lido na So-ciedade Obstétrica de Londres em 1881 sobre a re-lação da dysmenhorrêa com as flexões, e outro em
1882 sobre a retroflexão considerada debaixo do mesmo ponto de vista, tentou provar que a simples curvatura do utero não é causa sufficiente para a pro-ducção da dysmenhorrêa; por outra, oppunha-se á origem mecânica d'esté phenomeno.
Limitando-se cãs anteflexões affirma que não ha evidencia anatómica de que estes estados opponham obstáculo á sahida do fluxo menstrual; a isto respon-de, e bem, Galabin, dizendo que nas autopsias e de-vido ao estado dos tecidos, mal poderiamos esperar achar tal evidencia; se não ha evidencia anatómica, o que é pouco importante no caso presente, ha com-tudo evidencia clinica; que significam os casos cita-dos por Graily Hewitt de úteros em forte anteflexão com dilatação produzida pela accumulação de fluido menstrual e puriforme? demais é bem'sabido que não raras vezes passam coalhos com grande custo em casos de dysmenhorrhêa, assim como a sahida de sangue em golphadas de tempos a tempos.