Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Jornalismo realizado sob a
orientação científica do Professor António Granado
À Inês
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, por tudo.
Ao professor António Granado que sempre incentivou todas as minhas aventuras prolongadas desde o início deste mestrado.
Ao Leandro França, por ter feito comigo o interrail pelos Balcãs que eu tanto desejava e que me levou até este projecto.
À Catarina Durão Machado, por toda a paciência, troca de frustrações, e extras teatrais.
À Chelsea Charles e o Xili Ismaili, por me terem recebido e apoiado no Kosovo, em tudo que lhes era possível. Espero voltar a encontrá-‐los em breve.
Web-‐documentário “Quem és tu, Kovoso?” Fábio Jorge Monteiro Lino
PALAVRAS-‐CHAVE: Kosovo, Identidade, Web-‐documentário, Registo de história oral, Nostalgia.
KEYWORDS: Kosovo, Identity, Web-‐documentary, Register of oral stories, Nostalgia.
RESUMO
O Kosovo declarou-‐se independente a 17 de Fevereiro de 2008, sendo, neste momento, o segundo país mais recente do mundo, só ultrapassado pelo Sudão do Sul em 2011. Após a desintegração da ex-‐Jugoslávia e todos os conflitos militares que se sucederam, a história do Kosovo, as suas origens, é talvez a que apresenta ainda mais questões por responder. O web-‐documentário “Quem és tu, Kosovo?” trata-‐se de um projecto documental de recolha de histórias de vida, onde o ponto central de cada entrevista é a procura de uma paralelismo entre a identidade dos seus cidadãos e o seu país. Este projecto, e o trabalho desenvolvido pelo jornalista no país, propõem-‐se a ser uma experiência piloto para ser apresentado à população do Kosovo, e não só, com o objectivo de criar um arquivo de histórias do país e aumentar a diversidade de perspectivas identitárias.
ABSTRACT
Kosovo declared its independence on 17 February 2008. Currently it is the second newest country in the world, only surpassed by South Sudan which became independent in 2011. After the disintegration of the former Yugoslavia and the military conflicts that followed, Kosovo’s history is perhaps the one that left more has more questions unanswered. The web-‐documentary "Who are you, Kosovo?" is a project that aims to collect life stories. The focus of each interview lays in the parallelism between citizen’s identity and the country they live in, Kosovo. This project, as well as the field work developed in site by the journalist, is a pilot experience to be presented to the people of Kosovo and others. “Who are you, Kosovo?” aims to create an archive of stories of the country and increase the diversity of identity perspectives.
Índice
Introdução ... 6
Pressuposto inicial ... 11
Capítulo I ... 14
I.1 -‐ Estudo de caso: a Identidade Kosovar ... 14
I.2-‐ Questão de partida ... 16
I.3-‐ O projecto ... 19
I.3.1-‐ Enquadramento ... 19
I.3.2 Publicação do projecto ... 21
I.4 -‐ Contextualização histórica do Kosovo ... 23
I.4.1 – Localização geográfica ... 23
I.4.2-‐ Origens do Kosovo ... 25
I.4.3-‐ O Kosovo no contexto da ex-‐Jugoslávia ... 28
I.4.3 – Kosovo, hoje ... 35
Capítulo II ... 37
II.1. Entrevista e Etnografia ... 37
II.2-‐ Nostalgia e Memória ... 40
II.3-‐ Documentário e Modos de Representação ... 42
II.4-‐ Utilização de imagens de arquivo ... 44
Capítulo III ... 45
III.1-‐ Amostras do projecto ... 45
III.1.1 Exemplo 1: Prekaz e o potencial da utilização de imagens de arquivo 45 III.1.2. Exemplo 2: Excerto da entrevista de Shaip Ismail ... 45
III.1.3. Registo do material recolhido ... 46
Conclusão ... 47 Referências bibliográficas ... 49 Anexos ... 51 ANEXO I ... 52
INTRODUÇÃO
O projecto “Quem és tu, Kosovo?” surgiu por culpa dos meus olhos, curiosidade, e vontade de pensar.
Pensar não é um dos verbos mais comuns em jornalismo, infelizmente. Fala-‐se muitas vezes no reportar – colar factos se quiser ser pejorativo –, objectividade, integridade, mas pensar é um luxo. O relógio é um chicote que invade as redacções todos os dias, na urgência de comunicar o que se está a passar no mundo.
É engraçado lembrar a etimologia do verbo pensar: “formar uma ideia” vem do latim pensare, com o mesmo significado, mas originalmente querendo dizer “pendurar para avaliar o peso de um objecto”, de pendere, “Pendurar, pesar.” Este tipo de processo implica a disponibilidade de tempo.
Porém, uma redacção jornalística tem uma velocidade e o mundo tem outra. Não podia estar mais empático com a visão de Marc Deuze, quando descreve algumas características que os jornalistas consideram ser o seu trabalho:
“De acordo com os jornalistas, o trabalho deles é dar as notícias. Isto transmite ao trabalho deles uma aura de instantaneidade e imediatismo, como “notícia” sublinhe-‐se a novidade da informação como princípio definidor. O trabalho dos jornalistas, portanto, envolve noções de velocidade, tomada de decisão rápida, precipitação, e trabalhar numa velocidade superior ao tempo real.” (Deuze 2005)
Pensar sobre a própria profissão e os seus meios de acção está essencialmente relegado para o meio académico – salvo os casos em que o jornalista é também professor universitário, por exemplo.
Em 2011, quando comecei a minha jornada no jornalismo e me auto-‐propus a um estágio no Jornal Público, estava longe de pensar que esse seria um ponto de viragem na minha carreira académica e profissional. Na época, o jornal era
assombrado por uma nova vaga de despedimentos prestes a ocorrer e uma mudança de instalações. Desta experiência, tenho na memória gravada a imagem de um dia de greve que ocorreu contra os despedimentos: uma estagiária, tal como eu, que se tinha juntado em acto de solidariedade com os membros restantes da redacção à entrada do edifício, tinha ao peito um papel que dizia: “Nós somos escribas, não escravos.”
Eu não quero ser escriba, pensei – escriba no sentido de copista, não criador. Hoje, sem ser a minha reacção inicial, penso também outra coisa: como é possível que alguém que tenha acabado de sair do meio académico não tenha a capacidade de reflexão sobre a própria profissão e seja capaz de carregar aquilo ao pescoço? Nenhum jornalista que se digne gosta de ser retratado como um escriba, acho eu.
Prossigamos. Até ao mês de Julho de 2013 nunca tinha estado no Kosovo. Não foi o acaso que me levou lá – estava de férias e a fazer um interrail pelos Balcãs -‐, mas foi a curiosidade sobre tudo que encontrei que me fez lá ficar mais tempo do que o previsto: tinha encontrado a história que andava à procura para a componente não-‐ lectiva do meu mestrado. A escolha de fazer um web-‐documentário sobre as histórias de vida do Kosovo foi uma decisão orgânica, pouco reflectida, ou melhor: uma inspiração momentânea que decidi não desperdiçar.
Descobri um país, estranho a si próprio, e aos seus cidadãos, nascido há menos de cinco anos – o segundo mais recente do mundo. E porquê web-‐documentário? O primeiro choque ao chegar ao país foi visual. Depois, as histórias de vida que ouvi durante a minha primeira estadia no país eram tão variadas, que parecia que muitos deles sofriam de síndrome bipolar – daí a opção de isolar cada testemunho num vídeo singular. Pristina, a capital, era uma cidade distante de todas as que já visitara nos Balcãs – era mais fácil encontrar uma bandeira americana que uma do Kosovo. “Ainda não existe algo que se possa denominar como cultura kosovar”, escrevi meses depois numa reportagem para o suplemento Fugas do jornal Público. (Monteiro 2013)
T.S. Elliot, celebrizado pelo seu trabalho poético, também se debruçou sobre as noções do surgimento de uma cultura numa dada região e o seguinte parágrafo pode ser elucidativo para interpretar o cenário que encontrei no Kosovo:
“(...) para que uma cultura floresça, um povo não deve ser demasiado unido ou demasiado dividido. O excesso de unidade por vezes resulta do barbarismo e pode conduzir à tirania; o excesso de divisão pode ser um efeito da decadência e também pode levar à tirania – qualquer destes excessos impedirá o desenvolvimento cultural.” (Elliot 1996)
O grau adequado de unidade e diversidade não pode ser determinado igualmente para todos os povos em todos os tempos – o caso do Kosovo e os acontecimentos que se sucederam após desmoronamento da ex-‐Jugoslávia devem ser interpretados nesta perspectiva. Nem propositadamente, Elliot remata esta ideia com: “Depois da experiência da guerra, não é preciso recordar as vantagens da unidade administrativa e de sentimentos. Contudo, supõe-‐se frequentemente que a unidade do tempo de guerra deve ser mantida em tempo de paz. Entre qualquer povo entregue à guerra, particularmente quando essa guerra parece – trate-‐se embora de uma aparência provocada – puramente defensiva, é natural encontrarmos uma unidade espontânea de sentimentos que é genuína e também uma imitação dessa unidade por parte daqueles que apenas desejam escapar ao ódio, além da submissão, por parte de todos, ao comando das autoridades constituídas.” (Elliot 1996)
Decidi avançar. Os livros sobre o conflito e a história do país são dissonantes entre si, talvez o relato mais exacto e abrangente da história do Kosovo possa ser encontrado no livro do professor catedrático de Oxford, Noel Malcolm, Short History of Kosovo. Procedi também à leitura de outros especialistas sobre o conflito do Kosovo, como o jornalista Tim Judah, que cobriu o conflito para a revista Economist. Judah escreveu parte essencial dos relatos jornalísticos já estudados sobre o conflito: Kosovo:
What everyone needs to know (2008), The Serbs: History, Mith and destruction of Yugoslavia (1997) e Kosovo: War and Revenge (2000).
Li literatura de ficção e não-‐ficção, para me embeber no espírito da ex-‐ Jugoslávia e Albânia, que apresento na bibliografia, apesar de não citar passagens. Na coletânea, Burn This House – que me foi oferecida por Chelsea Charles -‐ encontrei diversos relatos jornalísticos e históricos sobre o efeito em cadeia do desmoronamento da ex-‐Jugoslávia nos Balcãs. Explorei os livros do filósofo Noam Chomsky sobre a concepção de intervenções militares humanísticas e fiz mesmo uma entrevista via Skype ao próprio, para esclarecer alguns pontos e questionar a perspectiva do especialista 14 anos após o fim “oficial” do conflito.
O questão principal que me guiou neste web-‐documentário foi tentar perceber como é que os relatos de história oral dos seus cidadãos reflectem a identidade Kosovar, se é que existe tal coisa, e a história do seu país.
Por sorte, não consigo encontrar melhor termo para descrever a situação, foi-‐ me concedido acesso ao arquivo histórico de vídeo do Kosovo, onde encontrei diversas imagens de arquivo inéditas da época do conflito – todo o arquivo estava “esquecido” numa caixa de papelão num móvel, nos escritórios da administração interna do país. Tive o privilégio de retirar o plástico aos DVD que ia consultar e copiar; comprei os direitos de utilização pelo preço simbólico de 10 euros.
O Kosovo existe oficialmente há 6 anos, trata-‐se de uma criança a espernear, e só 106 países no mundo o ainda reconhecem. Por exemplo, Espanha não reconhece o Kosovo e diversos cidadãos comuns, não ligados a instituições políticas, ao falarem comigo justificam essa posição face à situação da Catalunha.
Para terminar a introdução, acho importante assinalar que a maioria dos meus colegas de mestrado escolheu durante o segundo ano de mestrado fazer um estágio num meio comunicação já estabelecido e ganhar experiência naquele “espaço”, ou fazer uma dissertação académica. Especialmente na primeira escolha, são sujeitos a produzir dezenas de notícias e reportagens durante um período de três ou seis meses.
Não querendo desconsiderar a opção tomada por eles – se eu não tivesse já tido oportunidade de estagiar numa redacção, seria também a minha primeira escolha
-‐ optei por tentar contar uma, e apenas uma, história em profundidade, por não me conseguir identificar com aquele tipo de velocidade de produção noticiosa. Desta forma, espero conseguir lançar algumas luzes sobre a história enigmática do Kosovo.
PRESSUPOSTO INICIAL
“Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos. Convence-‐te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-‐nos tomada, outra parte vai-‐se sem darmos por isso, outra deixamo-‐la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência.” Cartas a Lucílio, Séneca
Comecemos pelo que é essencial: o tempo, o elemento mais importante na produção de grande jornalismo. Esta citação inicial pode ser interessante para pensar que os conselhos filosóficos de Séneca sobre a gestão do tempo pessoal continuam actuais hoje, 2014, enquanto as notícias e reportagens do jornal do dia anterior parecem o objecto mais arcaico e desprovido de sentido – pelo menos, quando pensado na cosmologia portuguesa. No final de contas, qual dos dois objectos, o livro de Séneca ou o jornal de ontem, é o mais actual?
Em 2012, numa entrevista ao jornal I, dada ao jornalista Nuno Ramos de Almeida, Manuel António Pina, jornalista e escritor, reflectiu assim sobre os jornais: ”Aprendi com os grandes tipógrafos, às vezes estava na chefia de redacção cheio de problemas com os títulos e eles diziam-‐me: ’Não se preocupe que amanhã isto é para embrulhar o peixe’”1. O jornal de hoje é lixo amanhã, com valor zero a não ser como testemunho histórico civilizacional. O tempo talvez seja dos substantivos mais mal tratados no campo académico do jornalismo, pois a produção jornalística tem uma essência perene – que acaba em si própria -‐, que não se perpetua no tempo, não partilhando o espírito do trabalho artístico e, na maioria das vezes, a sua qualidade. Sinceramente, apesar destes argumentos, tenho mais apreço pelos jornais que isto.
1 http://www.ionline.pt/node/181453
Se pensarmos os jornais como maçãs com relógios biológicos, que podemos comprar nos quiosques ou fazer download no nosso computador/tablet-‐ temos a certeza que a cada 24 horas uma vai estar podre e já não pode ou não interessa ser consumida – falta saber também, desde a partida, se a queremos consumir ou não, porque isso também é uma questão. Se perguntarmos a qualquer consumidor de informação, raríssimo será o que lê todos os jornais, ou seja, é correcto afirmar que os leitores criam uma ligação empática para com o meio de comunicação. Neste ponto, o perfil editorial de uma publicação irá ser o ponto central no processo de escolha do seu leitor, como já foi comprovado em diversos estudos.
Enquanto objecto, o jornal do dia de ontem vai ficar a ocupar espaço – físico ou virtual – com o passar do tempo e teremos de nos livrar dele. Existem, claro, excepções. Estes casos esporádicos de peças jornalísticas a preservar incluem o grande jornalismo a que me refiro neste pressuposto inicial.
O tempo de produção de uma notícia mede-‐se em horas e poucos serão os repórteres portugueses que tiveram mais de 15 dias para escrever uma grande reportagem – isto é importante quando se compara o nível dos trabalhos produzidos com o panorama internacional. Após uma pesquisa extensiva, não encontrei qualquer estudo académico português que tenha compilado este tipo de informação, demonstrando o que já tinha afirmado anteriormente. O mesmo aplica-‐se a nível internacional, apesar de ser possível encontrar diversos testemunhos pessoais de jornalistas sobre quanto tempo despenderam na escrita de uma história.
Outro dado relevante: Em média, uma reportagem de 50.000 caracteres numa publicação dos EUA está avaliada num valor mínimo de 1500 dólares, enquanto em Portugal a mesma chegaria no máximo aos 500 euros, já num caso excepcional.2 Logo, não é de estranhar que não exista uma cultura de freelancer em Portugal, dado que é inviável economicamente sobreviver desta forma. Existem também outras dificuldades reais em Portugal: os editores não respondem aos pitchings, pedem as reportagens de graça, só pela “gratificação da publicação”.
Isto tudo para chegar a este ponto: ironicamente, se pensarmos quais são os grandes trabalhos jornalísticos que perduram no tempo, que continuam a ser lidos como exemplos literários, expuseram escândalos ou são testemunhos históricos inegáveis de qualidade excepcional, facilmente chegamos à conclusão que são aqueles em que se investiu mais tempo – um pequeno paradoxo.
O jornalista Gay Talese para escrever o famoso perfil “Frank Sinatra has a cold3”, acompanhou o artista durante um mês4, tirando notas compulsivamente. O livro de John Jersey, “Hiroshima”, continua a ser lido como testemunho histórico da Segunda Guerra Mundial, mesmo após 60 anos, tal como acontece com o livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote. Grande jornalismo leva tempo a ser escrito/filmado/montado. Dois exemplos mais contemporâneos e de excelência: a peça multimédia que ganhou o prémio Pulitzer de Feature Writing, Snow Fall5, demorou nove meses6 a ser “construída”; a jornalista Andrea Elliot, responsável pela série de grandes reportagens Invisible Child7, acompanhou os casos que davam voz às peças jornalísticas durante mais de um ano. Isto é grande jornalismo, jornalismo com tempo, jornalismo que pensa – não é por acaso que este é também o jornalismo que causa mais impacto. Nem vou repisar o escândalo de Watergate e toda a investigação envolvida, porque esse caso já foi avaliado por diversas vezes e por mentes mais capazes do que a minha.
Fazer este tipo de jornalismo é uma ciência sem fórmulas, ou seja, apresenta mais características de uma arte: certos procedimentos criativos base que garantem um caminho para contar uma história da melhor forma possível que se pode representá-‐la.
Não foi por acaso que escolhi contar só uma história para o meu projecto final de mestrado. Escolhi pegar no tempo e fazer algo que considero útil com ele.
3 http://www.esquire.com/features/ESQ1003-‐OCT_SINATRA_rev_ 4 http://www.thewrap.com/gay-‐talest-‐frank-‐sinatra-‐has-‐cold-‐annotated-‐esquire-‐story-‐new-‐journalism 5 http://www.nytimes.com/projects/2012/snow-‐fall/ 6 https://source.opennews.org/en-‐US/articles/how-‐we-‐made-‐snow-‐fall/ 7 http://www.nytimes.com/projects/2013/invisible-‐child/#/?chapt=1
CAPÍTULO I
I.1 -‐ Estudo de caso: a Identidade Kosovar
O termo “Kosovar” foi utilizado pela primeira vez na Resolução do Concelho de Segurança das Nações Unidas (UNSCR) 1244 de 1999. (UNSCR 1999) Esta denominação foi utilizada para se referir a toda a população do Kosovo como uma “supra-‐ethnic category that disregards ethnicity (...) a territorial from of identity” (Andersen 2006). Contudo, logo após esse acontecimento, o conceito de identidade Kosovar foi “colocado em pausa” juntamente com a situação não resolvida do território.
É importante aqui dar um passo atrás: a palavra identidade parece ter-‐se desenvolvido da expressão latina identidem, que é a contracção das palavras idem et idem, significando literalmente, igual e igual. O sentido etimológico de uma palavra sempre expressa uma parte do seu verdadeiro significado. No seu uso mais comum, identidade representa e caracteriza o que significa ser uma pessoa ligando o eu próprio com o mundo, o indivíduo com o seu país. (Bastos e Bastos 2007)
Memórias, experiências, sentimentos e emoções são processados e sumariados no “conceito de eu”, criando um sentido de continuação nos eventos durante a vida. É este processo que vai tornar possível a um indivíduo responder à pergunta: “Quem sou eu?”, o que vai validar e dar sentido à vida do sujeito. Não é possível formular a pergunta “Quem és tu, Kosovo?” a um país, mas através do reflexo das respostas dos seus cidadãos talvez possamos encontrar algumas respostas. (Oysernan 2003)
O caso da identidade Kosovar, analisado ao abrigo da teoria de Andersen sobre “comunidades imaginadas”, poderia só por si ser um projecto de doutoramento. No terreno, não faltam think tanks a concretizarem este tipo de trabalho de investigação. Contudo, não foi esse o meu objectivo com este projecto. Sendo realista à partida, esta série de curtos documentários, não vai procurar dar respostas concretas sobre a identidade Kosovar, mas somente lançar algumas luzes sobre o tema, através de algumas das histórias de vida dos seus cidadãos. Deve ser considerado um estudo exploratório para os interessados no tema.
O Kosovo declarou-‐se independente a 17 de Fevereiro de 2008, sendo actualmente o segundo país mais recente do mundo. Através das entrevistas para o documentário foi possível compreender – em pequena escala – se os habitantes do Kosovo se identificam ou não com o país e o status de independência. Procurou-‐se ainda perceber de que forma o conflito afectou os habitantes do Kosovo entrevistados. Por habitantes compreendem-‐se todos aqueles que moram dentro das fronteiras do país. De acordo com a teorização de Leca, os habitantes de um país podem ser divididos em duas categorias: cidadãos e imigrantes; cidadãos são todos os habitantes a quem o país dá uma série de direitos civis, sociais e políticos em relação com o estado; imigrantes são todos os indivíduos que chegam ao país com a intenção de se estabelecerem permanentemente ou temporariamente num local que não o seu país de origem. Ambos são definidos pelo estado: é o país que confere diferentes direitos e deveres para ambos os grupos, o que vai ser decisivo na distinção. É importante sublinhar que ambas as categorias se podem sobrepor. (Leca 1995)
Encontrei diversos exemplos de trabalhos exploratórios semelhantes ao este projecto de mestrado sobre a construção da identidade Kosovar, nomeadamente a curta-‐documental Whose Flag is it?, que ilustra as dificuldades de encontrar uma resposta homogénea à pergunta “quem é o Kosovo?”. (Karamuco 2012)
A questão da identidade kosovar, que dá o mote a este capítulo, remete para uma analogia evidente e de carácter sintético: uma criança de seis anos, nascida no mesmo ano que o país Kosovo, terá construído muito pouco da sua identidade até à data – a própria noção de identidade ainda lhe será estranha –, podemos considerar que o mesmo se passa com o Kosovo.
I.2-‐ Questão de partida
A questão central que guiou o web-‐documentário “Quem és tu, Kosovo?” foi a tentativa de compreender se os habitantes do Kosovo, e não só, se identificam-‐se com o país onde habitam e de que forma isso se reflecte na sua história de vida oral. Entre outras questões, pergunta-‐se: Quais as memórias que têm do conflito? De que forma isso os afectou?
Seguindo o conceito de comunidades imaginadas de Andersen, até que instância será a identidade Kosovar construída? O que é que as histórias de vida dos habitantes contam sobre o Kosovo? Enquanto procurava respostas a estas questões no terreno deparei-‐me com uma das primeiras dificuldades que viria a sentir sistematicamente: os estrangeiros quem vivem no Kosovo têm mais certezas sobre o país que os próprios kosovares. Ao aperceber-‐me desta questão, cujo trabalho prévio de preparação para o terreno não levantou, decidi alargar as entrevistas a estrangeiros – turistas e residentes – no país, a fim de obter uma perspectiva complementar sobre o assunto.
Afinal quem são os habitantes do Kosovo? De acordo com os termos legais são todos os que moram dentro do perímetro das fronteiras do país. Tal como disse na reportagem que escrevi para o suplemento Fugas, do jornal Público, (Monteiro 2013) a comunidade internacional a viver no país é muito significativa – principalmente, o “colonato” norte-‐americano. Existem mais de 900 Organizações Não Governamentais (ONG), num país com menos de dois milhões de habitantes.
Segundo Leca, os habitantes de um país podem ser divididos em duas categorias: imigrantes e cidadãos, como já foi referido. É importante denotar que, por vezes, as duas categorias se sobrepõem: imigrantes podem tornar-‐se cidadãos no país de chegada; cidadãos de um dado país podem também ser imigrantes naquele país, como nos casos de movimentos de regresso – voltar ao seu país de origem após uma estadia no exterior. (Leca 1995)
és tu, Kosovo?”, nem todos os habitantes se identificam com o país ou com o status da independência, são poucos aqueles que reflectem sobre o assunto. Contudo, todos os indivíduos entrevistados com posições políticas activas no Kosovo revelam um discurso mais performativo, construído e reflectido sobre o país. Esta última situação foi especialmente notória nas entrevistas com dois representantes de ONG no Kosovo, Luan Shllaku, directora executiva da Kosovo Foundation for Open Society, e Anja Czymmeck, chefe regional da Konrad no Kosovo, cujas respostas denotaram uma corrente de pensamento muito argumentativa e, de certo modo, institucionalizada.
Torna-‐se assim claro que o problema de partida se relaciona com o processo individual de identificação com o Kosovo, o que justifica a escolha das entrevistas e do registo oral no web-‐documentário. A definição do Kosovo enquanto estado pode ser útil neste aspecto. A constituição da República do Kosovo define o país como “independente, soberano, democrático, único e estado indivisível” e acrescenta que o Kosovo é o “estado dos seus cidadãos”. Segundo o artigo 155 da Constituição da República do Kosovo8, entendem-‐se por cidadãos:
“1. All legal residents of the Republic of Kosovo as of the date of the adoption of this Constitution have the right to citizenship of the Republic of Kosovo;
2. The Republic of Kosovo recognizes the right of all citizens of the former Federal Republic of Yugoslavia habitually residing in Kosovo on 1 January 1998 and their direct descendants to Republic of Kosovo citizenship regardless of their current residence and of any other citizenship they may hold.”
De acordo com este perfil legal, existem duas maneiras possíveis de adquirir a cidadania Kosovar: através do direito de residência e pelo direito de sangue (ter um antepassado que é cidadão do país). Este último ponto, abre a hipótese do conceito de dupla nacionalidade, e torna possível que um indivíduo da uma geração seguinte, nascido fora do país, possa reclamar a cidadania Kosovar.
Analisados os pressupostos legais, o problema da compreensão da identidade Kosovar mantém-‐se. Tendo em conta, que desde 1999 até 2008, ano da declaração de independência do Kosovo, passaram aproximadamente 10 anos, é importante considerar que as mudanças que ocorreram nesse espaço de tempo tiveram um papel central no modo como os Kosovares se percebem-‐se nos dias de hoje – de modo político, económico, cultural, social, etc.
Por um lado, ocorreu uma profunda transformação política: a separação da Sérvia removeu muitos dos movimentos de repressão social, dando lugar à construção de novas estruturas do estado. Pela primeira vez, os “Kosovares” foram parte de um processo de construção de uma nação própria. Por outro lado, ocorreu uma mudança económica com o estabelecimento do capitalismo como modelo principal, devido às injecções de capital no território. Mas a falta de definição política do território ainda significava que “o novo estado não era percebido como próprio”. (Pula 2005)
A identidade Kosovar está fortemente associada ao seu contexto geográfico e por isso não faria sentido criar um web-‐documentário sobre este fenómeno sem encontrar pontes com a sua história. Para compreender o contexto é importante ter fontes de informação diversas, nomeadamente estatísticas sociais, contextualização histórica, documentos importantes e, é claro, entrevistas com a população.
Ainda assim, para compreender completamente a realidade do Kosovo, um outro elemento crucial deve ser tido em conta: as diferentes comunidades étnicas a viver no país. Em território kosovar encontram-‐se elementos das comunidades sérvia, bósnia, albanesa, gorani, roma e turca, as mesmas que estão simbolicamente representadas por seis estrelas na bandeira do Kosovo.
Cada uma destas comunidades terá uma perspectiva diferente da realidade. Ou seja, todas as entrevistas que foram realizadas no terreno devem ser interpretadas tendo em conta a comunidade em que se insere o sujeito. Este ponto irá ser particularmente importante na discussão final dos resultados do projecto “Quem és tu, Kosovo?”. Por agora, é necessário compreender o modo como o problema de partida guiou a investigação teórica e o trabalho de campo no Kosovo.
I.3-‐ O projecto
I.3.1-‐ Enquadramento
“Go where the silence is and say something”, Amy Goodman
Foi a ausência de narrativas, no contexto português e internacional, sobre a história do Kosovo que aguçou a minha vontade de descobrir e criar um web-‐ documentário que compilasse o máximo número possível de narrativas de vida de cidadãos daquele país.
De forma resumida, o projecto “Quem és tu, Kosovo?” trata-‐se de um web-‐ documentário a ser alojado na página www.whoareyoukosovo.com, onde serão compiladas histórias de vida de cidadãos kosovares, e não só, de maneira a criar um retrato contemporâneo do país, à luz do seu passado recente.
A página www.whoareyoukosovo.com e o processo de recolha de testemunhos foram inspirados em projectos como Long Story Short9, uma compilação de relatos sobre a pobreza nos EUA, Portraits D’Un Neveau Monde10, seis documentários multimédia que falam sobre as mutações identitárias contemporâneas ao longo do mundo, ou mesmo o trabalho exaustivo DADAASTORIES11 que ilustra o maior campo de refugiados do mundo, o Dadaa, situado no norte do Quénia. Em Portugal, não existem exemplos com nível de qualidade comparável a estes trabalhos.
Desde que o Kosovo se declarou independente da Sérvia, deixou de fazer parte da agenda de grandes meios de comunicação internacionais. Sendo que as “Primaveras” no Médio Oriente têm vido a captar grande parte das atenções mediáticas, em detrimento de histórias como a do Kosovo, que apesar de ser recente para parâmetros históricos, há muito perdeu a actualidade que o jornalismo de agência procura.
9 http://longstory.us/
10 http://www.france5.fr/portraits-‐d-‐un-‐nouveau-‐monde/#/accueil/
Fazer um web-‐documentário direccionado apenas para a população portuguesa seria um trabalho redundante, talvez porque os mais interessados em aceder a um projecto deste tipo sejam os próprios habitantes do Kosovo.
Ainda assim, no caso português, pode existir um potencial interesse nas histórias narradas no web-‐documentário, uma vez que o Kosovo aloca uma das missões internacionais de manutenção da paz com tropas portuguesas. . E Portugal se tem verificado um crescente interesse por narrativas digitais e vídeo não-‐ficcional, facto que acrescenta valor a este projecto de web-‐documentário.
Existem centenas de estudos ao nível das ciências sociais que se preocupam com o objecto filmado e o sujeito que filma, trabalhos académicos que descrevem o percurso do documentário clássico que surgiu nos anos 1930 até aos dias de hoje. Porém, não considero que esse seja o foco do projecto “Quem és tu, Kosovo?”. Importa mais compreender e referir o interesse crescente em vídeo não-‐ficcional.
Barry Hampe, autor de “Making Documentary Films and Reality Videos” (Hampe 1997), afirma que existem três tendências que justificam este interesse:
• a ideia disseminada de que, cada vez mais, as pessoas não podem, não querem ou não têm tempo para ler;
• o crescimento exponencial de programas de televisão tipo realiy show; • o acesso e facilidade de utilização de equipamentos electrónicos de
captação de vídeo;
I.3.2 Publicação do projecto
A publicação do projecto está directamente relacionada com a aquisição de meios de produção e financiamento, que permitam fazer de “Quem és tu, Kosovo”, não só um projecto mas o produto multimédia para o qual foi pensado. Assim, numa primeira abordagem, será necessário angariar financiamento, para garantir que todas as horas de material recolhido no campo são devidamente processadas e editadas. Esta fase de inventariação de material pode levantar outras questões que condicionem a realização do web-‐documentário, por exemplo, poderá ser necessária uma nova deslocação ao Kosovo, para recolher novo material ou refazer algumas das filmagens. Note-‐se que das seis etnias do Kosovo apenas foi possível entrevistar representantes de duas (albanesa e sérvia) durante o período passado no terreno. Conseguir fundos para uma nova deslocação e recolha de testemunhos das quatro restantes acrescentaria valor documental e comercial ao documentário, pelo que o financiamento é essencial.
Numa fase posterior, recolhido e editado todo o material, passar-‐se-‐ia então à publicação, passo que implica igualmente investimento. Assim, estando este projecto directamente dependente de fundos e tendo ele interesse para o público em geral, o recurso a uma campanha de crowdfunding, apresenta-‐se como a opção mais viável a fim de o levar a cabo.
Esta técnica de angariação de fundos já foi utilizada em trabalho de carácter semelhante, com bastante sucesso e superando até as expectativas iniciais. Três documentários sobre o Kosovo são exemplos de sucesso na plataforma Kickstarter: The Same Moon Everywhere12 (4.843 dólares angariados), Song to Save a Child13 (17,780 dólares angariados), e An American Perspective: Kosovo (3,701 dólares angariados)14.
É preciso sublinhar que todas estas etapas terão de ser feitas com o apoio de uma equipa e não individualmente pelo jornalista.
12 https://www.kickstarter.com/projects/410756223/the-‐same-‐moon-‐everywhere-‐a-‐film-‐in-‐16mm-‐and-‐hd?ref=live 13 https://www.kickstarter.com/projects/2081432598/song-‐to-‐save-‐a-‐child?ref=live
I.3.3. Operacionalização do projecto a longo prazo
A longo prazo o projecto “Quem és tu, Kosovo?” pode ser escalonado ao nível do Kosovo para aumentar a diversidade de testemunhos de vida, de forma a suprir a deficiência de representatividade de quatro das etnias principais do Kosovo. Conseguido o financiamento necessário, por exemplo através de crowdfunding, a página whoareyoukosovo.com teria condições para evoluir, tornando um plataforma de partilha de testemunhos reais por parte de todos os que tivessem histórias relacionadas com a identidade do Kosovo para partilhar.
Através de webcams, qualquer cidadão em qualquer parte do mundo poderia gravar um breve testemunho que, mediante análise prévia, seria publicado na página. Os interessados poderiam deixar uma forma de contacto a acompanhar o vídeo, para que a partilha de histórias pudesse continuar para além da página. Esta seria também uma forma de incentivo ao debate entre cidadãos comuns. A criação de um fórum no site seria um outro veículo a considerar, com vista à reflexão.
Com o devido apoio financeiro e logístico, o projecto “Who are you, Kosovo?” seria capaz de dar origem a uma conferência anual em torno do tema. As ONG no Kosovo poderiam colaborar com o projecto na organização de um ciclo de debates em Pristina, a transmitir em directo na página, facilitando a interacção independentemente da localização da audiência.
I.4 -‐ Contextualização histórica do Kosovo I.4.1 – Localização geográfica
O Kosovo está situado no centro da península balcânica, mais comummente conhecida como os “Balcãs”. Esta está localizada no sudoeste da Europa e encontra-‐se rodeada por cinco mares diferentes: o Adriático, Iónico, Mediterrâneo, Egeu e o Negro. A Eslovénia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Montenegro, Albânia, Grécia, Macedónia, Kosovo, Sérvia, Bulgária e Roménia, fazem parte da península.
O nome “Balcãs” foi dado pelos turcos às montanhas que atravessam a região e depois de 1918, com a queda do império Otomano, Balcãs passou a estar associado a toda a península, do Adriático ao Mar Negro.
O Kosovo está situado exactamente no centro da península e não tem nenhum contacto directo com mar. Faz fronteira com a sérvia a norte e este (351,6 km), Montenegro a noroeste (78,6 km), Albânia a sudoeste (111,8 km) e a Macedónia a sudeste (158,7 km). Tem uma área total de 10.908 km² e está dividido em 33 municípios.
Como já disse anteriormente, para melhor compreender a identidade Kosovar é importante descrever e compreender o contexto de onde imergiu e se desenvolveu. Razão pela qual é importante um resumo histórico sobre o país.
I.4.2-‐ Origens do Kosovo
Resumir a história do Kosovo é uma tarefa complicada. Desde a chegada das primeiras pessoas à região da península balcânica que a história da região foi uma malha complexa de alianças e rivalidades entre clãs, reinos, impérios, províncias e países à procura de riqueza, poder ou simplesmente paz. O mesmo pode se aplicar ao resto dos países europeus.
Porém, o que a história desta região tem em particular é a sua localização. Situada entre três continentes – Europa, Ásia e África – esta região, desde séculos atrás, foi um ponto de confluência de várias e distintas culturas. Desde a primeira expansão imperial europeia por Alexandre, O Grande, -‐ também conhecido por Alexandre da Macedónia – no quinto século A.C., até à governação do império Otomano e Austo-‐Húngaro, os Balcãs foram palco de diversas “invasões”, o que trouxe à região diversas influências e pessoas com “contextos culturais” muito diferentes. Em 149 A.C. os Romanos chegaram á Grécia e foi sobre o poder do imperador romano Theodosius I que a primeira divisão cultural e religiosa ocorreu nos Balcãs. (Rojo 1992)
Theodosius dividiu o império entre os seus dois filhos, desenhando uma linha do Danúbio até ao Adriático: o império Ocidental ia desde a península ibérica até ao que hoje corresponde à Croácia e a parte norte da Bósnia; o império Oriental correspondia aos territórios da Sérvia, Albânia até à Ásia Menor. Enquanto o império Ocidental estava sobre as ordens do bispo de Roma, o Oriental dependia no patriarca de Constantinopla. Este deve-‐se considerar o primeiro ponto decisivo na construção de identidade do Kosovo: os diferentes rituais, tradições e sensibilidades das duas igrejas evoluíram em sentidos diferentes até à cisão final entre ortodoxos e católicos. (Rojo 1992)
Já no sexto século D.C., os Eslavos, oriundos do nordeste da Europa, migraram até aos Balcãs e estabeleceram-‐se na região abaixo do Danúbio, no espaço que se iria anos mais tarde tornar-‐se a Jugoslávia. Sem hesitação, os Eslavos adoptaram a cultura e religião dos novos territórios. Na Croácia e Bósnia, os rituais católicos e o alfabeto
latino; na Sérvia, Bulgária e Montenegro, os rituais Ortodoxos e o alfabeto cirílico. (Rojo 1992)
No século XIV os Turcos chegaram à região e com eles trouxeram uma nova religião – o Islamismo -‐ num território já dividido. Os otomanos não tinham qualquer regra de conversão da população ao Islamismo, mas dentro das fronteiras do império com estados cristãos, os sultãos precisaram de confiar nas suas “tropas defensivas” e para isso converte-‐los à fé de Alá. Foi assim que a Albânia e a Bósnia foram transformadas em estados maioritariamente Islâmicos – o livro de ficção, A Ponte sobre o Drina, do escritor Sérvio, Ivo Andric, é uma leitura recomendada e profundamente inspiradora sobre os processos de conversão religiosa. Já mais tarde, em 1739, a fronteira entre os impérios Austro-‐Húngaro e Otomano foi estabelecida nos rios Savo e Danúbio, até ao adriático.
Até 1878, esta linha – que coincide como a fronteira actual entre a Croácia e Bósnia – marcava fundamentalmente uma fronteira cultural: “o limite da presença islâmica no ocidente. (Rojo 1992) O império Otomano estava organizado em ilhós, grupos de pequenos distritos militar-‐administrativos, mais conhecidos como SANCAK. Kosovo, tal como a maioria das províncias europeias era parte do ilhó de Rumaneli. O Kosovo não existia como uma região especifica ou sancaks, o que torna claro que nesta época o Kosovo não era considerado um todo. Foi já no século XIX, quando o sistema de vilayets – pequenos distritos de impostos – que foi estendido a todo o território Otomano, que a região onde o Kosovo estava incluída, foi considerada como uma vilayet – a vilayet de Prizren. (Malcolm 1998)
Apesar da composição do Kosovo ser na maioria Muçulmana Albanesa, existia também um grande grupo de população eslavo-‐ortodoxa. Este facto, supracitado não deve ser considerado um pequeno detalhe: fazia parte da estratégia dos administradores otomanos criar comunidades multiétnicas, de forma a limitar a possibilidade de sentimentos de pertença ao estado. Para nós, jornalistas, pensarmos a influência que um jornal tem na formação de uma identidade colectiva, uma das reformas mais interessantes a ter em conta deve ser esta: a criação de um jornal local, pertencente ao poder regente, com ambas as páginas em Turco e em Sérvio, de forma a tentar criar um sentido de pertença e partilha ao mesmo grupo. De certa forma, foi a