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Perspectiva simbólica para a velhice: saída do estádio

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Academic year: 2021

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Perspectiva simbólica para a velhice: saída do estádio

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Annita Ferro Masys Ruth Gelehrter da Costa Lopes

Introdução

o presente artigo busco relacionar conceitos abordados pela psicologia existencial, a fenomenologia, com o envelhecer nos dias atuais e seus reflexos na vida dos idosos, relacionando-os com o conto da escritora Clarice Lispector, “A procura de uma dignidade” de Laços de família (1960). Para maior clareza, inicialmente apresento uma sinopse do conto em questão que, espero, validará minha associação com os dois outros temas que serão expostos. Trata-se da história da Sra. Jorge B. Xavier que fica presa e perdida em corredores subterrâneos do Estádio do Maracanã. A princípio, ela procurava uma conferência a qual fora chamada: “porque assim se mantinha jovem por dentro”.

Em diversos momentos da história a Senhora Xavier se depara com a contraposição daquilo que ela é e daquilo que o mundo diz que ela é, e isso se mostra de forma internalizada, ou seja, em alguns momentos a personagem se sente jovem, mas seu corpo lhe dá sinais. O mundo externo, insistentemente, “fala” que ela não é mais tão jovem quanto se sente.

Ressaltamos que a Senhora Xavier estava no Maracanã porque acreditava que em eventos culturais ela se tornaria ou se sentiria mais jovem, mas suas pernas, que se arrastavam para andar a traíam constantemente. No meio do trajeto ela se perde, lembra que o evento não era no Maracanã, mas próximo a ele.

Clarice usa metáforas para expressar instâncias da velhice, tal como o estádio de futebol e a busca incessante de uma porta de saída do local, que se mostra cada vez mais claustrofóbico e cheio de caminhos que a velha senhora não estava acostumada a trilhar.

1 Colaboração da profª Luciana Mussi

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Metáforas de Clarice e o idoso

Dentre as metáforas utilizadas genialmente por Clarice, podemos pensar no “estádio” como aquele momento novo em que ela se depara com a própria velhice, muitos anos que lhe golpeiam subitamente. Uma velhice também “avisada” pelos outros que mudam o tratamento em relação a ela.

A entrada no “estádio” surge como algo repentino pelo qual ela não esperava. Tal fato fica claro neste trecho:

A Sra. Jorge B. Xavier simplesmente não saberia dizer como entrara. Por algum portão principal que não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora ter entrado por uma espécie de estreita abertura em meio a escombros de construção em obras, como se tivesse entrado de esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que quando viu já estava dentro. (1960, p. 49)

Além disso, Clarice nos faz pensar na ideia de uma transição conflituosa: a partir do momento em que o mundo lhe olha diferente, há uma mudança de como você mesmo se olha e isto pode causar uma dificuldade sobre identificações e formas de personalidade em que se manteve por um longo período.

Não haveria porta de saída? Então sentiu como se estivesse dentro de um elevador enguiçado entre um andar e outro. (1960, p. 51)

No momento em que vivemos, a presença do envelhecimento na sociedade é encarada de forma estigmatizada, há sempre uma ideia pré-definida daquilo que se espera de um idoso. Temos um pensamento rígido sobre o que seria adequado no envelhecer e o que condiz e é permitido pela idade que se tem. Na questão dos padrões estéticos, isto se torna claro, pensando que o aceitável e belo é tudo aquilo que se mantém jovem, de acordo com o discurso de que envelhecer equivale a perdas - beleza, força, disposição, vida.

Sendo assim, não há uma nova visão, perspectivas, possibilidades. Na vida, somos acometidos por situações que nos exigem mudanças de posturas, novas formas de agir, pensar e viver. Por que, então, na velhice, a mudança é percebida como se fosse um mal, que só traz prejuízo e nenhuma vantagem, como – no pensamento estigmatizado – a juventude traz?

No trecho que segue, vemos a ideia de que o estigma se reflete em não aceitarmos as mudanças em nosso corpo, não a vermos como uma nova possibilidade.

Pois o que queria era apenas sair (do Estádio) e não encontrar-se com ninguém. (1960, p. 51)

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Neste pensamento estigmatizado acerca do envelhecer, temos a ideia de que perdemos aquilo que nos formava, sem possibilidade de “um novo”, uma nova perspectiva ou uma forma diferente de ver o outro. Esquecemos que faz parte da vida pensarmos que temos um corpo, que é essencial para nossa existência no mundo e o principal: esse corpo muda com o passar dos anos. Sobre a juventude, Clarice nos mostra essa realidade e cobrança interna e externa:

A realidade exigia muito da senhora. Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornaria bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito tempo de representar o que sentia. Aliás seu rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara de uma mulher de 70 anos. Então sua cara levemente maquilada pareceu-lhe a de um palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou. Por fora - viu no espelho - ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada. (1960, p. 58)

Além disto, o idoso e sua imagem se mostram distantes, não lhes pertence. A velhice é sempre do outro, nunca nossa. Para ele, “o aviso” dos “muitos anos” vem do mundo, como relatado por Clarice:

Por que ninguém é o outro e o outro não conhecia o outro. Então – então a pessoa é anônima. E agora estava emaranhada naquele poço fundo e mortal, na revolução do corpo. Corpo cujo fundo não se via e que era a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos. E tudo fora de época, fruto fora de estação? Porque as outras velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém. (1960, p. 59)

Neste trecho podemos unir a ideia de Ser no mundo, estudada pela abordagem fenomenológica, como possibilidade, só concebido por meio do tempo, onde a relação sujeito – sujeito permite a relação sujeito – mundo.

E este tempo que tratamos aqui diz respeito não ao Cronos, mas sim ao Kairós, onde o primeiro se refere ao tempo cronológico e o segundo ao tempo vivido pelo sujeito, em toda sua totalidade e possibilidades (Martins, 1991). Desta maneira, nessa relação temporal entre o mundo e os outros, devemos lembrar que o passado está em constante relação com o futuro e presente. O

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passado já foi presente, já teve este momento. Tanto o passado, quanto o futuro passa a existir quando se busca, em constante relação temporal.

Uma temporalidade vivida e genuína seria uma reavaliação do passado, presente e futuro de forma a conduzir nossa vida, de estarmos no presente, capazes de sentir o momento vivido. Quando vivemos o aqui e agora, encontramos o que a corrente fenomenológica chama de Ek-Stase, que seria a direção para o futuro e ao passado.

De forma mais sucinta, a relação temporal para a fenomenologia seria como um eixo em que cada entidade de tempo não existe sem a relação com a outra. Para exemplificar, podemos nos utilizar do paradoxo em que “ser agora é ser a partir de um ser sempre e de um ser para sempre”, por meio da relação constante de memórias e vivências.

Então, não devemos ser resultado de apenas um evento específico e ser apenas isto para sempre – uma vez que o tempo é o resultado de uma relação de eventos psíquicos que foram vividos.

Se assim formos, seremos seres segmentados, perderemos nossa totalidade e temporalidade. Ou seja, ser criança, ser adolescente, ser idoso deve ser entendido como uma forma complementar de eventos e não um conjunto segmentado. Sem sermos separados por conjuntos segmentados e sendo temporais, somos capazes de ver a relação das coisas em si e entender que estamos em constante mudança perante o tempo vivido.

Ali estava, presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno. Presa no emaranhado dos corredores do Maracanã. Presa ao segredo mortal das velhas. Só que ela não estava habituada a ter quase 70 anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência. (1960, p. 60)

Neste trecho vemos como o fato de se prender a um tempo fez com que a personagem não tivesse condições de vivenciar seu futuro e perceber as possibilidades presentes, de forma que uma nova vivência acontecesse e proporcionasse a “prática” e “experiência” que Clarice se refere no texto, no caso os tais 70 anos da Senhora Xavier.

Ainda sobre a temporalidade, traçando um paralelo com o discutido acerca da imagem que os outros tem de um idoso, chegamos na questão da sexualidade. O que a personagem de Clarice via, no decorrer do conto, parece não condizer com a visão do mundo sobre ela, e isto se torna claro no final quando a personagem pensa sobre os diversos acontecimentos de seu dia, que incluíam se perder no estádio com dificuldade imensa de sair por não enxergar a realidade que lhe era apresentada, então o ocorrido se torna assustador:

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Levantou-se com bastante esforço das juntas desarticuladas e viu que nada mais havia a fazer senão considerar com realismo – e era com um esforço penoso que via a realidade – considerar com realismo que a letra (que a personagem procurava) estava perdida e que continuar a procurá-la seria nunca sair do Maracanã. (1960, p. 57)

Constatar que sua velhice fazia com que as pessoas a tratassem sempre de forma cordial, como se ela sempre estivesse precisando de ajuda, era terrível. Mas, pior ainda, era a visão da Senhora Xavier sobre ela mesma e suas malditas dores físicas.

No final do conto, a personagem revela ao leitor sua paixão platônica pelo cantor Roberto Carlos, em que se questiona acerca de sua imagem:

Se os outros me veem como uma senhora, fora dos padrões de beleza em que apenas o que se mostra jovial é belo, como me relaciono com a minha própria imagem? Como eu realmente sou perante os outros, se perante a mim mesma continuo com os mesmos desejos, vontades e sentimentos de antes, de acordo com o que sinto que me condiz?

Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda inexpressivamente cantou baixo o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos: ‘quero que você me aqueça neste inverno e que tudo mais vá para o inferno’. Foi então que a Sra. Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: Tem! Que! Haver! Uma! Porta! De saiiiiída! (1960, p. 60)

Neste momento, temos a metáfora acerca da presença repentina no Estádio de futebol do Maracanã e a angústia por não saber nem como chegou ali e nem como sair dali.

A Sra. Jorge B. Xavier não teve a habilidade de perceber as novas possibilidades a seu redor, apenas viu o que daquela situação a privava, ou seja, lhe tirava sua jovialidade que sempre buscava, sua autoimagem que mantinha, a forma como os outros a tratavam.

Ou seja, a personagem ficou estagnada diante de novas perspectivas de vida que o envelhecer pode trazer, assim como não percebeu que o tempo está em constante mudança e cabe somente a nós sabermos lidar com ele, entendendo que passado, presente e futuro se unem em um eixo comum, em que um não

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existe sem o outro. Deve se focar no aqui e agora vivido, para que seja possível uma união a essas instâncias temporais e um aproveitamento, proporcionando um movimento rumo ao futuro e ao passado.

Como podemos perceber no final do conto de Clarice, a dificuldade em não encontrar “esta possível porta de saída do estádio”, como um aceitamento da chegada da velhice, fez com que ela se deparasse com outra saída, que não deixa de ser uma entre tantas possibilidades presentes no ser, mas que neste caso, soou como uma forma de não enfrentamento da difícil e nova situação que se apresentava.

Referências

LISPECTOR, C. Laços de família. São Paulo: Rocco, 1960.

MARTINS, J. Não somos Cronos, somos Kairós, 1991. Disponível em

http://www.portaldoenvelhecimento.org.br/psico/psico73.htm. Acesso em 30/05/2013.

Data de recebimento: 16/12/2013; Data de aceite: 07/02/2014.

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Annita Ferro Masys - Aluna do curso de graduação de Psicologia, da

Pontifícia Universidade Católica (PUCSP) - 5º semestre. Email:

afmasys@yahoo.com.br

Ruth Gelehrter da Costa Lopes. Psicóloga (PUC-SP). Mestrado em

Psicologia Social (PUCSP). Doutora em Saúde Pública (USP). Professora Associada da Faculdade de Psicologia (PUC - SP). Docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia. Supervisora de atendimento a idosos na Clínica Escola (PUC - SP). Email: ruthgclopes@pucsp.br

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