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Liames intertextuais: os rastros de Virginia Woolf em The Hours, de Michael Cunningham

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPGEL

DAVID RAPHAEL ARAUJO DA FÉ

LIAMES INTERTEXTUAIS – OS RASTROS DE VIRGINIA WOOLF EM THE

HOURS, DE MICHAEL CUNNINGHAM

Natal/RN 2019

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DAVID RAPHAEL ARAUJO DA FÉ

LIAMES INTERTEXTUAIS – OS RASTROS DE VIRGINIA WOOLF EM THE

HOURS, DE MICHAEL CUNNINGHAM.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL), do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para o título de mestre em literatura comparada.

Orientadora: Regina Simon da Silva Natal/RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Fé, David Raphael Araujo da.

Liames intertextuais: os rastros de Virginia Woolf em The Hours, de Michael Cunningham / David Raphael Araujo da fe. - Natal, 2020.

83f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientadora: Profa. Dra. Regina Simon da Silva.

1. Michael Cunningham - Dissertação. 2. Virginia Woolf - Dissertação. 3. The Hours - Dissertação. 4. Mrs Dalloway -

Dissertação. 5. Intertextualidade - Dissertação. I. Silva, Regina Simon da. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

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AGRADECIMENTOS

“Chegar para agradecer e louvar. Louvar o ventre que me gerou

O orixá que me tomou,

E a mão da doçura de Oxum que consagrou. Louvar a água de minha terra

O chão que me sustenta, o palco, o massapê, A beira do abismo,

O punhal do susto de cada dia. Agradecer as nuvens que logo são chuva,

Sereniza os sentidos E ensina a vida a reviver. Agradecer os amigos que fiz

E que mantém a coragem de gostar de mim, apesar de mim... Agradecer a alegria das crianças,

As borboletas que brincam em meus quintais, reais ou não. Agradecer a cada folha, a toda raiz, as pedras majestosas

E as pequeninas como eu, em Aruanda. Agradecer o sol que raia o dia, A lua que como o menino Deus espraia luz

E vira os meus sonhos de pernas pro ar. Agradecer as marés altas

E também aquelas que levam para outros costados todos os males.

Agradecer a tudo que canta no ar, Dentro do mato, sobre o mar,

As vozes que soam de cordas tênues e partem cristais. Agradecer os senhores que acolhem e aplaudem esse milagre.

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Ter o que agradecer. Louvar e abraçar!”

Maria Bethânia

Primeiramente agradeço aos meus pais, por todo o amor incondicional e pelo suporte desde o leite do peito de minha mãe, até o sem fim dos versos. Sem vocês eu não seria nada, ninguém!

Agradeço ao meu amor, Márcio Bezerra, por toda a motivação que recebi nos dias claros e grises. Obrigado por ser meu âmbar elétrico! “Eu te amo de alma para alma. E mais que as palavras, ainda que seja através delas que eu me defenda, quando digo que te amo mais que o silêncio dos momentos difíceis, quando o próprio amor vacila”.

Agradeço à minha orientadora, Regina Simon, por toda a paciência ao longo desses anos de pesquisa. Você tem sido minha rosa dos ventos. Gracias a la vida que me ha dado tanto. És o lirismo de Mercedes Sosa, o vigor de Joplin e a força de Juana Manso.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Assim, agradeço o subsídio que reconheço como importantíssimo para nós estudantes de pós-graduação.

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RESUMO

A Literatura é palimpséstica. Um pergaminho antropofágico que cria inúmeras conexões e interpretações com outras artes e, sobretudo, alimenta-se de si mesma. Ao longo do século XX, vários autores marcaram a história da literatura mundial. Nesse período de revoluções literárias, estéticas e sociais, uma mulher surgiu como marco nesse novo modo de escrever: Virginia Woolf. Em 1925, a canônica autora inglesa publicara seu quarto romance, Mrs Dalloway, um dos livros precursores de uma técnica de escrita chamada fluxo de consciência. Com ele, Woolf cunhou seu nome na história da literatura moderna e serve, até os dias atuais, como arquétipo para novos escritores. O livro The Hours (1999), do autor estadunidense Michael Cunningham, realiza uma imersão no universo da prestigiada literata. As personagens de sua narrativa explicitam a crítica e a quebra de padrões estéticos e consagrados por Woolf em seus livros, tendo como nítida inspiração o já citado Mrs Dalloway. O romance de Cunningham bebe da fonte de woolfiana e recria o seu olhar para as novas horas da modernidade. Utilizando de dados biográficos e bibliográficos da própria Virginia Woolf, construções linguísticas e personagens de Mrs Dalloway, Cunningham produz e recompõe sua história cheia de simbolismos e intrincamentos com a obra da britânica, fazendo com que seus ideais sejam reforçados e perpetuados dentro de um outro tempo e espaço. O objetivo deste trabalho é observar e demonstrar os rastros de Woolf dentro do romance cunninghaniano por meio da teoria de Julia Kristeva, entre outros autores que versem sobre os mecanismos intertextuais dos estudos literários. Tendo em vista os pontos mencionados, espera demonstrar-se a intertextualidade entre os dois escritos que nos servem de objetos contemplativos e reflexivos acerca de temas que ainda são tão pertinentes em nossa sociedade. Palavras-chave: Michael Cunningham; Virginia Woolf; The Hours; Mrs Dalloway; Intertextualidade.

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ABSTRACT

Literature is palimpsestic. An anthropophagic parchment that creates innumerable connections and interpretations with other arts and, above all, feeds on itself. Throughout the twentieth century, several authors have marked the history of world literature. In this period of literary, aesthetic and social revolutions, a woman emerged as a milestone in this new way of writing: Virginia Woolf. In 1925, the canonical English author had published her fourth novel, Mrs. Dalloway, one of the pioneering books of a writing technique called the stream of consciousness. With the novel, Woolf coined his name in the history of modern literature and serves, in nowadays, as an archetype for new writers. The novel The Hours (1999), by the American author Michael Cunningham, makes an immersion in the universe of the prestigious writer. The characters of his narrative explain the criticism and the breaking of aesthetic standards and consecrated by Woolf in her books, having as clear inspiration the already mentioned Mrs Dalloway. Cunningham's novel drinks from the source of Woolf and recreates his gaze to the new hours of modernity. Using biographical and bibliographical data of Virginia Woolf, linguistic constructions and the characters of Mrs Dalloway, Cunningham produces and recomposes her history full of symbolism and intricacies with the work of the British, making their ideals reinforced and perpetuated within another time and space. The aim of this work is to observe and demonstrate the traces of Woolf within the Cunningham novel through the theories of Julia Kristeva, among other authors dealing with the intertextual mechanisms of literary studies. In view of the aforementioned points, we hope to demonstrate the intertextuality between the two writings that serve as contemplative and reflective objects about themes that are still so pertinent in our society.

Key words: Michael Cunningham; Virginia Woolf; The Hours; Mrs Dalloway; Intertextuality.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 11

1 OS DETENTORES DAS VOZES ... 15

1.1. Virginia Woolf - A voz originária...16

1.2 Michael Cunningham - A voz reiterante ... 19

1.3 Quando as vozes se encontram ... 21

2 INTERTEXTUALIDADES - PRÉSTIMOS ... 24

2.1 The Hours - Uma composição literária ... 25

2.2 Mrs. Dalloway - Uma criação intertextual...43

3 REVELANDO THE HOURS - SOB AS CAMADAS DO TEXTO ... 42

3.1 Mrs. Woolf - Literatura, escrita e delírio ... 44

3.2 Entre os atos: perspectivas clarissianas...50

3.3 Primaveras progênitas - Estirpes clarissianas...65

3.4 Repulsa ao sexo - As amantes abomináveis...69

3.5 Os amantes constantes: Sally e Richard Dalloway...72

3.6 Em algum lugar do passado: Louis Water e Peter Walsh...73

CONCLUSÃO...74

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INTRODUÇÃO

A Literatura, como toda forma artística, é desenvolvida por intermédio de uma transfiguração da realidade. Dessa maneira, constata-se que os escritores criam um sistema real através da língua e suas técnicas imagéticas. Levando em consideração tal afirmativa, pode-se perceber essa manifestação como sendo um instrumento de assimilação e reprodução do existir, ou seja, sempre atrelado à questão das experiências humanas, das instituições sociais.

Adentrar ao universo dos estudos literários contemporâneos é permanecer em uma busca constante por novas percepções. A literatura comparada, corrente que teve seu início no final do século XIX, é uma ramificação que possui a incumbência de instaurar um determinado convívio entre as distintas manifestações artísticas. Como bem define Pageaux, citado por Marinho et al:

[...] é a arte metódica, por meio da busca de laços de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura de outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou ainda, os fatos e textos literários, entre eles, distantes ou próximos no tempo ou no espaço, a condição que pertençam a diversas línguas ou diversas culturas, ainda que façam parte da mesma tradição, com o objetivo de melhor conhecê-los, compreendê-los ou degustá-los (PAGEAUX apud MARINHO et al., 2011, p. 216).

Como objeto de investigação, a Literatura é responsável pelos diálogos, interpretações e entendimentos das mais diversas expressões humanas. Não seria exagero dizer que o avanço dessa corrente trouxe uma nova perspectiva de enxergar o Homem. Coutinho e Carvalhal atentam que:

Investigar como as nações aprenderam umas com as outras, como elas se elogiam e criticam, se aceitam e rejeitam, se imitam ou distorcem, se entendem ou interpretam mal, como elas abrem os corações ou se fecham umas às outras, mostrar que as individualidades, como períodos inteiros, não são mais do que elos de uma cadeia longa e multifilamentada que liga passado e presente, nação a nação, homem a homem – estas, em termos gerais, são as tarefas da história da Literatura Comparada (COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p. 54).

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É nessa perspectiva que este trabalho trilhará suas ponderações e apontamentos. A análise deste teor científico tem como intuito a observação da intertextualidade e sua aplicação dentro do livro The Hours em relação com o seu antecessor Mrs Dalloway. Este, pertencente à britânica Virginia Woolf, uma das precursoras da escrita feminina do início do século XX. Em suas páginas são notórias a apreciação tanto de um novo modo de escrita, o fluxo de consciência, quanto de um novo contexto social, a modernização da Inglaterra e sua repercussão nos mais diversos campos. Acima de tudo, o livro trouxe olhares sobre a condição de ser mulher nesse período tão novo, mas que tinha como estorvo um patriarcalismo ainda bem conspícuo.

Já The Hours, do norte-americano Michael Cunningham, possui uma ligação direta com o livro mencionado anteriormente. Lançado no final do século XX, traz consigo a estética e os ideais da escrita virginiana. Cunningham se apropriou dos discursos livrescos e pessoais de Woolf e os fez ecoar para épocas e lugares totalmente díspares, mas que sempre coincidem em sentimentos, anseios e reflexões. Penetrar no pitoresco mundo desses escritores é permanecer em uma busca constante por novas percepções.

O intertexto será o principal elemento desta pesquisa, o elo entre as duas obras estudadas. Mikhail Bakhtin (2000) já ressaltava a importância desse discurso bem antes da inserção do termo em questão e que, até hoje, serve como apreciação. O pensador que tratava de vozes e discursos sempre falou da redistribuição das palavras e pensamentos, incluindo nesses campos a imagem do autor. Logo, vê-se a importância da intertextualidade na Literatura como um instrumento responsável, diretamente ou não, por um melhor entendimento social. Tais diálogos ajudam a identificar os vestígios de comunidades anteriores, quebras de paradigmas e surgimentos de novos comportamentos.

Com esse olhar, podemos fazer uma relação direta aos romances estudados nesta pesquisa: Mrs Dalloway e seus desdobramentos, vozes e denúncias sociais de um mundo em conflito daquela época, e The Hours com a perpetuação do discurso, voz e ressignificação social nos Estados Unidos da América.

As criações citadas acima comprovam a real necessidade de se debater a escrita e a crítica feminina em nossa sociedade. Cunningham abraça o ideal virginiano e o transcende para a modernidade de maneira instigante e absorta. O tradicional e o

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moderno andam de mãos dadas no universo literário, e é isso o que se pretende aduzir com este estudo.

Propõe-se nesta pesquisa a utilização de ideias da pensadora búlgara, Julia Kristeva. Ela desconstruiu os ideais monológicos dos formalistas e defendeu o dialogismo. Kristeva bebe da fonte bakhtiniana para sua formulação do intertexto e expõe prestigiado grupo francês TEL QUEL que “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de outro texto”. O raciocínio da autora corrobora com a direção que esta dissertação trilha seus passos.

Além dos autores puramente teóricos, outros críticos serão pertinentes para que se possa perscrutar com o máximo de evidências. Tem-se aqui, por exemplo, a própria Virginia Woolf com dois livros essenciais para que se compreenda melhor seus pensamentos e, consequentemente, seus escritos; são eles: Um teto todo seu e Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Também se faz necessário a coleta de dados biográficos sobre a autora, seja em seus diários ou em biografias como A medida da vida, escrita pelo biógrafo austríaco Herbert Marder, referência no campo dos estudos woolfianos

A leitura de críticas feministas clássicas e contemporâneas também são indispensáveis. Elas são primordiais para que qualquer indivíduo do sexo masculino tenha respaldo para falar sobre um tema tão íntimo e que requer respeito e cuidado ao ser adentrado.

Os textos das duas obras analisadas nesta dissertação serão os originais escritos em língua inglesa. Porém, para que os romances possam ficar representados também no idioma da pesquisa, torna-se necessário o livro Mrs Dalloway, traduzido por Tomaz Tadeu e publicado pela editora autêntica em 2012 e As Horas, publicado em 2003 pela Companhia das Letras e traduzido por Beth Vieira. Aqui, optamos por utilizar as citações em ambos os idiomas.

O primeiro capítulo deste trabalho propõe-se a apresentar os autores e obras estudadas, além de seus principiais aspectos de conteúdo narrativo e sua contextualização em relação à época de seus respectivos lançamentos. Na seção seguinte, será destrinchada a intertextualidade de acordo com as personagens dos livros de Cunningham e Virginia Woolf. A partir dos capítulos do livro The Hours, adentraremos na análise do romance e faremos suas conexões com o contexto da obra Mrs Dalloway, seu progenitor.

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Por último, teremos um capítulo conclusivo acerca do jogo intrincado de intertextualidades e a fundamentação concreta de que esses livros estão unidos tanto esteticamente, quanto no plano das ideias e vozes.

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1 OS DETENTORES DAS VOZES

1.1 Virginia Woolf – A voz originária

A história da escritora começa no n° 22 da rua Hyde Park Gate, Kensington, bairro situado na capital do Reino Unido. Seu pai, Sir Leslie Stephen (1832 – 1904), era um ilustre historiador e escritor, que dedicara sua vida sobretudo aos estudos biográficos. Em 1878, já viúvo, casou-se outra vez, agora com a também viúva Julia Duckworth (1846 – 1895). Os dois trouxeram seus filhos dos antigos matrimônios e do novo casamento resultaram mais quatro crianças: Vanessa Bell (1879), Thoby Stephen (1880), Virginia Woolf (1882) e o último da prole, Adrian Stephen (1883).

Este capítulo tem a intenção de apresentar a escritora, um dos objetos desta dissertação, sua evolução como mulher e seu papel na história da Literatura e, sobretudo, nortear supostos leitores desta especulação científica.

No fim de sua vida, a própria Woolf indagava-se sobre si, ela mesma perguntara quem teria sido sua figura:

Quem era eu então? Adeline Virginia Stephen, nascida em 25 de janeiro de 1882, [...] no meio de uma enorme rede de relações, não de pais ricos, mas de pais bem situados na vida, nascida num mundo educado, extremamente afeito a se comunicar, a escrever cartas, a fazer visitas, a se expressar bem – o mundo do final do século dezenove (WOOLF, 1985, p. 65).

Ela mesma se descreve como um ser representante de um mundo informacional e dotado de comunicabilidade, que exige, de certo modo, uma capacidade criativa. Por essa razão, Woolf começou a escrever desde cedo, já redigindo aos nove anos de idade um pequeno jornal no qual deu o título de Hyde Park Gate News. A consciência artística da notável criança já começara a despertar, daí em diante ela não pararia mais e seguiria esse ofício pelo resto da vida.

Os irmãos homens da escritora foram enviados para a Universidade de Cambridge. Woolf, assim como Vanessa, seriam educadas no ambiente residencial, sob a supervisão dos pais. As mulheres daquela geração tinham que ser educadas conforme às regras sociais impostas pelo patriarcalismo vigente. Era quase uma obrigação uma dama ter aulas de música, dança e conversação. Woolf, segundo o biógrafo Tomaz Tadeu, “tinha aulas de história, latim e francês com a mãe, e de matemática com o pai, sem muito proveito, ao que parece” (WOOLF, 2012, p. 216).

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Um fato significativo em sua instrução foi a quantidade e variedade de leituras advindas da biblioteca particular do patriarca da família.

Em 1895, após a morte de sua mãe, Woolf é atacada por uma série de colapsos nervosos, os primeiros indícios do que viria a experimentar tardiamente. Segundo o tradutor e biografo Tomaz Tadeu, “algumas alucinações de Septimus Warren Smith, em Mrs. Dalloway, são, praticamente, uma descrição das que ela própria sofria, como por exemplo, ouvir vozes” (WOOLF, 2012, p. 216). Em 1904, ela e seus irmãos mudam-se para o bairro de Bloomsbury, também o nome de um dos principais grupos literários da cena londrina em que a escritora atuou com extrema significância.

O Grupo de Bloomsbury1 surgiu no ano dessa mudança. Thoby retornara de Cambridge e convidara alguns de seus amigos do Trinity College, para reuniões regadas a conversas filosóficas, sociológicas e literárias. As reuniões tinham como participantes nomes como Clive Bell, Lytton Strachey e Leonard Woolf, que viria a ser o marido da literata. Em 1906, Thoby foi acometido de febre tifoide e veio a óbito. O irmão da autora seria, mais tarde, inspiração para seu livro lançado em 1922, Jacob’s Room.

Woolf já havia começado a lecionar redação e história desde 1905 no Morley College, instituição de ensino para a classe operária situada em Londres. Lá permanece até meados de 1907. Em 1910 inicia seus trabalhos relacionados aos movimentos feministas. Ainda não tinha escrito nenhuma obra ligada ao tema, mas já era uma árdua defensora dos direitos das mulheres, trabalhando, inclusive, na campanha em favor do voto feminino.

Em 1912, casa-se com um dos membros do Bloomsbury, Leonard Woolf. O autor e editor britânico viria a ser seu companheiro até o fim dia de sua vida. Juntamente com Leonard, Virginia Woolf fundará em 1917 uma das principais editoras de Londres, a Hogarth Press, situada em Richmond. Livros de ilustres escritores foram publicados por ela, como T.S. Eliot, Katherine Mansfield, James Joyce e Sigmund Freud.

1 Bloomsburry integrates political and suprapolitical thinking with aesthetics and everyday praxis in addressing a public sphere conceived, in Hannah Arendt’s words, as “a form of being together where no rules and no one obeys”; where the community’s interest in disinterestedness is continually proposed, if never peferctly enacted; and where the work of art calls people not to see as one but to see differently and then seek to “persuade each other” in arduous negotiation of an always changing sensus communis, or common understanding.

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No ano de 1919, os cônjuges compram a Monk’s House2, em Sodmell, sudeste da Inglaterra. Lá Virginia Woolf e Leonard Woolf viverão várias temporadas de suas vidas. Em 1922, a escritora conheceria outra de suas grandes inspirações, a escritora Vita Sackville-West3, por quem viria a se apaixonar. Vita foi a inspiração para seu romance que seria lançado em 1928, Orlando.

Fazendo conferências dedicadas ao papel da Mulher durante o ano de 1928, Woolf colhe os frutos das aulas lecionadas nas únicas faculdades de Cambridge University e lança em 1929 um dos grandes marcos da literatura feminina, A Room of One’s Own. Depois desse livro, publicará somente outro romance em vida, The Years, em 1937. Nesse período ela começará a ter sérias crises psicológicas. Em meados de 1939 encontra-se com Freud e discutem sobre a doença e outra ameaça que viria a assombrar a vida de todos naquele período, a chegada da Segunda Guerra Mundial. Com Londres em escombros, incluindo as casas do casal Woolf, a escritora apresentava cada vez mais frequentes sinais de loucura, desequilíbrio físico e mental. Exatamente no dia 27 de março de 1941, o casal viajou até a cidade de Brighton para que ela fosse consultada pela Dra. Octavia Wilberforce. Em Monk’s House, no dia 28, Virginia Woolf deixava um bilhete para Leonard Woolf com suas últimas palavras antes do suicídio.No dia 2 de abril de 1941, o afamado jornal The New York Times noticiava a sua suposta morte:

LONDON4, April 2--Mrs. Virginia Woolf, novelist and essayist, who has been missing from her home since last Friday, is believed to have been drowned at Rodwell, near Lewes, where she and her husband, Leonard Sidney Woolf, had a country residence.

2 Leonard and Virginia Woolf bought Monks’s House in 1919 as somewhere to write in the tranquility and beauty of the Sussex Downs, far from the constat interruptions of London. In the beginning, Virginia noted that there were “no buses, no water, no gas oe electricity”. Though the Woolfs improved the house over their 50 years here, its rustic simplicity and charm remais.

3Victoria (Vita) Mary Sackville-West (1892-1962) was a prolific fiction writer, prize-winning poet, and gardener. Her husband, Harold Nicolson, was a diplomat and important diarist. Their younger son Nigel Nicolson also became a writer, as did his son Adam. The Sackville-Wests and Nicolsons were involved in the activities of the National Trust from its earliest days.

4 LONDRES, 2 de abril - Sra. Virginia Woolf, romancista e ensaísta, que está desaparecida de sua casa desde a última sexta-feira, teria se afogado em Rodwell, perto de Lewes, onde ela e seu marido, Leonard Sidney Woolf, tinham uma residência no campo. O Sr. Woolf disse esta noite: "A Sra. Woolf está supostamente morta. Ela foi passear na sexta-feira passada, deixando uma carta para trás, e acredita-se que ela tenha se afogado. Seu corpo, no entanto, não foi recuperado." As circunstâncias em torno do desaparecimento do romancista não foram reveladas. As autoridades de Lewes disseram que não tinham nenhum relato da suposta morte da sra. Woolf. Foi relatado que seu chapéu e bengala foram encontrados na margem do rio Ouse. A Sra. Woolf estava doente há algum tempo. Os Woolfs dirigiram a Hogarth Press de 1917 a 1938, quando a Sra. Woolf se retirou para dedicar seu tempo à escrita. Seu último livro foi "Roger Fry, uma biografia", publicado no ano passado. A Sra. Woolf nasceu em 1882. Ela era filha de Sir Leslie Stephen. James Russell Lowell era seu padrinho (Tradução nossa).

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Mr. Woolf said tonight:

"Mrs. Woolf is presumed to be dead. She went for a walk last Friday, leaving a letter behind, and it is thought she has been drowned. Her body, however, has not been recovered."

The circumstances surrounding the novelist's disappearance were not revealed. The authorities at Lewes said they had no report of Mrs. Woolf's supposed death.

It was reported her hat and cane had been found on the bank of the Ouse River. Mrs. Woolf had been ill for some time.

The Woolfs ran the Hogarth Press from 1917 to 1938, when Mrs. Woolf retired to devote her time to writing. Her last book was "Roger Fry, a Biography," published last year.

Mrs. Woolf was born in 1882. She was a daughter of Sir Leslie Stephen. James Russell Lowell was her godfather.

A morte ainda presumida foi constatada no dia 18 de abril do mesmo ano, quando o corpo da autora foi encontrado à beira do rio Ouse por algumas crianças. Virginia Woolf faleceu aos cinquenta e nove anos de idade. Seu corpo foi cremado em uma segunda-feira, dia 21, em Brighton. Apenas seu esposo esteve presente e:

Para desgosto de Leonard, não foi tocada, durante a cerimônia de cremação, uma gravação da Cavatina do Quarteto N° 13 em Si Bemol maior, Op. 130, de Beethoven, tal como eles haviam, uma vez, combinado, mas uma outra música. À noite, sozinho em casa, ele pôde ouvir a gravação da música desejada (WOOLF, 2012, p. 219). No jardim da Monk’s House havia dois olmos imensos que o casal batizou de “Leonard” e “Virginia”. Debaixo desta última, o viúvo enterrou as cinzas de sua falecida esposa. Lá, foi colocado um letreiro com a citação final de um dos livros de Virginia, The Waves: “Against you I will fling myself, unvanquished and unyielding, Oh Death!”5.

Assim termina a história de uma das maiores escritoras do século XX. Uma mulher que esteve à frente do seu tempo, lutando e rompendo as convenções do possante patriarcalismo vigente em sua época. Virginia foi complexa, por vezes antagônica, mas sempre esteve segura de seus ideais, mesmo em meio ao seu martírio que crescia dia após dia. Seu legado é composto de nove romances publicados e mais de 30 livros de diversos outros gêneros. Com todo esse farto

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material, ela consegue, ainda nos dias de hoje, nutrir admiradores e estudiosos que embarquem em seu universo literário e reflitam sobre sua importância para os pilares da literatura de nossa contemporaneidade.

1.2 Michael Cunningham - A voz reiterante

Nascido em 1952, no estado norte-americano de Ohio, o escritor Michael Cunningham é hoje um dos maiores nomes da literatura estadunidense. Mesmo tendo muita visibilidade no meio literário, referências biográficas sobre ele são raramente encontradas, sobretudo em português. Todas as informações contidas aqui foram coletadas através de entrevistas relacionadas às suas obras. Discreto, Cunningham também se dedica à docência na Yale University, onde é professor sênior de língua inglesa e escrita criativa.

O autor estudou literatura na Standford University, Califórnia, estado onde também viveu grande parte de sua vida. Seu debute como escritor começa em 1984, com a publicação de seu primeiro romance, Golden States. O livro recebeu a atenção dos críticos, e o futuro de Cunningham como novelista foi considerado promissor.

Em 1989 viria a escrita de um conto chamado White Angel, que serviria mais tarde como o primeiro capítulo do seu segundo romance lançado no ano seguinte, A Home at the End of the World. O prelúdio dessa história foi incluso no The Best American Short Stories, organizado pela Houghton Mifflin Company, uma das mais conceituadas editoras do Estados Unidos, no que se refere ao campo educacional.

A obra já experimentava a pluralidade de vozes e o mergulho na questão da sexualidade humana. Temas como a AIDS e a homossexualidade, que mais tarde seriam tratados em The Hours, faziam parte de sua ação narrativa. O livro foi adaptado para o Cinema em 2004, onde o próprio Cunningham seria responsável pelo roteiro, sua primeira imersão no universo da sétima arte.

Ao longo de sua jornada literária, Cunningham recebeu duas bolsas importantes pelo seu trabalho como escritor. Em 1993 foi agraciado com a Guggenheim Fellowship, um financiamento anual de cerca de $40.000 para artistas que demonstrassem habilidades louváveis em suas categorias. A fundação recebe por volta de 4.000 inscrições anuais e após seu rigoroso processo de seleção, Michael foi escolhido para representar a esfera da Literatura. No ano de 1995, Cunningham

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ganhou o Whiting Writer’s Awards, prêmio estadunidense financiado pela Mrs. Whiting Foundations, uma organização filantropa que também impulsiona escritores emergentes. Também foi nessa data que ele escreveu seu terceiro romance, Flesh and Blood.

Já em 1998 obteve outra bolsa, agora por meio do National Education Association (NEA), maior sindicato dos Estados Unidos, sediado em Washington e que tem o intuito de defender os profissionais da educação e dar suporte aos escritores americanos em seu período criativo. Esse foi um ano demasiado significativo para Cunningham, exatamente porque foi nele que o autor escreveu o romance ganhador do PEN/Faukner e o Pulitzer Prize na área de ficção, The Hours, o objeto desta dissertação. O aclamado livro trouxe consigo a total interdependência ao livro Mrs Dalloway, de Virginia Woolf. As interações intertextuais entre os dois livros são pontos norteadores deste trabalho.

Com The Hours, Cunningham atingiu o ápice de seu trabalho literário. Trouxe à tona uma série de discussões entre o caráter moderno e pós-moderno da Literatura e estabeleceu um complexo jogo de correlações entre a tradição e a contemporaneidade. A não convencionalidade do livro o faz quase indefinível; foram inúmeras as possíveis demarcações: paródia, pastiche, reescrita literária, texto imitativo ou derivativo e até narrativa em segundo grau. A hibridez textual construída pelo autor é sempre reavivada a cada leitura, nas entrelinhas, construções frasais ou representações sociais.

Após o sucesso do livro, Michael foi convidado para adaptar o roteiro ao mundo cinematográfico. Em 2002 foi lançado a película pelo diretor britânico Stephen Daldry. Para dar vida às suas protagonistas, as atrizes escolhidas foram Nicole Kidman, Meryl Streep e Juliane Moore. O filme foi um sucesso, quadruplicou o dinheiro investido, concorreu ao prêmio Oscar de melhor filme e acabou ganhando na categoria de Melhor Atriz, onde Nicole Kidman faturou a estatueta pela sua interpretação de Virginia Woolf, personagem de Cunningham.

Até os dias de hoje, o autor lançou mais quatro livros, sendo três de ficção: Specimen Days, By Nightfall, The Snow Queen e um de não-ficção, Lands End: A Walk in Provincetown. Além do ofício de escritor, Cunningham continua lecionando e atuando como editor literário e produtor de Cinema. É hoje um dos nomes mais respeitados da literatura norte-americana.

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1.3 Quando as vozes se encontram

Mrs Dalloway é uma obra de caráter modernista que desconstrói o resguardado modelo clássico aristotélico, baseado em início, meio e fim. Essa nova estética rompe com o padrão tradicional, pela introdução de uma então inovadora técnica chamada de fluxo de consciência. O romancista que utiliza esse método escreve o que é caótico (a consciência humana a um nível incompleto) e é obrigado a evitar que sua descrição seja caótica (para produzir uma obra de arte) (HUMPHREY, 1976). Desse modo, tal experimentação ocupa-se com os monólogos interiores, sujeitos, assim como na realidade, a digressões e associações livres.

Tal qual Ulisses, de James Joyce, o livro da autora inglesa se passa em um único dia, mais precisamente em junho de 1923, em Londres. A escritora, ao desenvolver sua personagem central da obra, Clarissa Dalloway, expõe o patriarcalismo dominante em uma Inglaterra que se modernizava e vivia sob efeito da Primeira Guerra Mundial. A protagonista do romance prepara uma festa em meio às lembranças de seu passado e reflexões sobre temas como a perda, a morte, o envelhecimento e mais profundamente sobre sua crise de identidade.

Como bem evidencia Oliveira (2007), a escritora Virginia Woolf remete ao moralismo vitoriano, transformando muitos romances em uma tribuna reivindicante, ressaltando a posição da mulher na esfera social. Através da ficção, ela mostra, na maioria das suas obras, a difícil realidade da condição da mulher e o papel que essa, como membro de uma sociedade, deveria ocupar. Esse tema será sempre recorrente na obra da escritora, tanto em seus romances quanto em seus ensaios puramente feministas, como A Room of One’s Own (1929) e Three Guineas (1938).

Conforme observado, dotado de marcos arrojados e progressistas, o romance virginiano, além de precursor, irá inspirar vários autores de gerações posteriores, como o livro The Hours, publicado por Michael Cunningham.

The Hours é influenciado pelo livro Mrs Dalloway. Trata-se de uma trama paralela representando um dia na vida de três mulheres: Mrs. Woolf, em 1923, que vive o processo de criação da obra Mrs Dalloway, em Richmond, subúrbio de Londres; Mrs. Brown, moradora de um subúrbio de Los Angeles em 1949, casada com um herói da Segunda Guerra; e Clarissa Vaughan (apelidada de Mrs. Dalloway), uma grande

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editora nova-iorquina que também está organizando uma festa em Nova York, no final do século XX.

A estrutura do romance é caracterizada pela ligação alternada de capítulos nomeados por essas três personagens centrais. A intertextualidade é um elemento primordial na construção da obra. A pensadora búlgara Kristeva expõe o espírito desse termo em uma frase: “a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)” (2012, p. 141). Diante disso, tem-se The Hours que é composto de um conjunto de pensamentos, entrando em fusão com o livro Mrs Dalloway e os episódios reais da vida da autora, personagem ficcionalizada na criação cunninghaniana, gerando, dessa maneira, um mosaico de ideias, um palimpsesto, como brilhantemente propõe Genette (2006) em

Palimpsestos, a literatura de segunda mão:

Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura, o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele a expõe e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor (GENETTE, 2006, p. 5).

São muitas as relações existentes entre as duas obras. Primeiramente, a própria Virginia Woolf é personagem ficcional no romance de Cunningham, e com isso nota-se claramente o discurso da escritora ao longo das páginas, seja nas linhas ou entrelinhas. Os ecos vão desde o modo da escrita – leia-sefluxo de consciência – até temas tratados no livro por meio de outros personagens, como o papel da mulher na sociedade, escrita feminina, suicídio, depressão, sexualidade, entre outros aspectos que enriquecem a leitura.

O emaranhado da história cunninghiana é um exemplo bastante eficaz da importância da releitura como modo de amplificação e assimilação de discursos. Podemos pensar que é perceptível o importante papel que a literatura comparada desempenha ao dar continuidade às vozes plausíveis, sempre presentes em

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diferentes contextos. Duas obras que se situam em tempos tão distintos conseguem dialogar entre si e trazem para reflexão assuntos ainda inacabados.

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2 INTERTEXTUALIDADES – PRÉSTIMOS

2.1 The Hours – Uma composição literária

A tendência autorreferencial da literatura se enfatizou na modernidade. A metaficção praticada em séculos passados como por exemplo em Cervantes, Homero, Geoffrey Chaucer e Machado de Assis, ganhou uma nova roupagem e sobreviveu ao tempo, chegando em nossa época de modo auspicioso. Um exemplar desse hall literário é o livro The Hours, do autor estadunidense Michael Cunningham.

O escritor construiu seu romance baseado na vida e obra de Virginia Woolf, principalmente no seu livro de 1925 chamado Mrs Dalloway. Cunningham homenageia a autora e reescreve o seu prestigioso livro adequando-se ao estilo contemporâneo. Mas para tal feito, ele exerceu o papel de um investigador perspicaz e soube perscrutar tanto a vida de sua musa inspiradora, quanto as obras escritas por ela. É incontestável a presença da intertextualidade em suas linhas. As personagens criadas por ele explicitam a ideologia feminista exaltada e consagrada pela escritora inglesa em sua vasta bibliografia. Virginia Woolf, além de sua guia inspiradora, é uma das personagens centrais de sua narrativa.

Em um texto dotado de dados biográficos, a relação da obra com o mundo exterior é indissociável. Cunningham afirmou inúmeras vezes que seu livro foi construído a partir de fontes biográficas escritas principalmente por Quentin Bell e Hemione Lee, além de dados fornecidos pela própria Virginia Woolf em seus textos autobiográficos. Isso evidencia o caráter de escrita esquadrinhada, extremamente especulativa que cria e recria o emaranhado de histórias em seus distintos planos dentro da narrativa de The Hours. A nota sobre as fontes contida no final do livro deixa clara a natureza de sua construção literária:

While Virginia Woolf, Leonard Woolf, Vanessa Bell, Nelly Boxall, and other people who actually lived appear in this book as fictional characters, I have tried to render as accurately as possible the outward particulars of their lives as they would have been on a day I’ve invented for them in 1923. I depended for information on a number of sources, most prominently two magnificently balanced and insightful biographies: Virginia Woolf: A Biography by Quentin Bell, and Virginia Woolf by Hermione Lee. [...] I also learned a great deal from the introductions to various editions of Mrs. Dalloway [...] I am indebted to Anne Olivier for the collecting and editing Woolf’s diaries [...] Niegel

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Nicolson and Joanne Trautmann for the collecting and editing the Woolf’s letters. [...] To all these people, I offer my thanks. (CUNNINGHAM, 1999, p. 229-230).

Ainda que Virginia Woolf, Leonard Woolf, Vanessa Bell, Nelly Boxall e outras pessoas da vida real apareçam neste livro como personagens de ficção, procurei reconstituir, de maneira a mais fiel possível, os aspectos exteriores de suas vidas em um dia que inventei para eles, em1923. Baseei-me, para obter as informações, em uma série de fontes, sobretudo em duas biografias magnificamente equilibradas e perspicazes: Virginia Woolf: a biografia, de Quentin Bell, e Virginia Woolf, de Hermione Lee. [...] Também aprendi um bocado com as introduções a várias edições de Mrs. Dalloway [...] Agradeço também a Anne Olivier Bell, por ter coligido e editado os diários de Virginia Woolf [...] Nigel Nicolson e Joanne Trautmann, por coligirem e editarem as cartas de Virginia Woolf. [...] A todas essas pessoas, apresento o meu muito obrigado (CUNNINGHAM, 2003, p.179). Ao entrar em contato com essa nota, constata-se que a intertextualidade é elemento inquestionável na estrutura do romance. Nas sessões denominadas “Mrs Woolf”, Cunningham utiliza acontecimentos obtidos pela pesquisa histórica, levando em consideração as ocorrências que as obras biográficas revelam sobre a escritora e, a partir daí, manifesta o seu processo criativo, dando o tom ficcional de sua trama e de sua idiossincrasia pós-moderna. Segundo o pensador russo Mikhail BakhtIn:

O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato dialógico entre textos [...] por trás desse contato está um contato de personalidades e não de coisas (1986, p. 162).

Desse modo, é fundamental que a composição textual remeta a outros textos ou segmentos de textos verdadeiramente produzidos, com os quais designem algum grau de relação. O livro de Cunningham é um exemplo claro desse diálogo, pois ele se dá por uma derivação. Tal obra não existiria se a autora Virginia Woolf não tivesse elaborado o seu Mrs. Dalloway. Um exemplo claro disso é a escolha do próprio título, já que The hours foi o nome escolhido inicialmente para estampar a obra de Woolf. Logo, The Hours é um texto decorrente de um outro texto, que lhe é predecessor, por meio de transformações, assimilações de forma direta ou indireta. Consta-se no Dicionário de linguagem e linguística de Robert Lawrence Trask que:

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O conceito de intertextualidade foi introduzido na década de 1960 pela crítica literária Julia Kristeva. Num sentido mais óbvio , o termo pode ser aplicado aos casos célebres em que uma obra faz alusão a outra obra literária: por exemplo, o Ulisses de J. Joyce e a Odisseia de Homero (entre outros); o romance Lord of Flies, de W. Golding e o livro The coral Island, de R. M. Ballantyne; as últimas obras de Machado de Assis e o Eclesiaste; a Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima e Os Lusíadas (2004, p. 147).

O dicionário frisa ainda que “a intenção de Kristeva tem aplicação mais ampla: ela encara cada texto como constituindo um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou que ainda serão escritos” (p.147). Segundo a teórica búlgara, qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro texto (2012, p. 60). Na mesma corrente de pensamentos, Greimas (1966, p. 60) reconhece que:

O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos que existiram ou existem em redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.

Assim se apresenta The Hours, seja com construções frasais idênticas as do precedente, com o uso da técnica do fluxo de consciência difundido por Virginia Woolf, nomes ligados à biografia da escritora base, ideologias, enfim, inúmeros traços que denotam um grande mergulho à obra de sua egéria. Exemplo claro dessa incorporação é o uso do diário de Virginia Woolf na epígrafe do romance de Cunningham:

I have no time to describe my plans. I should say a good deal about The Hours, and my Discovery; how I dig ou beautiful caves behind my characters; I think that gives exactly what I want; humanity, humour, depht. The idea is that the calves shall connect, and each comes to daylight at the presente moment (CUNNINGHAM, 1999, p.7).

Não tenho tempo para descrever meus planos. Eu deveria falar muito sobre As Horas e o que descobri; como escavo lindas cavernas por trás das personagens; acho que isso me dá exatamente o que quero; humanidade, humor, profundidade. A ideia é que as cavernas se comuniquem e venham à tona (CUNNINGHAM, 2003, p. 7).

Outra construção intertextual existente em The Hours é a assimilação da carta de despedida de Virginia Woolf para seu marido, Leonard Woolf. Cunningham se

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apropria do último escrito da autora e o utiliza no prólogo de seu livro. Virginia cometeu suicídio em março de 1941. Foi em uma terça-feira que ela escreveu

Dearest,

I feel certain that I am going mad agaIn: I feel we can’t go

through another of these terrible times. And I shant recover this time. I begin To hear voices, and cant concentrate.

So I am doing what seems the best thing to do. You have given me

the greatest possible happiness. You have been in every way all that anyone could be. I dont think two

people could have been happier till this terrible disease came. I cant fight it any longer, I know that I am spoiling your life, that without me you could work. And you will I know.

You see I cant even write this properly. I Cant read. What I want to say is that I owe all the happiness in my life to you. You have been entirely patient with me and incredibly good. I want to say that –

everybody knows it. If anybody could have saved me it would have been you. Everything has gone from me but the certaintly of your goodness. I

cant go on spoiling your life any longer. I dont think two people

could have been happier than we have been. V. (CUNNINGHAM, 1999, p. 6).

Queridíssimo,

Tenho certeza de que estou ficando Louca outra vez: sinto que não podemos passar por

mais uma dessas temporadas terríveis.

E desta vez eu não vou me recuperar. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar.

Por isso estou fazendo o que parece ser o melhor a fazer. Você me deu

toda a felicidade que eu poderia ter. Você

tem sido, sob todos os aspectos, tudo o que alguém podia ser. Não creio que pudesse haver no mundo duas pessoas mais felizes, até

que veio essa doença terrível. Não posso mais combatê-la, sei que estou

estragando sua vida, que sem mim você poderia trabalhar. E vai, eu sei.

Você vê que nem estou conseguindo escrever isso direito. Eu não consigo ler. O que quero dizer é que

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devo toda a felicidade que tive na vida a você. Você foi imensamente paciente comigo e tremendamente bom. Eu quero dizer isso – e todo mundo sabe. Se alguém pudesse ter me salvado, esse alguém teria sido você. Tudo o que eu tinha se foi, exceto a

Certeza de sua bondade. Eu

Não posso continuar estragando sua vida. Não creio que duas Pessoas

poderiam ter sido mais felizes do que nós fomos. V. (CUNNINGHAM, 2003, p. 11-12).

O enredo de The Hours também implanta os mesmos mecanismos do universo ficcional de Mrs. Dalloway. As duas narrativas acontecem em um único dia de junho, mesmo que o fluxo de consciência aumente esse lapso temporal por meio de flashbacks e flashforwads6. No livro de Virginia, acompanhamos esse dia na vida de Clarissa Dalloway, personagem central da trama, que em 1923 encontra-se na agitação de preparar uma festa e observa a cidade de Londres com todos os seus acontecimentos. Já no livro de Cunningham, são três as personagens protagonistas da história, que pertencem a lugares e tempos distintos, divididas em três seções: Mrs. Dalloway (Clarissa Vaughan), em um dia de junho, no final do século XX; Mrs Woolf (Virginia Woolf), em um dia de 1923; Mrs. Brown (Laura Brown), em um dia de 1949.

É importante notar que as duas personagens que não estão no mesmo tempo de Mrs. Woolf encontram-se intimamente ligadas ao romance Mrs. Dalloway e consequentemente aos seus acontecimentos. O apelido Mrs Dalloway, de Clarissa Vaughan, remete à personagem do livro Mrs. Dalloway, Clarissa Dalloway. Essa alcunha foi dada por Richard à Clarissa, pois suas ações remetiam sempre as da personagem da trama woolfiana. As ações da personagem e a voz do narrador criados por Cunningham também são referências da personagem criada por Virginia Woolf, como se vê nesta passagem:

There are still the flowers to buy. Clarissa feigns exasperation (though she loves doing errands like this), leaves Sally cleaning the bathroom, and runs out, promising to be back in half an hour [...] The vestibule door opens onto a June morning so fine and scrubbed Clarissa pauses at the threshold as she would at the tiles, the liquid nets of sun wavering in the blue depths. As if standing at the edge of a pool she delays for a 6 Gérard Genette em seu livro Discurso na narrativa classifica os flashbacks e flashforwads como Analepses. As analepses externas são aquelas que não interferem na narrativa, apenas completam ou esclarecem determinada situação. Já as analepses internas, ou heterodiegéticas, reportam-se a uma linha de história, possuindo um conteúdo diegético diferente da narrativa primeira.

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moment the plunge, the quick membrane of chill, the plain shock of immersion (CUNNINGHAM, 1999, p. 9).

Ainda é preciso comprar as flores. Clarissa finge-se irritada (embora adore tarefas como essa), deixa Sally limpando o banheiro e sai correndo com a promessa de voltar em meia hora [...] A porta do vestíbulo abre-se para uma manhã de junho tão clara e pura que Clarissa para na soleira, como teria parado na beira de uma piscina para ver a água turquesa roçando nos ladrilhos, as redes líquidas de sol tremulando nas funduras azuis. Como se tivesse parado na beira de uma piscina, ela adia uns instantes o momento do mergulho, a rápida membrana gelada, o simples choque da imersão (CUNNINGHAM, 2003, p. 15).

A citação anterior é uma reconstrução da primeira frase do romance de Virginia Woolf. Com a citação abaixo, nota-se instantaneamente a semelhança da composição literária adotada por Cunningham:

Mrs Dalloway said she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for her [...] What a lark! What a plunge! [...] the air was in the early morning; like the flap of a wave, the kiss of a wave; chill and sharp and yet (WOOLF, 2003, p. 3).

A Sra. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as flores. Pois Lucy estava cheia de serviço [...] Que folia! Que mergulho! [...] era o ar do começo da manhã; como a lambida de uma onda; o beijo de uma

onda; gelado e cortante (WOOLF, 2012, p. 5).

Aqui, notamos construções textuais e elementos semelhantes: a compra das flores, a manhã, a água, o mergulho. As “Clarissas” parecem desenvolver as mesmas ações, mas em contextos diferentes.

Já a Mrs. Brown está ligada ao mundo da Virginia Woolf por meio da leitura. Laura é a leitora de Mrs. Dalloway, identifica-se com a escrita de Virginia e, sobretudo, com a mente dela, daquela mulher moderna, corajosa e que precisa de um quarto físico e metafórico para que ela possa ser ela mesma. Essa personagem traz à tona os ideais de Virginia Woolf e seu ensaio chamado “Um teto todo seu”. Um livro sobre o direito de emancipação das mulheres, um grito a favor da igualdade de gêneros, ou seja, tudo o que Laura quer para si, a sua liberdade. Outra ligação importante de notar é que a personagem Mrs. Brown foi “criada” por Virginia em 1924 em um ensaio chamado “Mr Bennet and Mrs Brown”. Aqui, mais uma vez, observa-se a intertextualidade pulsante entre as duas obras.

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A frase de Leyla Perrone Moisés “ninguém é escritor sem ter sido, antes, um leitor” (MOISÉS, 2016, p. 115) faz todo o sentido quando nos deparamos com a obra de Cunningham. Aqui, observa-se claramente todo o labor realizado pelo escritor em análise. Nada é gratuito, existe sempre uma associação meticulosa nesse labirinto literário chamado The Hours.

Em seu livro Introdução à Semanálise, Kristeva (2012) observa as várias possibilidades entre sujeitos dentro de um romance intertextual. Ao debruçar-se sobre a obra cunninghaniana através da teoria da autora, constata-se que ela segue o modelo da coincidência do sujeito do enunciado simultaneamente com o sujeito da enunciação e com o destinatário. Desse modo, o romance “torna-se, então, um questionamento da escritura e mostra a encenação da estrutura dialógica do livro. Ao mesmo tempo, o texto se faz leitura (citação e comentário) de um corpus literário exterior, construindo-se, desse modo, como ambivalência” (2012, p. 166).

O termo ambivalência é advindo dos estudos Bakhtinianos, assim como possivelmente toda a análise crítica de Kristeva. As relações dialógicas referentes ao modelo romanesco fazem jus à união do texto e da História. A escritora búlgara enfatiza que essas duas vias estão unidas ao corpo do texto de maneira homogênea, totalmente uniformes. Ao seu ver, um texto não pode ser compreendido somente pelos fatores linguísticos, mas ao saber translinguístico, ou seja, “pelas relações que o discurso do século XIX nomeia “valor social”, ou “mensagem” moral da literatura. [...] verifica-se, desse modo, que o diálogo ao escritor ao entrar na história, professando uma moral ambivalente, a da negação como afirmação” (KRISTEVA, 2012, p. 146).

Dessa corrente reflexiva, o diálogo entre os dois textos, Mrs Dalloway e The Hours, leva a uma conclusão: a poeticidade na linguagem interior desses dois romances, tanto quanto nos espaços do texto, é um “duplo”. Essa corrente desconstrutiva dos formalistas russos acaba com o monolinguismo vigente na Literatura Comparada. Kristeva afirma que

o diálogo é melhor ilustrado na estrutura da linguagem carnavalesca, onde as relações simbólicas e a analogia precedem as relações substância-causalidade. O termo ambivalência será aplicado à permutação de dois espaços observáveis na estrutura romanesca: o espaço dialógico e o espaço monológico. A concepção da linguagem poética como diálogo e ambivalência conduz, então, Bakhtin a uma reavaliação da estrutura romanesca, que torna a forma de uma classificação das palavras da narrativa, ligada a uma tipologia do discurso (2012, p. 148).

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A partir dessa classificação, pode-se ver as duas obras analisadas sob dois aspectos relacionados às palavras. A primeira, a palavra direta, remetendo a seu objeto. No caso do livro The Hours, a Virginia Woolf construída ficcionalmente por Cunningham. As palavras do autor, a palavra que a anuncia, expressando a questão denotativa que deve ser relacionada diretamente e objetivamente quanto à sua compreensão. Essas são palavras que não são relacionadas ao consciente externo do texto, ou seja, a não conexão ao contexto histórico, ao extratexto. A palavra na superfície da palavra, ela por ela mesma.

A segunda classificação refere-se à palavra objetal, o discurso direto das personagens. Nesta situação existe uma significação objetiva direta, mas não se encontra no mesmo nível do discurso do autor, se localizando, assim, distanciado dele. O significado dessa palavra é inerente à compreensão deste, logo, ele não a subordina a suas próprias tarefas sem nela introduzir uma outra significação.

No caso de The Hours, esse olhar assume o papel das palavras utilizadas como mero objeto estético, firulas textuais, não autobiográficas. Há aqui uma manipulação por parte do autor em acrescentar dados, um estilo pictórico, assim como estabeleceu Bakhtin em seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem. Exemplo disso é a seguinte passagem:

Standing knee-deep in the moving water, she decides against it. The voices are here, the headache is coming, and if she restores herself to the care of Leonard and Vanessa they won’t let her go again, will they? She decides to insist that they let her go. She wades awkwardly (the bottom is mucky) out until she is up to her waist. She glances upriver at the fisherman, who is wearing a red jacket and who does not see her. The yellow surface of the river (more yellow than brown when seen this close) murkily reflects the sky. Here, then, is the last moment of true perception, a man fishing in a red jacket and a cloudy sky reflected on opaque water (CUNNINGHAM, 1999, p. 5)

Parada com água até os joelhos, decide que não. As vozes estão aqui, a dor de cabeça está vindo e, se ela se entregar de novo aos cuidados de Leonard e Vanessa, eles não a deixarão partir outra vez, não é mesmo? Decide insistir para que eles a deixem ir. Continua desajeitadamente (o fundo é lamacento) até ficar com água pela cintura. Olha de relance para o pescador, que usa um paletó vermelho e não a vê. A superfície amarela do rio (mais amarela que marrom, quando vista assim tão de perto) reflete o céu lodosamente. Eis aqui, então, o último momento de percepção verdadeira, um homem de paletó vermelho pescando e um céu nublado refletido em água opaca (CUNNINGHAM, 2003, p. 10).

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Nesse fragmento, Cunningham ficcionaliza o momento do suicídio da autora Virginia Woolf no Rio Ouse. Mas por se tratar de uma ação em que o autor não foi testemunha ocular e, sim, imagético da situação, ele utiliza elementos estéticos que construam a composição da cena. Por mais que saibamos que a morte da autora é um fato, as circunstâncias desse momento necessitam ser construídas para que a imagem do leitor seja concebida. O olhar de Woolf para um suposto pescador seria impossível de se saber por meio da única protagonista da ação, ela mesma. Logo, percebemos que as palavras são empregadas como elementos constituintes de um valor estético, executores da construção da ação do romance.

Mas há outra possibilidade para a construção de um texto polifônico, a de que “o autor pode se servir da palavra de outrem para nela inserir um sentido novo, conservando sempre o sentido que a palavra já possui. Resulta daí que a palavra adquire duas significações, que ela se torna ambivalente” (KRISTEVA, 2012, p. 150). Como já foi mostrado anteriormente, a carta de suicídio da autora Virginia Woolf foi inserida no livro de Cunningham para compor sua história e ficcionalização. Ele utiliza as palavras da própria Virginia “real” para que seja construída a história “fictícia” da personagem Mrs. Woolf. Além de tomar para si as palavras que Woolf escreveu ao compor o seu Mrs. Dalloway, como:

Mrs. Dalloway sad she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for her. The door would have to be taken off their hinges; Rumpelmayer’s men were coming. And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach (CUNNINGHAM, 1999, p. 37).

Mrs. Dalloway disse que compraria ela mesma as flores. Porque Lucy já tinha trabalhado de sobra. As portas teriam de ser removidas das dobradiças; os homens de Rumpelmayer viriam. Depois, pensou Clarissa Dalloway, que dia – limpo como se nascido para crianças numa praia (CUNNINGHAM, 2003, p. 35).

Cunningham utiliza um texto já produzido para fazer parte de seu texto tido como original. Faz com que as palavras mantenham o sentido, mas sejam empregadas como constituintes de um novo lugar dentro de sua narrativa. Ao apresentar uma de suas personagens, a Mrs. Brown, como uma leitora de Virginia Woolf e leitora do Mrs. Dalloway (romance escrito pela Virginia real e ficcional dentro do próprio romance), ele mais uma vez se apropria das palavras de outrem para fazer

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valer o seu discurso, o seu produto literário. Tendo isso como fato narrativo dentro da obra do norte-americano, pode-se inferir que:

A junção de dois sistemas de signos relativiza o texto. É o efeito da estilização que estabelece uma distância relativamente à palavra de outrem, contrariamente à imitação (onde Bakhtin tem em vista, sobretudo, a repetição, que toma o imitado (o repetido) a sério, torna-se o torna-seu, apropria-torna-se dele, torna-sem o relativizar. Essa categoria de palavras ambivalentes caracteriza-se pelo fato de que o autor explora a palavra de outrem, sem ferir-lhe o pensamento, para suas próprias metas; segue sua direção deixando-a sempre relativa (KRISTEVA, 2012, p. 150).

Por esse motivo, pela constância do discurso das palavras (re)utilizadas, é que o texto do Michael Cunningham não pode ser considerado uma paródia. Se o fosse, o autor teria utilizado “uma significação oposta à significação da palavra” (KRISTEVA, 2012, p. 150) da detentora do produto original.

Nesta simbiose literária, constata-se que são vários os pontos coincidentes entre as obras analisadas. Do ponto de vista temático, podemos destacar alguns deles.

O primeiro refere-se ao sujeito na contemporaneidade. São muitas as relações existentes entre as duas obras examinadas nesta dissertação. Ao começar pela construção dos protagonistas e seus contextos. Tanto as personagens-chave de Virginia Woolf – Clarissa Dalloway e Septimus Smith quanto às de Cunningham – Mrs. Dalloway, Mrs. Brown e Mrs.Woolf – estão inseridas na classe média e se encontram em uma posição limítrofe, seja devido às representações de gênero ou por não conseguirem enquadrar-se adequadamente em seu contexto social. Todas elas não conseguem revelar o seu verdadeiro eu, são meras fragmentações identitárias, forçadas a viver em ambientes que não condizem com seus anseios.

É nessa conjuntura que a formação do sujeito contemporâneo é criada. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2006, p. 13). Sendo, desse modo, definida historicamente e não biologicamente. Hall ainda afirma que

O sujeito assume identidades diferentes em momentos distintos, que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há sujeitos contraditórios, empurrando em diferentes direções, de tal

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modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (HALL, 2006, p. 13).

Diante disso, é observada a noção da descentralização das identidades modernas nas personagens analisadas. As crises existenciais reforçam a premência da aceitação do “eu” perante a sociedade e da eterna incompletude dos sujeitos contemporâneos.

Quanto à depressão e ao suicídio, a própria Virginia Woolf desencadeia toda essa conexão. É de extrema publicidade a biografia da escritora inglesa, não somente pelo seu sucesso literário, mas por seus percalços na vida, como a sua forte depressão, sua esquizofrenia e seu suicídio. Assim, desse mesmo modo, ela é representada como uma personagem desestabilizada por todos esses transtornos.

Em The Hours, Mrs. Woolf manifesta vários sintomas caracterizadores dessa ordem, como por exemplo: angústia, alucinações, audição de vozes, dificuldade de convívio social, aparência física desregrada, rejeição da alimentação, baixa autoestima e o ápice de tudo isso, o suicídio. Essa autodestruição é observada também em outra personagem do mesmo livro, Richard. Escritor recluso, assim como a Mrs. Woolf, homossexual, doente em fase terminal em decorrência da AIDS, também atormentado por vozes e que terá, assim como as “Woolfs”, o seu fim pelo suicídio.

Essas duas personagens representam muito bem a metaficção feita por Cunningham, uma vez que ambas estão em processos de reflexão sobre suas vidas, dúvidas quanto ao valor de suas criações, como bem expressa o prólogo de Mrs. Woolf: She is not a writer at all, really; she is merely a gifted eccentric” (CUNNINGHAM, 1999, p. 4)”7, assim como a observação feita pelo narrador onisciente ao ter acesso ao pensamento de Clarissa sobre o talento de Richard, que receberá um prêmio pela sua obra:

She would like to take him by his bony shoulders and shake him, hard. Richard may (although one hesitates to think in quite these terms) be entering the canon; he may at these last moments in his earthly career be receiving the first hints of a recognition that will travel far into the 7 Não é escritora coisa nenhuma, não de verdade; é apenas uma excêntrica bem-dotada (CUNNINGHAM, 2003, p. 9).

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future (assuming, of course, there is any forniture at all), A prize like this means more than the notice of a congress of poets and academics; it means that literature itself (the future of which is being shaped right now) seems to feel a need for Richard’s particular contribution: his defiantly prolix lamentations over worlds either vanishing or lost entirely. (CUNNINGHAM, 1999, p. 64).

Ela gostaria de pegá-lo pelos ombros ossudos e sacudi-lo, bem forte. Richard pode (embora hesite um pouco em pensar nesses termos) estar entrando para o cânon; pode, nesses últimos momentos de sua carreira terrena, estar recebendo os primeiros indícios de um reconhecimento que se projetará futuro afora (presumindo-se, é claro, que haja um futuro). Um prêmio como esse significa mais do que a atenção de um congresso de poetas e acadêmicos; significa que a própria literatura (cujo futuro está sendo forjado neste momento) parece sentir necessidade da contribuição especial de Richard: de seus lamentos prolixamente provocativos a respeito de mundos que estão sumindo ou que já desapareceram por completo (CUNNINGHAM, 2003, p. 57).

Laura Brown, mãe de Richard, cujo contexto ambienta-se em uma Los Angeles pós-Segunda Guerra Mundial, sofre com o status forçado de dona de casa e esposa troféu. Mrs. Brown faz parte do American Way of Life8, assenta-se no típico modelo da família americana de classe média da época. É a representação da mulher dominada, sem aspirações na vida a não ser servir, uma vez que a guerra trouxe uma sensação de culpa e um senso de responsabilidade egoisticamente machista.

Em seu massacre cotidiano, como pode ser percebido em “so now she is Laura Brown, Laura Zielski, the solitary girl, the incessant reader, is gone, an here in her place is Laura Brown.”9 (CUNNINGHAM, 1999, p. 40) o sofrimento é implacável e logo a personagem se vê em uma encruzilhada, viver essa vida inútil ou abandonar tudo para escapar. Escapar aos moldes de sua inspiração, a verdadeira Virginia Woolf, cometendo o suicídio.

Septimus, personagem situado em Mrs. Dalloway, representa a crítica de Virginia Woolf acerca dos tratamentos para as doenças mentais em sua época. Herói de guerra e neurótico, ele passara por inúmeros tratamentos médicos que foram falhos à sua condição mental, tal como o círculo social no qual estava imerso. A guerra não acabava nos campos de batalha, resquícios que nem sempre eram percebidos

8 “Esse conceito está atrelado ao consumo e a um padrão de família, de beleza, de gênero e de regras do que você tem que ter e ser para ser bem-sucedido”, explica o psicanalista Paulo R. F. Cunha, coordenador e professor do curso de Comunicação Social da ESPM e autor do recém-lançado American Way of Life: Consumo e Estilo de Vida no Cinema dos Anos 1950 (ed. Intermeios).

9 Ela é agora Laura Brown, Laura Zielski, a moça solitária, a leitora incansável, foi-se e, em seu lugar, ficou Laura Brown (CUNNINGHAM, 2003, p. 37).

Referências

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