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Iniquidades nos serviços de saúde brasileiros: uma análise do acesso e da discriminação racial a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), 2013

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MARIANNY NAYARA PAIVA DANTAS

INIQUIDADES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE BRASILEIROS:

UMA ANÁLISE DO ACESSO E DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL A PARTIR DA PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE (PNS), 2013.

NATAL-RN 2019

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MARIANNY NAYARA PAIVA DANTAS

INIQUIDADES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE BRASILEIROS:

UMA ANÁLISE DO ACESSO E DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL A PARTIR DA PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE (PNS), 2013.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva.

Orientadora: Profa. Dra. Isabelle Ribeiro Barbosa Mirabal

Natal-RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Alberto Moreira Campos - -Departamento de Odontologia

Dantas, Marianny Nayara Paiva.

Iniquidades nos serviços de saúde brasileiros: uma análise do acesso e da discriminação racial a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), 2013 / Marianny Nayara Paiva Dantas. - Natal, 2019. 71 f.: il.

Orientadora: Profa. Dra. Isabelle Ribieiro Barbosa Mirabal. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019.

1. Racismo - Dissertação. 2. Discriminação social -

Dissertação. 3. Acesso aos serviços de saúde - Dissertação. 4. Prestadores de cuidados de saúde - Dissertação. 5. Serviços de Saúde - Dissertação. 6. Grupo com Ancestrais do Continente

Africano - Dissertação. I. Mirabal, Isabelle Ribeiro Barbosa. II. Título.

RN/UF/BSO BLACK D585 Elaborado por MONICA KARINA SANTOS REIS - CRB-15/393

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RESUMO

A população negra é identificada, em diversos estudos, como vulnerável por estar em condição de desvantagem nos aspectos socioeconômicos, no perfil de morbimortalidade e no acesso a serviços de saúde. A incapacidade das instituições, estruturas e organizações da sociedade para atender de forma equânime a esta população pode ser evidenciada tanto na dificuldade de acesso aos serviços de saúde como através da prática da discriminação racial perpetrada pelos profissionais que compõem estes serviços. Com base nestes aspectos, este estudo objetiva analisar a dificuldade de acesso e a discriminação por raça/cor nos serviços de saúde brasileiros, considerando os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2013). Trata-se de um estudo transversal, a partir dos dados da PNS (2013), com 60.202 pessoas acima de 18 anos. Para atingir estes objetivos, foram utilizadas questões do inquérito sobre a obtenção de atendimento, a não procura dos serviços de saúde e a discriminação praticada por prestadores de cuidados de saúde. Realizamos análise das prevalências da dificuldade de acesso e discriminação por raça/cor praticada por prestadores de cuidados de saúde em relação às características socioeconômicas e condições de saúde da população estudada; análise bivariada com obtenção das Razões de Prevalência (RP), Intervalos de Confiança de 95% (IC95%) e valores de p (p<0,05); e modelo multivariado por meio da Regressão de Poisson, com teste de Wald para estimação robusta, para variáveis significativas na análise bivariada (p<0,2). A dificuldade de acesso foi encontrada para 18,11% (IC 95%16,88-19,41) dos sujeitos e associada à cor da pele negra, residir na região centro-oeste, na zona rural, ser fumante, ter autoavaliação de saúde ruim/muito ruim e não ter plano de saúde privado. A prevalência da discriminação por raça/cor praticada por prestadores de cuidados de saúde foi de 1,45% (IC95%1,29-1,62). No modelo estatístico final, o desfecho esteve associado a ser negro, ter idade entre 25-39 anos, ser fumante, possuir quatro morbidades, avaliar as próprias saúdes como ruins ou muito ruins, ser usuário do serviço público de saúde e residir na zona urbana do país. Constatamos que a discriminação racial e a dificuldade de acesso a serviços de saúde brasileiros atingem majoritariamente a população negra. Observamos a legitimação do racismo institucional por meio dos serviços de saúde brasileiros, com destaque ao SUS, que se propõe universal, inclusivo e integral. Reforçamos a necessidade do fortalecimento das políticas de saúde com vistas à transformação desse panorama.

Palavras-chave: Racismo; Discriminação por raça/cor; Dificuldade no acesso a serviços de

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ABSTRACT

The black population is identified in several studies as vulnerable because it is disadvantaged in socioeconomic aspects, morbidity and mortality profile and access to health services. The inability of the institutions, structures and organizations of society to attend to this population in an equitable way can be evidenced both in the difficulty of access to health services and through the practice of racial discrimination perpetrated by health care providers. This study aims to analyze the difficulty of access and discrimination by race/color in Brazilian health services, considering the data from the “Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2013)”. It is a cross-sectional study based on the PNS data, 2013, with 60.202 people over 18 years. Questionnaires were used in the survey on obtaining care, not seeking health services and on discrimination by health care providers. We analyze the prevalence of difficulty of access and discrimination by race/color practiced by health care providers in relation to the socioeconomic characteristics and health conditions of the studied population; bivariate analysis with attainment of Prevalence Ratios (PR), Confidence Intervals of 95% (95% CI) and p values (p <0,05); and multivariate model using the Poisson regression, with Wald test for robust estimation, for significant variables in the bivariate analysis (p<0,2). The difficulty of access was found for 18,11% (CI 95% 16,88-19,41) of the individuals and associated with black skin color, residing in the central-west region, in the rural area, being a smoker, self-assessment of bad/very bad health and having no private health insurance. The prevalence of race/color discrimination practiced by health care providers was 1,45% (95% CI 1,29-1,62) and was associated with being black, being between 25-39 years-old, being a smoker, possessing four morbidities, having poor/very poor health self-assessment, being a public health service user and residing in the urban area of the country. We found that racial discrimination and the difficulty of access to Brazilian health services reach the majority of the black population. We observe the legitimacy of institutional racism through the Brazilian health services, emphasizing SUS (the Universal Healthcare System), which proposes to be universal, inclusive and integral. We reinforce the need to strengthen health policies with the aim to transform this panorama.

Keywords: Racism; Discrimination by race/color; Difficulty of access to health services;

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mapa conceitual com os determinantes da vulnerabilidade da saúde da população negra...30 Quadro 1: Variáveis independentes do estudo...37 Tabela 1: Prevalência (%) da dificuldade de acesso aos serviços de saúde, de acordo com as variáveis socioeconômicas e de saúde da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013...41 Tabela 2: Análise bivariada dos fatores relacionados a dificuldade de acesso a serviços de saúde de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, 2013...43 Tabela 3: Modelo multivariado com as Razões de Prevalência ajustadas (RPaj) das variáveis associadas a dificuldade de acesso a serviços de saúde, a partir da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013...45 Tabela 4: Prevalência (%) da discriminação por raça/cor praticada por prestadores de cuidados de saúde, conforme as variáveis independentes da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013...47 Tabela 5: Análise bivariada dos fatores relacionados à discriminação por raça/cor praticada por prestadores de cuidados de saúde, conforme as variáveis independentes da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013...49 Tabela 6: Modelo multivariado com as Razões de prevalência ajustadas (Rapaz) das variáveis associadas à discriminação por raça/cor praticada por prestadores de cuidados de saúde, conforme as variáveis independentes da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013...51

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 5

REFERENCIAL TEÓRICO ... 7

2.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DAS DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL ... 7

2.2 CONDIÇÕES DE VIDA E DE SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA NA ATUALIDADE ... 12

2.3 RACISMO ESTRUTURAL E SUAS REPERCURSSÕES NA SAÚDE DA POPULAÇÃO BRASILEIRA ... 15

2.4 AÇÕES DE REDUÇÃO DAS INIQUIDADES RACIAIS NO BRASIL ... 20

2.5 A PROPOSTA DA EQUIDADE FACE À POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE INTEGRAL DA POPULAÇÃO NEGRA (PNSIPN) ... 28

OBJETIVOS... 34 3.1 OBJETIVO GERAL ... 34 3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ... 34 MÉTODO ... 35 4.1 TIPO DE ESTUDO ... 35 4.2 LOCAL DO ESTUDO ... 35 4.3 FONTE DE DADOS ... 35

4.4 POPULAÇÃO DO ESTUDO E AMOSTRAGEM ... 35

4.5 VARIÁVEIS DO ESTUDO ... 36

4.5.1 Variáveis dependentes ... 36

4.5.2 Variáveis independentes ... 37

4.6 TRATAMENTO DOS DADOS ... 40

4.7 ASPECTOS ÉTICOS ... 40

RESULTADOS ... 41

5.1 DIFICULDADE DE ACESSO AOS SERVIÇOS DE SAÚDE BRASILEIROS ... 41

5.2 DISCRIMINAÇÃO PRATICADA POR PRESTADORES DE CUIDADOS DE SAÚDE NO BRASIL ... 46

DISCUSSÃO ... 53

6.1 DIFICULDADE DE ACESSO AOS SERVIÇOS DE SAÚDE BRASILEIROS ... 53

6.2 DISCRIMINAÇÃO PRATICADA POR PRESTADORES DE CUIDADOS DE SAÚDE NO BRASIL ... 56

CONCLUSÕES ... 59

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1 INTRODUÇÃO

No Brasil, eventos históricos, sociais e políticos fomentaram desigualdades que se refletem nas discrepantes condições de vida de sua população a depender da sua cor da pele. A desvantagem vivida pela população negra possui raízes no escravagismo, na elaboração religiosa e científica de uma inferioridade para esta população; sua manutenção, porém, se dá pela exclusão desse povo nos ciclos socioeconômicos estabelecidos após a abolição da escravatura, pela ideologia do racismo e práticas de discriminação racial (FERNANDES, 2008; BRASIL, 2017a).

O racismo apresenta-se como uma ideologia de inferioridade social, utilizada para justificar o tratamento depreciativo concedido a membros de grupos raciais e étnicos, que contribui para o agravamento e manutenção de desvantagens de poder, recursos ou oportunidades entre estes grupos (BARATA, 2009; PARADIES, 2013).

Este fenômeno e suas diversas estratégias de materialização são reconhecidos como determinantes estruturais do perfil de morbimortalidade da população negra, restringem o acesso a bens, serviços, direitos, oportunidades, negligenciam as necessidades desta população e a colocam em diversas de situações de desvantagem. Impregnado nas instituições e no modus operandi da sociedade, possui grandes repercussões na forma como as políticas públicas são desenhadas, no modo como o Sistema Único de Saúde (SUS) e os serviços de saúde se organizam para atender ou não as necessidades de saúde desta população (BRASIL, 2016; WERNECK, 2016).

As marcas do racismo, seus efeitos históricos, políticos e sociais, refletem-se no perfil socioeconômico e epidemiológico atual da população negra brasileira, que esteve destinada ao lugar de exclusão e privação ao longo do tempo. Apesar de compor a maioria no contingente populacional brasileiro, esta é a população com maior número de pessoas em situação de extrema pobreza, com o maior número de analfabetos, o menor número de jovens no ensino superior, a maior prevalência de crianças em situação de insegurança alimentar, as maiores vítimas das violências letais, da anemia falciforme e de doenças negligenciadas, como a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) e a doença de chagas (BRASIL, 2016; BRASIL, 2017b).

O entendimento do impacto do racismo institucional no delineamento das desvantagens de vida e saúde da população negra brasileira levaram à criação de algumas políticas públicas no Brasil. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra

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(PNSIPN), apresenta-se como uma estratégia no combate às desigualdades SUS, com vistas à melhoria do acesso e da condição de saúde desta população, e compreende que a assistência integral, livre de discriminação racial é indispensável para a redução das disparidades de saúde decorrentes da raça/cor (BRASIL, 2017a; CAMPOS, 2017).

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do Brasil, inquérito de base domiciliar de âmbito nacional, objetivou conhecer a situação de saúde, os estilos de vida, o acesso e uso dos serviços de saúde de sua população, segundo região de moradia, sexo, raça e cor, permitindo caracterizar o acesso e o tratamento recebido nos serviços de saúde pela população negra (SOUZA-JÚNIOR et al., 2015).

Ao analisarmos a construção histórica da situação de vida e saúde da população negra e o papel das organizações na manutenção dos racismos, levantamos os seguintes questionamentos: a população negra, efetivamente, está em desvantagem no que tange ao acesso aos serviços de saúde? Qual o perfil da população vítima da discriminação, motivada pela cor/raça, praticada por prestadores de cuidados de saúde no Brasil?

A complexidade do racismo, sua presença nas instituições, seu impacto negativo no uso efetivo dos serviços e na condição de saúde da população brasileira reforçam a necessidade e a relevância de apropriação científica sobre esse tema. Esta necessidade é respaldada pela escassez de estudos nesta perspectiva, no âmbito da saúde coletiva e neste programa de pós-graduação.

A partir das prerrogativas supracitadas, o presente trabalho discute a dificuldade de acesso aos serviços de saúde pela população negra e da discriminação praticada pelos prestadores de cuidados de saúde, enquanto estratégias de materialização do racismo institucional. A compreensão dessas questões e das desigualdades geradas por elas é de fundamental importância para orientar estratégias de melhoria na oferta de serviços de saúde e para amortizar os danos às populações em situação de desvantagem.

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REFERENCIAL TEÓRICO

Nesta seção, apresentamos alguns apontamentos que auxiliam a compreensão dos eventos que resultaram no delineamento da desvantagem vivida pela população negra, suas repercussões na condição de saúde desta população e estratégias para minimizar suas repercussões.

No primeiro subtópico, denominado “O contexto histórico da formação e consolidação das desigualdades raciais no Brasil” discutimos os eventos históricos, sociais e políticos que subsidiaram a precarização da condição atual, vivida pela população negra. No segundo subtópico, denominado “Condições de vida e de saúde da população negra brasileira na atualidade”, apresentamos indicadores que reiteram a situação de vulnerabilidade vivida por esta população na contemporaneidade, em relação à população não negra. No terceiro, intitulado “Racismo estrutural e suas repercussões na saúde da população brasileira”, discutimos a materialização do racismo institucional ou estrutural através da dificuldade de acesso e da discriminação por raça/cor nos serviços de saúde. No quarto, denominado “Ações de redução das iniquidades raciais”, apresentamos brevemente as ações afirmativas utilizadas no Brasil para minimizar a vulnerabilidade vivida pela população negra. E no último, intitulado “A proposta da equidade face à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)”, discutimos a PNSIPN enquanto ferramenta para redução das iniquidades no âmbito do sistema de saúde e algumas de suas limitações.

2.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DAS DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL

No Brasil, diversos eventos fomentaram desigualdades que se refletem nas condições de vida de sua população e se relacionam diretamente com a cor da pele que seus cidadãos possuem. A desvantagem vivida pela população negra possui raízes no escravagismo e na elaboração religiosa e científica de inferioridade para o negro, porém sua manutenção se dá pela exclusão desta população nos novos ciclos socioeconômicos estabelecidos após a abolição da escravatura, pela ideologia do racismo e pelas práticas de discriminação racial (FERNANDES, 2008; MUNANGA, 2009).

A população negra, trazida para o trabalho forçado nas plantações brasileiras, sofria os mais diversos tipos de violência desde sua captura. Transportada em condições sub-humanas em navios negreiros, era destituída de sua cultura e vínculos sociais e familiares, e passava a

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constituir a força motriz da economia do país. Estas pessoas eram submetidas a condições não humanas de trabalho, viviam amontoados, acorrentados em porões pútridos, alimentavam-se de forma precária, vestiam farrapos e eram submetidos à castigos físicos tão extremos que podiam levar-lhes à morte (ALENCASTRO, 2000; SCHWARCZ; STARLING, 2015).

Para os senhores, manter os negros cativos e submetê-los a este tratamento não suscitava violação da condição humana, já que os escravizados eram considerados racialmente inferiores, vistos como objetos ou animais e não como seres humanos. A escravidão do homem pelo homem, contraditoriamente, encontrava o respaldo necessário na ética católica. O senhor generosamente responsabilizava-se pelo escravo, impondo condições sociais e costumes, e concedia a ele uma atividade; desse modo, minimizava suas características, consideradas animalescas e brutais. Nesta relação, o escravo é visto como beneficiário ao sair da condição de sub-humano, e o senhor obtém encargo pela benfeitoria prestada, o que lhe dá, moralmente, poderes indiscriminados sobre os explorados. Nesse contexto, as marcas raciais, como os traços fenotípicos dos negros, funcionavam como meio para identificar a condição degradante de escravo, a forma que deveria ser tratado e sua posição na sociedade (FERNANDES, 1972).

As normas às quais os escravizados estavam submetidos podem ser identificadas em estudo sobre o sistema de saúde do escravo no Brasil, do século XIX. Pôrto (2006), identifica manuais desta época que orientavam aos senhores sobre a escolha no mercado das “peças saudáveis”, adequadas ao trabalho escravo. Os manuscritos informavam sobre a constituição física adequada do escravizado, definiam suas condições de habitação, vestuário, alimentação, jornada de trabalho, repouso, castigo, apontavam a instrução religiosa como relevante para sua submissão, adaptação à sociedade e para o bom andamento do trabalho, além de informar as principais enfermidades que os acometiam e os respectivos tratamentos caseiros que poderiam ser administrados para solucioná-las.

As doenças mais comuns nesta população estavam associadas aos maus-tratos físicos ou trabalho exaustivo, entretanto seus proprietários só se tornavam mais cuidadosos quando havia alguma redução do quantitativo por efeito de epidemias. Os sintomas de doenças eram considerados fingimento para faltar ao trabalho, e os cuidados à saúde desta população se limitavam à manutenção de sua funcionalidade, a depender do interesse de seu proprietário, dados os altos custos da aquisição deste item (PÔRTO, 2006).

Entre o século XVIII e XIX disseminaram-se várias teorias científicas com o intuito de reforçar a inferioridade desta população, baseando-se na valorização de características das pessoas brancas (consideradas como normalidade) e depreciação das características das

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pessoas negras. Nesta perspectiva, associavam-se os traços físicos dos negros, como tamanho e a forma de seu crânio, aspectos do nariz e lábios, a características comportamentais, morais e cognitivas, como baixa inteligência, instabilidade emocional e desvios de conduta. Esta associação é utilizada para justificar a exploração deste grupo racial, destinados biologicamente a servir através da escravidão (GOULD, 1991; MUNANGA, 2009).

Ao longo do século XIX, a escravidão perdia aos poucos sua magnitude no Brasil. Movimentos de resistência, fugas individuais, coletivas e alforrias diminuíam o quantitativo de pessoas submetidas a este regime e colocavam em questão o controle político, econômico e social pela classe dominante, o que tornava duvidoso o futuro do país (SILVA; TRIGO, MARÇAL, 2013).

A proibição do tráfico transatlântico de escravos e a elevação de seu custo tornavam o trabalho escravo cada vez mais dispendioso aos senhores. Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, com o advento do capitalismo e dos modos de produção industrial, a importância econômica do escravagismo diminuía e relacionava-o à ineficiência. A relação servil não era considerada profícua ao desenvolvimento do país e as habilidades dos escravos eram consideradas insuficientes para atuar no novo sistema competitivo capitalista (HANSEMBALG, 2005).

Neste contexto, emergiram discussões que colocavam em pauta a modernização, o desenvolvimento e o progresso de uma de nação capitalista embrionária e os conceitos de trabalho e de trabalhador ideais passam a ser ressignificados. O escravo passa a ser considerado uma mão de obra inútil, atrasada, incapaz, sem disciplina e sem conhecimento técnico, e é associado a um sistema de baixa produtividade. Tais elementos eram considerados imutáveis nesta população, inerentes a suas características biológicas e lhes conferiam a inferioridade típica do negro. Desse modo, o imigrante europeu, agricultor eficiente, passa a ocupar espaço nas novas formas de produção (SEYFERTH, 2002; HANSEMBALG, 2005; SILVA, 2013).

O movimento em torno da abolição, mais que um movimento de garantia da dignidade e justiça social, compreendia a busca pela inserção do Brasil na economia mundial, que, nos novos moldes, necessitava do proletariado e seus rendimentos para escoar sua produção. Além disso, possibilitava a emancipação dos escravos de modo controlado, sem manifestos e revoltas contra o status vigente, garantindo a ordem social. Neste panorama, a maior parte dos abolicionistas via na libertação dos negros um modo de livrar o país da estagnação trazida pelo escravagismo (MARQUESE, 2006; FERNANDES, 2008; LEITE, 2016; MARINGONI, 2011).

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Para o novo sistema produtivo, o trabalhador negro era considerado inadequado, perene e não adaptado ao trabalho regular assalariado, pois possuía personalidade rudimentar, direcionada a um tipo de trabalho que atendia somente suas necessidades. Estes fatores tornavam difícil seu recrutamento,m e os classificavam como despreparados para responder aos estímulos econômicos necessários ao sistema capitalista. Deste modo, a abolição da escravatura não modificou o status do negro, suas frágeis habilidades sociais, de trabalho e sua exclusão do novo ciclo socioeconômico; ao contrário, fez com que não possuísse condições para competir e se inserir no sistema produtivo. O novo liberto se manteve na pobreza e isolamento socioeconômico (HANSEMBALG, 2005; THEODORO, 2008).

Após a abolição, para ocupar os postos de trabalho antes ocupados pelos escravos, houve o aquecimento na importação da seleta força de trabalho europeia, estimulada e financiada pelo poder público. O fortalecimento da imigração destes indivíduos brancos, considerados biologicamente superiores e capazes de garantir o progresso desejado, favorecia também a miscigenação da população brasileira, permitindo seu aprimoramento por meio do progressivo branqueamento e consequentemente o desaparecimento da população negra do país, considerada um mal para nação (HANSEMBALG, 2005; JACCOUD et al., 2009).

Para alcançar o branqueamento da nação, o relacionamento entre brancos e negros era permitido, dentro de certos limites. A miscigenação, além de meio de purificação da nação brasileira, passa a ser um objetivo individual, uma válvula de esperança que reduz o descontentamento social entre os negros, diante de sua inferioridade social. Isso ocorre porque, após a abolição, a raça se mantém um critério de distribuição das pessoas na estrutura social de classes. Às pessoas mestiças, com traços semelhantes aos brancos, é permitido circular e usufruir de privilégios destinados a estratos da sociedade mais valorizados. Além dos traços fenotípicos semelhantes aos da população branca, melhores condições econômicas, adquiridas por esparsos negros, também ampliam sua possibilidade usufruir destes privilégios (HANSEMBALG, 2005).

Com a convivência de diferentes grupos socioraciais nos mesmos espaços, ocasionada pela mudança do estatus socioeconômico, pela miscigenação e pela inserção social de alguns negros em espaços destinados aos não negros, é proclamado o discurso de que não há problema racial no Brasil. Entretanto, na prática, este fenômeno configura-se como meio de conter manifestações de inconformismo da população considerada inferior (HANSEMBALG, 2005; FERNANDES, 2009).

O mito da democracia racial garante uma relativa pacificação entre os grupos socioraciais. A ideia do bom negro, que progride socialmente e convive com os brancos, se

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mantidas sua polidez e respeito as regras, reduz as desvantagens da negritude, mas intensifica a negligência institucional diante do drama da “população de cor”, que permanece vivendo em condições degradantes. Para a democracia racial, a condição de miséria vivenciada pelos negros é divulgada como resultante da recente condição de escravizado e sua ascensão social é apresentada como alcançável, sendo somente questão de tempo para ser atingida (FERNANDES, 2009).

Apesar de ter sido permitida ao negro uma discreta ascensão social, o racismo e discriminação tornam-se meios de lembrar à esta população o espaço de inferioridade destinado a ela, preservando a estrutura de privilégios da sociedade. O racismo, enquanto ideologia de inferioridade de um grupo em detrimento da superioridade de outro, apresenta-se como uma forma sistemática de discriminação que possui como fundamento a raça, e é praticado de forma consciente ou inconsciente. Esta ideologia é utilizada para justificar o tratamento e a condição depreciativa concedida a membros de grupos raciais e étnicos, atua como mecanismo que agrava e mantém desvantagens ou privilégio entre estes grupos (BARATA, 2009; FERNANDES, 2009; PARADIES, 2013; ALMEIDA 2018).

A discriminação racial, um dos instrumentos do racismo, atua por meio da manifestação interpessoal de comportamentos e práticas discriminatórias, que excluem e inferiorizam estes grupos, concedendo-lhes atributos de menor ou sem valor, a partir das características valorizadas em relação a outro grupo (BARATA, 2009; PARADIES, 2013; WERNECK, 2016; BRASIL, 2017a).

Estas ferramentas mantêm a inferioridade dos negros e privilégios dos brancos, preservam a desigualdade, conservam as assimetrias entre as raças e controlam as ascensões alcançadas pela população negra, que, mesmo sendo ínfimas e não ameaçadoras dos privilégios das pessoas não negras, são vistas como potenciais para o comprometimento dos status social vigente e como meio para gerar revoltas desta população. Nesse contexto, o rechaço à cor da pele negra e aos demais traços fenotípicos do grupo racial discriminado apresentam-se como ferramentas para legitimar o lugar destinado a ele na sociedade (FERNANDES, 2009; PETRUCELLI; SABOIA, 2013).

A discriminação e o racismo garantiram que os negros libertos mantivessem condição semelhante à do escravizado, mesmo após a abolição da escravatura. No que tange aos postos de trabalho, os imigrantes europeus mesmo com recursos escassos, semelhantes aos negros, ocuparam espaços no novo modo produtivo, chances de progressão e lograram privilégios não alcançados pelos negros (FERNANDES, 2009).

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O aumento da imigração europeia e a sua ocupação massiva do mercado de trabalho em espaços mais valorizados, como a produção agrícola de larga escala e indústria, destinava à população negra, agora livre, as ocupações subalternas e mais precarizadas, como os serviços domésticos, empregos informais e biscates, atividades desempenhadas majoritariamente por esta população até os dias atuais. Esta ocupação das atividades de subsistência e mal remuneradas é o fenômeno que origina o que denominamos atualmente como “setor informal” (TEODORO; 2008; SILVA, 2013).

Além da distribuição das atividades laborais no período pós-escravidão, também houve uma distribuição espacial da população negra livre. Com a produção de café desenvolvida na região centro-sul do país e consequentemente com o domínio desta atividade pelos imigrantes, os negros livres ocupavam os postos de trabalho disponíveis, no norte e nordeste do país, regiões de economia estagnada, onde a imigração internacional não foi significativa e as oportunidades educacionais e ocupacionais eram muito limitadas. A grande maioria da população negra é mantida fora da região onde se desenvolveu e se desenvolve a sociedade urbana e industrial, e, mesmo quando consegue ocupar estes espaços, situa-se em periferias, áreas com pouco investimento público e com grande vulnerabilidade (THEODORO, 2008; DE ABREU 2013).

Os eventos históricos, ideológicos e sociais apreciados neste capítulo promoveram a desvalorização da população negra, delinearam sua exclusão, desvantagem, pobreza e precariedade de suas condições de vida nos dias atuais. Estes eventos são significativos e impactam diretamente na sua capacidade de inserção na sociedade, colocando barreiras no projeto de construção de um país democrático com oportunidades iguais para todos, além de repercutir na condição de saúde desta população. Na próxima seção, discutiremos os efeitos destes eventos na atual condição de vida e saúde da população brasileira.

2.2 CONDIÇÕES DE VIDA E DE SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA NA ATUALIDADE

De acordo com o último censo demográfico, de 2010, a população brasileira é constituída majoritariamente por negros. São 15 milhões de autodeclarados pretos (7,6%), somados a 82 milhões de pardos (43,1%). Na outra parcela da população, são 91 milhões que se classificaram como brancos (47,7%), 2 milhões como amarelos (1,1%) e 817 mil indígenas (0,4%). Dados de 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) já revelam

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um incremento do número de autodeclarados negros em relação ao último censo, em que 53,9% das pessoas se declaravam de cor/raça preta ou parda (IBGE,2011; IBGE, 2016a).

No Brasil, a população é classificada quanto à raça/cor em “branca”, “amarela/asiática”, “indígena”, “preta “e “parda”. Podem ser ainda classificados como “negros” os dois últimos grupos. Esta subdivisão objetiva contemplar as autodeclarações das pessoas com cor de pele mais escura e todas suas gradações, resultantes do processo do branqueamento da população brasileira. Destacamos que o termo “raça/cor”, com duas palavras aplicadas em um único sentido, é utilizado no país por que a cor da pele é o traço fenotípico por meio do qual as pessoas mais identificam o agrupamento étnico ou racial ao qual pertencem, e é a principal característica pela qual a discriminação racial e o racismo e efetivam (PETRUCELLI; SABOIA, 2013).

Apesar da expressividade do contingente populacional autodeclarado negro na composição do Brasil, não observamos no país as vantagens devidas a este grupo majoritário, ao contrário, observamos desvantagens em sua qualidade de vida, educação, acesso a bens, serviços e em suas condições de saúde, quando os comparamos a outra parcela do contingente populacional.

A perpetuação da desigualdade racial resultante dos eventos históricos, sociais e políticos vivenciados Brasil é traduzida em indicadores sociais recentes. Em análise realizada a partir dos dados da caracterização geral da população da PNS (2013) observamos que os estratos socioeconômicos com piores rendimentos, “D e E” 1, são compostos por 59,95% de pessoas negras e 40,37% de pessoas não negras. Em contrapartida, os estratos com melhores rendimentos, “A e B”, são compostos por 61,58% de não negros e 38,42% de pessoas negras. No que tange a escolaridade, observamos as mesmas tendências; 33,44% da população sem escolaridade é não negra, contra alarmantes 65,56% de pessoas negras nesse grupo. Quando observamos o ensino superior, identificamos o inverso: 65,87% dos indivíduos com este nível de educação são não negros e somente 34,3% destes são negros (IBGE, 2014).

Estes resultados corroboram os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2014, os quais apontam que os negros possuem nível de renda per capita familiar menor que os brancos, sendo mais numerosos nas faixas de rendimento com menos de meio salário mínimo de renda mensal per capita familiar, o que coloca essa população em situação

1 O “critério Brasil” é um padrão de classificação socioeconômica utilizado no Brasil que considera o nível educacional, acesso a bens e a serviços públicos essenciais para estimar a renda familiar. A população é classificada em seis estratos socioeconômicos, de acordo com a renda familiar estimada, denominados: “A” (renda familiar estimada de 23.345,11 R$ ), “B” (renda familiar estimada de 10.386,52 R$ para B1 a 5.363,19R$ para B2), “C” (renda familiar estimada de 2.965,69 R$ para C1 a 1.691,441 R$ para C2) e “D-E” ( renda familiar estimada em até 708,19 R$) (KAMAKURA, 2016; ABEP, 2018).

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de vulnerabilidade, uma vez que seu acesso a bens e serviços é prejudicado. Esta população compõe 75,5% das pessoas com os 10% menores rendimentos no Brasil. Em contrapartida, há, neste montante, 23,4% de brancos. Já entre o 1% da população com maiores rendimentos, 17,8% são negros enquanto 79,7% são brancos (IPEA, 2014; IBGE, 2016b).

Em relação à educação, a PNAD, ao comparar o nível de escolaridade em dois momentos do tempo, apresenta o hiato quantitativo entre indivíduos negros e brancos no nível superior. Em 2015, identificou-se que somente 12,8% dos jovens negros entre 24 a 28 anos estava neste nível educacional, percentual inferior ao de jovens brancos na mesma faixa etária dez anos antes. Em 2005 havia 17,8% destes indivíduos autodeclarados brancos cursando o ensino superior (IBGE, 2016a).

A pequena expressividade de negros neste nível educacional, além de outros fatores, possui relação com o atraso escolar. 53,2% dos estudantes pretos ou pardos de 18 a 24 anos de idade, em 2015, cursavam níveis de ensino anteriores ao ensino superior, como o fundamental e o médio, enquanto apenas 29,1% dos estudantes brancos estavam nessa mesma situação (IBGE, 2016a).

Em relação a inserção desta população no mercado trabalho, observa-se que a população negra é majoritariamente empregada sem carteira assinada, empregado doméstico, trabalhador autônomo, não contribuinte, não remunerado e trabalhador para próprio consumo. Quando avaliada a atividade de empregador, identifica-se que apenas 2,3% estão nesse nicho de atividade, enquanto 5,4% dos brancos ocupados estão nesta categoria. Ao trabalhar de modo autônomo, sem vínculos empregatícios ou em serviços domésticos as pessoas negras tendem a apresentar rendas menores que os assalariados, ocupando os estratos socioeconômicos com menor renda, como apontado anteriormente (IPEA, 2014).

Outro fator que implica na redução de rendimentos é a distinção salarial existente de entre negros e brancos. A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2012, aponta que, entre os trabalhadores com até quatro anos de estudo, pretos e pardos possuíam, respectivamente, 78,7% e 72,1% do rendimento-hora dos trabalhadores brancos. Com o aumento dos anos de estudos para 12 anos ou mais, as diferenças pioram ou se mantêm, o rendimento-hora dos pretos equivale a 69,8% do rendimento dos brancos e no caso dos pardos com esta escolaridade é de 73,8% em relação aos brancos (GUIMARÃES, 2012).

A ideologia do racismo permeia os mais diversos espaços da sociedade, inclusive os organizacionais, suprimindo as oportunidades de participação e crescimento da população negra no mercado de trabalho. Este fenômeno é materializado por meio da exclusão, da remuneração indevida e das segregações das pessoas negras nos ambientes organizacionais.

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Mesmo superando as precárias condições educacionais disponíveis à esta população, em situações onde haja disputa de cargos ou até mesmo na busca pelo emprego, homens ou mulheres negras apresentam menos chance que pessoas com capacitação semelhantes, mas que não são negras (RIBEIRO; ARAÚJO, 2016).

Através dos dados supracitados, constatamos que há, no cenário brasileiro, uma correlação entre a raça/cor negra e a vulnerabilidade de determinantes socioeconômicos, os quais apresentam repercussão direta em questões essenciais à sobrevivência do indivíduo e sua dignidade humana, ferindo seus direitos constitucionais básicos (BRASIL, 1989).

Esta relação é reafirmada ao identificar que as famílias chefiadas por brancos apresentam maior prevalência de moradias em situação adequada, se comparadas as moradias chefiadas por negros, em localizações urbanas ou rurais. Especificamente em relação aos serviços de saneamento (abastecimento de água por rede geral, esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial e coleta direta ou indireta de lixo), observa-se que casas chefiadas por pessoas brancas possuem uma cobertura 16,6 pontos percentuais superior à verificada entre os domicílios com pessoas pretas ou pardas (IBGE, 2014; IBGE, 2016a).

A precarização de condições básicas à vida mostra-se ainda mais alarmante quando se discute sobre segurança alimentar. A PNAD (2015) aponta que as crianças pretas ou pardas são as que mais residem em domicílios com insegurança alimentar: 43,1% destas crianças, na faixa de 0 a 4 anos, passa por situações onde há desde a incerteza sobre o provimento da alimentação até a privação de alimentos e a fome (IBGE, 2016a).

Através do debate acima, pudemos verificar que as desigualdades se perpetuaram ao longo do tempo e permanecem na contemporaneidade. Percebemos que o impacto do racismo nos mais diversos aspectos da vida da população negra brasileira se relaciona intimamente com o acesso à educação, possui repercussão direta no mercado de trabalho, é evidente no valor dos rendimentos obtidos e determina, consequentemente, as condições de vida dos sujeitos. Na próxima seção observaremos como as desigualdades vivenciadas pela população negra se reproduzem nas questões relativas à saúde e na oferta de cuidados em serviços de saúde.

2.3 RACISMO ESTRUTURAL E SUAS REPERCURSSÕES NA SAÚDE DA POPULAÇÃO BRASILEIRA

O racismo se apresenta através de preconceitos (sentimentos, estereótipos negativos, vinculados a características raciais ou étnicas de um grupo) e práticas discriminatórias

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individuais (manifestação interpessoal de comportamentos depreciativos ou agressivos) - racismo individual; se amplia através das instituições, utilizadas como meio para imposição e reprodução de interesses políticos e econômicos de sujeitos e coletividades impregnadas do racismo - racismo institucional; e, por fim, passa a constituir a ordem social, ao ser reproduzido e normalizado por cada instituição, pelo próprio Estado e ao se tornar presente em cada relação do cotidiano sem causar estranhamento - racismo estrutural (ALMEIDA, 2016).

A preservação do status de normalidade, a naturalização e a falta de ações combativas mediante as desigualdades, violências e injustiças sociais, garantem a perpetuação e fortalecimento dos racismos, que serão reproduzidos cotidianamente nas relações sociais, espaços institucionais e nas práticas individuais, através de violência explicita, silenciamentos, isolamentos e omissões (ALMEIDA, 2016).

Alguns autores utilizam os termos “racismo institucional” e “racismo estrutural” com o mesmo significado, enquanto componente sistêmico, perpetrado pelas organizações, políticas, práticas e normas por meio de tratamento não equitativo, negligência, desvantagem no acesso e nos benefícios, e morosidade na implementação de ações e políticas, resultando em falha no provimento de serviços adequados às pessoas em decorrência de sua cor, cultura ou origem étnica (WERNECK, 2016, CAMPOS, 2017, GUEDELES, 2013).

Independente das distinções conceituais, é consenso que o racismo, em todas as suas formas, possui impacto na vida da população negra e, em seu componente institucional e/ou estrutural, compromete diretamente a disponibilidade, o acesso e o uso de serviços. Este evento pode se apresentar por meio da baixa qualidade dos serviços prestados a esta população, na discriminação individual, praticada pelos profissionais das mais diversas instituições e organizações, por meio da dificuldade para utilizar a assistência em saúde, na contratação para empregos, na conquista de cargos, no acesso à educação e em outra infinidade de situações discutidas ao longo deste trabalho.

O racismo está entre os determinantes estruturais das iniquidades de saúde, estabelecidos pela Comissão de Determinantes Sociais em Saúde (CDS) da Organização Mundial de Saúde, em 2005, configurando-se como produtor da hierarquização social associada a vulnerabilidades em saúde, que impõe barreiras de acesso à direitos e negligencia as necessidades da população negra (BRASIL, 2016;WERNECK, 2016).

No Brasil, a assistência à saúde livre de discriminação e o acesso universal a todos os cidadãos são prerrogativas anunciadas por marcos da criação e regulação do Sistema Único de Saúde (SUS): a “Constituição Federal de 1988” e a “Lei orgânica da saúde”. Mesmo com a

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existência deste arcabouço legal robusto, desde a criação do SUS até os dias atuais são identificadas disparidades em saúde entre grupos raciais e incapacidade para garantir o acesso efetivo de modo equitativo a todos os cidadãos brasileiros, o que indica a não efetivação dos princípios anteriormente defendidos (BRASIL, 2017a).

Ao compreender a saúde num sentido ampliado, e o sistema de saúde enquanto espaço para assistir a complexidade do indivíduo, entende-se que os serviços de saúde devem buscar minimizar os diversos racismos, dentre eles as práticas discriminação racial, além de propiciar o acesso a todos os grupos populacionais, com vistas à redução de disparidades e de situações de vulnerabilidade.

O acesso refere-se à oportunidade de utilizar os serviços de saúde quando necessário, e expressa características de sua oferta e de circunstâncias que facilitam ou perturbam a capacidade das pessoas de efetivar o uso. Trata-se de um fenômeno complexo, que pode variar para cada pessoa ou grupo, a depender de uma diversa gama de variáveis relativas ao próprio indivíduo e ao sistema, não apenas limitando-se a existência ou não do serviço de saúde(SANCHEZ, 2012).

Inúmeros motivos são apontados como intervenientes do acesso a serviços de saúde: características do sistema, nível socioeconômico da população, escolaridade, aspectos culturais, características geográficas dos usuários e dos serviços, e pertencimento a grupos específicos são alguns deles. Quando observamos que esses fatores aumentam ou diminuem o acesso aos serviços de saúde estamos diante da desigualdade no acesso aos serviços de saúde (PAVÃO, 2012; ALBUQUERQUE, 2017).

As disparidades no acesso podem ser geradoras ou podem contribuir para a estruturação das iniquidades em saúde. Os grupos que possuem prejuízo para utilizar os serviços de saúde possuem desvantagens que influenciam seu perfil de morbimortalidade, quando comparados a outros grupos sem dificuldade de acesso (ARCAYA, M.C; ARCAYA, A. L; SUBRAMANIAN, 2015).

Destacamos que, apesar de o SUS possuir maior relevância para obtenção de atendimento entre pretos e pardos do que para brancos, este sistema apresenta menor quantidade de atendimento médico e oferece menor qualidade na prestação deste serviço para a população negra em relação à população branca. Os pretos e pardos, além de possuírem maior probabilidade de não serem atendidos, quando atendidos, se declaram menos satisfeitos com o atendimento. A precariedade no acesso e na qualidade do serviço, e a elevação da discriminação em saúde são agravadas quando estão associadas a outros fatores de

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vulnerabilidade, como baixa escolaridade e renda (PAIXÃO, 2010; GOES; NASCIMENTO, 2013; FONSECA; KALE; SILVA, 2015).

A viabilização do acesso compreende muito mais que o uso do serviço de saúde. O contato entre profissional de saúde e usuário é condição indispensável para que uma assistência em saúde terapêutica e eficaz aconteça. Deste modo, fatores individuais, contextuais, como as práticas de racismo nos ambientes institucionais, interferem diretamente na qualidade do atendimento, no uso dos serviços de saúde e na efetividade do cuidado (MASSIGNAN; BASTOS; NEDEL, 2015).

Nesse ponto de vista, a articulação entre a dificuldade de acesso e a discriminação interpessoal de raça/cor, enquanto meios de manifestação racismo institucional e/ou estrutural, nos serviços de saúde, influenciam diretamente as disparidades nas condições saúde da população brasileira. O racismo vem sendo internacionalmente estudado enquanto gerador e/ou potencializador de agravos à saúde, da precarização das autoavaliações de saúde, de prejuízos na qualidade da prestação de serviços em saúde, e do nível de satisfação e confiança nos serviços de saúde por grupos étnicos, entretanto, no Brasil, ainda são escassos estudos nesta perspectiva (SELLERS et al., 2013; CUEVAS et al., 2013; BYNUM et al., 2014; KRELING et al., 2015; SMITH- MAYS et al., 2017;SMOLEN; ARAUJO, 2017; BEN et al., 2017).

O racismo institucional/estrutural, através da dificuldade de acesso e da discriminação racial em serviços de saúde repercute diretamente na produção de condições de saúde vulneráveis. A “condição de saúde” é definida como circunstâncias na saúde das pessoas que se apresentam de modo agudo ou crônico, e que exigem respostas dos serviços de saúde, dos profissionais, de modo reativo ou proativo, episódico ou contínuo, fragmentado ou integrado. Esta definição é ampliada para além dos agravos e comorbidades, incorporando estados fisiológicos relativos aos ciclos de vida, como gravidez, e o acompanhamento da infância e adolescência e da velhice (MENDES, 2012).

Diversas evidências identificam disparidades nas circunstâncias da saúde das pessoas negras em relação a outras raças. No que tange a mortalidade cerebrovascular, no Brasil observa-se uma maior taxa de morte entre pretos, seguidos de pardos e brancos, tanto para o sexo masculino quanto para o feminino, permitindo concluir que mortalidade pela doença cerebrovascular pode apresentar carga mais elevada nesta população (LOTUFO; BENSENOR, 2013). Observa-se que esta população apresenta menor consumo de frutas e hortaliças, maior consumo de leite e carnes com gorduras, e maiores percentuais de

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hipertensão arterial sistêmica, hábitos alimentares não saudáveis e comorbidades que elevam o risco destes eventos cerebrovasculares (MALTA; MOURA; BERNAL, 2015).

Além dos hábitos alimentares, outras condições favorecem a ocorrência destes eventos na população negra. Segundo a PNS (2013), os negros compõem o maior percentual entre os fumantes (56,91%), em relação aos não negros (43,09%) e estão em maior número entre as pessoas que bebem excessivamente (58,78%), quando comparados aos não negros (41,11%) (IBGE, 2014).

Quando se trata de causas externas, evidencia-se que um indivíduo preto ou pardo possui probabilidade significativamente maior de sofrer homicídio no Brasil quando comparado a outros indivíduos, especialmente na faixa etária de 15 a 29 anos, em que apresenta 147% mais chance de ser vítima do evento, aos 21 anos, que o jovem branco, amarelo ou indígena. Destaca-se ainda o aumento da letalidade nas agressões externas, quando comparados negros e não negros. De 2004 a 2014 houve uma diminuição de 14,6% deste indicador para não negros, enquanto para negros houve um incremento de 18,2% na taxa de homicídio. Destaca-se, ainda, que para cada não negro morto, 2,4 indivíduos com cor preta ou parda são vítimas de homicídio (CERQUEIRA et al., 2016).

Uma condição de saúde em situação de vulnerabilidade, intermediada pelo racismo estrutural, possui repercussão na qualidade de vida relacionada à saúde, na percepção da pessoa sobre seu estado de saúde, e impacta diretamente em aspectos sociais, psicológicos e físicos destas pessoas (MACIEL et al., 2016).

Dentre os indivíduos que consideram sua saúde ruim ou muito ruim, a PNS (2013) aponta que os negros correspondem a 59,95%, e os não negros, 40,05%. Inquéritos mais recentes indicam que 37,8% da população adulta preta ou parda considera sua saúde como regular, ruim ou muito ruim, contra 29,7% da população branca. Em ambos os casos se observa um incremento de dez pontos percentuais na pior avaliação entre negros (IBGE, 2014; IBGE, 2016a).

O prejuízo na autoavaliação de saúde da população negra foi identificado em outro estudo. A autoavaliação ruim/muito ruim foi evidenciada em 27,75% da população branca estudada, em comparação a 45,04% dos negros. Quando observados indivíduos com maior escolaridade e maior renda, evidencia-se menor proporção de autoavaliação negativa para todas as categorias, o que pode explicar, considerando o perfil educacional e econômico da população negra no Brasil, o maior número de pessoas negras que avaliam sua saúde como negativa (LAURENTI; CHIAVEGATTO, 2013).

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Esta seção discutiu a manutenção do racismo institucional/estrutural através da dificuldade de acesso e da discriminação em serviços de saúde e seu impacto nas condições de saúde da população negra. Adiante, discutiremos as ações afirmativas enquanto estratégias capazes de provocar a ruptura da ideologia do racismo e de modificar os status quo da estrutura social, alterando as posições historicamente destinadas aos negros e reconduzindo-os a espaços de privilégio. Obtendo-se, através destas politicas a dissociação entre negritude e pobreza, modificando ideologias e práticas racistas2 (CAMPOS, 2017).

2.4 AÇÕES DE REDUÇÃO DAS INIQUIDADES RACIAIS NO BRASIL

As intervenções para modificação do status de inferioridade destinado à população negra, desde seu princípio, estiveram articuladas aos movimentos negros brasileiros, uma iniciativa que se caracteriza pela luta deste grupo para resolução de problemas na sociedade relativos aos preconceitos e discriminações raciais, que os marginalizam nas mais diversas áreas (DOMINGUES, 2007).

As lutas da população negra se iniciam antes mesmo da abolição da escravidão, através de uma relativa organização da população escravizada. A resistência da população escravizada se dava pelos movimentos de fugas coletivas e formação de quilombos, alguns com grande contingente, constituíam-se de rede de apoio para este grupo. Os primeiros movimentos negros se formaram logo após a abolição da escravidão, por volta de 1889. Neste momento a população negra livre, isenta de quaisquer direitos e em situação de marginalização, como já discutido anteriormente, se organiza através de grêmios, clubes e associações. Estes grupos possuíam somente caráter recreativo e cultural, e agregavam um número relativamente significativo de “homens de cor”, termo usado na época (DOMINGUES, 2008).

Concomitante a isso, houve, também, a evidência de uma imprensa composta por vários jornais que denunciavam a situação do preconceito relacionado a cor. Eram anunciadas situações de vulnerabilidade vivenciadas pela população negra na época, relativas ao trabalho, habitação, educação e saúde, além das restrições nos locais públicos. Estes jornais se

2Ações afirmativas, constituem-se de políticas voltadas às minorias em campos como o do trabalho, saúde,

educação, representação política e buscam estabelecer mudanças nos espaços institucionais para que haja impacto no panorama de desigualdade e desvantagem estabelecido (CAMPOS, 2016).

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tornavam espaços para discutir soluções ao problema do racismo na sociedade brasileira, já nesta época (DOMINGUES, 2008).

Em 1931, o movimento negro deu um salto de qualidade com a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB), em São Paulo. Esta foi considerada primeira organização negra com reivindicações mais consistentes e com poder político, possuía mais de 1.000.000 militantes, mantinha creches, escolas e oferecia atendimento médico a esta população (SILVA; TRIGO; MARÇAL, 2013).

Posteriormente, em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro (TEN) por iniciativa de Abdias do Nascimento, possuía como proposta implementar instrumentos jurídicos de direito dos negros, com discussões sobre a democratização do sistema político, a abertura do mercado de trabalho, o acesso dos negros à educação e à cultura e a elaboração de leis antirracistas. A educação sempre estava nas pautas dos movimentos como meio para equiparar brancos e negros, ou, ainda, como forma de ascensão social (SILVA; 2013).

De 1930 a 1970, evidencia-se no Brasil intensa repressão política e cessação da expressão de qualquer movimento contestatório. Intensifica-se a falsa divulgação de que há democracia racial no país e que povo brasileiro é produto das diferentes raças, o que permite sua convivência harmônica, sem os problemas raciais observados em outros países. Nesta perspectiva, não havia necessidade de medidas de combate às desigualdades, visto que eram consideradas inexistentes (JACCOUD, 2008; THEODORO, 2014).

Na década de 1970, retirou-se do sistema oficial de informações dados sobre a cor dos indivíduos, presentes nos censos anteriores (1940, 1950 e 1960). Assim, o censo de 1970 ficou sem o quesito cor, impedindo a verificação oficial de desigualdades relacionadas à raça. A inferioridade social vivida e observada na população negra é justificada exclusivamente por sua descendência dos escravos, que estavam majoritariamente nos estratos sociais mais baixos, sua acensão e de deus descendentes dependeria exclusivamente de esforços pessoais, predomina naturalização das desvantagens sociais vividas por esta população (MORAES, 2013).

Por volta de 1978, a caminho da democratização brasileira, evidencia-se o Movimento Unificado contra a Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente denominado Movimento Negro Unificado (MNU), formado pela unificação de movimentos já existentes. Neste momento, emerge um movimento com maior caráter político que militava contra o preconceito racial, a violência policial, o desemprego e o subemprego, causados pela discriminação (SILVA, 2013).

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De acordo com Silva (2013), a partir do programa de Ação do MNU, elaborado no III Congresso Nacional em 1982, foram construídas propostas que nutririam futuramente documentos relacionados aos “Direitos Humanos”.

Jaccoud (2008) discute que os estereótipos relacionados à população negra, às práticas discriminatórias e às desigualdades raciais deixaram de ser tema de discussão somente do movimento negro e passaram a estar nas pautas de discussão de pesquisadores, dedicados a temas relativos a desigualdades e mobilidade social, somente no final da década de 1970. Neste período, evidenciavam-se as discussões científicas sobre a inserção desta população no mercado de trabalho, sua mobilidade social, sua fragilidade nas redes sociais, sua concentração em espaços desfavorecidos, seu acesso à educação, dentre outros.

Entre 1980 e 1990, em alguns estados, iniciaram-se as discussões em nível estadual quanto às questões voltadas à população negra. Alguns governadores eleitos patrocinaram, nesta época, a criação de instâncias estaduais, na forma de conselhos, voltadas às problemáticas desta população, em função do apoio do movimento negro a suas candidaturas (THEODORO, 2014).

Na década de 1980, as discussões e mobilizações em torno da Assembleia Nacional Constituinte iam ao encontro do centenário da abolição. Em 1986, organizações dos movimentos negros de diversos estados uniram-se em prol da constituinte e realizaram em Brasília a “Convenção Nacional do Negro na Constituição”. O documento resultante deste momento, no qual constavam algumas reivindicações como a criminalização do racismo e o direito das comunidades quilombolas à posse de suas terras, orientou pontos da constituição de 1988 (CONCEIÇÃO, 2010).

No ano de 1987, os movimentos negros brasileiros discutiram ativamente em torno da superação da discriminação racial, apresentaram propostas relacionadas aos direitos e garantias das pessoas, à violência policial, às condições de vida e saúde, à situação da mulher, da criança, da educação, do trabalho, entre outros (SILVA, 2013).

Os debates para a construção da Constituição de 1988 foram fortemente marcados pela chamada “dívida social”, refletida na desigualdade que marcava a sociedade brasileira, na má distribuição de riqueza derivada do crescimento econômico, e na precária cobertura das políticas sociais. A pobreza apresentava-se como um processo de exclusão dos benefícios do desenvolvimento econômico, enquanto a cidadania era definida por uma dupla característica: a participação nas decisões públicas e o acesso a direitos sociais. A constatação de que o negro estava associado à situação de miséria, predominante nas camadas de menor renda da população, o enfretamento desta problemática, a garantia de melhores condições de educação,

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de trabalho e de cidadania tornam-se solicitações importantes do Movimento Negro na constituinte (JACCOUD, 2008).

Em 1988, com os 100 anos de abolição da escravidão no país, o texto constitucional traz a afirmação da igualdade, o combate aos preconceitos, o repúdio ao racismo e a defesa da pluralidade e da liberdade de culto, reconhece o racismo um crime inafiançável e imprescritível, reconhece os territórios quilombolas como bens culturais nacionais, além de admitir o direito da população remanescente de quilombos à propriedade definitiva das terras que ocupavam, e afirma a diversidade cultural como um patrimônio comum a ser valorizado e preservado (JACCOUD et al., 2009; CONCEIÇÃO, 2010).

No campo da saúde, a Constituição de 1988 garantiu a universalização do atendimento em saúde através do SUS, política robusta, porém ainda insuficiente, considerando as desigualdades raciais do país. Neste interim, a igualdade de oportunidades e a manutenção da população negra nas piores posições da sociedade brasileira passam a ser elementos debatidos com maior frequência, e se tornam pauta de proposições (JACCOUD, 2008).

Ratificando o texto constitucional em 1989, a “lei CAO” define como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e regulamenta o texto da carta magna, que já apresentava inafiançável e imprescritível o crime de racismo (COSTA, 2014). Apesar de tratada constitucionalmente, a questão da discriminação da população negra não se tornou compromisso público por parte dos governantes. Mobilizados pelo desejo de mudança do status quo, em 20 de novembro de 1995, a união de centenas de entidades negras levou ativistas à Brasília em um movimento denominado “Marcha Zumbi dos Palmares pela vida e contra todas as formas de discriminação”, um marco para as relações raciais no Brasil (SILVA, 2013).

Uma comissão de ativistas foi recebida pelo presidente da república, Fernando Henrique Cardoso (FHC), entregando-lhe um documento que continha um diagnóstico da situação social e um programa de superação do problema. Em contrapartida, o presidente reconhece publicamente que o Brasil é um país racista, evento inédito na história do país (SILVA, 2013).

Para dar resposta às demandas de combate ao racismo apresentadas pela Marcha Zumbi, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Valorização da População Negra, ainda em 1995, na gestão de FHC (THEODORO, 2014).

O governo FHC deu o pontapé inicial tímido, porém de grande relevância, no debate de valorização da população negra. As propostas voltadas a esta população foram gestadas e concretizadas no âmbito de alguns programas e ministérios (BRASIL; TRAD, 2012).

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A incorporação desta temática pelo Ministério da Saúde (MS) acontece em 1996, a partir de sua participação no “GTI Valorização da População Negra”, junto a ativistas e pesquisadores deste tema, materializando-se em proposição de medidas em prol deste grupo populacional e através da elaboração dos manuais “A Saúde da População Negra, realizações e perspectivas”, em 1998, e “Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população brasileira afrodescendente”, em 2001(WERNECK, 2016).

Nos anos posteriores à Marcha de Zumbi, manteve-se a mobilização em torno das reuniões preparatórias para a “III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas”, que aconteceria em Durban, no ano 2001. As preparações se davam através de conferências temáticas municipais, estaduais, regionais e nacionais. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) possuiu grande importância nesse momento, sistematizando dados estatísticos sobre a população negra e realizando análises (SILVA, 2013).

O documento oficial da conferência apresentava 23 propostas destinadas aos direitos da população negra, dentre elas a adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo, com ênfase à educação e ao trabalho e a proposta de adoção de cotas e outras medidas afirmativas do acesso dos negros às universidades públicas. Neste momento, as doenças e agravos da população negra foram reconhecidas como geneticamente determinadas, adquiridas e derivadas de condições socioeconômicas desfavoráveis, de evolução agravada ou de tratamento dificultado, ou condições fisiológicas alteradas por condições socioeconômicas (SILVA, 2013; WERNECK, 2016).

Em 2002, em nível federal é criado o “Programa Nacional de Ações Afirmativas”, que desenvolveu medidas de incentivo à inclusão de mulheres, pessoas negras e pessoas com deficiência como critérios de pontuação em licitações que beneficiam fornecedores com comprovação de práticas dentro dos requisitos do programa. No mesmo ano, foi criado o “Programa Diversidade na Universidade”, com bolsas de estudo e prêmios a alunos de instituições que desenvolvessem ações de inclusão no espaço universitário, além de autorizar ao Ministério da Educação a implementação de outras ações com esta finalidade, o que possibilitou a criação programas de cotas para afrodescendentes em universidades (PIOVESAN, 2006).

Em 2003, o presidente Lula, recém-eleito, resgatando um compromisso de campanha, cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Este órgão possui como responsabilidade a coordenação das ações vinculadas à temática racial, a institucionalização de políticas de combate às desigualdades raciais e do racismo. Ele também

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é responsável pela articulação com outros ministérios e secretarias e representantes estaduais e municipais (FONSECA, 2015).

A articulação entre SEPPIR e MS foi o ponto de partida para que uma política de saúde da população negra começasse a ser pensada. Nesse momento entram em pauta sugestões acerca das necessidades em saúde da população negra brasileira. No mesmo ano da instituição da SEPPIR, é instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), que reforça a eficácia das ações afirmativas e determina a criação mecanismos de incentivo e pesquisas para aperfeiçoar o mapeamento da população negra, otimizando assim os projetos direcionados a ela (PIOVESAN, 2006).

Entre 2003 e 2006, foram realizados momentos de encontros e discussões para que ações afirmativas fossem institucionalizadas no âmbito da saúde. Foi, então, criado um grupo de especialistas no MS para que as questões sobre as desigualdades raciais fossem discutidas e introduzidas no Plano Plurianual de desenvolvimento do Governo Lula (BRASIL; TRAD, 2012).

Diversos avanços são observados após à criação da SEPPIR, dentre eles a criação do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), a criação de secretarias de promoção da igualdade racial nos governos estaduais e, entre os municípios de maior contingente populacional, o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR), e a criação da a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) (THEODORO, 2014).

A Política Nacional de Saúde da População Negra, pensada em Durban, passa a ser temática incluída nas discussões do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e em 2005 a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) estava aprovada pelo CNS. Entretanto, somente em 2009 a PNSIPN é efetivada por meio da Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, e ratificada 2010 por meio do Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010 (WERNECK, 2016).

O Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei 12.288 de 20 de julho de 2010, após dez anos de tramitação no Congresso Nacional, pelas imposições de reações contrárias, resultou num documento que determina o atendimento de requisitos de grande relevância para a viabilização da redução das desigualdades raciais no Brasil. Dentre eles destacamos, a determinação de que haja, no plano plurianual (PPA) e no Orçamento da União, observações relativas às políticas de ação afirmativa; a apresentação orçamentária dos programas de ação afirmativa nos órgãos do executivo federal durante cinco anos; a instituição do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR); o monitoramento e avaliação da

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