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O jovem Trotsky: entre menchevismo e bolchevismo

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Academic year: 2021

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O jovem Trotsky: entre

menchevismo e bolchevismo

Gustavo Henrique Lopes Machado |

O pensamento e, sobretudo, as posições políticas de Leon Trotsky no período que antecede a Revolução Russa foram, desde muito cedo, objeto de grandes debates e polêmicas. E isto não se deu sem motivo. Gozando de grande prestígio pela sua atuação na revolução de 1917 e na direção do Exército Vermelho, Trotsky foi o alvo prioritário da burocracia stalinista quando se tornou o porta-voz de sua oposição. Nesse cenário, as polêmicas e disputas entre Lenin e Trotsky, que se seguiram desde pelo menos o segundo congresso da Social-democracia russa – 1903, quando se deu o seu fracionamento entre Bolcheviques e Mencheviques–, foram largamente difundidas. Com particular intensidade as duras críticas de Lenin à Trotsky realizadas no período entre 1909 e 1912. Não é preciso remontar aqui o que já fora dito e redito um sem-número de vezes. É suficiente mencionar que, com auxílio dessas antigas polêmicas, Trotsky fora convertido em menchevique e em inimigo número um do bolchevismo.

Não sem razão, os trotskistas e o próprio Trotsky se dedicaram, desde então, a mostrar o outro lado da moeda. Particularmente, a mútua admiração que sempre existira entre os dois principais dirigentes da revolução de 1917, a confirmação histórica da teoria da revolução permanente elaborada por Trotsky desde o início do século, seu papel de destaque na revolução de 1905, suas críticas precoces e certeiras a visão estapista da história dos mencheviques e assim por diante. Por outro lado, as diferenças com Lenin foram, regra geral, expostas do seguinte modo: a revolução de 1917 marcou a aproximação de Lenin da teoria da revolução permanente de Trotsky e a adesão desse último à concepção de partido sustentada pelo principal dirigente do partido

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Bolchevique, reconciliando-os.

Apesar desta conclusão não ser, em suas linhas mais gerais, falsa, distante está de dar conta do cerne das diferenças entre os dois. Em verdade, Lenin raríssimas vezes abordou o tema da teoria da Revolução Permanente. Trotsky, inclusive, sustenta, anos depois, que Lenin sequer havia lido seus escritos sobre o tema. Por outro lado, exceto por um antigo ensaio denominado Nossas Diferenças Políticas, a questão da concepção de partido em Lenin encontra-se praticamente ausente nos escritos conhecidos de Trotsky até a revolução. Qual seria, então, o motivo central do embate entre Trotsky e Lenin no período entre a cisão da social-democracia russa e a revolução de 1917?

Em função das calúnias a que foi sistematicamente submetido, da identificação caricatural do stalinismo com o leninismo, o próprio Trotsky não deixou de nuançar a real natureza de suas divergências com Lenin no período anterior a sua adesão ao bolchevismo. Tratava-se do conciliacionismo ou do centrismo de Trotsky que, em todo período precedente, batalhou pela unidade entre bolcheviques e mencheviques, entre revolucionários e reformistas. Não foi casual que somente em seu último e inacabado escrito, a biografia de Stalin, Trotsky dedicou um espaço considerável a este tema. Por isso, nesse artigo, nos centramos exclusivamente nesse texto, tendo em vista esclarecer o conteúdo central da polêmica de então. Sobretudo, hoje, passados 25 anos do sepultamento definitivo do aparato stalinista no leste europeu, já é chegada a hora de reexaminarmos a questão sem a interpenetração das caricaturas do passado, para dela retirarmos as devidas lições.

O conciliacionismo de Trotsky

É sabido que Trotsky, já na sua juventude, desenvolvera a tese de que somente o proletariado russo poderia assumir o papel dirigente em uma futura revolução nesse país. Mais ainda. Tal revolução, em função da posição social do proletariado,

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assumiria tarefas imediatamente socialistas. Sua concepção se opunha tanto a visão etapista menchevique-plekanoviana da necessidade de uma longa etapa liberal burguesa na Rússia, assim como a teoria do próprio Lenin que acenava, ainda que temporariamente, na direção de um governo operário-camponês nos marcos de uma República burguesa. Trotsky poderia, nesse caminho, ainda que grosseiramente, ser caracterizado como à esquerda dos Bolcheviques. Como explicar, portanto, o fato de ter batalhado tão persistentemente pela reconciliação entre bolcheviques e mecheviques?(1).

O próprio Trotsky nos explica: em sua antiga acepção, com o irromper de uma “nova Revolução, sob pressão das massas trabalhadoras, as duas frações iriam de qualquer maneira ser compelidas a assumir uma posição idêntica, como o haviam feito em 1905” (TROTSKY, 2012, 354). Em outro lugar, assinala o que s e r i a “ c a l c a n h a r d e A q u i l e s ’ d o ` t r o t s k i s m o ’ : “ o conciliacionismo, associado à esperança de uma reencarnação revolucionária do menchevismo” (TROTSKY, 2012, 376). Qual seria o pressuposto teórico dessa visão conciliacionista propugnada por Trotsky? Em que se baseava sua crença de que o menchevismo se envergaria para posições revolucionárias sob o influxo de um processo revolucionário?

Em outra passagem, o revolucionário russo esclarece seus pressupostos: a “política de conciliação crescia nas esperança de que o próprio curso dos acontecimentos pudesse proporcionar a tática necessária” (TROTSKY, 2012, 354). Ou seja, na acepção do jovem Trotsky, as táticas são “proporcionadas” pelo movimento, pelos acontecimentos e não em função do objetivo final, já que este último é engendrado espontaneamente pelo primeiro. Tratava-se unicamente de fomentar um bloco à esquerda e, feito isto, a realidade mesma se encarregaria do resto. Tática e estratégia, meios e fins são separados por um abismo. Tanto é assim que logo em seguida complementa:

“o otimismo fatalista significa, na prática, não apenas repúdio a luta fracional, mas da própria ideia de um partido,

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porque, se ‘o curso dos acontecimentos’ é capaz de, diretamente, ditar às massas a política correta, qual a utilidade de qualquer unificação especial da vanguarda proletária, da elaboração de um programa, da escolha de dirigentes, do prepara no espírito da disciplina?” (TROTSKY, 2012, 355).

O raciocínio empírico oculto sobre tal equívoco não é difícil de deduzir. Com a reação que se abateu a partir de 1909 na Rússia, a tendência à unidade a todo custo se acirrou nas fileiras da social-democracia. Como explica Trotsky: a “contínua fragmentação do Partido em pequenos grupos, que travam batalhas implacáveis no vácuo, despertou, em muitas frações, o desejo de acordo, de conciliação, de unidade a qualquer preço” (TROTSKY, 2012, 354). Parafraseando Bernstein, c o m o o m o v i m e n t o é t u d o e o o b j e t i v o f i n a l b r o t a espontaneamente desse movimento, a força das posições revolucionarias são medidas em função da dimensão quantitativa do bloco que se contrapõem à classe dominante, independente de seu programa específico. No entanto, a autocrítica de Trotsky foi completa. Destaca que certos “críticos do bolchevismo […] encaram o meu velho conciliacionismo como expressão de sabedoria. Contudo, o seu erro profundo já foi há muito demonstrado tanto na teoria como na prática” (TROTSKY, 2012, 354-355). Tal erro profundo consiste basicamente no seguinte:

Uma simples conciliação de frações só é possível ao longo de uma espécie de linha ‘média’. Mas onde há garantia de que

esta diagonal possa coincidir com as necessidades do desenvolvimento objetivo? A tarefa da política científica é

deduzir um programa e uma tática de uma análise da luta de classes, não do paralelogramo [sempre instável] de forças secundárias e transitórias, como frações partidárias. Na verdade, a posição da reação era tal que apertava a atividade política de todo Partido dentro de limites extremamente estreitos. A esse tempo, poderia parecer que as divergências não tinham importância e eram, artificialmente, inflamadas

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pelos dirigentes emigrados. Contudo, precisamente durante o período da reação, o partido revolucionário não poderia forjar os seus quadros sem perspectivas mais amplas” (TROTSKY, 2012, 354-355).

Como se vê, para o Trotsky pós-1917, a elaboração teórica de uma política não se baseia na somatória ou justaposição de partidos ou frações, não se funda em uma linha média tacejada na somatória de várias organizações de esquerda, mas nas “necessidades do movimento objetivo”. Por isso se deduz “um programa e uma tática de uma análise da luta de classes”. É interessante notar que, segundo Trotsky, é justamente em um período de reação que um partido precisa forjar seus quadros em perspectivas mais amplas, isto é, com uma delimitação programática clara e diferenciação permanente, no presente caso, com o menchevismo. Evidentemente, a pressão em sentido oposto foi muito grande. Tanto que, ao tratar da permanência de Stálin no partido Bolchevique naquele período de vacas magras, assinala que, durante os anos de reação, Stalin “não foi um entre as dezenas de milhares que desertaram do Partido, mas um entre as poucas centenas que, apesar de tudo, lhe continuaram fiéis” (TROTSKY, 2012, 357). Nessa altura, o partido Bolchevique que poucos anos antes organizava dezenas de milhares, se viu reduzido a algumas centenas, talvez menos. Isto tornou a posição de Trotsky mais razoável? A unidade com os mencheviques em função do reduzido número de integrantes do partido Bolchevique que, segundo a metáfora de Lenin, a época se assemelhava a uma “criança coberta de abscessos”?

Lenin pensava exatamente o oposto. Conforme nos explica Trotsky, o dirigente bolchevique escreveu em 1911 que, naquele período, numerosos social-democratas “mergulharam no conciliacionismo, partindo dos motivos mais diversos. Mais consistente que todos era o conciliacionismo expresso por Trotsky, por isso, foi o único a procurar uma ‘base teórica’ para essa política”. Isto fez Lenin ver em Trotsky “a maior ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário”

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(TROTSKY, 2012, 355-356). Como se nota, Lenin não apenas combateu as posições de Trotsky, como viu nela a principal ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário. Mais até que as posições explicitamente reformistas dos mencheviques. Em que se baseava um juízo tão severo?

Em seguida, Trotsky explica a posição de Lenin. “‘Aprendemos na época da Revolução’, escreveu Lenin, em julho de 1909, ‘a falar francês’, isto é, a despertar a energia e o ímpeto direto da luta de massa”. No entanto, o que fazer quando a revolução não está na ordem do dia? Lenin prossegue: “agora precisamos, na fase de estagnação, de reação, de desagregação, aprender a falar alemão, isto é, a trabalhar lentamente… conquistando o terreno polegada por polegada” (TROTSKY, 2012, 356). Seria este ‘falar alemão’, este trabalhar lentamente, a política do conciliacionismo de Trotsky? Da unidade com os mencheviques no intento de fortalecer o bloco político anti-czarista e de colher as migalhas do menchevismo? Absolutamente não. Esta era, na verdade, a posição de Martov, o principal dirigente Menchevique à época. Para Martov, continua Trotsky, “ ‘falar alemão’ significava a adaptação ao semi-absolutismo russo, na esperança de que, gradualmente, se ‘europeizasse’”. Por outro lado, para “Lenin, a mesma expressão queria dizer: a utilização, com ajuda de um partido ilegal, de todas as magras possibilidades legais, no trabalho de preparo de uma nova Revolução” (TROTSKY, 2012, 356-357).

Como se vê, para Lenin, mesmo em um período de reação, as tarefas legais e ilegais são hierarquizadas pelo “trabalho de preparo de uma nova Revolução” e não em um acumular forças de modo indeterminado. Para melhor alçarmos o sentido desse ‘falar alemão’ de Lenin, assim como seu rechaço a toda e qualquer conciliação, é esclarecedor as palavras de Trotsky a respeito da tática de Lenin frente as eleições da DUMA, particularmente no que diz respeito a relação entre partido Bolchevique e Mechevique nesse processo. Feito isso, podemos distinguir com clareza o abismo entre a concepção que procura

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extrair as táticas dos acontecimentos do dia que passa e àquela que, sem desconsiderá-los, deduz um “programa e uma tática de uma análise da luta de classes”, isto é, das “necessidades do desenvolvimento objetivo”.

A posição de Lenin diante das eleições da DUMA

Se Lenin rejeitava a unidade entre bolcheviques e mencheviques tal como defendera Trotsky, qual seria sua posição diante do processo eleitoral da DUMA? Nesse caso, seria ele adepto do bloco eleitoral em função da fragmentação do movimento revolucionário russo e, particularmente, da drástica redução numérica do partido Bolchevique? Assim Trotsky resume a plataforma eleitoral Bolchevique:

Os bolcheviques empenharam-se na luta eleitoral separados dos liquidadores[mencheviques], e contra eles. Os operários deviam reunir-se sob a bandeira das três principais palavras de ordem da revolução democrática: a república, a jornada de oito horas e a confiscação dos domínios territoriais. Libertar os pequenos burgueses democratas da influência dos liberais, arrastar os camponeses para o lado dos operários – tais eram as principais ideias da plataforma eleitoral de Lenin. (TROTSKY, 2012, 396)

Mesmo no processo eleitoral, em meio a uma ditadura autocrática, os bolcheviques não apenas marchavam separados dos mencheviques, mas contra eles. “Energicamente, combateu os liquidadores durante a campanha a fim de ter os seus próprios deputados: tratava-se de assegurar um importante ponto de apoio” (TROTSKY, 2012, 399). Teria Lenin lutado tão energicamente contra os mencheviques a fim de conseguir mais deputados? Sem dúvida, os deputados bolcheviques seriam “um importante ponto de apoio”, no entanto, “toda a sua política orientava-se para a educação revolucionária das massas. A luta da campanha eleitoral nada representava para ele se, após, os deputados social-democratas, na Duma, permanecessem unidos”

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(TROTSKY, 2012, 399). Ou seja, o critério fundamental não era a eleição de deputados, tampouco a quantidade total de votos, mas a educação revolucionária das massas, o que apenas pode ter como centro a clara distinção das posições dos mencheviques. Em resumo: “procurava proporcionar aos operários todas ‘as oportunidades – a cada passo, com cada ato – para convencerem-se de que nas questões fundamentais os bolcheviques distinguiam-se nitidamente de todos os demais grupos políticos’ “. (TROTSKY, 2012, 399-400).

Mas existe ainda outro aspecto fundamental, largamente explorado por Trotsky em sua autocrítica das posições de juventude em favor das posições bolcheviques. Além de ter sustentado uma posição conciliacionista, ao pressupor que a luta conduz por si mesma à posições revolucionárias, Trotsky não deu o peso devido a base social dos respectivos partidos. Diz ele que o “bolchevismo contava com a vanguarda revolucionária do proletariado e ensinou-lhe como arrastar atrás de si o camponês pobre. O menchevismo contava com a aristocracia operária e inclinava-se para a burguesia liberal” (TROTSKY, 2012, 376-377). Muito embora não exista um vínculo necessário e individualizado entre a composição social e o programa político, este fator produz inclinações em conformidade com as próprias características dos setores sociais envolvidos. Não sem razão, para Lenin, o processo eleitoral era tratado prioritariamente em função de seu trabalho na classe operária. Era nesse setor social que os bolcheviques escolhiam os seus candidatos e avaliavam sua influência. Tanto é assim que, após a eleição da quarta DUMA, os “sete mencheviques, quase todos intelectuais, procuravam colocar os seis bolcheviques, operários com pequena experiência política, sob seu controle”. Diante disso, a posição de Lenin foi a seguinte: se “todos os nossos seis são oriundos dos distritos operários, não devem se submeter em silêncio a um grupo de siberianos” (TROTSKY, 2012, 398). Os siberianos se tratavam, como é sabido, predominantemente de intelectuais.

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Por fim, a autocrítica das posições do jovem Trotsky e a síntese das lições extraídas da atuação dos bolcheviques naqueles anos entre 1909 à 1912, em que o partido passara de um restrito agrupamento de militantes a uma forte inserção na classe operária, é assim resumida:

“Todos grupos hostis ao bolchevismo – os liquidadores, os renuncistas, todas as matizes de conciliadores – mostraram-se absolutamente incapazes de lançar raízes na classe operária. Daí Lenin tirou a sua conclusão: ‘Unicamente no curso da luta contra tais grupos pode o verdadeiro Partido Social-Democrata dos operários constituir-se na Rússia’‘ (TROTSKY, 2012, 425)

Considerações finais

Como se vê, apeser do jovem Trotsky estar, desde o começo e em nossa opinião, correto a respeito do caráter e sujeito social da revolução russa, apesar de ter escrito uma das mais brilhantes análises particulares de um processo revolucionário – A revolução de 1905 –, apesar de ter se revelado muito precocemente um grande orador de massas, assim como propagandista; sua posição política se situa entre o menchevismo e o bolchevismo. Independente da maior ou menor justeza de várias de suas posições, mesmo em relação aos bolcheviques, de nada valeriam se, na sua efetividade, se apresentassem mescladas em uma linha média de um agrupamento político que congrega em seu seio revolucionários e reformistas.

É evidente que os bolcheviques tiveram êxito porque conseguiram corrigir a tempo os limites de um programa que acenava unicamente na direção de uma república democrática. No entanto, não teriam sequer a chance de se corrigir, se não estivessem fortemente enraizados na classe operária, com uma organização autônoma e programaticamente independente. Não apenas separados dos mencheviques, mas, sobretudo, “contra eles”.

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NOTAS

Cabe lembrar que, muito embora, formalmente, se tratasse de frações do Partido Operário Social-Democrata Russo, na realidade eram partidos diferentes, com seus núcleos dirigentes e estruturas independentes. Ainda que tenha ocorrido tentativas de reconciliação manifestas na realização de congressos em comum e, mesmo, por um curto período, a criação de um collegium do Comitê Central que congregava membros de ambas as frações.

REFERÊNCIAS

TROTSKY, Leon; COGGIOLA, Oswaldo. Stalin: Biografia – Estudo preliminar de Oswaldo Coggiola. Editora Livraria da Fisica, 2012, São Paulo.

Georgi

Chicherin:

homossexual, ex-aristocrata e

bolchevique

Jéssica Milaré |

Nossa muito sofrida República Soviética passou por tanta coisa durante os últimos dois anos que, no espaço de um breve jornal de revisão, é possível apenas apontar os marcos mais importantes deste período. A história política das relações exteriores da Rússia Soviética nesses dois anos é uma trágica história de luta sem fim, inspirada por inúmeros inimigos que literalmente não deram nenhum descanso ao jovem regime dos trabalhadores e camponeses. […]

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mundial, colocou de uma vez o Governo Russo Soviético à frente do movimento revolucionário mundial como o mensageiro e a inspiração da revolução proletária.

[CHICHERIN, p. 3]

É assim que Georgi Chicherin começa o “breve” jornal (um pequeno livro de bolso). Quando ele sucedeu Leon Trotsky no posto de Comissário do Povo para as Relações Exteriores (uma espécie de Ministro do Exterior), não havia, na teoria marxista, qualquer elaboração sobre relações exteriores. Esta foi, portanto, a primeira publicação marxista dedicada ao assunto.

Chicherin mudou muito. Poucas pessoas acreditariam que ele havia sido um aristocrata religioso e moralista retornaria à Rússia em 1918 como um verdadeiro bolchevique. A complexa amizade que ele teve com Mikhail Kuzmin, o autor do primeiro romance russo sobre homossexualidade, mostra uma evolução do pensamento de Chicherin ao longo dos anos. Infelizmente, pouca atenção é dada pelos historiadores à sua homossexualidade (ou talvez bissexualidade). Os artigos e livros que citam isso se restringem a falar sobre Chicherin em um ou dois parágrafos no meio de um texto que tem outro foco. É como se sua sexualidade fosse irrelevante para sua vida política e vice-versa.

Mas não há dois “Georgis Chicherins”, isso é óbvio. Houve apenas um personagem histórico que se transformou ao longo do tempo, transformação esta que atinge tanto suas visões sociais e políticas quanto como ele encarava a sua sexualidade.

De religioso e moralista a materialista

Georgi Chicherin estudou história e linguagem na universidade de São Petesburgo a partir de 1886, onde conheceu Mikhail Kuzmin. Tornaram-se amigos íntimos. Chicherin foi uma forte influência na vida do amigo, levando-o a conhecer filosofia e aprender italiano e alemão [MALMSTAD, p. 16-8]. Após retornar

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à Rússia em 1897, Chicherin trabalhou no departamento de arquivos do Ministério das Relações Exteriores até 1903 [MEYENDORFF, p. 175].

Chicherin e Kuzmin “mencionam suas inclinações sexuais em suas cartas” [MALMSTAD, p. 19]. Naquele momento, Chicherin convenceu Kuzmin a confiar na “Providência Divina”, da necessidade de ter “sentimentos corretos” e da abstinência sexual, apresentando a ele o jesuíta Canon Mori [p. 33-6]. A falha de Kuzmin em encontrar uma cura o levou várias vezes a tentar cometer suicídio [cf. p. 47]. Com o tempo, Canon Mori percebeu que era incapaz de resolver as crises de seu devoto e exortou-o a buscar ajuda com um médico especializado em distúrbios nervosos [p. 41-2].

Toda pessoa LGBT que teve uma educação conservadora ou moralista carrega uma antítese dentro de si. Por um lado, sua consciência alienada que compreende que ser LGBT é pecado, doença ou anormalidade. Por outro, sua própria existência concreta, que expressa as características que são consideradas de LGBTs.

No caso de Kuzmin, essa antítese teve outros desdobramentos. A busca pela religiosidade e pela “cura” o levaria à seita dos velhos crentes, muito influente em sua região. Essa seita, que defendia os “velhos costumes” e rejeitava o presente, existia desde 1666 como uma reação à Reforma da Igreja Ortodoxa Russa. Por outro lado, como a principal inspiração de Kuzmin eram suas fortes paixões por outros homens, ele passou a entender que seu trabalho criativo era um pecado [cf. p. 66]. Essa antítese fica explícita em seu relato de 1901 [p. 63].

Já Chicherin foi para a direção oposta. Em sua carta de agosto de 1901, afirmo que, apesar de compreender como os velhos crentes atraiam a Khuzmin, este estaria enganando a si mesmo em pensar que ele poderia ser algo além de um “cidadão naturalizado”. Chicherin comparou-o a dois hegelianos russos que “viam o niilismo, o revolucionismo e o materialismo como

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sintomas da doença da sociedade europeia ocidental” [p. 52]. Já em 1904, Chicherin escreveu uma carta que mostrava que sua concepção deu um passo adiante. Chicherin percebia que a busca de Khuzmin por uma “nova arte” era uma rejeição dos valores de sua época. Isso fazia parte do contexto social em que emergia na Rússia o movimento social democrático, que buscava o fim da ditadura czarista e que também ansiava, segundo ele, por uma “reavaliação dos valores” [p. 51].

Os registros dos anos seguintes mostram que Chicherin abandonou a visão moralista sobre a homossexualidade. Foi em 1906, quando estava em Berlim, que Chicherin fez uma crítica à obra “Asas”, que retratava um jovem homossexual que “saiu do armário”, como se tivesse ganhado asas. A crítica era sobre o excesso de disquisição “sempre sobre o mesmo assunto” e foi aceita pelo autor, que, em consequência, fez várias mudanças na obra [p. 96]. No mesmo ano, este publicou também as “Canções Alexandrinas”, que foram baseadas na coleção de poesias lésbicas e eróticas “Les Chansons de Bilitis” e retratava romances entre homens. Chicherin exaltou-as por sua grandiosa maestria e por retratar “o mais puro Kuzmin” [cf. p. 100].

De aristocrata a menchevique e, mais tarde, a bolchevique

Boris Chicherin, tio de Georgi, faleceu em 1904 e suas propriedades foram herdadas pelo sobrinho, que tornou-se muito rico. Entretanto, Georgi Chicherin envolveu-se com o Partido Socialista Revolucionário (que era muito influente entre os camponeses) e, por repúdio à riqueza e à propriedade privada, doou o que tinha em nome da Revolução. No mesmo ano, sua prisão iminente o obrigou a fugir para Berlim [ANDREYED, p. 76]. Em 1905, Chicherin tornou-se menchevique e inimigo de Lenin, assim permanecendo até 1914 [DEBO, p. 651].

No começo do conflito, Chicherin acreditava que a principal necessidade eram as revoluções democráticas nos países

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monarquistas e na Rússia czarista. Baseando-se na teoria marxista que explica que, em tempos de guerra, os socialistas deveriam apoiar o Estado cuja vitória mais ajudasse na causa da revolução socialista, defendia o apoio à Grã-Bretanha e à França, que eram, segundo ele, os países mais progressistas. Entretanto, os socialistas não deveriam apoiar o regime czarista, mas, pelo contrário, atuar para sua derrubada [p. 653].

Os artigos de do final de 1915 e começo de 1916 mostram uma mudança de posição. Conforme suas próprias palavras: “No curso da guerra defensiva, o capital inglês aproveitou-se dos sindicatos de trabalhadores para manter o poder em suas próprias mãos, enquanto mantinha-o longe das classes trabalhadoras. A política inglesa, com clareza ofuscante, revelou a ele [Chicherin] o papel da democracia, a forma mais refinada de dominação do capital” [p. 653]. Segundo ele, a guerra tinha origem imperialista e era mantida por capitalistas e monarquistas feudais para os seus próprios interesses de classe. A única forma de evitar esta guerra e as guerras futuras era a destruição do capitalismo e da monarquia feudal pelas classes dominadas dirigidas pelo proletariado. Entretanto, os imperialistas se apropriaram das organizações da classe trabalhadora e dos partidos social-democratas, que se tornaram “burocracias partidárias”. Com esta posição política, o velho menchevique já era um bolchevique em espírito [p. 653-4]. Do outro lado da Europa, num memorando de março de 1916, Lenin comentou que seu antigo adversário estava r e a l i z a n d o u m “ g r a n d e s e r v i ç o ” a f a v o r d a c a u s a internacionalista [p. 655].

A atuação política de Chicherin que obteve maior sucesso foi entre centenas de imigrantes russos, na maioria foragidos da ditadura czarista e da conscrição, contando com o apoio da militante suffragette Mary Jane Bridges-Adams em algumas ocasiões. Houve um acordo em 1916 entre os governos russo e britânico para que esses imigrantes fossem enviados de volta à

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Rússia ou que fossem conscritos ao exército britânico. A partir de um protesto em 13 de março de 1916, foi criado o Comitê dos Delegados dos Grupos Socialistas Russos em Londres. A partir da denúncia do czarismo e do governo britânico, campanha alcançou um público amplo não só na comunidade russa, mas também na população britânica. Como resultado, o governo suspendeu a decisão por seis meses [p. 656].

Por causa da crescente influência dos sovietes e de Chicherin, o governo britânico decidiu prendê-lo. Preso, teve contato limitado com conhecidos e as visitas de Bridges-Adams foram proibidas [p. 660].

Leon Trotsky, que era o Comissário do Povo para as Relações Exteriores, no dia 26 de novembro, enviou uma mensagem ao embaixador britânico George Buchanan, exigindo a libertação dos prisioneiros bolcheviques Chicherin e Petrov, afirmando q u e h a v i a m i n g l e s e s e n g a j a d o s e m a t i v i d a d e s contrarrevolucionárias na Rússia e avisando que “a democracia revolucionária não pode aceitar que heróis valorosos definhem em campos de concentração na Inglaterra enquanto cidadãos ingleses não sofrem qualquer restrição no território da República Russa” [p. 660]. Diante da negativa do governo inglês, Trotsky emitiu uma ordem proibindo todos os ingleses que estavam na Rússia de saírem do país. Seu primeiro deputado, Ivan Zalkind, disse certa vez a um inglês que desejava um visto de saída: “Para lhe fornecer um visto nós precisamos consultar o camarada Chicherin – sem Chicherin, sem visto!” [p. 660-1]

Essa pressão política obteve sucesso. O acordo foi firmado em 10 de dezembro, mas foi apenas em 2 de janeiro de 1918 que Georgi foi notificado das negociações feitas por Leon Trotsky. No dia seguinte, após uma pequena festa de despedida feita por seus amigos, Chicherin embarcou no trem. Depois de 13 anos de exílio, finalmente retornaria pra casa.

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De volta à Rússia Soviética

No começo do século XX, a criminalização da homossexualidade era comum entre quase todos os Estados Burgueses. O movimento homossexual ainda incipiente concentrava-se no Instituto Científico-Humanitário, na Alemanha, que reivindicava a revogação do parágrafo 175 que criminalizava a “sodomia”. Naquela época, a consciência sobre a necessidade de se combater o preconceito e a violência contra LGBTs era quase inexistente.

A Revolução de Outubro colocou a Rússia Soviética à frente de todos os principais países imperialistas com respeito aos direitos das mulheres e LGBTs. Logo nos primeiro meses, todo o Código Penal russo, com uma visão moralista herdada do czarismo e do catolicismo ortodoxo, foi descartado. O novo governo soviético pôs-se imediatamente a elaborar um novo Código Penal, promulgado em 1922, baseado em concepções mais modernas de criminalidade. No novo código penal, a criminalização da “sodomia” consensual entre adultos foi intencionalmente deixada de lado. A política bolchevique era a absoluta não-interferência do Estado Soviético nas questões sexuais. Tudo isso durou até 1933-34, quando a “sodomia” consensual foi novamente criminalizada pelo stalinismo como parte da política de perseguição aos homossexuais que já havia se iniciado sorrateiramente na segunda metade da década de 1920 [cf. HEALEY, 1993].

Lenin tinha muito respeito pelo novo Comissário para as Relações Exteriores. São inúmeras as cartas entre eles. Em 1919, ocorreu o Primeiro Congresso da Terceira Internacional Comunista, no qual Chicherin foi um dos cinco delegados russos. Ou seja, o fato de que Chicherin era homossexual não parece ter afetado essa relação de confiança.

No tempo em que permaneceu como Comissário, Chicherin manteve uma política contra o imperialismo e da opressão nacional. Defendia a “autodeterminação dos trabalhadores de toda

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nacionalidade”, abolição da “diplomacia secreta, rompendo de uma vez com as tradições imperialistas através da publicação dos tratados secretos como também pela renúncia de todos os acordos ditados pela política imperialista do regime czarista” [CHICHERIN, p. 3-4]. Com essa concepção, conseguiu criar acordos com países muçulmanos, em especial com o Afeganistão. Com isso, ele colocou em prática a máxima de Marx: “Um povo que oprime outros povos não pode ser livre”. Outro aspecto inédito das relações exteriores da recém-formada Rússia Soviética era o apelo para que os trabalhadores dos outros países se mobilizassem contra a intervenção militar imperialista no novo país soviético.

[O] movimento revolucionário gradual e crescente continuou avançando nos países da Entente e, por toda a Europa, as classes dominantes estão tomadas pelo medo conforme elas sentem a aproximação da revolução mundial. A imagem maravilhosa do ataque da reação mundial sobre a Rússia Soviética, a luta desesperada da última e sua defesa bem-sucedida inspira as classes trabalhadoras de todos os países. Este ano (1919), nós escrevemos menos notas aos governos, mas mais apelos às massas trabalhadoras. […] A cena da presente batalha entre dois mundo não tem precedentes na imensidade de suas proporções. […] A política externa da Rússia Soviética conforma-se mais e mais à batalha universal entre a revolução e o velho mundo. [CHICHERIN, p. 35-36]

Durante seu trabalho como diplomata, Chicherin deparou-se com um grande obstáculo: a homofobia de Maxim Litvinov, um dos membros do Comissariado para as Relações Exteriores. Boris Bazhanov, secretário de Stalin de 1923 a 1928, relata que Chicherin e seu principal deputado, Maxim Litvinov, constantemente enviavam memorandos secretos ao Comitê Central do Partido Bolchevique criticando e xingando um ao outro. Litvinov afirmava que seu adversário era “pederasta, idiota, maníaco e anormal” [BAZHANOV, 1930 apud KOTKIN, 2014, p. 152]. Além de invejar seu adversário pelo seu posto e também das

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divergências políticas, Litvinov tinha especial aversão porque era homofóbico. Apesar disso, Maxim Litvinov permaneceu no posto e sucedeu Chicherin como Comissário para as Relações Exteriores em 1930.

A visita do velho amigo

Ao que tudo indica, as divergências políticas entre Chicherin e Khuzmin mantiveram-nos bastante distantes. Mikhail Khuzmin diversas vezes se opôs aos movimentos revolucionários, apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro quando ela ocorreu.

Apesar da política bolchevique de não interferência nas questões sexuais, o clima homofóbico a partir de 1923-24 era crescente. Em junho de 1926 na “Gazeta Vermelha” (Krasnaya Gazeta), um longo artigo de Mikhail Padvo retratava a arte de Khuzmin como “burguesa” por causa das “poses e gestos eróticos” que foram emprestados das “operetas negras” [MALMSTAD, p. 337]. Sua carreira praticamente chegou ao fim nesse ano, junto com a política de liberdade artística que havia sido defendida por Lenin e também por Trotsky. Tudo isso representa um retrocesso gradual na política bolchevique que prevalecia no começo da década de 1920 [cf. HEALEY, 1993].

Chicherin não sabia disso. Em novembro de 1926, chegou em Leningrado e mandou avisar Khuzmin que queria que ele fosse visitá-lo. “Mieux veut tard que jamais,” começou dizendo. Eles conversaram sobre “artes, polêmicas, amizade, talento, diplomacia” e também sobre a fama que Khuzmin havia adquirido na Alemanha. Chicherin indagou Khuzmin sobre por que seu amigo estava escrevendo e publicando pouco [p. 340].

Desse relato, podemos tirar duas conclusões. Como Chicherin sabia sobre a fama que Khuzmin tinha nos grupos de homossexuais que estavam florescendo na Alemanha, significa que ele tinha algum contato com esses grupos, talvez também com o Instituto Científico-Humanitário. É possível que esse

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contato inclusive tenha ocorrido antes de 1917, quando viveu entre a Alemanha, a França e a Inglaterra. A outra conclusão é que Chicherin acompanhou, em alguma medida, os trabalhos de Khuzmin. Não vemos aqui um julgamento moral, muito menos uma repreensão como a que foi feita por Padvo. Muito pelo contrário, o velho diplomata queria que seu amigo continuasse a produzir.

S o b r e a l e n d a d e q u e C h i c h e r i n n u n c a a c e i t o u s u a homossexualidade

Existem poucas fontes sobre a homossexualidade desse importante bolchevique. Há um motivo para isso. Como parte da contrarrevolução stalinista, todas as discussões artísticas ou científicas sobre a sexualidade foram proibidas. Livros e textos sobre o assunto foram apreendidos pela NKVD (órgão que deu origem à KGB) ou queimados na década de 1930 [HEALEY, 2001]. Alguns artigos e rascunhos pessoais de Georgi Chicherin provavelmente ainda estão detidos pela polícia da Rússia [HEALEY, 1993, p. 45]. Chicherin também foi apagado da Enciclopédia da União Soviética e dos arquivos históricos do partido comunista soviético [MEDVEDEV, p. 202; MEYENDORFF, p. 173].

Devido à falta de mais evidências sobre a homossexualidade Chicherin, surgiu uma lenda entre os historiadores de que ele nunca aceitou sua sexualidade. Entretanto, existe uma única evidência, totalmente duvidosa, que aponta nesse sentido, e que inclusive entra em contradição com as evidências já apresentadas aqui. Todos os textos que fazem essa afirmação baseiam-se, direta ou indiretamente, em duas notas de rodapé do artigo de Alexander Meyendorff, primo de Chicherin. Entretanto, essas duas notas foram adicionadas pelo editor do artigo, Igor Vinogradoff, amigo pessoal de Meyendorff, e não pelo próprio autor. A primeira afirma que, na viagem de Chicherin a Berlim em 1904, “ele estava buscando uma cura para a homossexualidade que perturbava sua mãe e provavelmente

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distorcia sua própria personalidade” [MEYENDORFF, p. 175]. A segunda afirma que o termo “doença” no texto de Meyendorff era um eufemismo para a “homossexualidade e os sentimentos de culpa decorrentes dela” [p. 178]. O problema é que nem mesmo Meyendorff conhecia o pensamento do Chicherin, quanto mais o seu amigo, Vinogradoff. Por exemplo, em 1903, quando Chicherin apenas defendia o fim do czarismo e a renovação de valores, seu primo já o considera um “marxista radical” que já estava longe das visões da mãe [p. 174].

Como vimos, é provável que a primeira nota retrate um fato histórico, não só da homossexualidade de Chicherin, mas também de que ele tinha trejeitos (a “distorção na personalidade”). Já a segunda nota parece refletir, no máximo, uma opinião de Meyendorff. Chicherin foi à Berlim em 1926 e novamente em 1928 para tratamento de diabetes e polineurite (inflamação e degeneração dos nervos). Em seus últimos dias, passava por crises de loucura. Faleceu em 1936 de derrame cerebral [cf. POOLE, p. 90]. Esses fatos derrubam a única e frágil evidência apresentada de que Georgi Chicherin nunca aceitou sua própria sexualidade.

Bibliografia

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Debo, Richard K. “The Making of a Bolshevik: Georgii Chicherin in England 1914-1918.” Slavic Review 25.4 (1966): 651. Web. Chicherin, G. Two Years of Foreign Policy the Relations of the Russian Socialist Federal Soviet Republic with Foreign Nations from November 7, 1917, to November 7, 1919. New York: Russian Soviet Government Bureau, 1920.

H e a l e y , D a n i e l . “ T h e R u s s i a n R e v o l u t i o n a n d t h e Decriminalisation of Homosexuality.” Revolutionary Russia 6.1 (1993): 26-54.

(21)

Healey, Daniel. Homosexual Desire in Revolutionary Russia: The Regulation of Sexual and Gender Dissent. Chicago: U of Chicago, 2001.

Kotkin, Stephen. Stalin: Volume I: Paradoxes of Power, 1878-1928. N.p.: Penguin, 2014.

Malmstad, John E. e N. A. Bogomolov. Mikhail Kuzmin: A Life in Art. Cambridge, MA: Harvard UP, 1999.

Medvedev, Roy Aleksandrovich. Let History Judge: The Origins and Consequences of Stalinism. New York: Knopf, 1971.

Meyendorff, Baron Alexander. “My Cousin, Foreign Commissar Chicherin.” Russian Review 30.2 (1971), p. 173-178.

Poole, DeWitt C., Lorraine M. Lees, e William S. Rodner. An American Diplomat in Bolshevik Russia. Madison, WI: U of Wisconsin, 2014.

Democracia sem centralismo

não tem nada a ver com o

bolchevismo

Francesco Ricci |

A história do movimento operário revolucionário desde os dias da Iª Internacional é uma crônica ininterrupta de tentativas de grupos e tendências pequeno-burguesas, de todo tipo, de realizar ataques furiosos contra os “métodos organizativos” dos marxistas, para recompensar a si mesmos por suas debilidades teóricas e políticas. Sob o rótulo dos métodos organizativos eles incluem tudo, desde o conceito de

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centralismo revolucionário até assuntos de rotina administrativa; e, além disso, também questões pessoais e de método de seus principais oponentes, aos quais invariavelmente descrevem como “maus”, “duros”, “tirânicos” e, claro, claro! “burocráticos”. Até o dia de hoje, qualquer grupinho de anarquistas te explicará como o “autoritário” Marx maltratou a Bakunin. (James Cannon, A luta por um Partido Proletário, 1940)

No Blog Convergência foram publicados, no ano passado, muitos artigos sobre o regime nos partidos revolucionários, ou seja, sobre o centralismo democrático. Eu contei, pelo menos, nove artigos, mas pode ser que eu tenha perdido algum (1). Aqui, eu quero referir-me à série de quatro artigos de Enio Bucchioni e mais em geral ao tema do centralismo democrático.

Os artigos de Enio Bucchioni são muito interessantes porque oferecem uma ampla reconstrução histórica de como o tema do regime do partido foi enfrentado pelos bolcheviques e, depois da morte de Lênin, por Trotsky. A falha que eu vejo na a r g u m e n t a ç ã o d e B u c c h i o n i é e n f a t i z a r ( t a l v e z n ã o intencionalmente) um dos dois componentes do binômio (a democracia) em detrimento do outro (o centralismo), não percebendo que o centralismo democrático não é a soma de dois elementos distintos, mas sim um todo indivisível. E, deste modo, se perde de vista o propósito do centralismo democrático: fazer funcionar um partido revolucionário, o instrumento de luta para a conquista do poder. Colocando sob a lupa feitos específicos da história, extraídos de seu contexto, os artigos de Bucchioni nos fornecem – na minha opinião – uma visão levemente deformada da concepção bolchevique, por isso o binômio centralismo-democracia se desfaz e permanece apenas uma democracia sem centralismo, sem disciplina.

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Não podendo, por razões de espaço, abordar todos os detalhes deste importante debate, vou apenas submeter ao leitor quatro observações sobre certos aspectos do problema.

Devem ser tomadas precauções ao utilizar Broué como 1.

fonte

Bucchioni (mas também outros companheiros que escreveram os artigos que mencionamos) se refere constantemente a Pierre Broué e, em particular, à sua História do Partido Bolchevique. Broué, sem dúvida, foi um grande historiador marxista e seus livros são recomendados para cada ativista que quer estudar a história do bolchevismo e do trotskismo sem as falsificações stalinistas. No entanto, Broué, como qualquer historiador, inevitavelmente escolheu temas e argumentou a partir da sua concepção, sustentada por dois pilares: em primeiro lugar, por uma preferência pelo “jovem” Trotsky, não bolchevique e crítico do suposto “ultra-centralismo” leninista (um Trotsky que o próprio Trotsky maduro criticou implacavelmente); segundo, por não compreender o Trotsky construtor da Quarta Internacional. Não é por acaso que à construção da Quarta Internacional, isto é, o que Trotsky acreditava ter sido a tarefa mais importante de sua vida (ainda mais do que a direção da Revolução Russa com Lênin), Broué dedica, significativamente, apenas uma dúzia de páginas na sua (sem dúvida excelente) biografia de Trotsky, que tem quase mil páginas.

Por isso, é bom estudar Broué. Mas, para tomar como base seus julgamentos históricos convém sempre lembrar que eles estão inevitavelmente interligados com seus (muitas vezes errados) julgamentos políticos.

É necessário prestar mais atenção aos fatos históricos 2.

Querendo discutir a questão do regime, a começar (justamente) pela experiência histórica, é oportuno basear-se em uma reconstrução exata dos fatos. Isso significa evitar certos

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lugares-comuns que, infelizmente, também a historiografia anti-stalinista difundiu; e também evitar recorrer à memória citando textos que talvez foram lidos há muitos anos e que deles não lembramos bem.

No texto de Bucchioni eu encontrei vários desses lugares-comuns e até mesmo alguns grandes equívocos na reconstrução histórica. Limito-me a mencionar três afirmações falsas ou parcialmente verdadeiras (portanto falsas, embora as boas intenções do autor). Bucchioni diz:

– Em primeiro lugar, que “(…) poucos sabem ou se recordam, antes de 1918, todas as correntes marxistas existentes na antiga Rússia se encontravam no POSD-R. (…) Havia, no entanto, um só Partido. A rigor não havia o Partido Bolchevique até alguns meses após a revolução de 1917, mas sim a fração bolchevique do POSD-R. Somente em março de 1918 é que foi fundado o Partido Comunista Russo (bolchevique) ..;

– Em segundo lugar, que Lênin estava convencido de que “as diferenças (…) fortalecem o partido.”;

– Em terceiro lugar, que o centralismo democrático foi criado por Lênin e as “linhas mestras estão delineadas no livro Que Fazer?, de 1902.”.

Na verdade, a primeira e a segunda afirmação são meias verdades e, portanto, como toda a verdade pela metade, é acompanhada de uma metade que não é verdadeira e a terceira afirmação simplesmente não corresponde aos fatos históricos. I n f e l i z m e n t e é d e s t a f o r m a q u e B u c c h i o n i t e r m i n a involuntariamente pintando uma imagem distorcida do debate histórico que poderia prestar-se a generalizações erradas que outros poderiam fazer.

Mas vamos ordenar e vejamos essas três afirmações.

Em primeiro lugar. Bucchioni faz um pouco de confusão quando reconstrói a história do bolchevismo. É verdade que

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formalmente o Partido Bolchevique nasceu somente após a Revolução de Outubro e é verdade que antes existia o Partido Operário Social-Democrata da Rússia com as suas diversas frações. É também verdade (acrescento) que, após a primeira divisão de 1903 houve períodos de união parcial entre bolcheviques e mencheviques. É bom salientar, no entanto, como faz Edward H. Carr, um dos melhores historiadores da Revolução Russa, que, enquanto muitos estavam convencidos de que a revolução de 1905 tinha eliminado a demarcação entre as diferentes facções, “Lênin não acreditava nisso. Se ele considerava absolutamente inevitável a reunificação, por causa da demanda proveniente das massas (…) todavia se declarava a seu favor com muita relutância e não a levou a sério “. (2) Na verdade, a unidade não durou muito e foi apenas formal, continuando a existir de fato dois partidos separados com as suas estruturas até que a divisão foi confirmada novamente em 1912. Mas, nem mesmo após 1912 a separação é completa e, em algumas situações, mencheviques e bolcheviques trabalharam conjuntamente. Até mesmo em 1917 a direção bolchevique (antes d a v o l t a d e L ê n i n ) p r o p ô s u m a r e u n i f i c a ç ã o c o m o s mencheviques, como uma consequência lógica da posição semi-menchevique de Kamenev e Stalin, que queriam apoiar “criticamente” o governo dos mencheviques e SR. Por isso Lênin foi forçado a enviar mensagens peremptórias à direção bolchevique contra a reunificação com os mencheviques. Não se lembrando desses fatos históricos, a afirmação de Bucchioni, segundo a qual, até 1918 “havia, no entanto, um só Partido” (isto é o POSDR composto por bolcheviques e mencheviques) é, portanto, uma meia-verdade que pode justificar o clichê de todos os que durante um século minimizam a ruptura de 1903.

No entanto, a opinião de muitos (que Bucchioni retoma) não foi compartilhada por Lênin. Em um texto (mais frequentemente citado pelo seu título do que lido), Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920) Lênin escreveu: “O bolchevismo

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existe como corrente do pensamento político e como partido político desde 1903. “(grifo nosso) (3)

A verdade de Bucchioni é parcial: é verdade que os bolcheviques foram, formalmente, uma fração de um partido que incluía também os mencheviques. Mas, como justamente destaca o líder trotskista norte-americano James Cannon em desacordo com aqueles que se limitavam a fazer a mesma constatação formal de Bucchioni, nós temos que dizer a outra metade da verdade, ou seja, que: “A fração de Lênin era na verdade um partido”, e também por isso nele (desde 1906) constituíram-se, em várias ocasiões, tendências e frações. (4)

Em segundo lugar. Nos artigos de Bucchioni é recorrente a afirmação de que Lênin estava convencido de que as diferenças internas fortalecem o partido.

Eu não sei onde os textos de Lênin afirmam isso. Eu conheço, n o e n t a n t o , m u i t o s t e x t o s o n d e L ê n i n r e i t e r a a l g o significativamente diferente: a de que a elaboração política necessita de um confronto e, quando necessário, de um embate de idéias no partido. No caso em que aparecem diferenças, elas devem poder expressar-se em conformidade com as regras do centralismo democrático (com a oportunidade de se tornar maioria), não devem ser sufocadas, mas devem expressar-se em conformidade com regras que, em qualquer caso, permitam que o debate e as diferenças não impeçam a ação.

Lênin (e este é o essencial que eu acho que escapa à interpretação de Bucchioni) concebia o partido revolucionário como um organismo de luta, um exército na guerra de classe. Por isso, como Trotsky acrescenta: “Naturalmente, o conteúdo fundamental da vida partidária não reside na discussão, mas sim na luta.” (5)

Então, o que diz Bucchioni (que Lênin via nas diferenças algo que “fortalece o partido”) não corresponde à concepção que Lênin tinha do partido e, se tomada como uma generalização,

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poderia levar a defender um regime baseado em uma democracia sem fronteiras: uma idéia que pertence não só aos mencheviques e aos anarquistas, mas também, por exemplo, à tendência dentro do partido bolchevique chamada Centralismo Democrático (liderada por Sapronov e Vladimir Smirnov) que já em 1919 e em 1920 (muito antes da degeneração stalinista) atacam a maioria bolchevique de Lênin e Trotsky por um suposto “centralismo autoritário”, “bonapartismo”, etc.

Ao contrário da leitura que é creditada por historiadores como Pierre Broué e dirigentes políticos como Ernest Mandel, não é possível encontrar nem em Lênin nem em Trotski a exaltação de um partido comprometido com um debate permanente: porque isso é contrário à concepção do partido como ferramenta de luta. Em vez disso podemos encontrar (e vamos ver em breve algumas) muitas afirmações de Trotsky contra o partido concebido como um “clube de debates”, paralisado e incapaz de agir enquanto espera que a realidade prove qual a tese correta: é verdade que para os marxistas a realidade é o critério da verdade, mas pode ser testada apenas uma linha política de cada vez, ou seja, apenas a linha política que, após o debate democrático, é aprovada por maioria e deve ser ativa e lealmente apoiada até mesmo por aqueles que não tinham acordo com ela. Esgotado o debate, entra-se em ação e o debate cessa até que o partido não o reabra, em Congressos ou em outros momentos de avaliação que o partido decidir.

Frações e tendências são, portanto, a expressão normal de um partido em que as diferenças não são resolvidas de forma positiva. Afirmar isso, claramente, não significa dizer que as diferenças “fortalecem o partido” ou que a existência nele de tendências e frações é um fato positivo. Ou, acima de tudo, que isso signifique conceber o partido como um conjunto permanente de frações ou, pior (como fazem organizações como o Secretariado Unificado, o NPA francês, o PSOL, etc.), conceber o partido como a união de revolucionários e reformistas. Este último conceito, em qualquer caso, não tem nada a ver com

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Lênin ou com Trotsky, que, de fato, observou: “Um partido só pode tolerar frações que não prossigam objetivos diretamente conflitantes com os seus” (6)

Em terceiro lugar. Bucchioni se confunde quando escreve que “Linhas mestras” do centralismo democrático estão no livro Que Fazer?

É um erro comum, mas ainda é um erro. Deve ser lembrado que Que Fazer? foi escrito por Lênin em 1902, quando não estava prevista e divisão entre bolcheviques e mencheviques (que será no Congresso do ano de 1903). Temos que lembrar que o tema central do Que fazer? não é o regime do partido, mas a controvérsia com uma corrente de economistas. Este é o grupo Rabocee Delo (Causa dos trabalhadores), dirigido por Kricevskij e Martynov. Este grupo sustentava a impossibilidade do partido revolucionário de elevar a consciência socialista da vanguarda que luta e por isso teorizavam ou que era necessário rebaixar a política revolucionária ao nível de consciência das massas, reduzir o programa somente aos objetivos imediatos e compreensíveis ao conjunto da classe. É u m d e b a t e i n t e r e s s a n t e e a t u a l , q u e m e r e c e r i a s e r desenvolvido, mas não é nosso assunto neste artigo. Aqui nos interessa salientar que no Que Fazer? não há uma única linha sobre o assunto do centralismo democrático. A própria expressão “centralismo democrático” não aparece no livro e não pode aparecer porque o termo foi cunhado três anos mais tarde (no final de 1905) e não por Lênin (como sustenta Bucchioni), mas pelos mencheviques (7).

Uma vez que colocadas as datas históricas no seu devido lugar, vale a pena mencionar que se o nome (centralismo democrático) nasce em 1905, a coisa (o conceito político-organizacional) já existia no século anterior. É, de fato, um conceito introduzido na Primeira Internacional por Marx e Engels, na batalha contra Bakunin e o federalismo dos anarquistas, quando, depois da Comuna de Paris (e graças aos ensinamentos de sua derrota) puderam terminar a longa batalha de demarcação

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do marxismo, que haviam travado contra todas as outras correntes na Internacional e “pôr fim ao acordo ingênuo de todas as frações” para tentar, finalmente, construir uma Internacional “puramente comunista” e com base no marxismo (8). O conceito de partido dos trabalhadores democraticamente centralizado, instrumento indispensável para a conquista do poder é, na verdade, o eixo de todas as resoluções aprovadas na Conferência de Londres (setembro de 1871) e no Congresso de Haia que, um ano depois, estabeleceu a necessidade de uma Internacional centralizada, com base em rigorosa disciplina, no respeito pelo princípio da maioria. Estes elementos provocaram a ruptura com os anarquistas que polemizaram contra o “autoritarismo” de Marx, não só porque rejeitaram o programa da ditadura do proletariado (algo na verdade muito “autoritário” porque… se ganha com baionetas e canhões, como brincou Engels), mas também porque eles rejeitaram (com alguma consistência que deve ser reconhecida) também o partido centralizado que era (e ainda é) a premissa indispensável.

Lênin sobre o regime do partido revolucionário 3.

Depois de fazer alguns esclarecimentos históricos, vemos que o tema do papel do Partido em Lênin e Trotsky começa a tomar cores diferentes. Prossigamos.

Não é no Que fazer?, ao contrário do que Bucchioni escreve, mas sim em outro livro de Lênin é onde que devemos buscar a controvérsia sobre a questão do regime do partido: trata-se de Um Passo em Frente e Dois para Trás. É um livro de 1904, onde Lênin resume o famoso congresso de 1903 que terminou com a cisão entre bolcheviques e mencheviques e que foi (repetimos o que dizem Lênin e Cannon, em desacordo com Bucchioni) o verdadeiro nascimento de Partido Bolchevique.

Neste importante livro, que é infelizmente pouco conhecido, tem um amplo espaço a polêmica em defesa de um regime centralista rigoroso, da disciplina, do princípio da maioria, da subordinação da parte ao todo, isto é, da seção local ao

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centro (e aos organismos eleitos pelo Congresso Nacional), de cada militante individualmente ao partido no seu conjunto, da minoria à maioria.

Lênin é implacável contra a “mentalidade anarquista e individualista” típica dos pequeno-burgueses: os operários, afirma, não têm medo da disciplina da organização. A quem o acusa de conceber o partido “como uma fábrica com um diretor, o Comitê Central”, Lênin responde: “a fábrica, que para algumas pessoas parece apenas um espantalho, representa a forma superior de organização capitalista que unificou e disciplinou o proletariado, que o ensinou a organizar-se.” Ele continua: para alguns, “a organização do partido que almejamos é uma ‘fábrica monstruosa’”; a submissão da parte ao todo e da minoria à maioria lhes parece uma ‘escravidão”.

De acordo com Lênin em cada partido “o oportunismo (…) se manifesta (…) nas mesmas tendências, nas mesmas acusações, e muitas vezes com os mesmos chavões e por isso reaparece “o mesmo conflito entre autonomismo e centralismo, democracia e ‘burocratismo’, entre a tendência a debilitar e a tendência a reforçar o caráter rigoroso da organização e da discliplina (…)”. (9)

Ele continua assim, por páginas e páginas. Não podemos reportar todo o livro, mas aconselhamos a leitura a todos os companheiros que estão interessados em aprofundar-se sobre o tema do regime no partido.

Claramente a disciplina da qual Lênin fala é “férrea”, mas não é “cega” porque não é passiva, é assumida por aqueles que, conscientemente, decidiram dedicar-se à revolução e o partido é feito de cabeças pensantes, e a capacidade para a crítica e auto-crítica é uma das principais virtudes de cada revolucionário.

Os conceitos deste livro de 1904 (em que não aparece a expressão “centralismo democrático”, mas o conceito é bem

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ilustrado) serão confirmados na vitoriosa experiência da revolução russa. Por isso, escrevendo em 1920 Esquerdismo, doença infantil do comunismo, Lênin dá o título ao segundo capítulo: “A condição fundamental para a vitória dos bolcheviques”, para depois explicar que esta “condição fundamental” foi “uma disciplina severíssima, realmente férrea.” (10)

Centralismo e “disciplina severíssima, realmente 4.

férrea.”

Uma velha lenda (muito amada por todos os oportunistas) quer que a “uma disciplina severíssima, realmente férrea” da qual fala Lênin fosse praticada pelos bolcheviques somente porque eles eram um partido que estava na ilegalidade. Esta seria uma característica de um elemento ligado a uma realidade específica.

Outros recordam a polêmica de Trotsky, nos primeiros anos do século, contra as posições de Lênin, posições que Trotski definia como “hiper-centralista”, enquanto acusava Lênin de “robespierrismo”.

Outros, ainda, pegam textos em que Trotsky polemiza contra a deformação que o stalinismo fez do centralismo, ou seja, textos escritos contra a distorção contra-revolucionária do centralismo democrático, e extraindo estes textos daquela luta, tentam apresentar cada elemento do centralismo e da disciplina como um elemento “burocrático”, subtraindo do binômio centralismo-democrático a primeira palavra com a mesma facilidade com que se tiram os chinelos antes de ir dormir. E é, pelo menos desde os tempos de Bakunin, (ou seja, um século e meio atrás) que, com pequenas alterações, se repete sempre o mesmo refrão. Como dizem os franceses: “On connait la chanson!“, é uma canção que nós conhecemos. Mas, por mais antiga que seja, permanece sendo uma canção desafinada, que não combina com o leninismo.

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Vejamos juntos esses argumentos, recordando os fatos históricos.

A concepção Leninista do centralismo democrático não foi concebida apenas para os partidos na ilegalidade (na verdade, e r a m a i s a p l i c á v e l a p a r t i d o s n ã o s u b m e t i d o s à clandestinidade). As bases do centralismo democrático foram, por isso, codificadas pela Internacional Comunista nas teses válidas para todos os partidos comunistas: “Sobre a estrutura organizativa dos Partidos Comunistas” (Terceiro Congresso de 1921) (11).

É evidente que a estrutura e os métodos de um partido revolucionário não são uma abstração: não prescindem das condições concretas em que aquele determinado partido está sendo construído. No entanto, existem certos princípios que são válidos em qualquer circunstância.

A respeito de Trotsky, deveria ser lembrado que ele fez uma autocrítica profunda sobre suas acusações, quando jovem, ao que lhe parecia, na época, “o hipercentralismo” de Lênin. Por exemplo, em A Minha Vida, ele admite que ele não havia entendido ” a importância de um centralismo rigoroso e severo para um partido revolucionário que quer dirigir contra a velha sociedade milhões de homens.” (12)

No que se refere, finalmente, à tentativa de utilizar os argumentos que Trotsky usava nos anos vinte e trinta contra o centralismo burocrático para usá-los contra todo e qualquer centralismo, em contextos completamente diferentes, procurando apresentar Trotsky como o defensor da democracia sem regras e sem centralismo, precisamos lembrar que justamente enquanto enfrentava uma batalha mortal contra os métodos (gêmeos do fascismo) usados pela burocracia stalinista, Trotsky participava da construção de uma Internacional e de partidos baseado no centralismo democrático autêntico, isto é, em “uma disciplina severíssima, realmente férrea “, usando as palavras de Lênin.

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Não é por acaso que o documento de fundação do SWP dos Estados Unidos, redigido em 1938 sob a direção de Cannon e com a direta colaboração de Trotsky, insiste a cada três linhas na necessidade de combinar o debate e democracia com aquela “severa disciplina e aquele centralismo, sem o qual não existe partido revolucionário”. É interessante notar que naquele Congresso, uma minoria (dirigida por Burnham e Draper) fez contra essa concepção da maioria do Swp (profundamente compartilhada por Trotsky) acusações de “burocratismo”, fazendo críticas de cunho democratistas.

Podemos ler no documento de fundação de 1938: “Qualquer discussão interna do partido deve ser organizada a partir do ponto de vista segundo o qual o partido não é um clube de debates com debates intermináveis sobre toda e qualquer questão e em todos os momentos, em que não se chega nunca a tomar nenhuma decisão, paralisando assim a organização; ao contrário, o partido deve ser concebido como um partido disciplinado para a ação revolucionária ” (13)

Não ajuda a esclarecer os fatos históricos a lembrança de Bucchioni quando (no segundo de seus quatro artigos sobre este tema) lembra como, no Partido Bolchevique em 1917, o debate interno foi muitas vezes público. Novamente Bucchioni toma um elemento verdadeiro da realidade, isolando-o de seu contexto e o apresenta como uma regra geral. Mas, neste caso, esquece que, se, inevitavelmente, em um partido de dezenas de milhares uma parte do debate se torna “público”, isso não se aplica necessariamente a partidos de algumas centenas ou alguns milhares (como são hoje todos os partidos revolucionários). Esta simples constatação, que para alguém poderia parecer “burocrática” não é minha: quem a faz é Trotsky, em resposta ao mesmo argumento de Bucchioni usado naquele caso por Schatman. Em uma carta (março de 1940) para ao dirigente SWP Farrell Dobbs, Trotsky escreve: “Shachtman busca, ou seja, inventa precedentes históricos. A oposição tinha no partido bolchevique os seus próprios jornais, etc. Apenas esquece que

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o partido, naquele momento, tinha centenas de milhares de militantes, que a discussão deveria chegar a todos eles e convencê-los. Nessas condições, não era possível limitar a discussão a círculos internos. (…). “(14)

Voltando ao exemplo do SWP, quando a seção norte-americana da Quarta Internacional se dividiu em duas frações sobre a questão do caráter do Estado na Rússia, uma maioria e uma minoria mais ou menos do mesmo peso numérico, para tentar evitar a ruptura ao meio do Partido, Trotsky insistiu sobre a necessidade de ampliar o debate, admitindo medidas excepcionais (incluindo boletins de discussão internos em períodos não congressuais ou até a permanência de uma fração interna depois de acabado o congresso). Mas foi precisamente (e isto também lembra Bucchioni) uma situação excepcional, porque o partido estava ameaçado por uma divisão ao meio (que depois de um tempo, na verdade se materializou): de qualquer maneira o partido continuou a funcionar segundo as regras de um centralismo democrático baseado na “disciplina severíssima, realmente férrea.” E Trotsky, em resposta à minoria do SWP, q u e a t a c a v a a m a i o r i a c i t a n d o ( c o m u m a c o m p a r a ç ã o injustificada) as modalidades do stalinismo para sustentar a necessidade de expandir sem limites a democracia, separando-a do centralismo, afirmava: “As garantias jurídicas permanentes não são, com toda segurança, herança da experiência bolchevique. (…) A estrutura organizativa da vanguarda proletária deve subordinar-se às exigências positivas da luta revolucionária, e não a garantias negativas de sua degeneração.” (15)

Trotsky volta a este tema várias vezes. Em uma carta a Burnham, dirigente da minoria do SWP, que invocava “mais democracia” no partido, responde:

Você, da mesma forma, busca um tipo de democracia interna i d e a l q u e a s s e g u r e a t o d o o m u n d o , e m t o d a s a s circunstâncias, a possibilidade de fazer e dizer o que lhe passe pela cabeça, e que vacine o partido contra a

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degeneração burocrática. Deixa de lado, no entanto, o fato de que o partido não é um lugar para a afirmação pessoal, mas sim um instrumento para a revolução proletária; pois só uma revolução vitoriosa é capaz de evitar a degeneração não só do partido, mas do proletariado em seu conjunto e da civilização moderna em geral. (16)

E ainda:

É verdade que, para justificar a sua ditadura, a burocracia soviética utilizou os princípios do centralismo bolchevique, mas no processo os transformou no contrário do que eram. Mas isto não desacredita, em última análise, os métodos do bolchevismo. Durante muitos anos, Lenin educou o partido na disciplina proletária e no centralismo mais severo. Ao fazê-lo, teve que sofrer centenas de vezes o ataque das camarilhas e frações pequeno-burguesas. O centralismo bolchevique foi um fator progressivo, e assegurou o triunfo da revolução. Não é difícil compreender que a luta da atual oposição do SWP não tem nada em comum com a luta da oposição russa de 1923 contra a casta privilegiada dos burocratas, mas, por outro lado, é muito parecida com a luta dos mencheviques contra o centralismo bolchevique.(17)

Conclusões

Concluindo, o centralismo democrático não é uma fórmula mágica, mas apenas o modo que os revolucionários (desde os tempos de Marx, quando o termo ainda não existia) encontraram para organizar de forma eficaz um partido que luta para tomar o poder pela via revolucionária. O centralismo democrático para Lênin, Trotsky e Cannon implicava uma dialética entre os dois termos, o que significa: a mais ampla discussão possível em um determinado momento para a elaboração das escolhas, com plena igualdade de direitos entre a maioria e a minoria; uma disciplina muito rigorosa na aplicação das escolhas e,

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consequentemente, o princípio da maioria (a minoria deve submeter-se às escolhas feitas democraticamente, e deve aplicá-las lealmente); eleição e constante controle do partido sobre seus órgãos dirigentes; circulação interna de informações para todos os militantes; congressos freqüentes como momento máximo de decisão e direção.

A concepção leninista de partido não inclui o centralismo sem democracia (o centralismo burocrático, típico do stalinismo), bem como democracia sem centralismo (típico do anarquismo, do menchevismo, etc.). Estes dois extremos, que por vezes se convertem rapidamente um no outro, não tem nada em comum com o trotskismo ou com o regime típico do bolchevismo, isto é, com o centralismo democrático.

Dado que a história dos revolucionários é para nós fonte constante de aprendizado, quando voltamos a estudá-la é importante reconstruir a verdade na sua complexidade, lembrando que meias-verdades (mesmo quando ditas com absoluta honestidade), como parece ter dito Oscar Wilde, arrisca-se em tomarmos nas mãos a metade errada…

Não se pode separar a democracia do centralismo. Esta opinião é compartilhada não só por quem escreve este artigo, mas também por Trotsky, ao qual passo a palavra porque, como acontece muitas vezes, é inútil parafrasear o seu pensamento que é claríssimo.

Trotsky escreveu em 1933:

Alguns membros de nossa organização qualificam como stalinismo qualquer medida defensiva contra os elementos em decomposição, qualquer chamado á disciplina, qualquer repressão. Com isto só demonstram estar tão longe de entender o stalinismo, como também o espírito que deve guiar uma organização verdadeiramente revolucionária. A história do bolchevismo foi desde seus primeiros passos a educação da organização em uma disciplina de ferro. Originalmente se

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