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ÁGORA FILOSÓFICA. Avicena: o filósofo e sua filosofia. Prof. Dr. Rafael Ramón Guerrero 1 Trad. de Luis Flávio Nogueira da Silva 2

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Avicena:

o filósofo e sua filosofia

Prof. Dr. Rafael Ramón Guerrero1

Trad. de Luis Flávio Nogueira da Silva2

Resumen: En este texto se ofrece una presentación del pensamiento filosófico de Avicena, situándolo en su contexto histórico y doctrinal, destacando aquellos aspectos de su filosofía que más influencia han tenido a lo largo de la historia de la filosofía y poniendo de relieve algunos de los problemas sobre la naturaleza de su pensamiento a los que se enfrenta el estudioso actual. Palabras- clave: Avicena, Filosofía, Filosofía Islámica, Historia de la Filosofía.

Abstract: A presentation of Avicenna’s philosophy is offered in this text. The Islamic philosopher is placed in his historical and doctrinal context and those aspects of his thinking that more influence has had along the history of philosophy are highlighted. Some of problems that the nature of their thought present, and to those that the current scholars faces, are pointed out here. Key words: Avicenna, Philosophy, Islamic Philosophy, History of Philosophy.

1 A filosofia no Islamismo

1.1 As origens da filosofia no Islamismo

A

filosofia que surgiu na dâr al-Islâm é uma parte da cultura a que deu lugar o fato religioso que se iniciou quando Mahoma fundou uma comunidade, cuja lei - política, social e ética por sua vez - tem sua fonte no Corão. Esse livro necessitava ser compreendido, o que obri-gou ao muçulmano a uma ocupação do tipo intelectual, do que resul-tou a formação de um pensamento que se formou depois de largas etapas e que teve distintas manifestações, dando lugar às “ciências religiosas”, sobretudo ao direito e à teologia, e às “ciências auxiliares”, especialmente a Gramática e a História.

__________________________________

1 Professor Titular da Universidad Complutense de Madrid 2 Graduando em Filosofia pela UNICAP.

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Somente depois de ter alcançado um certo grau de maturi-dade e de ter entrado em contato com o legado da antiguimaturi-dade grega, o pensamento islâmico alcançou a forma de expressão filosófica. Ain-da que as outras manifestações estejam baseaAin-das em idéias filosóficas ou ainda que adotaram métodos e doutrinas próprios da filosofia, nem todas elas devem ser incluídas no âmbito da filosofia no Islamismo.

As disciplinas que formam o pensamento muçulmano devem ser estudadas em uma esfera mais ampla que englobe todas as formas desse pensamento, porém não dentro de um aspecto parcial do mes-mo comes-mo é a filosofia. É certo que a reflexão filosófica foi propiciada, em grande parte, pela meditação sobre o Livro Sagrado, porém aque-la não deve ser confundida com esta. Pensadores como Algazel ou Ibn Jaldûn consideraram que a filosofia é algo independente das restantes formas de reflexão muçulmana.

1.2 Características da filosofia no Islamismo

O pensamento filosófico no mundo islâmico foi, de fato, au-tônomo e independente, com características próprias e diferenciadoras. Foi uma resposta aos problemas que viveram e sobre os quais pensa-ram aqueles que os manifestapensa-ram. Para eles, adotar e adaptar o pen-samento grego significou encontrar soluções para as dificuldades que impediam o livre desenvolvimento de idéias no mundo muçulmano. A filosofia grega proporcionou, pela maturidade de sua evolução, res-postas adequadas para as várias perguntas que se faziam no Islamismo. A aceitação, assimilação e uso de elementos alheios à cultura em que se formaram os falâsifa (filósofos) teve como resultado a ela-boração de doutrinas como as relações entre a filosofia e a revelação, a formação do universo, a natureza do homem, a justificativa racional da profecia, a direção e governo da comunidade muçulmana, etc. Como traços característicos dessa filosofia podem ser destacados os seguintes: ser de caráter religioso, porque tem como ponto de partida a reflexão sobre uma verdade revelada; sua natureza completamente racional, porque tudo quanto formula procede única e exclusivamente da razão, incluindo a suprema afirmação da Primeira Realidade; seu

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caráter eclético, por servir-se de doutrinas que até mesmo são contra-ditórias para a racionalização da realidade; e sua vinculação com a ciência.

Houve filosofia no Islamismo porque previamente havia ama-durecido um pensamento que tinha como núcleo central o Corão. Essa filosofia foi um novo caminho para dar sentido à Lei, como meios dis-tintos àqueles usualmente empregados. Por isso, essa filosofia é religi-osa e, por isso, esteve vinculada aos outros aspectos da cultura em que nasceu.

Esse novo caminho não foi outro senão o reconhecimento explícito da razão. Está ligado à aceitação e recepção da filosofia e das ciências procedentes da Grécia, o que fez com que o pensamento islâmico se fixasse definitivamente, não por seu enfrentamento com a tradição clássica, se não que por apropriar-se dos elementos que lhe convinham, com sua explicação da realidade. Essa recepção se iniciou durante o século VIII e terminou no início do século XI, quando fina-lizaram as traduções de obras cientificas e filosóficas do grego para o árabe. A leitura destas chamou a atenção sobre a razão, e isso permitiu que se considerasse que a razão não é somente uma faculdade que oferece um método de interpretação da revelação, mas também uma nova via científica, independente, autônoma, que seguia as regras lógi-cas estabelecidas por Aristóteles para alcançar a verdade, aquela mesma Verdade que o Profeta trouxe ao conhecimento de todos os homens em uma linguagem acessível a eles. A filosofia seguia um caminho dis-tinto ao da religião, porém convergente na Verdade.

A leitura e apropriação das idéias procedentes de Platão, de Aristóteles e de muitos neoplatônicos tiveram como conseqüência essa qualidade eclética, que nós caracterizamos nessa filosofia.

Finalmente a quarta peculiaridade reside na vinculação com a ciência. Muitos filósofos destacaram e contribuíram para o avanço e progresso da ciência, da qual logo viveria grande parte da cristandade latina e a comunidade judia, até o início da Idade Moderna. A filosofia aristotélica, a neoplatônica e o desenvolvimento das ciências serviram como uma linguagem comum entre as três civilizações, apesar de que a ciência e a filosofia foram combatidas em nome de uma interpretação tradicional do texto revelado.

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1.3 Os primeiros filósofos no Islamismo

A filosofia começou no mundo árabe no século IX. O primei-ro nome e, de certa forma, seu criador foi Abû Yusûf al-Kindî (ca. 795 - ca. 870), representante genuíno do meio cultural em que cresceu. Três aspectos se destacam em suas obras: ter sabido afrontar as rela-ções entre filosofia e revelação; traçar o problema da unidade e da criação do mundo; e afirmar a razão como fonte que torna possível o conhecimento.

A filosofia se caracterizou sempre por sua incansável procura da verdade, na qual está comprometida a humanidade, visto que ne-nhum homem por si só é capaz de alcançá-la na sua totalidade. Essa concepção da filosofia definida como conhecimento da verdadeira re-alidade do que é possível ao homem implica reconhecer a dimensão histórica da verdade; que a verdade pode ser alcançada por qualquer povo à nação; e que o filosofo deve tomar em conta as considerações anteriores para obter a verdade. Como a religião é também conheci-mento da verdade porque o profeta nos permitiu conhecer, por inspi-ração divina, o contido na filosofia, não se opõe, se não que coincidem em seu objeto e fim. Diferem metodologicamente: a filosofia necessita de um grande esforço por parte da razão humana e da contribuição de muitos homens, ao paço que o profeta alcança a verdade em um ins-tante, sob forma de símbolos, pela vontade e pela inspiração de Deus. A segunda questão está abordada no contexto da discussão pelos teólogos do problema da unicidade divina. Estuda o universo caracterizando-o por dois ângulos: término e multiplicidade, que reve-lam a dependência de uma Causa infinita e una. Essa Causa primeira é o Uno verdadeiro que somente pode ser descrito em termos do que não é, porque nenhum dos predicados de que se serve o homem lhe convém propriamente. Dele somente pode afirmar-se que é o Uno verdadeiro de uma maneira absoluta e essencial.

Finalmente, afirma a radical autonomia e independência da razão como faculdade de conhecimento, abrindo ao mundo árabe a possibilidade de um restrito discurso racional sobre a realidade, isto é, fixando as bases para o desenvolvimento da filosofia.

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Seus objetivos foram continuados e desenvolvidos ampla-mente por Abû Nasr al-Fârâbî (ca. 875 - 950), cuja filosofia é uma utilização de Aristóteles em um marco neoplatônico, com a finalidade de deixar mais alto o pensamento de uma filosofia política baseada nos textos de Platão.

A filosofia é o único caminho para estabelecer uma socieda-de perfeita na qual o homem possa alcançar aquela que é a verdasocieda-deira felicidade. Essa sociedade deverá fundamentar-se nas leis estritamen-te racionais que estabelecem seu legislador, o Profeta-Filósofo, que modela essa sociedade sob a imitação da estrutura que existe no uni-verso. Daí a necessidade que o filósofo tem de conhecê-la. Funda-menta essa concepção na superioridade da filosofia sobre a religião: tendo o mesmo fim, o conhecimento da verdade, a religião é um saber simbólico, acessível a todo homem, cuja fonte é a imaginação, ao pas-so que a filopas-sofia procede da razão, a faculdade superior. Desde aqui, podemos concluir que o método da filosofia é a demonstração cientí-fica, e o da religião é a persuasão pela palavra e pela imagem (retórica e poética).

A filosofia é definida, então, como o saber que aspira ao co-nhecimento do Criador, e que busca sua imitação na medida do que seja possível ao homem. Assim, como tarefa teórica, o filósofo tem que conhecer a Deus, ao qual identifica como o Ser Primeiro, Causa Primeira, o Ser Necessário, do qual dependem para existir todos os demais seres, que somente são possíveis. Essa distinção entre ser ne-cessário, aquele que não pode não existir, e ser possível ou contingen-te, aquele que pode existir ou não existir, supõe uma nova concepção do ser que modifica em profundidade a metafísica grega, ao afirmar a existência como princípio radical da realidade.

O Ser Primeiro é, também, o Primeiro Intelecto, que se co-nhece a si mesmo, e o Primeiro Motor, o qual se move inteligentemen-te. Ao pensar-se em si mesmo, dá origem por um processo de emana-ção à multiplicidade do universo, através de uma ordem hierárquica e necessariamente racional, que vai desde o Primeiro Intelecto emana-do, motor da esfera do primeiro céu até o décimo Intelecto, o Intelec-to Agente que se ocupa da esfera da terra, o mundo da geração e da corrupção, pela composição de forma e matéria que se dá nele. O

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Intelecto Agente é o “gerador das formas” ônticas e não-éticas. O homem busca a felicidade e somente a alcança pela perfei-ção de sua alma, pela razão, pela qual o homem entende, reflete, ad-quire as ciências e as artes e distingue entre as boas e más ações. Sua união com o Intelecto Agente a libera dos vínculos corpóreos e mate-riais alcançando a plena atualização da atividade intelectual, na qual consiste a suprema e verdadeira felicidade. Considerando que para obtê-la o homem necessita de uma vida em sociedade, al-Fârâbî ana-lisa as diversas comunidades humanas, proclamando a necessidade do Estado ideal ou virtuoso, único em que o homem alcança aquela felici-dade que será regida pelas leis racionais que o filósofo deduz, através da Ciência Política, da estrutura racional do universo.

2 A verdadeira filosofia de Avicena 2.1 Estudo da questão

Deste poeta, músico, filósofo, médico, matemático e, inclusi-ve gramático que foi, de Abú ‘Alî Ibn Sînâ se poderia esperar tudo: desde sofrer perseguição e aprisionamento até ser admirador do vinho por ser poderoso e reconstituinte das forças corpóreas e intelectuais, como disse em sua autobiografia e explica no Canon de medicina. Autor de mais de cem obras, suas opiniões e doutrinas deram lugar às interpretações mais desencontradas.

Primeiro, o problema dos seus livros, cuja lista foi crescendo depois de sua morte: das quarenta que são citadas na biografia de al-Yûzyânî até às duzentas e setenta e seis do Catálogo de G. Anawati, no qual figuram diferentes títulos para obras idênticas.

Segundo, o problema da leitura dos textos. Avicena assinala que alguns filósofos utilizam símbolos com vistas a um objetivo oculto; trata-se de camuflar o pensamento pelos problemas que podem acar-retar a um determinado tipo de leitores. Ibn Tufayl (+1185) assinalou uma dupla interpretação das obras avicenianas: em algumas seguiria a Aristóteles, expondo uma filosofia apta a todas as pessoas, e, em ou-tras, expressaria “os segredos da sabedoria oriental”, seu verdadeiro

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pensamento, reservado a alguns poucos. São conhecidas as interpre-tações que propuseram Averróis (+ 1198), vendo-o como um mal aristotélico por haver neoplatonizado o pensamento do filósofo grego, e Suhrawardi (+ 1190), que o acusou de não ter sabido realizar o programa de uma “filosofia oriental”, por ignorar a raiz do saber.

A polêmica foi ressuscitada e nela ainda andam presos pres-tigiosos estudiosos. Tem sua origem em diversos textos avicenianos e deu lugar a essas duas interpretações distintas que Cruz Hernández resumiu claramente. A primeira se apóia na existência de uma tradição peripatética e, no profundo, do conhecimento que Ibn Sînâ teve dela, e, por isso, seu pensamento deveria ser visto desde essa tradição. A segunda, parte da tradição esotérica iraniano-islâmica, igualmente co-nhecida por Ibn Sînâ, e sua impressão teria se manifestado em diver-sas obras suas, nas que estaria seu pensamento mais íntimo.

Como existem outras obras que parecem seguir a tradição peripatética e outras escritas numa linguagem simbólica e esotérica, qualquer intenção de expor o pensamento verdadeiro de Avicena es-taria fadada ao fracasso porque: qual é, na realidade, esse verdadeiro pensamento? O exposto para o público em geral? O expresso somen-te para os ensomen-tendidos, para os não-ignoransomen-tes? Será que isso implica a existência de dois pensamentos, de duas verdades? Trata-se de uma linguagem dupla para expor uma mesma coisa?

2.2 Avicena, filósofo ou místico?

A dificuldade se apresenta por uma observação que está in-cluída na introdução em sua enciclopédia A Cura, onde afirma que seu propósito é expor as ciências filosóficas dos antigos peripatéticos, sem que se possa ver refletido seu próprio pensamento, que somente se encontrará em A Filosofia Oriental.

Realmente disse isto? Quer expor a doutrina dos peripatéticos em A Cura e a sua própria em A Filosofia Oriental? Uma atenta leitura do texto 2 parece sugerir outra coisa: que as verdades expostas na segunda obra de maneira clara e sem rodeios, se encontram de maneira desenvolvida e alusiva na primeira. Isso parece confirmar a

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introdução A Filosofia Oriental, da qual se conservou a parte de lógica, titulada pelo editor cairota Lógica dos Orientais. Era outra soma de filosofia dentro da tradição aristotélica, paralela em seu con-teúdo A Cura, porém mais sistemática em seu método. Como disse Cruz Hernández, os textos somente afirmam explicitamente que Avicena faz uma distinção entre os dois modos como ele ensinou e expôs a filosofia: do “modo comum” dos peripatéticos e de um “modo pesso-al”, sem preocupar-se com discrepâncias que pudessem surgir com o “modo comum”.

Sabemos, por sua autobiografia, que lhe custou muito chegar a compreender A Metafísica, de Aristóteles: depois de lida mais de quarenta vezes e de sabê-la de memória, somente alcançou seu obje-tivo quando leu o comentário de al-Fârâbî. A anedota mostra os dois pilares sobre os quais se assenta seu pensamento: o procedente da Grécia e o do mundo islâmico. O dinamismo interno de seu pensamen-to, o esforço que o levou a construir seu sistema, foi o resultado de uma constante e contínua preocupação por um conhecimento intelec-tual e intuitivo e também experimental.

É esse dinamismo que explica, quiçá, as páginas que dedicou a descrever as experiências e feitos místicos nos últimos capítulos de seu Livro das Orientações e Advertências e a composição de obras cuja natureza e conteúdo são objeto de discussão: a Epístola de Hayy

b, Yaqzân, a Epístola de Pássaro e o Relato de Salâmân e Absal.

Ainda que lidos de maneira mística e simbólica, como “relatos visioná-rios”, esses textos somente expõem sua doutrina em outro estilo literá-rio. Usa uma linguagem distinta ao costumeiro em filosofia, destinada a um público diferente ao que somente lia os textos relatados em uma linguagem estritamente filosófica. Avicena utiliza símbolos e alegorias para fazer acessível o conhecimento que adquire a alma racional e sua relação com o intelecto agente. A chave dessa dupla forma de lingua-gem não de uma dupla verdade. Avicena afirma em sua Epístola sobre

o Retorno que os árabes usam um duplo tipo de discurso: o literal ou

aparente e o metafórico e figurado, para entender passagens difíceis do Alcorão. Não existe, pois, ruptura entre suas obras, senão distinta exposição de sua mesma doutrina.

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Avicena não foi um místico, nem um esotérico que escreveu em uma linguagem crítica e para iniciados. Somente se preocupou pe-las mesmas questões que ocuparam os demais filósofos. Buscou e ex-pôs os princípios que deram explicação da realidade. Ensinou-os de maneira ordenada e sistemática, utilizando o método argumentativo e a base empírica que obteve por sua dedicação à ciência. Tratou, ade-mais, de divulgar todas as formas de conhecimento que havia obtido e para isso se serviu de um método pessoal onde no qual duvidou em empregar alegorias e símbolos capazes de chegar até à gente normal. Soube atender a uma tradição distinta da greco-aristotélica, que podia também estender a via até a verdade e até à salvação pessoal. Em ambos os casos, somente se tratava do destino final do homem. Por isso, como costuma repetir Cruz Hernández, “a filosofia de Avicena” é essencialmente a de sempre, pois, como se diz em espanhol, “no hay

más cera que la que arde”.

3 Avicena e as ciências

3.1 A classificação das ciências

A apreciação do conhecimento como algo sagrado tem sido opinião comum na tradição educativa muçulmana, porque tudo quanto se conhece manifesta ao crente algum sinal de existência, unidade e unicidade de Deus. Por isso, diversos ditos põem na boca do Profeta um convite ao crente a buscar o saber e a ciência , porque todo conhe-cimento tem como fim supremo conhecer a Verdade.

A primeira atividade intelectual se centrou em Deus e sua Palavra, ancorada no Alcorão. As iniciais formas de pensamento, no fio da reflexão corânica, incluíram-se no que logo se chamou “Ciências Tradicionais”, porque se fundamentavam no Livro revelado e na Tra-dição do Profeta. Quando o horizonte dos conhecimentos que o ho-mem pode alcançar se ampliou, ao haver entrado em contato com outras culturas e formas de pensamento, se desenvolveram as “Ciênci-as Intelectuais ou Racionais”, naturais ao homem por estar dotado de reflexão.

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Os dois tipos de ciências foram entendidos como um cami-nho que devia ser percorrido de maneira metódica, observando uma gradação, porque um dos conhecimentos está ordenado à aquisição de outros e todos eles estão dirigidos ao conhecimento da Unidade e Verdade suprema. Surgiu, assim, a necessidade de inventariar as ciên-cias, de estabelecer sua classificação. No mundo islâmico, incluíram-se quaincluíram-se todas as ciências e concedeu-incluíram-se às classificações um valor propedêutico que permitiu o progresso da ciência. Foram compostos tratados inteiros ou extensos capítulos destinados a elaborar repertóri-os e classificações.

Avicena sustenta na “Física” de sua obra As Fontes da

Sa-bedoria que “a filosofia é o aperfeiçoamento da alma humana por meio

de uma simples apreensão das coisas e por meio do juízo (formado) pelas verdades teóricas e práticas na medida do possível ao homem”. Seguindo o costume de seus predecessores, propõe sua classificação do saber científico que é a filosofia. Ele o faz em várias obras, porém, ademais, deixou-nos uma Epístola sobre a Divisão das Ciências

In-telectuais, em que recupera a divisão aristotélica entre ciências

teóri-cas e prátiteóri-cas, às quais se acrescenta a Lógica como ciência instru-mental. Afirma, ademais, que nenhuma das ciências contém nada em contradição com a Lei religiosa e que aqueles que, seguindo essas ciências, se desviam da Lei, são incompetentes e débeis, porque o erro está neles e não nas ciências.

3.2 A filosofia teórica e suas divisões

O primeiro momento em sua classificação é a dupla divisão em teóricas e práticas. É teórica a ciência que se ocupa do conheci-mento das realidades cuja existência não depende do sujeito humano, porque tende a ir até a verdade em si mesma. Prática é aquela ciência que busca conhecer as coisas que dependem da vontade humana para a ação; adquirir o bem para o homem vem do resultado de conhecê-las e de fazê-conhecê-las ou não fazê-conhecê-las. Assim, os fins da ciência - da filosofia - são a verdade e o bem.

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A filosofia consiste em um aperfeiçoamento da alma, o que se logra através das ciências teóricas, que permitem à alma obter o entendimento em ação, alcançando, por meio da apreensão e do juízo, o saber das coisas que não são obra nossa nem resultado de nossas disposições, segundo se lê no início da “Metafísica”, de A Cura. Dis-tinguir quantas são as classes de ciências teóricas constitui o segundo momento na divisão do saber.

No Livro da Demonstração, “afirma que a diferença e di-versidade das ciências se produzem por causa de seus objetos”. Há que se entender os distintos objetos de que se ocupa a filosofia teórica para formular sua divisão. E o critério para determinar o objeto das ciências especulativas é duplo: a existência das coisas em si mesmas e com relação a nós mesmos, por uma parte; a relação das coisas com o movimento e a matéria, por outra.

Há seres que, em si mesmos, não podem existir independen-temente do movimento e da matéria e que, com relação a nós mesmos, tampouco podem ser concebidos sem movimento e matéria, como os corpos celestes, os quatro elementos e os corpos que se originam da mistura destes, são objeto da “Física”. Há seres que, em si mesmos, não podem existir sem movimento e sem matéria, porém, em sua rela-ção conosco, podem ser concebidos sem movimento e sem matéria, como a quadratura, a esfericidade, o número, suas relações etc.; são objeto das Matemáticas. E há seres que existem sem matéria e sem movimento e são concebidos igualmente sem matéria e sem movimen-to, como Deus, os intelectos e os atributos dessas essências, como a unidade e a multiplicidade, a causa e o efeito, a particularidade e a universalidade etc.; são objeto da Metafísica, Teologia ou Filosofia Primeira.

Cada uma destas ciências compreende outras diversas, das quais umas são principais e outras são subalternas ou secundárias. A Física tem como partes principais a Física propriamente dita, a ciência do céu e do mundo, a da origem e da corrupção, a dos fenômenos superiores, a dos minerais, a das plantas, a dos animais e a da alma; como secundárias tem, entre outras, a medicina, a astrologia, a fisiognomonia e a alquimia. As Matemáticas têm como partes princi-pais as quatro tradicionais: aritmética, geometria, astronomia e música

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e, como secundárias, a topografia, a álgebra, a mecânica, a ótica e a hidráulica, entre outras. A Metafísica tem como partes principais o estudo das idéias gerais comuns a todos os seres, os fundamentos e princípios, a existência da Verdade primeira e seus atributos, as subs-tâncias primeiras espirituais e o estudo das relações do terrestre com o espiritual e, como partes secundárias, a revelação e o retorno ou vida futura.

3.2 A filosofia prática e sua divisão

A sabedoria prática pretende um conhecimento encaminha-do para a ação. Seu fim não se esgota em si mesma, como no caso encaminha-do saber teórico, senão que o bem a que aspira por meio da ação está subordinado ao saber teórico, por onde o homem alcançará a felicida-de suprema. Tem que ver, pois, com a conduta humana.

Como o regime, o governo do homem mantém relação con-sigo mesmo e com os demais, e, como a relação do homem com os demais, se realiza com aqueles que estão ao seu redor ou com os outros cidadãos. A filosofia prática se divide em três. A Ética, que dá a conhecer como devem ser os costumes e ações do homem para que sua vida seja feliz. A Econômica, que ensina ao homem o regime de conduta em sua casa, a fim de que a comunidade, constituída por es-posa, filhos e trabalhadores, leve uma vida bem ordenada e seja capaz de alcançar a felicidade. E a Política, que explica as diversas classes de regimes políticos, governos e sociedades virtuosas e más, e mostra como se aperfeiçoa cada uma delas, porque desaparecem e de que maneira se transformam; também, a existência da profecia e a necessi-dade da Lei divina revelada, requerida para a existência da espécie humana; e se ocupa dos conceitos universais comuns a todas a leis religiosas, porque, para os filósofos (Platão e Aristóteles), a lei quer dizer o “modo de vida tradicional”, a “norma” e o “descenso da reve-lação”.

As três partes da filosofia prática não se subdividem em prin-cipais e secundárias. Entretanto, a metafísica trata da profecia e da revelação e é por isso que essa inclusão do prático no teórico nos faz

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pensar que a Política deve entender-se como a ciência suprema e arquitetônica, a que dá sentido completo ao conhecimento de toda a realidade, porque é ela que em definitivo tem a ver com a felicidade humana.

3.3 A lógica como ciência instrumental

Finalmente, descreve a ciência que é um instrumento que conduz o homem à sabedoria teórica e prática, visto que explica e ensina o método na investigação e na busca da verdade. Ademais, a lógica proporciona ao homem não somente as demonstrações apodíticas ou científicas, senão também argumentos dialéticos, isto é, a favor e contra uma opinião dada: provas persuasivas ou retóricas para reger a multidão pela palavra; e representações de imagens poé-ticas, que o ajudam a conseguir seu objetivo. A classificação que ex-põe coincide com seis livros aristotélicos do Organon, aos quais acres-centa a Isagoge, de Porfírio, como Introdução à Retórica.

Avicena foi consciente do problema estudado entre peripatéticos e estóicos, sobre se a lógica deve ser considerada como parte da filosofia ou como ciência independente por ser instrumental e propedêutica. Trata-se - disse - de uma polêmica carente de sentido e de valor, que tem que ver como a concepção que se tem da filosofia. Afirma que as essências das coisas existem na realidade ou na mente. A essência, ademais, pode ser considerada em si mesma, com inde-pendência desses dois modos de existência. A lógica se interessa por esse último aspecto das essências, isto é, pelos conceitos que estão na mente, considerados em si mesmos e pelas relações que entre eles se estabelecem. Quem sustenta que a filosofia se ocupa somente da exis-tência real ou mental, negará que a lógica seja parte da filosofia. Quem assegure que a filosofia trata de toda investigação teórica afirmará que a lógica será parte e instrumento. Seja parte ou não, será sempre a ciência instrumental por excelência, porque facilita ao homem uma re-gra canônica que lhe preserva do erro no exercício do seu pensamen-to, sendo necessária para obter novos conhecimentos, porque serve de guia à mente e previne em aceitar a falsidade e a mentira.

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A lógica é ciência instrumental e é ciência material e não so-mente formal, porque não se limita ao estudo das leis e forma do pen-samento, senão que ao de sua matéria e suas aplicações, vinculadas a questões físicas e metafísicas, como a teoria da causalidade e o pro-blema da modalidade. Estabelece como objeto da lógica a enumera-ção e argumentaenumera-ção, às quais se chega pela simples apreensão e pelo juízo. E na Metafísica assinala como objeto da lógica as segundas in-tenções, isto é, as noções abstratas, como as de gêneros e espécie, que dependem das primeiras intenções inteligíveis ou conceitos primá-rios. Os enunciados podem ser a definição e a descrição, e as argu-mentações podem ser silogismos ou induções. Tudo isso tem como finalidade chegar ao desconhecido a partir do conhecido, desde que sempre se sigam os procedimentos que a ele conduzam.

Partes importantes da lógica aviceniana são os estudos que dedica aos termos ou palavras, elementos que formam o enunciado; o que consagra à definição, que pode ser perfeita, quando se atém à essência das coisas, ou imperfeita, a que somente dá a conhecer o objeto através dos seus acidentes próprios e comuns, e é chamada então descrição; o dedicado à demonstração, aquele argumento que consta de premissas que não são duvidosas, das quais resultam con-clusões indiscutíveis e cuja possibilidade depende da existência de prin-cípios indemonstráveis, apreendidos pela intuição; e, em fim, o estudo onde expõe a teoria da modalidade de grande importância para o pro-blema do determinismo e da pré-ciência divina e que aplicou de forma radical na metafísica.

4 Metafísica: o ser e o universo 4.1 Natureza e objeto da metafísica

A Metafísica ou Ciência divina representa a culminação do saber teórico. Avicena se ocupa dela em tratados sistemáticos e origi-nais. Compostos de elementos aristotélicos e neoplatônicos recebem uma estrutura muito pessoal na qual abundam minuciosas análises, dis-tinções e clarificações, destinados a resolver as questões que se

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apre-sentam.

A metafísica que elabora representa um desenvolvimento cul-minante da filosofia no Islã e uma crítica a determinadas doutrinas dos teólogos muçulmanos. Tem como fim oferecer uma visão da estrutura do universo como totalidade, constituída por diversos estratos ou ní-veis antológicos da realidade, vinculados entre si e accessíní-veis à ra-zão, precisamente porque toda a realidade procede de Deus, puro intelecto que outorga à realidade seu caráter racional. A intenção de Avicena foi mostrar a compatibilidade entre a metafísica do necessá-rio, de origem grega, e a metafísica do contingente, de raiz religiosa revelada. E por isto foi tomado como modelo para metafísicas poste-riores.

O problema inicial foi fixar o objeto da metafísica. Do que disse em suas classificações da ciência, parece deduzir-se que seu objeto abarca múltiplos conteúdos, incluídos na determinação de “separados da matéria”, tanto em relação a si mesmo como em sua relação a nós mesmos, isto é, em referência à nossa maneira própria de concebê-los. O objeto da metafísica seria, pois, o imaterial e, mais precisamen-te, Deus mesmo como causa das causas e princípio dos princípios. Pode ser Deus o objeto da metafísica?

Da leitura que Avicena fez da Epístola sobre o Objetivo da

<<Metafísica>> de Aristóteles, de al-Fârâbî, descobriu que não se

pode identificar com a <<Teologia>>, senão que esta é somente uma de suas partes. Segundo a epistemologia aristotélica, uma ciência não pode demonstrar a existência de seu objeto próprio, nem dos seus princípios, pelo que propõe uma distinção entre aquele sobre o qual versa uma ciência, que é o que constitui seu objeto próprio, isto é, o <<posto>>, o suposto ou pressuposto como possibilidade para o de-senvolvimento dessa ciência, e aquelas outras questões que estão rela-cionadas com o objeto: o <<buscado>> em uma ciência, que somente podem ser determinadas com rigor quando previamente se tenha esta-belecido qual é o objeto da ciência. Como Deus não se pressupõe, porque não é evidente senão que necessita ser provado, não pode ser objeto da metafísica.

A Física não pode dar razão da existência de Deus, porque somente nos leva, como a Aristóteles, a provar a existência de um

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Primeiro Motor, ao passo que o Deus, do qual se há de ocupar a ciência aviceniana, somente pode ser princípio do ser. Tampouco ne-nhuma outra ciência, porque são inferiores. Por conseguinte, somente a metafísica pode tratar de Deus. Porém, a título de quê? Não como objeto, senão como <<objetivo>>, como <<algo que deve ser busca-do>> nessa ciência.

Então, qual é o objeto da metafísica? O único que reúna as três condições exigidas: impor-se por si mesmo; ser comum a tudo o que esta ciência abarca; e compreender sob si todos os seres que tenham uma essência realizada e atualizada. E isso somente o cumpre o ser enquanto ser. A metafísica aviceniana é, então, ontologia. Porém, como o estudo de Deus é também parte da metafísica, porque é uma <<questão>> que há de ser <<buscada>> necessariamente e de ma-neira exclusiva; como, por outra parte, Deus é o último referente ao qual aponta a fórmula <<o ser enquanto ser>>, posto que é o Ser necessário que dá razão de todos os demais seres e é o primeiro con-tido no conceito de <<ser>>, porque é a causa do ser enquanto que ser causado, a metafísica é também um tratado acerca de Deus, com o que adquiri um sentido “onto-teo-lógico”.

4.2 O ser e suas divisões

O ser é o objeto central da metafísica aviceniana e a noção de ser é chave em todo o sistema metafísico. Por isso, trata-se agora de precisar o que entende Avicena por essa noção.

Apenas há em Avicena uma reflexão lingüística sobre os dis-tintos termos que expressam o ser. Quando em seu Livro das

Orien-tações se ocupa do ser, começa descartando a opinião do vulgo que

busca identificá-lo com o sensível. Existem idéias e conceitos que não são sensíveis, senão inteligíveis puros. Tampouco se pode identificar com o simples e puro existir, porque o termo “ser” pode ter um uso existencial, referido a coisas reais ou a conceitos mentais, mas também em uso não existencial, como quando se refere à essência das coisas sem implicar sua existência.

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O ser é um conceito primário, claro por si mesmo, intuído pela alma de maneira imediata, porque é conhecido sem a mediação de nenhum outro conceito ou princípio, visto que tanto no pensamento como na linguagem está implicado de alguma maneira, precisamente porque é o mais geral ou comum. Quando se pergunta por algo, tanto a partícula com a qual se pergunta, o que, como aquela com a qual se responde, ele, o que ou algo, são expressão e pensamento do ser: o ser está presente na mente, no discurso e na realidade. Por isso, o ser é o mais comum que há. Como conceito primeiro ao ser se chega por uma via dupla. Primeiro e antes de tudo, quando o homem se percebe como existente, como algo que é, via exposta por Avicena através de um argumento chamado de homem volante, de conotações cartesianas por afirmar como primeira certeza imediata o <<eu>>. Segundo, quan-do, através da experiência sensível, apreende os seres completos e particulares, encontrando neles uma idéia ou noção comum a todos.

Por ser o mais comum, por estar sempre e em todas as par-tes e por ser o mais determinável, do ser não há definição nem descri-ção, porque nenhuma definição pode informar verdadeiramente sobre ele, pois nenhum outro conceito pode dar-lhe claridade. A idéia de ser é tão imprecisa que é ininteligível em si mesma: carece de gênero e de diferença específica. Somente poderá explicar-se recorrendo a ter-mos análogos, equivalentes em extensão, para estabelecer aquilo a que ao ser se aplica.

Em seu Livro da Ciência, propõe uma primeira divisão do ser: o ser que é por si e o ser que somente pode existir em outro. O primeiro grau corresponde à substância, que é o ser que não necessita de nenhum outro para subsistir e nem reside em sujeito algum; o se-gundo é o acidente, o ser que somente pode subsistir em outra coisa. Nessa primeira divisão, Avicena segue de perto as opiniões aristotélicas. Porém, há outra divisão que tem maior relevância. Ademais do ser, há outros conceitos primeiros, como os de coisa ou necessário. Este último é relativo, visto que, se os seres que conhecemos por ex-periência são sempre necessários, sabemos que não o são por eles mesmos, porque tiveram o começo, chegaram à existência, depois de haver sido somente possíveis. O conceito de necessário está em rela-ção com o de possibilidade: ambos estão, por sua vez, em relarela-ção

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com o conceito de impossível. Os três são indefiníveis, visto que, se se quer determinar, entra-se num círculo vicioso. Atendendo a essas três categorias modais, o ser é dividido por Avicena em duas classes: ne-cessário ou possível, pois o impossível não pode dar-se. O ser possí-vel é aquele que por sua própria natureza pode existir ou não existir, para o que sempre se requer um começo. O ser necessário, ao contrá-rio, é tal que é impossível que não exista.

Essa divisão tem como raiz a necessária conexão causal en-tre as coisas. O ser possível depende de uma causa para existir; por si mesmo é indiferente para a existência ou para a não-existência. Se existe, é porque uma causa o fez existir; sua não-existência também tem uma causa: a ausência de causa. Seu existir depende da causa e está determinado por ela, com o que Avicena cai em um determinismo total, do qual pretende escapar-se apelando para a natureza da ação da causa, totalmente livre segundo ele. Tudo está submetido ao con-trole, determinação, conhecimento e vontade de Deus, afirma em seu

Sobre o Segredo do Destino. Quando o ser possível existe em

virtu-de virtu-dessa causa, converte-se em ser necessário por outro, ao se fazer necessária sua existência em relação a essa causa. Essa causa, da qual depende o Ser necessário por si, aquele que não deve sua existência a nenhuma causa, que é uno, único, não-causado, necessário em todos os aspectos e causa primeira de todos os demais seres. Somente a ele corresponde, de maneira plena, total e própria, a noção de ser.

Nessa segunda divisão, estão os dois elementos que reco-nhece no ser: a essência e a existência. A essência é a natureza própria de uma coisa e é conhecida por meio da definição dessa coisa. A exis-tência é aquela pela qual uma essência se dá na realidade ou na mente. Pelo fato de serem possíveis, todos os seres têm uma essência, pela qual são meramente possíveis; porém, para existir, necessitam de ou-tro que lhes conceda a existência. Por isso, neles se dá a distinção entre os dois elementos, porque, em si mesma, a essência não inclui a idéia de existência, senão que é indiferente até ela, quer dizer, é exis-tencialmente neutra. Porém, no ser necessário por si mesmo, há iden-tificação entre sua essência e sua existência, porque não depende de causa alguma para existir: sua essência é sua mesma existência.

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É real esta distinção ou é meramente conceitual? Ainda que historicamente se haja interpretado como real, todavia, segundo Cruz Hernández, a única distinção real que Avicena propõe é a que se dá entre ser necessário e ser possível; e somente afirmou que a existência é algo externo à essência, algo que não está incluído na noção mesmo de essência, porque na existência não se pode inferir do que uma coisa é.

4.3 A estrutura metafísica da realidade

Duas são as teorias que Avicena põe em jogo para explicar o universo. Uma é aristotélica: a teoria da causalidade; a outra pertence ao acervo neoplatônico: a derivação emanativa de tudo a partir de um primeiro grau supremo de realidade.

Em seu estudo da causalidade, que constitui a fonte de toda a sua reflexão metafísica, ele reconhece as quatro causas afirmadas por Aristóteles: formal, material, eficiente e final. Porém, em Avicena, pro-duz-se uma mudança radical, provocada pela outra teoria a que recor-re. A mudança de perspectiva está suscitada pela nova valorização que outorga à causa eficiente, que adquire proeminência absoluta. Ao passo que, para Aristóteles, a causalidade se aplicava ao devenir das coisas e às transformações que sofrem os seres; para Avicena, a cau-salidade se refere ao ser mesmo, porque a causa, por sua atividade, pode produzir o ser; a causa eficiente não atua somente sobre as coi-sas que já existe, se não que é capaz de fazer com que as coicoi-sas sejam. A causa eficiente é a que dá existência à essência que não a possui; é uma atividade permanente e ininterrupta, porque a verdadei-ra causa não é aquela que parece produzir um efeito e, logo, permane-cendo o efeito, desaparece a causa, senão a que é sempre contempo-rânea e coexistente com o efeito, de maneira que, quanto mais dure a ação sobre o efeito, mais perfeito é o agente. A conseqüência disso é que o agente eterno é proeminente e anterior a todo agente temporal; é ele que faz com que as coisas sejam a partir do não-ser absoluto, em um processo ao qual os filósofos dão o nome de <<criação do nada>>.

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O exame das causas o leva à existência de uma causa primei-ra, posto que as causas não podem multiplicar-se até o infinito. A cau-sa primeira e univercau-sal de todas as coicau-sas só pode ser o Ser necessário por si, que não depende de nenhuma causa e é fonte criadora de todos os demais seres. O processo pelo qual essa Causa primeira, o Ser necessário por si, dá origem aos seres causados é o processo de ema-nação, único que pode garantir a imutabilidade do ser da Causa pri-meira, pois acompanha sempre e necessariamente a essência divina, através de um fluxo permanente e constante que emana dela. Esse processo de criação não implica, portanto, temporariedade, porque, na relação causa-efeito, não há prioridade temporal, senão ontológica somente. Assim, a existência do universo é eterna, por ser co-eterna sua existência com a do Ser necessário.

Em um sistema tal, o Ser necessário não pode ser um criador livre, senão que uma força natural que se estende necessariamente, posto que é além de sua própria natureza a que o impulsiona a criar eternamente. A essa carência de liberdade no processo emanativo, o determinismo, pretende escapar Avicena, entretanto, por seu radical empenho em distinguir ser necessário e ser possível, segue sustentan-do a liberdade de ação naquele.

O processo de emanação é fundamentalmente um ato de entendimento, porque todo ele se desenvolve por contínuos atos de contemplação. O Ser primeiro, pensando-se a si mesmo, engendra um primeiro ser, ao aplicar Avicena o princípio de que da unidade somente pode proceder um único ser. A natureza desse primeiro ser engendra-do é intelectual, por proceder de um Ser, que é intelecto, inteligente e objeto de entendimento. É o Intelecto primeiro, que é uno quanto ao seu ser, porém múltiplo quanto a seu criar: seu pensar implica dualidade ao considerar-se a si mesmo como possível em sua essência e como necessário por outro em sua existência. À imagem do ser do qual pro-cede, o Intelecto primeiro, é ativo; o efeito que em seu causar produz já não é único, senão múltiplo, posto que seu conhecimento é triplo: conhece-se a si mesmo como necessário por outro e, nessa contem-plação, engendra a alma da primeira esfera; conhece-se como possí-vel em sua essência e, nesse contemplar-se, gera o corpo da esfera primeira; e conhece o ser do qual procede e, nesse ato de

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contempla-ção, dá lugar a um Intelecto segundo.

A partir desse intelecto, repete-se o processo de contempla-ção e se originam assim as nove esferas celestes - esfera extrema, esfera das estrelas fixas, Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercú-rio e Lua - e os restantes Intelectos separados, até chegar ao décimo, o Intelecto Agente, o <<que dá as formas>>, o que se ocupa do mun-do sublunar. O munmun-do sublunar, o munmun-do da geração e da corrupção, é o âmbito dos seres compostos a partir dos quatro elementos, no que há quatro níveis de realidade: o mineral, o vegetal, o do animal irracio-nal e o do homem, último e superior a todos eles, estreitamente unido ao mundo supralunar.

5 A filosofia do homem

5.1 Natureza do homem: corpo e alma

As reflexões sobre os fenômenos da vida, as relações entre alma e corpo, as distintas classes de conhecimento, especialmente o intelectual, questões que a antiguidade se havia apresentado, apare-cem com toda a sua riqueza e com nova força e profundidade na obra de Avicena.

Conhecedor do homem como filósofo e como médico, ofe-rece uma apresentação com importantes novidades no plano filosófico – no qual, partindo da teoria hilemórfica aristotélica, afirma neoplatonicamente o caráter imaterial e espiritual da alma e sua conse-guinte imortalidade – e no plano médico –, no qual nos ilustra sobre as estruturas, funções, anatomia, doutrinas fisiológicas fundamentais e te-orias patológicas que são próprias ou que afetam em particular o cor-po humano. Foi essa uma das razões pelas quais a psicologia de Avicena teve uma grande repercussão no mundo latino medieval, carente de um conjunto doutrinal científico acerca do homem.

Avicena situa seu estudo do homem na Física. Seus tratados sobre a alma estão integrados no saber sobre as coisas naturais, uma das partes que constituem o mundo dos seres que não podem dar-se sem a matéria e sem movimento, segundo a caracterização que nos

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propunha da Física, ciência que se ocupa de todo o conhecido em sua época sobre questões físicas, sobre o mundo e o céu, sobre meteorologia, mineralogia, plantas e animais. Para seu estudo, Avicena contou com todas as vias do conhecimento abertas ao homem, desde o razoamento e a dedução até a observação e a experimentação.

Na escala dos seres que procedem do Primeiro, os materiais ocupam o limite da emanação, o extremo mais deficiente que nem se-quer possui em si a capacidade de superar sua própria imperfeição. O mundo da geração e da corrupção é tal porque é o âmbito dos seres, nos quais forma e matéria constituem uma inseparável unidade e no qual o material e corpóreo participam da dimensão formal do ser. Os distintos níveis de realidade – reinos mineral, vegetal e animal – que ocorrem nele, estão modelados pela combinação dos quatros elemen-tos. O homem, que está acima desses graus de realidade, não é senão uma mistura superior dos elementos, cuja composição logrou uma cor-reta proporção e equilíbrio que fazem necessária à presença, por atra-ção, de uma faculdade da alma do mundo. Daqui se vê que a vida do homem não será uma vida como a vegetal ou animal, senão que mani-festa o aspecto próprio do mundo superior, o intelectual, pelo qual o homem se vincula a este mundo.

O homem é um composto de corpo e alma, de matéria e forma. Que relação se dá entre os dois? Constituem uma indissolúvel unidade, de maneira que, se desaparece um dos dois, aniquila-se o outro? Perdura um sobre o outro? Predomina algum deles?

Parte Avicena da consideração da alma como elemento co-mum a todos os níveis de vida, porque é a que estabelece a diferença entre os mundos inorgânico e vivente. E, porque a alma é o primeiro elemento que se conhece, quer dizer em relação à forma, Avicena a entende não como uma realidade acidental, acrescentada a um corpo constituído organicamente, senão que é o princípio da organização do corpo e de suas funções. Deixa claro, assim, a distinção que há entre alma e corpo, pois, como afirma, a alma é independente do corpo e não necessita dele.

Porém, por muito independente que dele seja, a alma é alma de um corpo dado, porque não se une a um corpo qualquer por casu-alidade ou por arbitrariedade, senão por uma inclinação constitutiva

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com esse corpo, de maneira que ambos vêm conjuntamente ao ser. Há, assim, uma específica relação da alma ao seu próprio corpo, rela-ção pela qual esse corpo se distingue de qualquer outro corpo. A união de corpo e alma, então, é uma união necessária, que Avicena explica pela individualização da alma, recusando a transmigração ou reencar-nação das almas. E essa união é necessária para que se alcance a primeira perfeição do homem, a saber, seu ser; depois, o corpo so-mente ajuda a alma em um primeiro momento, para que ela alcance novos graus de perfeição, até que, sem necessidade do corpo, possa obter as perfeições que lhes são próprias por sua natureza.

O homem não consiste propriamente dessa necessária união de corpo e alma, senão somente em sua forma, a alma, que realiza sua própria natureza e atividade com independência e autonomia do cor-po. O ser humano é um ser em conflito consigo mesmo, porque a alma tem duas funções diferentes e, inclusive, incompatíveis. Uma consiste na relação com o corpo, em governá-lo. A outra tem a ver com a alma mesmo e com sua atividade mais elevada, intelecção. Duas funções opostas que atuam uma contra a outra, de maneira que, quando a alma está ocupada com uma não pode atender a outra. O homem, pois, um ser marcado pela tensão entre ambas, que Avicena resolve eliminando a função corpórea da alma em beneficio de sua atividade verdadeira e mais elevada, aquela pela qual o homem se define como tal: sua função intelectual.

5.2 A alma e sua faculdade

Sabemos que alma é o elemento comum em todos os níveis da vida; que, como princípio formal, a alma é o primeiro elemento conhecido. Por isso que o estudo do homem se centra no conheci-mento da alma, no que radicalmente consiste aquele.

O primeiro é determinar a existência desse princípio vital. O método inicial pelo qual se consegue a demonstração de sua existência se baseia na experiência externa que cada homem tem. É um método cujo ponto de partida está nos efeitos que produz a alma, quer dizer, no estudo de suas funções. Como essas operações não podem

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proce-der do corpo enquanto tal, devem provir do outro princípio constitutivo do homem, ao qual se dá o nome de alma. Este é o princípio que se manifesta no ser vivo pelas ações que realizar.

Porém, esse conhecimento que temos da alma é um conheci-mento mediato e indireto, visto que necessita de suas manifestações para percebê-la. Por isso, Avicena reconhece a existência de outro meio pelo qual o homem pode perceber com certeza absoluta e dire-tamente a existência da alma. Trata-se da apreensão intuitiva que cada um tem se si mesmo. É o que se chamou <<argumento do homem volante>>, que mostra a possibilidade que tem o homem em perce-ber-se em uma intuição imediata de maneira certa e evidente. A base do argumento, de origem neoplatônica e com possíveis influências so-bre Descartes, é muito simples: o homem pode supor que existe sem membros, porém não pode deixar de perceber-se como realidade; o que perdura e subsiste, prescindindo dos membros e do próprio cor-po, não é outra coisa que a alma, cuja existência se demonstra como independente do corpo.

O homem tem presença imediata de si mesmo; não se des-cobre primariamente na experiência sensível, senão independentemente dela, em sua própria interioridade. Como aristotelicamente este argu-mento carece de validade, porque o pensaargu-mento somente parte da percepção sensível e porque tal homem, ao não ter a possibilidade da sensação, não poderia conhecer nada, nem sequer a si mesmo, Avicena se orienta na perspectiva neoplatônica, segundo a qual o homem sabe de sua existência sem ter em conta seu corpo, pelo que a alma, que se conhece diretamente, mostra-se como uma substância completa em si mesma. Da unidade do homem aristotélico, como composto de corpo e alma, Avicena passa para a dualidade do homem neoplatônico, no qual sua verdadeira substância e realidade são a alma, o Eu, segundo o termo empregado por ele. Alma e eu são a mesma coisa: o princípio e o fim dos movimentos e conhecimentos do homem, o centro da unida-de unida-de todas as suas atividaunida-des, a possibilidaunida-de da unidaunida-de da experi-ência.

A alma é perfeição primeira, porque dá ao vivente sua estru-tura especifica em ato. E é perfeição primeira não de um corpo qual-quer, senão de um corpo natural orgânico, capaz de realizar os atos da

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vida. Estabelece, assim, a definição aristotélica, porém com um senti-mento novo: a alma não é somente a forma do corpo, senão substância em si mesma, porque não existe no corpo como em um sujeito, senão que subsiste por si mesma.

E a alma é, ademais, unidade, apesar da diversidade de ma-nifestações que a exteriorizam, expressas na pluralidade de atividades do ser vivo. Partindo da distinção dessas atividades, assinala, aristotelicamente, vários níveis nas ocupações do ser vivo. As próprias de todos eles constituem o nível mais baixo: nutrição, crescimento e geração. As próprias dos animais: sensação e movimento. E as que pertencem ao homem: conhecimento dos inteligíveis, invenção das ar-tes e discernimento dos valores morais. Três faculdades correspondem a essas atividades: vegetativa, sensitiva ou animal e racional.

A faculdade vegetativa é a perfeição primeira de um corpo natural organizado, porque nasce, cresce, alimenta-se e reproduz-se. Tem movimentos pelos quais conserva o corpo e reproduz-se, e tem igualmente operações pelas quais assimila a matéria do alimento e nu-tre-se. Esses movimentos são os meios de que dispõe essa faculdade para aperfeiçoar-se em seu âmbito.

A alma animal ou faculdade sensitiva possuem dois pontos de atividade: o movimento e o conhecimento do particular. Com rela-ção ao movimento, Avicena distingue a faculdade apetitiva, aquela que incita ou move por meio do concupiscível ou do irracionável, e a fa-culdade ativa, que realiza esse movimento e está nos nervos e nos músculos. Com relação ao conhecimento, assinala duas novas opera-ções: a percepção externa, orientada até a apreensão dos objetos ex-teriores através dos cinco sentidos externos, e a percepção interna, disposta para a sensação dos objetos sensíveis internos através dos sentidos interiores.

5.3 O estudo do intelecto

A alma humana ou racional, assim chamada porque o homem possui a capacidade de falar por ter razão – o termo árabe nutq signi-fica <<palavra>> e também <<razão>> –, manifesta-se através de

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duas faculdades ou operações: a prática e a teórica. A faculdade ou intelecto prático é o princípio de movimento do corpo que o leva à ação, à deliberação e à eleição. Atua em união com o corpo; dirige-se até o descobrimento das regras morais, pelas quais o homem elege o que tem que fazer e o que tem que evitar; descobre as artes práticas; ou, quando exerce sua ação com a faculdade apetitiva, aparecem as paixões, que são estados da alma pelos quais se produzem movimen-tos como a vergonha, o riso, o orgulho e outros. Pelo intelecto teórico, que corresponde à faculdade contemplativa, o homem obtém as for-mas universais. Avicena consagra ao seu estudo mais atenção porque é o que explica em sua totalidade o processo de conhecimento que se dá no homem.

A doutrina aviceniana do conhecimento, igualmente em toda sua teoria do homem, tem seu ponto de partida em Aristóteles, porém se insere em uma estrutura neoplatônica. E a chave para entender esse processo é a abstração, que se produz em todos os seus níveis.

Primeiro, no conhecimento sensível, onde a matéria do obje-to percebido é abandonada, ao passo que a forma fica impressa nos órgãos sensíveis, porém permanecendo sempre a vinculação material. No conhecimento sensível interno se realiza um novo passo abstrativo, que culmina quando a alma concebe os conceitos universais, aqueles que se aplicam a todos os membros de uma espécie. São cinco os sentidos internos que Avicena reconhece, como passo intermediário entre a sensação externa e a intelecção: o sentido comum que unifica as experiências procedentes dos sentidos externos; a representativa ou memória, faculdade que conserva a imagem do objeto percebido quando este não está presente; a imaginação, que consiste em combi-nar imagens conservadas na memória ou em separá-las uma das ou-tras, dando lugar à aparição de imagens fantásticas, importantes na atividade racional; e estimativa, pela qual se percebem os significados não sensíveis - ou intenções, como quando a ovelha foge do lobo; e a faculdade que retém e conserva esses significados percebidos pela estimativa, que é um armazém de significados particulares como a memória o é de formas individuais.

Para explicar a faculdade intelectiva, Avicena assinala a exis-tência de distintos níveis de potencialidade: a que se dá em estado

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absoluto; a relativa, que dispõe do necessário para exercer uma ativi-dade; e a que significa a perfeição da potência original, porque é a que já está em possessão de algo e pode exercê-la. Distingue assim um primeiro intelecto, que se encontra frente aos inteligíveis em um estado de potencialidade absoluta, comparável ao estado da matéria primei-ra; por isso o chama intelecto material. Depois, um segundo intelecto, que está em possessão dos primeiros inteligíveis – os primeiros princí-pios –, ao que denomina intelecto em hábito, do que se pode dizer que está em ato com relação ao material. Em terceiro lugar, o intelecto em ato, o que já está em possessão dos inteligíveis segundos, podendo pensá-los em ato quando quiser. Entretanto, comporta, todavia, uma certa potencialidade quando é comparado ao último grau, o intelecto adquirido, o que pensa os inteligíveis e é consciente de sua atividade intelectual.

Para que se realize o passo de pura potência ao ato é neces-sário um ser em ato. E esse ser em ato deve ser um intelecto. Por ele, as operações de nosso entendimento dependem do Intelecto Agente, no qual se encontram todas as formas inteligíveis em estado separado e que nos são conferidas por iluminação. Assim, a relação do Intelecto Agente com o nosso intelecto é análoga à do sol com relação a nossa visão. Considerada antes dessa iluminação, nossa alma somente pos-suiu um intelecto em potência e uma memória na qual se conservam as imagens transmitidas ao sentido comum pelos sentidos externos. Po-rém essas imagens, produzidas pelas coisas particulares sensíveis, con-servam na imaginação a marca, o carimbo da materialidade. O que o Intelecto Agente faz é desnudar as formas sensíveis da matéria e de todos os caracteres que dependam dela, para imprimi-las no intelecto possível. Isto é o que entendemos por abstração, pois a função do Intelecto Agente não é outra que a de abstração, quer dizer, em levar as imagens desde a imaginação ao intelecto, que está em potência para recebê-las, liberando-as de toda a materialidade. Essa abstração não é como a aristotélica, na qual o intelecto humano se basta a si mesmo para abstrair as formas. Avicena requer a luz do Intelecto Agente. É certo que a abstração é executada pelo intelecto humano, porém gra-ças à intervenção iluminada do Intelecto Agente, entendida como uma espécie de emanação de formas inteligíveis.

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Há que assinalar, enfim, que, ainda que todos os intelectos humanos estejam em disposição de conhecer e de aperfeiçoar-se, nem todos possuem a mesma capacidade nem o mesmo grau de aperfeiço-amento. Há homens que estão mais dotados que outros. E há alguns nos quais a ciência se imprimiu subitamente; é o caso do conhecimento profético, que se realiza por uma conjunção e unificação com o Inte-lecto Agente. Tais homens possuem o inteInte-lecto em seu grau mais ele-vado e perfeito e, por isso, pode ser chamado de intelecto santo.

As faculdades da alma, tais como as apresenta Avicena, es-tão hierarquizadas de maneira que as superiores mandam sobre as inferiores e estas estão submetidas àquelas. O grau superior de todas as faculdades é o intelecto contemplativo: tudo está subordinado à contemplação. O homem está orientado ao saber. E o conhecimento que obtém não depende do indivíduo, senão de um princípio transcen-dente: o Intelecto Agente, a cuja contemplação está destinado o ho-mem.

5.4 A cidade aviceniana

No mundo islâmico, a política teve uma radical importância pelo fato mesmo que definia o muçulmano: o homem vive em uma Comunidade fundada por Mahoma e regida por leis de origem divina. A política significou no mundo árabe não só o estudo das relações do homem com seus semelhantes na comunidade, senão, também, o estu-do estu-do comportamento estu-do homem consigo mesmo. Quer dizer, ética e política coincidiam numa mesma noção. É a partir daqui que todos os filósofos muçulmanos tiveram que se dar conta da sociedade humana e das relações entre os homens. Entenderam que essa era a tarefa da filosofia prática.

Para Avicena, a filosofia política descansa na teoria da profe-cia e da revelação, o que nos revela um profundo sentimento religioso que impregna o pensamento aviceniano. E, ademais, suas reflexões políticas se acham em sua metafísica, porque só encontram sua expli-cação no contexto da estrutura do universo – que é também a do mundo humano – baseada na necessidade da emanação. Quer dizer,

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posto que o homem, na graduação de seres que procede do Primeiro, ocupa o centro do universo sensível e, até ele, tende todo o interesse especulativo aviceniano, a Metafísica, que tem que estudar o processo de emanação terá de investigar também o <<retorno>> do homem ao seu lugar de origem, e as condições que deverão ocorrer para que o homem alcance esse retorno beatificante, a felicidade suprema.

O ponto de partida de Avicena é a afirmação de que o ho-mem é um ser social, pelo que necessita de seus semelhantes para encontrar sua suficiência. Tem que constituir associações com eles e estabelecer convenções recíprocas que regulem suas relações. Para reger essas associações e para instituir essas leis, a sociedade de ho-mens necessita de um legislador que organize a existência humana em comunidade. Esse legislador é o profeta. É o único que pode modelar a sociedade humana segundo as prescrições divinas que lhes são reve-ladas. Assim, essa sociedade há de governar-se por mandato divino, porque Deus, por sua própria natureza, cria sempre o melhor, em vir-tude do conhecimento que tem de Si, que dá lugar à providência divi-na. O profeta, então, não é mais do que a realização de uma lei geral: o homem foi criado de tal maneira que tem necessidade das leis divinas para alcançar a última felicidade.

O profeta aviceniano, entretanto, não é o filosofo-governante de al-Fârâbî, quem havia estabelecido a necessidade do profeta não tanto como profeta, senão como filósofo, que há de imitar a ordem racional do universo. A razão dessa diferença está em que Avicena não se interessou por definir as condições ideais de um modelo de governo político, senão que aceitou plenamente a sociedade humana em que vivia, procurando, em conseqüência, dar explicação dessa sociedade em seu próprio sistema de pensamento. E, ainda que a estrutura do Estado que apresenta seja platônica, ao estar dividido nas três partes clássicas, o seu Estado é constituído pelas instituições muçulmanas que conheceu.

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