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Palavras-chave: América Portuguesa; História das Ciências da Saúde; plantas medicinais; circulação de saberes.

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A SAÚDE NA AMÉRICA PORTUGUESA: ENFERMIDADES, INSTITUIÇÕES E O USO DE PLANTAS MEDICINAIS NOS PRIMEIROS SÉCULOS DE

COLONIZAÇÃO

Rodrigo Perles Dantas (Universidade Estadual de Maringá)

Resumo: Esta comunicação é um desdobramento de nossa pesquisa de mestrado,

ainda em andamento, que versa a respeito da História das Ciências da Saúde, com enfoque no uso, classificação e apropriação das plantas medicinais na América Portuguesa no primeiro século de colonização (XVI). Partiremos do pressuposto de que, ao aportar em terras americanas, os europeus se depararam com uma natureza até então desconhecida e, em larga medida, diferente do que possuíam em seu arcabouço de conhecimento, guiados pela Filosofia Natural, herdada da antiguidade. Assim, os portugueses, na busca de interpretarem a fauna e flora deste “Novo Mundo”, idealizaram estas terras como sendo um “Paraíso Terreal”. Na busca de compreendê-lo e classificá-compreendê-lo, produziram diversas narrativas, como cartas, crônicas e relatos de viagens, escritos por atores sociais diversos (religiosos, senhores de engenho, mercenários e viajantes no geral, de várias nacionalidades), que utilizamos como fonte de pesquisa. Nestas, podemos elencar diversos materiais de estudo, muitos relacionados à saúde, como os ares considerados “temperados”, fundamental na concepção de medicina da época, além das enfermidades que se abatiam sobre os povos nativos, colonos e escravos; as instituições de saúde disponíveis para tratamentos em caso de necessidade; e o amplo uso da botânica medicinal local, de conhecimento milenar ameríndio, para as mais diversas terapêuticas. Além disso, buscaremos elencar os agentes de cura do período, as concepções médicas que professavam e a circulação de informações, saberes e elementos do mundo natural propiciados pelas Grandes Navegações, como variadas espécies de plantas (curativas ou alimentares) e animais.

Palavras-chave: América Portuguesa; História das Ciências da Saúde; plantas

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Introdução/justificativa

Este trabalho refere-se a um desdobramento de nossa pesquisa de mestrado, ainda em andamento, que versa a respeito da História das Ciências da Saúde. Nesta, buscamos elencar e analisar os usos, apropriações e classificações da botânica de base medicinal presente nas fontes que descreveram a natureza da América Portuguesa no século XVI.

Devido ao encantamento inicial que estas paragens representaram na mentalidade europeia, já que entraram em contato com um meio ambiente radicalmente diverso do que possuíam, até então, em seu arcabouço de conhecimento1, a produção de relatos escritos para tentar compreendê-lo foi uma constante (SEIXAS, 2003). Dessa forma, a documentação nos permite aprofundarmos no debate acerca da vida cotidiana na colônia, sendo que esta, como não poderia ser diferente, envolve os perigos de uma vida em meio às matas fechadas, deixando os habitantes expostos à ferimentos, quedas ou mordidas de animais peçonhentos. Por vezes, outras enfermidades, infecciosas ou não, também se abatiam sobre os grupos que compunham a sociedade colonial.

Fato digno de nota é que se encontrava na natureza e sua grande diversidade toda a sorte de medicinas a serem aplicadas para resolver os problemas de saúde, geralmente baseada no uso de plantas. Por sua vez, esta flora curativa era, em muitos casos, parte do arcabouço milenar do conhecimento indígena, que, por meio do contato, acabou sendo apropriado pelos colonizadores e utilizados para atender seus interesses, constituindo-se em um fator que favoreceu a própria fixação e sobrevivência dos europeus em terras americanas (EDLER, 2006, p. 24).

As narrativas produzidas sobre este período, além de abarcarem os elementos de uso medicinal e estratégico do meio ambiente da terra brasilis, também descreve os habitantes originais, sua cultura e costumes. Longe de serem neutras, as mesmas refletiam uma visão de mundo ocidental sobre os povos ameríndios, permeadas por preconceitos, que acabou levando à exploração da terra e dos nativos.

1 Estamos nos referindo à Filosofia Natural, nascida com os gregos na Antiguidade com a intenção de analisar os fenômenos naturais a partir de bases racionais, afastando-se das explicações religiosas e mitológicas. No século XVI, a interpretação da natureza ainda se dá sob estes moldes, mas, claro, ressignificado e que será retificado com as “novas” descobertas (GRANT, 2009, p. 10 e 19).

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Porém, podemos encontrar nestas cartas, crônicas e relatos, aspectos diversos das artes e saberes de cura utilizados na América Portuguesa nos primeiros séculos, além dos agentes terapêuticos do período, tendo como grande destaque os membros da Companhia de Jesus. Estes atuavam nas aldeias ou então em enfermarias por eles construídas, dentro de um ideal de trabalho “caritativo”, funcionando como médicos de almas e de corpos (SOUZA, 2018, p. 183 e 200). Com isso, buscamos demonstrar que, para além do já conhecido e bem estudado, trabalho de catequização e educação, os inacianos também tiveram forte atuação médica nos tempos da colônia, até serem expulsos em 1759 (LEITE, 2011, p. 3).

Objetivos

Com este trabalho, temos por intenção realizar um panorama da saúde na América Portuguesa dos primeiros séculos. Dessa forma, abordaremos as doenças e perigos que rondavam a população colonial e a maneira como se tratavam, fazendo o uso de elementos da natureza, em especial as plantas medicinais. Porém, devido a concepção da medicina oficial de então, que, por mais que nunca tenha alcançado total legitimidade entre os grupos populares, ainda assim exerceu grande influência, sendo ressignificada pela população como um todo, prezava, além disso, pela utilização de substâncias de origem animal e mineral. (GURGEL, 2009, p. 98 e 172). Por fim, elencaremos algumas das instituições de saúde do período, indicando as estruturas que estavam disponíveis aos habitantes da colônia para recorrerem em caso de necessidade de atendimento médico, além da ampla circulação de plantas entre o Império Português. Este, por sua vez, conformou-se em uma ampla rede que, longe de ser estática, comunicavam-se internamente, trocando informações e elementos da natureza de seus mais longínquos rincões (KURY, 2013, p. 250).

Estes aspectos todos podem ser encontrados nas fontes produzidas no período pelos mais diversos agentes coloniais, de origens sociais e reinos vários que por aqui passaram e deixaram algo escrito sobre este meio ambiente. Por ser eminentemente diferente do que se conhecia até então, a chegada dos europeus à América provocou uma verdadeira alteração de paradigmas na Filosofia Natural, contribuindo sobremaneira para a denominada “Cultura do Renascimento” e os avanços conhecidos pela “Revolução Científica” da era moderna (FARA, 2014, p. 122).

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Resultados

A fim de abordar as plantas medicinais nos primeiros séculos de colonização da América Portuguesa, seus usos e classificações, utilizamos como fonte a documentação legada do período por diversos atores sociais que passaram pelo continente e deixaram algo escrito. Estas constituem-se em cartas, crônicas e relatos de viagem e viajantes no geral.

Ainda que produzidas por autores de diversos reinos e origens sociais, podemos encontrar nas mesmas alguns padrões que nos auxiliam a compreendê-los melhor, dando base para a crítica historiográfica mais profunda. Um destes elementos que identificamos é um certo “deslumbramento” com a natureza da terra brasilis, presente em todos os documentos.

Partimos do pressuposto de que, ao aportarem na América, o meio ambiente observado pelos habitantes do denominado “Velho Mundo” era radicalmente diferente do que possuíam até então em seu arcabouço de conhecimento. Este, por sua vez, era guiado pela Filosofia Natural, herdada da Antiguidade Greco-Romana e sobrevalorizada pela cultura do Renascimento, em expansão no século XVI. Estas “novas” descobertas, serão responsáveis por uma grande alteração dos paradigmas de interpretação do mundo natural até então existente no Ocidente, gerando algumas críticas aos antigos e ao conhecimento sistematizado pela Igreja na Idade Média2 (BRACHT, 2013, p. 10-11).

Por conta disso, os colonizadores que por aqui passaram, produziram muitos relatos acerca da terra e de seus habitantes, já que havia a necessidade de conhecer a região. Essa sede de conhecimento se devia à necessidade de encontrar caminhos para melhor explorar esta localidade, a fim de atender os interesses comerciais metropolitanos, visando encontrar algum produto de valor no mercado europeu (GÂNDAVO, 2008, p. 153). Mais do que isso, ter estas informações também era

2 Por mais que os renascentistas tendessem a ver a Idade Média com maus olhos e se consideravam herdeiros e continuadores do progresso do conhecimento iniciado na Antiguidade, não pouparam críticas aos seus antecessores, fruto de um conhecimento baseado na experiência como no caso da Zona Tórrida, considerada inabitável pelos filósofos antigos, mas que foi desconstruído com as Grandes Navegações e a chegada dos europeus aos trópicos. O monge franciscano André Thevet é um dos que vai realizar esta observação e retificar o pretenso saber antigo acera desse tema (THEVET, 1978, p. 71).

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fundamental como uso estratégico em meio às matas, já que, por sua grande diversidade, apresentava elementos potencialmente venenosos ou prejudiciais à saúde, sendo necessários identificá-los e separá-los daqueles com virtudes alimentares ou medicinais. Em grande parte dos casos, a produção destes dados foi encarada como fundamental pela coroa lusa, que a manteve arquivada por algum tempo, já que havia o medo de que poderia cair nas mãos de estrangeiros, como os franceses, que já estavam causando “incômodo” na costa brasileira (GESTEIRA, 2013, p. 42).

É imperativo ressaltarmos também que estas narrativas, longe serem neutras, produziram certos simbolismos na mentalidade ocidental que, encravados na psicologia coletiva, contribuíram para a conversão e exploração dos povos indígenas e do solo brasílico. Na carta de Pero Vaz de Caminha (1963, p. 8), já podemos identificar o interesse dos navegantes em fazer o uso da terra a seu favor, como um indicativo de possibilidade de cultivo de produtos tropicais, já experimentados nas ilhas Atlânticas pertencentes à Portugal (ALGRANTI, 2013, p. 148).

Na obra escrita pelo monge franciscano André Thevet (1978, p. 147) também fica claro esta perspectiva por parte dos franceses ao partilhar de uma concepção bíblica de que “Todos os elementos, e tudo mais que existe entre a Lua e o centro da Terra, parecem ter sido feitas (como aliás o foram) para o homem”, sendo que, dessa forma, não existiria problema em explorar o que se encontrasse, já que o Criador fez tudo o que existe para ser utilizado pela humanidade. Ou então, ao queixar-se dos acordos entre espanhóis e portugueses, materializados no Tratado de Tordesilhas, argumentando ser uma injustiça que o mundo feito para os filhos de Deus seja dividido apenas entre os reinos ibéricos. Com isso, ele está querendo dizer que os lusitanos não eram os únicos que podiam explorar, mas os franceses também, demonstrando profundo desrespeito pelas etnias ameríndias e os territórios que estes grupos usavam para retirar sua subsistência. Ou seja, podemos encontrar aqui, a ideologia de dominação e exploração das terras americanas a fim de atender aos interesses colonizatórios europeus3 (THEVET, 1978, p. 211-214).

3 Porém, para além da relação de dominação, torna-se imperativo destacar a ideia de resistência dos povos indígenas e suas práticas, inclusive na questão das práticas curativas, assunto muito bem explorado por Juciene Ricarte Apolinário, ao falar do “índio colonial” (APOLINÁRIO, 2013, p. 186 e 202).

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Analisada a tipologia destas fontes, resta-nos identificar nesta documentação, a descrição das plantas de virtudes medicinais e como foram compreendidas, classificadas e utilizadas no período colonial. Como nos demonstra Maria Lucília Barbosa Seixas (2003, p. 177), uma natureza que foi idealizada como “maravilhosa”, regrada de “bons ares” e fertilíssima, somente poderia fornecer elementos igualmente maravilhosos. Isso tudo, somado à Teoria das Assinaturas e ao Princípio das Similitudes (EDLER, 2013, p. 100 e 118; FOUCAULT, 2000, p. 23-35), levou cada vez mais os exploradores a reconhecer e discorrer sobre a fauna e flora da Mata Atlântica, Cerrado e Amazônia do atual território brasileiro, dentre outros biomas.

Por meio das Similitudes, que compreendia o cosmos como um todo organizado, um universo holístico, portanto, tudo tinha sua razão de ser. Assim, de forma natural havia as doenças, mas esta mesma natureza era responsável por propiciar a cura, presente, especialmente, na botânica. A descoberta das potencialidades terapêuticas dos vegetais, se dava por meio de “inscrições” ou “símbolos” neles presentes, que funcionavam como “marcas” dispostas pelo Criador. Desta forma, o estudo seria também uma maneira de agradar à Deus, sendo típico da Cultura do Renascimento essa ideia de que para se chegar ao divino, mais do que o estudo do Livro Sagrado, seria importante, também, examinar o Livro da Natureza (FOUCAULT, 2000, p. 23-45 e 185).

Entender que os colonizadores se guiavam por estes paradigmas, ajuda-nos a compreender os relatos que produziram. Nestes, podemos identificar diversos grupos de plantas que mais chamaram a atenção dos mesmos, destacando-se as com propriedades medicinais, das quais, em nossa pesquisa, selecionamos três para uma análise mais aprofundada: os cicatrizantes, purgantes e venenos/contravenenos.

Os primeiros, de grande auxílio na epitelização, estão presentes sobremaneira na documentação dos primeiros séculos de formação da América Portuguesa. Acreditamos que isso se deveu, em grande medida, por conta do próprio estilo de vida levado por estas populações neste período. Assim, torna-se necessário mergulhar no contexto estudado para imaginar possíveis situações de perigos vivendo em meio às matas fechadas.

Quedas, espinhos, cortes com ferramentas e mordidas de animais rondavam o cotidiano dos mais diversos agentes coloniais, sejam europeus e seus descendentes

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ou então indígenas e africanos. Portanto, a depender da gravidade do ferimento, pode advir complicações extras. Fato interessante é que, as pesquisas científicas mais recentes, demonstram a eficácia de alguns destes cicatrizantes para além do processo de epitelização em si, funcionando, também, como importantes antissépticos e anti-inflamatórios, evitando a colonização do machucado exposto por algum micro-organismo, agravando o quadro clínico, podendo, em alguns casos, levar à óbito (MONTES et al, 2009, p. 63-64).

Este conhecimento, em grande medida, foi percebido de maneira empírica e, derivado de um conhecimento da natureza dos povos indígenas, o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa escreveu sobre o óleo de copaíba (Copaifera spp.): “Este óleo tem muito bom cheiro, e é excelente para curar feridas frescas [...] com o qual se cria a carne até encourar, e não deixa criar nenhuma corrupção nem matéria” (SOUSA, 1971, p. 202-203). Assim, estes vegetais com virtudes cicatrizantes tornaram-se elementos fundamentais para compreendermos o próprio processo colonizatório.

Já no caso do segundo grupo, dos purgantes, guiados pela concepção de medicina da época, de base hipocrático-galênica4, os exploradores irão buscar na natureza alguns substitutos dos produtos europeus com os mesmos efeitos de purga. Ao chegar em terras desconhecidas, uma das primeiras ações dos seres humanos é buscar referências com o já conhecido anteriormente ou então encontrar elementos que possam “fazer a vez” daqueles aos quais estão acostumados em sua terra natal (SANTOS; CONCEIÇÃO; BRACHT, 2013, p. 345-348). Além do uso para resolver constirpações intestinais e possíveis verminoses, plantas com estas propriedades serviam para reequilibrar os humores corporais, eliminando aqueles que estivessem “corruptos” ou em excesso, responsáveis por provocarem o adoecimento (REBOLLO, 2006, p. 62; GURGEL, 2009, p. 78-79).

Por conta disso, uma das plantas que mais chamaram a atenção dos colonizadores foi a ipecacuanha (Psychotria ipecacuanha), com funções eméticas e

4 Concepção de medicina vigente, nascida na Grécia Antiga e sobrevivente no Império Bizantino e entre os árabes, “retornando” ao Ocidente no contexto de expansão comercial e maior contato cultural entre estes povos, na Idade Média. Basicamente, compreendia o corpo humano como sendo formado por quatro humores (fluídos): sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, sendo que a saúde dependia do perfeito equilíbrio entre estes componentes (REBOLLO, 2006).

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purgativas. Assim, o missionário jesuíta português Fernão Cardim a descreve: “Esta erva é proveitosa para as câmaras de sangue [...] essa raiz moída, botada em uma pouca d’água, se põe a serenar uma noite toda [...] e coada se bebe somente a água, e logo faz purgar de maneira que cessam as câmaras de todo” (CARDIM, 2015, p. 21).

Já no caso dos venenos e contravenenos, mais uma vez a vida em meio às matas fechadas e a necessidade de adaptar-se em ambiente diferente, por vezes “hostil”, era fundamental separar aquilo que poderia ser utilizado para a nutrição do que era perigoso para consumo humano. Este saber sobre a natureza americana e suas propriedades, estava entranhado na cultura indígena, passada de geração em geração, que acabou sendo apropriado pelos colonizadores (EDLER, 2013, p. 104).

Assim, puderam identificar e separar plantas alimentares daquelas que deveriam ser evitadas. Os próprios grupos nativos, guardiães deste conhecimento, possuíam técnicas para tornar próprio para o consumo certas plantas venenosas, como no caso da mandioca-brava que, precisava ser processada antes de ingerida (SOUSA, 1971, p. 175).

Porém, de qualquer forma, todos estavam expostos aos envenenamentos, seja no caso da botânica local, seja por mordida de animais peçonhentos, como cobras ou aranhas, também relatadas pelos cronistas da época. Dessa forma, era preciso conhecer e extrair os antídotos, que eram produzidos a partir do que o próprio ambiente fornecia5. Um deles, era tirado da erva denominada caapiá (Dorstenia brasiliensis), um dos compostos da famosa Triaga Brasílica6 (LEITE, 2013, p. 76).

O uso destes compostos medicamentosos, se dava de forma e em locais variados, a depender da situação. Além das estruturas físicas de trabalho dos boticários7, havia as caixas de boticas, que podemos considerar como uma “farmácia portátil”, considerada equipamento indispensável em qualquer ação exploratória para os “sertões”, independente do objetivo da mesma. Além disso, estavam presentes

5 Para além das plantas em si, outros elementos da natureza, dos reinos vegetal e mineral também eram utilizados, como a pedra de bezoar. Aqui entra a importância do estudo da mentalidade da época e da cura por meio de simpatias/antipatias (EDLER, 2006, p. 47).

6 Um composto medicamentoso criado pelos jesuítas na colônia. Envolvia elementos minerais, vegetais e animais, servindo como uma panaceia para diversas doenças (LEITE, 2013, p. 65 e 76)

7 Proprietários das boticas, como “farmácias” da época. Eram locais de produção das “mezinhas”, os medicamentos compostos.

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também nos engenhos e nas câmaras municipais das cidades, abrigando em seu interior um grande conjunto de plantas medicinais e mezinhas a serem utilizadas em caso de emergência. Era comum, também, que as pessoas cultivassem os elementos da flora terapêutica em suas propriedades (EDLER, 2006, p. 52).

Um outro ambiente que se apropriou desta botânica local para uso nos enfermos foram as instituições de saúde do período colonial. Devido à concepção de medicina da época e antes da formação do conceito moderno de Saúde Pública, as pessoas que possuíam condições, tratavam-se em casa, geralmente com um médico da família ou curandeiros8, que formaram parte importante dos agentes de cura no período colonial (GURGEL, 2009, p. 163-164 e 171-172).

Desta forma, o conceito de hospital que “migra” para a América Portuguesa possui raízes na Idade Média, funcionando, estas estruturas, mais como ambientes caritativos do que de saúde em si. Tanto as Santas Casas de Misericórdia quanto as enfermarias jesuíticas, desempenharam importante papel nesse sentido. As primeiras, administradas pela confraria de mesmo nome mantinha-se com doações reais ou de particulares (senhores de engenho e grandes comerciantes). Já no segundo caso, ao lado dos colégios, os membros da Companhia de Jesus construíam estas estruturas para abrigar os membros da própria ordem, marinheiros sem recursos ou então pessoas em situação de vulnerabilidade que, como último recurso, tinha estes espaços para alimentar-se e sobreviver até a melhorar da doença ou falecer. Porém, os dois modelos de hospitais possuíam amplos contingentes de religiosos para ajudar a manter o ambiente limpo e assistir os enfermos, dentro de um espírito religioso que prezava pela caridade e por “servir aos pobres” (RESENDE; SILVEIRA, 2006; ROSEN, 1994; SOUZA, 2018, p. 182-200).

Além dos acima já citados agentes de cura, os próprios inacianos, portanto, atuaram sobremaneira nas artes médicas da colônia. Devido à própria conformação

8 A medicina de então caracterizava-se pelos agentes oficiais de cura (físicos, cirurgiões, barbeiros e boticários), ou então pelos “práticos”, que aprendiam o ofício por meio da experiência, como os curandeiros. A medicina oficial, especialmente a dos físicos estudados na Europa, nunca conseguiu total legitimação na colônia, seja por existirem em pequena quantidade, por ser uma população de maioria iletrada e sem acesso à educação formal ou então pela falta de identidade entre estes e o povo. Os “práticos”, por outro lado, provenientes do mesmo estrato social da maioria e conhecedores das plantas locais, formaram parte importante dos agentes terapêuticos até fins do século XIX (VIOTTI, 2012, p. 10-13).

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da sociedade colonial, o número de físicos formados na Europa eram poucos e concentrados nas grandes cidades. Devido a este panorama, e a própria falta de legitimidade destes perante ao povo em geral, os jesuítas passarão a atuar como agentes terapêuticos (LEITE, 2011, p. 22-25; VIOTTI, 2012, p. 10-13).

Seu principal espaço de atuação se deu nas aldeias, devido à necessidade de controlar as moléstias epidêmicas que se abatiam sobre os povos indígenas, trazidas de fora pelos próprios europeus e de desbancar a autoridade dos pajés, que se conformavam como “agentes de saúde9” destes grupos. Dessa forma, por estarem em constante contato com as diversas etnias ameríndias, conhecedores da natureza local e das propriedades curativas das plantas, os missionários foram os principais a se apropriarem e divulgarem as virtudes desta botânica local (GURGEL, 2009, p. 113-114).

Além disso, por se conformarem em uma ampla rede, disposta em grande parte do mundo até então contatado pelas Grandes Navegações, permitiu que os inacianos trocassem grande volume de informações. Nestas, podemos perceber a preocupação com enfermidades locais e a necessidade de encontrar tratamento e cura para as mesmas, levando à expansão do conhecimento sobre os elementos medicinais de várias localidades e a troca de espécies entre os continentes (GESTEIRA, 2013, p. 32 e 46).

Assim, atestada a eficácia de muitas plantas do meio ambiente americano, estes passaram a circular pelo globo, levada por jesuítas e comerciantes. O óleo de copaíba, o caju e o abacaxi, também entendidos no período como medicinais, já poderiam ser encontrados em diversos pontos da Europa, Ásia e África a partir de meados do século XVI. Da mesma forma, elementos botânicos de outas localidades passaram a ser cultivados na América (GESTEIRA, 2013). Dessa forma, buscamos demonstrar que, para além de economias, burocratas, militares e comerciantes, plantas alimentares e medicinais também viajaram, moldando ambientes, costumes e culturas, com claros reflexos até os dias de hoje.

9 Várias eram as etnias indígenas presentes na América Portuguesa. Dessa forma, o papel dos pajés também era diverso e possuía diferenciações no interior de cada grupo. Porém, na maior parte deles, uma de suas funções era manter contato com o domínio do sagrado visando a cura de enfermidades (EDLER, 2006, p. 24-25).

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Considerações finais

Com esta comunicação, buscamos realizar um panorama da medicina nos primeiros séculos de colonização da América Portuguesa (XVI e XVII), com enfoque na descrição da natureza local pelos mais diversos agentes coloniais que por aqui passaram e deixaram seus relatos. Dentro destas narrativas, podemos perceber grande interesse pela botânica terapêutica, já que esta era considerada estratégica para a própria sobrevivência do colonizador, devido às enfermidades e perigos que podiam os acometer.

Por sua vez, este saber era parte de um arcabouço milenar de conhecimento dos povos indígenas, passados de geração em geração, que, no contato, acabou sendo apropriado e ressignificado pelos europeus a fim de servir aos seus interesses. Um deles era comercial, o que favoreceu a dispersão destes gêneros pelo globo, sendo muitos deles, a exemplo da Copaíba (Copaifera spp.), Ipecacuanha (Psychotria ipecacuanha) e quina (Chinchona officinalis) até hoje utilizados pela indústria farmacêutica sem ser dado o devido crédito.

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Referências

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