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As vozes da periferia: Carolina e o seu quarto de despejo

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Academic year: 2021

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AS VOZES DA PERIFERIA: CAROLINA E O SEU QUARTO DE DESPEJO

Dissertação submetida à defesa para obtenção do título de Mestra em Literatura, área de concentração Literaturas, pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.

Linha de Pesquisa: Subjetividade, Memória e História.

Orientadora: Susan Aparecida de Oliveira

Florianópolis 2018

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DEDICATÓRIA Este trabalho é dedicado aos meus filhos e filha, ao meu esposo, aos meus queridos e amados pais e a todas as vozes negras e periféricas que se sentem intimidadas pelo sistema.

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Em primeiro lugar, a Deus, pela força e coragem durante toda esta longa e árdua caminhada;

Aos que me possibilitaram trocas de experiências durante a pesquisa;

Aos fiéis amigos que sempre me ouviram com minhas dúvidas e certezas;

Em especial à Camila Ambrosini, à Franciele Guarienti, que me ajudaram em momentos de insegurança, amigas que foram meus encorajamentos diante do novo e do inesperado;

Ao colega e militante Anderson, que com seu olhar crítico foi aquele que questionou alguns pontos ambíguos e desnecessários na pesquisa;

Mais que especial aos meus filhos, à minha filha e ao meu esposo por compreenderem minha ausência, meu nervosismo e serem afetos completos e necessários para que eu prosseguisse a trajetória;

Em específico aos meus pais pelo exemplo, apoio incondicional e incentivo, sem os quais não seria possível chegar até aqui;

À professora Susan pela orientação, pela paciência e por me possibilitar ocupar um espaço dentro da Universidade a fim de realizar um grande sonho, o de tornar essa pesquisa possível;

Aos professores da pós-graduação pelo direcionamento à pesquisa e pelo carinho em me receber em suas aulas para juntos aprendermos mais;

A todos os professores do curso, tão importantes em minha vida acadêmica;

Em especial à Professora Drª Tânia Ramos, responsável pela apresentação mais informal da obra aqui pesquisada quando, em sala de aula, ainda durante a época da graduação, ela tão sabiamente nos apresentou o Quarto de despejo de Carolina.

E, finalmente, um agradecimento mais que especial à Carolina de Jesus, pois foi por meio dessa voz dissonante em territórios de resistências que resgatei minha ancestralidade e tornei-me quem hoje eu sou, afinal, depois do contato nunca somos o que éramos outrora.

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A voz da minha bisavó

Ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela.

A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e

fome.

A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si

as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha Se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade.

Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo (1990)

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Propõe-se, nesta pesquisa, discutir o processo de resistência pelo qual passou a escritora Carolina Maria de Jesus, retratado em sua obra autobiográfica, Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960). Faz parte também, como apoio para a análise, sua obra Diário de Bitita (1985), publicada post mortem. Na intenção de ressignificar as vozes diversas que adentram a Literatura, em especial a Literatura Negra e Periférica, trago as experiências da autora dentro do contexto da favela do Canindé, nos idos dos anos 1950. Uma escrita que traz a marca de todos os resultados da exclusão a ela imposta, que dentro de uma sociedade classista, racista e sexista não teriam espaço. Utiliza-se, como base de compreensão, o conceito de Desvios Determinantes, do intelectual decolonial Édouard Glissant, cujo objetivo, em seu livro Poética da Relação (2011), é apresentar uma análise do indivíduo que não se encaixa nas normas pré-determinadas da sociedade, com todas as possíveis violências decorrentes dessas re(l)ações. Por isso, trata-se aqui da obra de Carolina como alimento e combustível essenciais para uma Literatura que, dentre outros conceitos, é Marginal, tal como foi cunhada por Ferréz. Visando discutir a relevância da produção literária direcionada às vozes periféricas, trago à discussão o conceito de Parresía, de Foucault. Outra importante contribuição é o pensamento que Franz Fanon constrói para compreender a experiência vivida do negro em um processo da construção da identidade do indivíduo negro. Nessa acepção, o lugar de fala de Carolina, bem como sua condição de negra, favelada e analfabeta, a coloca na base da pirâmide dos possíveis níveis de subalternidade, de uma sociedade que triplamente a exclui, para tanto o conceito da intelectual indiana Gayatri Spivak, autora de Pode o Subalterno Falar? (2010), traz à tona uma discussão acerca do silenciamento do subalterno.

PALAVRAS-CHAVE: Carolina Maria de Jesus. Desvios. Literatura Negra e Periférica. Subalternidade. Violência.

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The proposition in this research is to discuss the process of resistance through which the writer Carolina Maria de Jesus has been pictured in her autobiographic book, Child of the dark: the diary of Carolina Maria de Jesus (1960). As a support for this analysis, her post mortem book Bitita`s diary (1985), also takes part in this work. Arming at resignifying the diverse voices that enter Literature, specially Black and Peripheral Literature, I bring the author‟s experience in the context of the Canindé slum, in the 1950s. Her writing shows the marks of the exclusion imposed on her, within a society based o classism, racism and. One of the basis of this research is Édouard Glissant`s concept of Decisive Deviations, whose objective, in his book Poetics of Relation (2011), is to present the analysis of an individual that does not fit in society‟s pre-decisive norms, including all the possible violence stemming from these relations. In the current study Carolina`s work is treated as essential sustenance and fuel for a Literature that, among other concepts, is Marginal, as it was produced by Ferréz. Aiming to discuss the relevance of peripheral voices in literary production, I also bring Foucault`s concept of Parrhesia. Another important contribution is the thinking that Franz Fanon builds to understand the experience of black people in a process of identity construction of the black individual. In this sense, the place of Carolina`s speech, as her black, slum inhabitant and illitered condition, puts her in the pyramid basis of the possible levels of subalternity in a society that excludes her thrice; to elucidate the discussion on the silencing of the subaltern, the study applier thought of Indian intellectual Gayatri Spivak, author of Can the subaltern speak? (2010).

KEY-WORDS: Carolina Maria de Jesus. Deviations. Black and Peripheral Literature. Subalternity. Violence.

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INTRODUÇÃO ………...……….… 17

1. QUANTO MAIS RETINTO O MENINO, MAIS FÁCIL DE SER EXTINTO...24

1.1 A história do negro no país.…....………...24

1.2 O Quarto de Carolina: a análise da obra...35

2. “A BOCA SÓ PROFERE O QUE O CORAÇÃO SENTE FAMILIARIZADO COM O LATIM AFROFAVELIZADO”…....57

2.1 Carolina de Jesus e a Literatura negra e periférica: a exclusão e a fome como alimento para a escrita………...……….…….57

2.2 Direito de dizer (ou não) a verdade: a Parresía e a Opacidade na Literatura Periférica………...…….………68

3. RASTROS DE SI: A ESCRITA E A RECEPÇÃO DA OBRA NOS DIÁRIOS DE CAROLINA …………..………..77

3.1. A subalterna que fala …….……….……….77

3.2 Rastros resíduos: Bricolagem e a Poética de Resíduos em Carolina...85 CONSIDERAÇÕES FINAIS………...…...….102 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...106 BIBLIOGRAFIA GERAL...106 BIBLIOGRAFIA UTILIZADA...107 ANEXO ...……….112

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INTRODUÇÃO

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. [...] A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta [...] (EVARISTO, C.)1 Abro esta Dissertação com um poema de Conceição Evaristo que trago aqui na intenção de ressignificar as muitas vozes-mulheres, em especial as das mulheres negras, que no tempo e no espaço estiveram, e ainda continuam, dentro dos lugares subalternizados e, na maioria das vezes, ainda silenciadas.

Meu objetivo a partir deste trabalho não é dar voz a nenhum discurso, ou seja, não pretendo tomar a fala do outro e sim propor uma reflexão por meio daquilo que me move – a partir desta pesquisa– que é “atar as duas pontas da vida2”, a minha e a de muitas outras com passados semelhantes. Diferentemente daquele outro narrador, o qual pretendia, com sua narrativa, unir seu passado e o seu futuro; com este poema, Vozes-mulheres, procuro unir a minha e outras ancestralidades afro-brasileiras.

Da mesma forma que trago comigo a herança de uma voz que ecoou nos porões dos navios ao cruzar o Oceano Atlântico, da voz que habitou e ecoou das senzalas, também trago outras formas de gritos presos, silenciados e, algumas vezes, ainda ouço o eco dessas vozes presas e que ainda resistem. Seja na voz de minha bisavó que resistiu a um tempo pós-abolição e, para sobreviver, prestou serviços em casas de “família”, ou ainda, na voz de minha avó, que de empregada da “casa” tornou-se exclusiva do marido, também ouço o eco da voz de minha mãe, a qual, contraditoriamente às outras, resistiu a esse sistema, mas nunca deixou de ser a “mulher de cor” que chegou para escurecer a família branca.

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Conceição Evaristo. Vozes-mulheres in: Cadernos Negros, vol. 13, São Paulo, 1990.

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Esse e tantos outros relatos sobre as vozes negras deste país trazem consigo muitas semelhanças e, ainda assim, não minimizaram as diferenças. Dessa forma, é que Carolina entra em minha vida e nesta pesquisa, há na leitura de seu texto inaugural, Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), um reconhecimento das muitas opressões sofridas por minha família, mas também pela grande maioria que vive no país e que carregam consigo um passado que resistiu às senzalas.

Poderia ser Celina, Zélia, Marlene3, mas foi Carolina de Jesus que ao relatar suas experiências, por meio de seu diário, tornou-se celebridade por um período, todavia àquela que o sistema fez questão de apresentar à sociedade, de outro modo, também tentou silenciá-la novamente. Igualmente como aconteceu com a escritora Conceição Evaristo, ainda ouviremos muitos ecos das vozes-mulheres, as quais, assim como Carolina, outras vozes negras resistem e, de alguma forma, ousam gritar aquilo que atravessa o tempo sinalizando os indivíduos que trazem a marca do preconceito estampadas na pele.

Tão importante como reconhecer o valor de Carolina de Jesus - uma escritora saída de dentro da favela, um espaço nada propício à criação –, é a partir da sua obra possibilitar a legitimação das muitas vozes advindas de um passado negro e, redundantemente, de pobreza. Esta Dissertação não é a primeira intenção que nasce de dentro da academia na tentativa de propor um reconhecimento dessas vozes, no entanto, essa reiteração de alguma forma prima pela proposta do não retorno ao silenciamento daqueles que por muito tempo estiveram nessa condição. Por esse motivo é que a partir desta pesquisa busco analisar a obra Quarto de despejo (1960), como também fazer paralelos com algumas vozes negras semelhantes ao processo criativo de Carolina – a mãe favelada e negra de João José4, José Carlos5 e Vera Eunice.

Por se tratar de um relato em forma de diário, é que escolho a obra inaugural de Carolina de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), a fim de tecer essa árdua trama que se entrelaça nesse ir

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Trago aqui os nomes de minha Bisavó, avó e mãe, respectivamente, a fim de nomear as personagens reais da minha narrativa particular.

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Segundo sua filha mais nova, seu irmão João viveu por muito tempo com eles, “mas morreu logo depois de minha mãe, com vinte e poucos anos” (LIMA, Vera Eunice de Jesus apud LENINE e MEIHY, 2015, p.78)

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Morreu atropelado no ano de 2016 após atravessar uma avenida sob os efeito do álcool, estava embriagado. Informação de Tom Farias, disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/favela-e-periferia-estavam-dentro-de-carolina-maria-de-jesus-diz-pesquisador/ Acesso em 9-9-2017.

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e vir de fios das periferias para as “salas de visitas” da sociedade, nas palavras da escritora: “Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2012, p.32)6

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Desse modo irei problematizar e conceituar a Literatura Negra, bem como a periférica por se tratar de tipos de Literaturas nem sempre reconhecidas como leitura para todos, ou seja àquela de interesse de um amplo público de leitores, mas somente daqueles em que haja uma identificação. Segundo o sociólogo e crítico literário Antonio Candido, a Literatura deve ser concebida como um direito básico do ser humano:

A Literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da Literatura é mutilar a nossa humanidade (CANDIDO, 2011, p.188)7. Entre outros direitos que o indivíduo tem, o acesso à Literatura deve ser aquele que, conjuntamente a outros, os coloca na condição inversa àquela que desumaniza o sujeito. Não apenas o ato de ler está nesse direito, como também o direito a contar cada qual a sua história. Assim como a trajetória da vida de Carolina não poderia ter sido escrita por outra pessoa, permitir a ela ser autora da sua narrativa, em que também é personagem, deu à escritora uma condição inaugural de uma escrita periférica nos idos dos anos 1960, mas também possibilitou com que outras vozes saíssem do anonimato. A coragem de Carolina inspira outras vozes, e hoje, ainda ouvimos os ecos da sua voz na de outras que resistem ao sistema que teima em colocar o sujeito negro e favelado nos quartos de despejos8 das cidades.

Dentre os muitos pretextos que escolho para ponderar os porquês do objeto destes estudos, a que mais me marcou, durante a leitura de

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Os desvios gramaticais e de convenção escrita da escritora serão preservados a fim de não interferir na autoria de Carolina. O objetivo desta Dissertação não é fazer uma análise linguística, mas sim preservar e atribuir sentido a partir dessa voz, na sua forma original, ao menos, a partir da publicação da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada.

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Disponível em:

<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/296648/mod_resource/content/1/Can dido%20O%20Direito%20%C3%A0%20Literatura.pdf>. Acesso em: 7-9-2017.

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Quarto de despejo (JESUS, 1960), foi perceber que a fome – combustível principal para a escrita da autora e que a motivava –, esteve presente em praticamente todas as páginas do seu diário. Assim, a ausência de alimento era o que, paradoxalmente, alimentava as linhas daqueles muitos cadernos escritos, das suas também, escrevivências9.

Da mesma forma como minha vida, em alguma medida, é marcada pelas vozes de mulheres triplamente subalternas (mulheres, negras e pobres), mais da metade da população brasileira tem histórias semelhantes às de Carolina. Se atarmos a ponta do fio que nos une à nossa ancestralidade negra, teremos muitas outras vozes marcadas pela dor, algumas das quais marcadas pelos chicotes no dorso durante o período de escravidão no país, em outras, estarão as marcas do racismo que continuam deixando cicatrizes na alma dos negros, especialmente das mulheres negras.

Desse modo, demora-se muito tempo para perceber que aquilo que nos move são as histórias, as memórias de mulheres outras que se doam e se doem pela vida em busca daquilo que as alimente. Ou seja, nas muitas formas que a palavra faculta, de igual forma, o alimento pode ser a subsistência da refeição, no conhecimento, no amor ou na ausência dele. É importante atentarmos para um detalhe entre muitos na vida e na obra da escritora, perceber que a fome da autora de Quarto de despejo (1960) não era apenas ausência: de sabor e de saber; sua fome também foi marcada pelos excessos, da exclusão e da marginalidade a que foi submetida durante toda a sua vida.

Para tanto, proponho, nesta Dissertação, discutir o meio e condição de produção da obra O quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), as funções sociais da sua escrita, bem como a análise do sujeito que compreende a Literatura Negra e a Periférica. Nesse emaranhado de fios que construirá o percurso da minha escrita, iniciarei a pesquisa com uma contextualização histórica sobre a escravidão no país, as revoltas, os Quilombos e os processos que nos levaram à abolição. Período em que se pretendia libertar os negros escravizados dos grilhões que os prendiam naquele sistema que marcou a história dos cativos, bem como dos seus descendentes. Essa contextualização se faz necessária para incluir a história de Carolina, abarcar a origem da sua exclusão como um processo marcado pela história do Brasil, que insiste ser reconhecido pelo conceito de democracia racial.

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Termo cunhado por Conceição Evaristo para justificar sua escrita com base em suas vivências, como também, a partir de relatos outros sobre vidas de mulheres que lutam contra o racismo dentro e fora de seus territórios.

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A ave no seu passado/Fazia uma revisão/Para ver se havia errado/E se era justa a sua prisão/Oh! Quanta infelicidade/O meu destino é atroz/Eu perdi a liberdade/Por causa da minha voz (JESUS, 1996, p.175).

Assim, Carolina é marcada fortemente por essa ancestralidade que nasceu dentro das senzalas, nascida em 1914, ou seja, 26 anos após a suposta “liberdade para todos”. Melhor dizendo, nascia dentro de um contexto em que quase nada mudara desde a libertação dos seus ancestrais. Pouquíssimo tempo para a reorganização da sociedade diante de uma estrutura vinda de mais de três séculos em que o negro era mercadoria e, na maioria das vezes, desumanizado.

Portanto, esta Dissertação divide-se em três capítulos. O primeiro denominado Quanto mais retinto o menino, mais fácil de ser extinto, em que abordo as questões sobre a composição inicial do país, como surge o tráfico dos negros, por quem e por que este sistema é defendido como mão de obra necessária na construção do Brasil. Para tanto, foi necessário um estudo da história do país desde a colonização até o momento da Abolição da Escravatura. Logo a seguir, no item 1.2, apresento uma análise da obra Quarto de despejo (1960), avalio os aspectos autobiográficos de seu relato em que mescla realidade com ficção.

Já no segundo capítulo, é o momento em que trago Carolina à apresentação mais formal a partir da sua biografia, dos relatos dos filhos, vizinhos e do repórter Audálio Dantas10, o qual editou trechos do primeiro livro da autora. Ainda nesta parte, no item 2.2, discuto o direito de dizer da escritora a partir da sua obra inaugural, que entre outras questões é importante interpretar as peculiaridades de sua subjetividade como elemento necessário pelo seu direito à opacidade11.

Para explicar esse conceito é importante trazer à tona as teorias do escritor martinicano Édouard Glissant, que o utiliza a fim de explicar o direito que cada sujeito tem em reproduzir a sua verdade. Na mesma linha, trarei a discussão do conceito de Parresía, do francês Michel Foucault. Além dele, também se faz pertinente à discussão a teórica indiana Spivak para compreender Carolina, mulher negra e periférica,

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Audálio Dantas descobriu Carolina de Jesus em uma visita à favela do Canindé. Ele desejava fazer uma reportagem sobre a favela, ao que, em dado momento, ouviu Carolina brigar com os moradores bradando que os colocaria todos em seu livro. Desde então, percebeu que não precisaria mais fazer sua reportagem, quando descobriu os manuscritos da autora em seu barraco. 11

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como a subalterna que resiste ao caos de uma sociedade que a coloca numa escala de subalternidade triplamente desqualificada para falar; esse conceito nos servirá na intenção de compreender os graus de opressão que a escritora do Canindé sofreu.

No terceiro (e longo) capítulo, a fim dar sentido aos fios que tecem esta trama, apresento um conceito da pesquisadora Raffaella Fernandez que avalia a escrita de Carolina como aquela construída com restos de outros materiais, para tanto cunha o termo Poética de resíduos, pesquisa feita a partir dos manuscritos da escritora do Canindé, termo abordado em sua Dissertação de Mestrado e trazido à sua tese de doutorado.

Em meio aos capítulos, proponho uma reflexão sobre a importância de Carolina de Jesus e sua obra para a Literatura, mais especificamente a Negra e Periférica12, como resultado de um novo modo de pensar, em campo nada propício para a produção cultural, mas que apesar de tudo foi o encorajamento da escritora que motivou outros escritores, mudando o cenário literário do período, bem como do atual.

Toda a originalidade e o vigor da cultura da periferia e da literatura periférica reside nessa força popular, posto que é uma produção simbólica emanada das classes populares, nela referenciada e para ela voltada num movimento de autovalorização (LEITE, A. E.)13.

Nesses novos espaços de produção, dentro de uma sociedade que ainda age contra indivíduos que como a escritora viveram esquecidos e escondidos nas favelas, nasce um novo conceito de Literatura. Essa Literatura que surge com Carolina, embora não tenha recebido a nomenclatura „periférica‟ naquele momento, é o tipo de escrita que age

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“A literatura da periferia de São Paulo se divide em dois períodos históricos: a) Literatura Marginal, de 2000 a 2005 e b) Literatura Periférica, a partir de 2005 até os dias atuais. A primeira fase teve como marco inaugural a publicação do livro Capão Pecado, de Ferréz, no ano 2000, obra muito influenciada pela cultura hip hop, especialmente o RAP”. (LEITE, A. E.) Disponível em: <http://www.each.usp.br/revistaec/?q=revista/1/marcos-fundamentais-da-literatura-perif%C3%A9rica-em-s%C3%A3o-paulo>. Acesso em: 13-11-2018. 13 Disponível em: <http://www.each.usp.br/revistaec/sites/default/files/artigos-em-pdf/02_ed1_MARCOS%20FUNDAMENTAIS%20DA%20LITERATURA%20 PERIFE%CC%81RICA%20EM%20SA%CC%83O%20PAULO.pdf>. Acesso em: 13-11-2018.

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contra o atavismo branco14. Da mesma forma discutirei brevemente a questão da linguagem na obra de Carolina, como um resultado da crioulização, que de igual maneira tem nesta escrita a marca da exclusão, especialmente, de sujeitos periféricos.

O objetivo de “atar as duas pontas da vida” de Carolina, nos servirá também como análise o último livro da escritora, Diário de Bitita (1985), publicado post mortem e traduzido do Francês. O propósito de unir esses fios de vida nos importa para a análise do processo de amadurecimento da sua escrita, ainda que não seja o objetivo desta pesquisa. Vale ressaltar que a referida obra se faz necessária em função de ser nela que a escritora menciona sua biografia desde sua infância, uma vez que Quarto de despejo (1960), objeto desta pesquisa, iniciado em 15 de julho de 1955, traz relatos de um tempo presente à escrita do diário.

Assim, encerro um ciclo biográfico e de produção da escritora. De outro modo, é contínuo pensar que seu nome como também a sua reivindicação pelo direito à autoria trazem até os dias de hoje um reconhecimento sobre a importância da escritora dentro da Literatura, vindo a ser inspiração para muitas outras vozes negras e periféricas, como podemos conferir no boom literário de autoria negra que estamos vivendo; de modo que, hoje, percebemos que os sujeitos periféricos escrevem mais a cada dia.

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1.QUANTO MAIS RETINTO O MENINO, MAIS FÁCIL DE SER EXTINTO15

1.1 A história do negro no país

Mamãe, sabes que tinha um sonho de conhecer terras distantes para além-mar, pessoas

diferentes... E com isto no meu coração, parti, Ou melhor, me fizeram partir arrancado do teu colo. Aqui chegando, mamãe, Aconteceu algo muito estranho: Não fui tratado como pessoa, Mas como coisa. Não me chamam pelo nome que me deste, mas “escravo”.

[...] Vivo como se não fosse ninguém. [...] A minha cor, os meus cabelos e os olhos cor de açaí Não tiram do meu coração o que sou: Simplesmente um menino. (Veronese, Josiane Rose Petry. 2011, p. 5)

Nos idos dos séculos XV e XVI, os portugueses invadiram e colonizaram uma parte da África em busca de ouro, especiarias e mão de obra. Na época, a cana-de-açúcar estava sendo introduzida no Brasil quando então os portugueses começavam a vender os negros para as Américas, em especial, para o norte e nordeste do país, espaço em que os grandes engenhos começavam a se estabelecer.

Contudo, antes dos negros havia outra forma de escravidão: a dos indígenas, esses chamados pelos portugueses de „negros da terra‟. Os índios tornaram-se escravos no começo da colonização no Brasil, ajudando na montagem dos engenhos e na produção agrícola. Aos

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Luz Ribeiro, em Slam das Minas: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OtcgYLtLP-U >. Acesso em: 7-9-2017.

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poucos, essa mão de obra foi sendo substituída pela do negro trazido de África. Esse processo deu-se em função da falta de retorno capital que os portugueses reconheceram não receber dos nativos daqui, o mesmo não acontecia com os negros, pois havia um mercado de lucro na venda dos africanos capturados, gerando uma negociação particular. Assim, o comércio de seres humanos era reembolsado pela Coroa Portuguesa.

Para pagar os escravos que retiravam do litoral africano, os traficantes precisavam de mercadorias que servissem como produto de troca. Assim, muitos países europeus se beneficiaram do tráfico, aumentando sua produção para abastecer esse comércio. A Inglaterra passou a construir navios para o tráfico e a produzir mercadorias em maior escala [...]; a França também desenvolveu suas manufaturas destinadas ao comércio com os africanos. [...] Os portugueses, pioneiros no tráfico, utilizaram-se da guerra, dos acordos com os chefes africanos e da troca dos cativos por mercadorias diversas (RODRIGUES, J. 1997, p.19).

Outro fator que contribuiu para que essa substituição fosse consumada, é a forma com que a Igreja participa desse processo, em que começa a proteger os indígenas com o argumento de reconhecer neles uma “boa alma”, o que faltava a eles era aceitar o Deus Cristão; iniciando, assim, a catequização dos indígenas pelos jesuítas. A tutela do Clero não assegura aos nativos um afastamento completo do processo cativo, uma vez que, mais tarde, a Coroa abre algumas brechas, como por exemplo, a criação da Guerra justa16. Embora nem sempre as regras desta Guerra fossem justas, nem tão pouco tenham sido totalmente respeitadas. Entretanto era o pretexto do qual os portugueses precisavam para escravizá-los novamente, invalidando a proteção que recebiam da Igreja. Destarte, era criada uma suposta “Lei” que garantiria ao governo o retorno de um sistema.

Se de um lado os índios tinham os jesuítas que os protegessem, de outro, o negro não tinha quem agisse em sua defesa. Aliás, a Igreja que em partes defendia os indígenas era a favor da escravização, uma vez que também se utilizavam do servilismo dos negros.

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Os índios poderiam ser escravizados se eles fossem capturados em uma Guerra justa, ou seja, quando um indígena atacasse primeiramente um português, este por sua vez poderia, em um processo de legítima defesa, tornar aquele índio escravo.

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[....] as bulas papais que permitiam o tráfico de africanos desde o século XV consagraram o princípio da escravidão como salvadoras de almas. [...] o tráfico era “o meio de introduzir a nossa santa religião [o catolicismo] entre aquelas nações bárbaras ou, ao menos, salvar muitas almas” (RODRIGUES, J. 1997, p.17).

O máximo que a Comunidade Cristã fizera pelos negros foi tentar humanizar o trabalho deles, reivindicando melhores condições de trabalho, saúde e higiene, no entanto, sem nunca questionar o processo de escravização dos africanos. Alguns anos depois, em um Sermão, o Pe. Antônio Vieira consuma a não defesa da Igreja ao comparar o processo pelo qual os escravos passavam ao sacrifício de Jesus Cristo,

Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo (VIEIRA, A. Sermões. Tomo XI. Porto: Lello & Irmão, 1951)17.

O processo de servilismo nem sempre foi pacífico, desde a captura dos negros em África até o seu transporte foi de muita resistência por parte dos capturados; no trajeto até os seus destinos, por exemplo, precisavam permanecer nos porões dos navios a fim de evitar alguns suicídios. Todavia, um terço desses negros não chegavam ao final da rota devido às condições insalubres a qual eram submetidos, cunhando, dessa forma, os Navios negreiros, também, de Tumbeiros.

17

Disponível em: <http://educacao.globo.com/provas/enem-2012/questoes/40.html>. Acesso em: 9-7-2017.

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Conquanto, aqueles que aqui chegavam eram, estrategicamente, separados de suas famílias ou daqueles que partilhavam dos mesmos espaços em África. De forma que, impedidos, de falarem a mesma língua, não houvesse conluio, tampouco, continuassem a falar suas línguas, sem o aprendizado efetivo da língua de seus senhores, garantindo, dessa forma, o aprendizado da Língua Portuguesa. Não sabiam, porém, que os africanos, há muito tempo, aprenderam a lutar pelas suas liberdades já em África, de modo que para toda estratégia haveria uma forma de resistir, diferente das experiências com os nativos. A resistência do negro motivou práticas diversas de castigos, muitos desses severos e realizados publicamente, para, dessa forma, garantir que os demais não cometessem os mesmos deslizes.

Enquanto o couro do chicote cortava a carne/ A dor metabolizava fortificava o caráter/ A Colônia produziu muito mais que cativos/ Fez heroínas que pra não gerar escravos, matavam os filhos/ [...] Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador/ Falharam na missão de me dar complexo inferior” (TADDEO, E.)18

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Figura 1 Castigo Público no Campo de Santana. Litografia de 1835 (Crédito: Johann Moritz Rugendas / In: Rugendas e o Brasil, Editora Capivara)19

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Intérprete da música, Mulheres Negras, Izalú, composição de Eduardo Taddeo. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/yzalu/mulheres-negras.html>. Acesso em: 14-11-2018.

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Disponível em: <http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do- brasil/rio-de-janeiro/51-a-cidade-no-tempo-dos-vice-reis/2457-dominados-e-submetidos-os-escravos>. Acesso em: 9-7-2017.

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No imaginário popular, a imagem acima é a aparência que nos vem à mente, dor, sofrimento, muito trabalho e castigos severos. Contudo, houve, também, diversas formas de revoltas praticadas pelos negros, acabando com a vida nada pacífica desse sistema que foi a escravidão dos africanos no Brasil.

A iconografia do tempo de escravidão não nos traz nenhuma imagem de revolta dos escravizados. Tão somente os pintores da época, em geral estrangeiros, pintaram o escravizado cumprindo ordeiramente sua função no trabalho forçado, sendo vendido como coisa, sendo espancado e divertindo-se nas horas vagas. Onde está a revolta na imagem que temos hoje do século XIX e anteriores? Onde estão as imagens dos quilombos ativos? Há, portanto, um vazio, que acaba significando a não existência da reação dos escravizados. Este vazio proposital quis fazer o futuro acreditar que o passado nas fazendas escravistas foi pacífico por parte do oprimido. A ausência de imagens revoltosas tenta provar a passividade dos africanos e de sua descendência no Brasil. É um vazio da ideologia racista, esta mesma que impôs o silenciamento da expressão negra no passado por meio da violência, justificando-se pela necessidade da ordem e do progresso da nação (CUTI, 2010, l.572).

Passividade essa que não existiu, tal como podemos constatar nas muitas mobilizações, como também ao citar o suicídio, o aborto, as paralisações, as reivindicações (troca de feitores, dias livres, mais mantimentos, melhores roupas, dias de festas), os assassinatos (negros se organizavam para assassinar seus senhores), as negociações pela liberdade (o que era muito difícil de ocorrer) e a representação máxima da resistência, os Quilombos.

As rebeliões se davam de diferentes formas, a maneira como eram tratados poderia acarretar em uma ou outra revolta; a não identificação com o local para o qual foram trazidos, por exemplo, aliado às péssimas condições em que estavam submetidos, fizeram com que os negros fossem reinventando as suas formas de resistência, como seria então a forma de desvio do caminho a eles impostos. Dessa forma, surgem as fugas em massa que levaram à criação dos Quilombos, lugares construídos aos moldes e costumes dos seus espaços em África.

Por conseguinte, os escravos, embora longe de suas terras, alcançavam uma aproximação com o lugar de onde foram “arrancados”

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e capturados, seus territórios africanos. A localização dos Quilombos funda-se em lugares mais recuados, distantes das fazendas e dos engenhos de onde tinham fugido, dificultando a captura dos fugitivos; lá, também, foi lugar de algumas revoltas e embates. Havia alguns Quilombos espalhados pelo país, o mais famoso deles é o de Palmares20. Em vista disso, nasce um lugar para onde se deseja ir, embora a liberdade não fosse uma concretização efetiva: nos Quilombos poderiam agir conforme suas leis, ainda que a liberdade fosse algo que conquistassem por meio de uma fuga. Nesses esconderijos, os líderes iam sendo formados a fim de garantir proteção a esses territórios. Ou seja, um Quilombo seria mais fortalecido quanto mais forte um líder o fosse, seriam determinantes as ações e decisões de proteção dessa liderança.

Iniciara, portanto, um longo percurso até o momento em que teriam as suas liberdades legalizadas. Da mesma forma como ocorreu a escravidão, ou seja, de maneira nada pacífica, também não seria todo o movimento de libertação dos escravos. Logo, a abolição do tráfico de escravos teve início ao que seria mais tarde a alforria de todos os negros deste país.

Os historiadores têm explicado a abolição da escravidão como um processo gradual, no qual o

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“No sítio arqueológico da Serra da Barriga, em Alagoas, onde se localizava o antigo quilombo, hoje se situa o Parque Memorial Quilombo dos Palmares As primeiras referências históricas aos mocambos dos Palmares datam de princípios do século XVII, período de consolidação da produção de açúcar no Brasil e do uso de mão-de-obra escrava africana. A influência de formas de organização de reinos africanos da região do Congo-Angola na estrutura política de Palmares tem sido aventada por historiadores. As negociações de paz entre o governador de Pernambuco Pedro de Almeida e o líder de Palmares, Ganga-Zumba, em 1678, seguiram o protocolo político das guerras travadas pelos portugueses com os reinos africanos vizinhos à colônia portuguesa em Luanda. Zumbi teria sido o último chefe militar dos mocambos e acabou sendo derrotado pelas tropas do sertanista Domingos Jorge Velho, em 1695. Desde então, ainda que com diferentes ênfases, Palmares e Zumbi transformaram-se em ícones da resistência negra à escravidão, mesmo que o quilombo fosse marcado por intensa troca cultural entre africanos, seus descendentes, os povos nativos da América e os colonos moradores dos povoados vizinhos ou foragidos da guerra entre portugueses e holandeses. Desde o final do século XX, 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, foi transformado em Dia Nacional da Consciência

Negra” (Disponível em:

<http://www.labhoi.uff.br/sites/default/files/6_inventario_revoltas.pdf>. Acesso em: 9-7-2017).

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fim do tráfico é apenas uma etapa. Os marcos desse processo foram fixados de acordo com a legislação: 1850, Lei Eusébio de Queirós, extinguindo o tráfico; 1873, Lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre) libertando os nascidos de escravas, a partir de então; 1885, Lei Saraiva-Cotegipe (Lei do Sexagenários), libertando os escravos idosos; 1888, Lei Áurea, abolindo a escravidão (ROGRIGUES, J. 1997, p. 56). No entanto essa suposta abolição não isentou o negro dos muitos preconceitos a eles direcionados e sempre presentes na história dos países que aderiram ao tráfico de seres humanos.

A abolição da Escravatura não foi realizada para os negros. Foi concretizada para atender aos interesses econômicos, políticos e sociais do país. A abolição foi incapaz de alterar significativamente as condições de vida dos grupos negros (LIMA e VERONESE. 2011, p. 72).

Ainda que a tão sonhada lei chegasse, a mão de obra do negro já vinha sendo substituída aos poucos no país. No momento em que a Lei Áurea foi assinada, já haviam sido trazidos os imigrantes para o Brasil, motivo pelo qual, a inserção do liberto na sociedade não seria tão fácil. “Poucos negros e mulatos puderam aproveitar as oportunidades com que contariam em outras circunstâncias, e que lhes permitiriam converter-se em artesãos” (FERNANDES, F. 1972, p.86), em razão de essas atividades estarem sendo ocupadas similarmente pelos imigrantes.

Ao eclodir a Abolição, estavam distribuídos nas ocupações menos desejáveis e compensadoras, pois as oportunidades melhores haviam sido monopolizadas e absorvidas pelos imigrantes. [...] Ainda que o abolicionismo adquirisse o teor de um movimento humanitário, sua mola revolucionária residia nos interesses e valores sociais prejudicados por causa da vigência da escravidão (FERNANDES, F. 1972, p. 87). À vista disso, ficariam destinadas aos ex-escravos, mais uma vez, as tarefas e as atividades secundárias, ou seja, é a classe dominante, a elite branca, que continua a ditar as regras. No empenho em usufruir da sua tão sonhada liberdade, esqueceu-se, porém, de “formar uma consciência social própria da situação” tamanho foram os processos de desumanização ocorridos durante a escravidão que não percebiam estar no ciclo de exclusão mais uma vez (FERNANDES, 1972).

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Os imigrantes, durante a expansão urbana, aproveitaram todas as oportunidades a eles oferecidas, deixando pouquíssimas funções ao negro que, nesse caso, volta a executar os trabalhos mais duros na escala de produção, aquele que seria mais tarde reconhecido como „“serviço de negro”: trabalhos incertos e brutos, tão penosos quão mal remunerados‟ (FERNANDES, 1972, p. 88).

Segundo o sociólogo Florestan Fernandes (1972), havia alguns motivos pelos quais não souberam os negros aproveitar o momento de sua libertação. Primeiro, não foram eles preparados para o trabalho livre e assumir um papel dentro do quadro socioeconômico do país. Em segundo lugar, a concorrência da mão de obra dos negros com os imigrantes era grande, sendo esta considerada de maior qualidade que a daqueles. Em terceiro ponto, afirma ainda Fernandes, destituídos de heranças culturais, os negros confinados não poderiam pôr em prática aquilo que traziam de experiência do cativeiro para o mundo dos brancos. Em quarto, logo após a Abolição, os negros tornaram-se „altamente móveis‟, muitos dos quais se deslocavam para o interior de São Paulo, bem como para alguns estados do Norte e Nordeste, aninhando-se em cortiços ou porões.

Nesse momento, com o trabalho cada vez mais escasso, cabia, em especial à mulher negra, o provento da família, uma vez que a elas o trabalho doméstico ainda era possível.

As mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras (DAVIS, Angela. 2016. L. 216). A ociosidade do homem negro acarreta em alguns comportamentos e, consequentemente, na apatia. Essa passa a ser, na visão de Fernandes (1972), o quinto motivo pelo qual a inserção do negro no mundo dos brancos foi dificultada. Estavam, os negros, desprovidos de alternativas e técnicas que pudessem solucionar seus dilemas. A miséria foi a sua derrota, o negro cada vez mais se entregava à ruína e assumia que nascera para sofrer.

Com a inserção da mão de obra do imigrante no país, o negro passou a ser preterido. Segundo Lima e Veronese (2011), as cidades

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começavam a se desenvolver, precisavam de trabalhadores para os diversos ramos da economia que, no entanto, não considerava o negro capacitado para exercer tais atividades. As desigualdades sociais agravaram-se com o pós-abolição, especialmente para os negros que sem qualificação não conseguiam emprego e, logo, estariam em situação de marginalização social.

Sob os moldes das teorias racistas imputaram aos negros livres diversos defeitos que os deixaram de fora da nova organização laborativa. Além de ser considerados inferiores, eram também considerados seres “embrutecidos”, “sem preparo”, sem “desenvolvimento moral”, ignorantes, vadios, preguiçosos (TESSARI, 2000 apud LIMA e VERONESSI, 2011, p.81).

Essas teorias reforçam os estigmas que o negro sofreu e, como também, ainda sofre. O que na verdade difere, hoje em dia, é a forma como os indivíduos resistem. Naquele período, o sujeito ainda tentava administrar seu tempo livre em um processo de resistência, afinal durante muito tempo quiseram estar em situação semelhante àqueles que serviam. Por isso, a má fama estava formada e o negro era além de “vagabundo” também “ocioso”, decretava-se a guerra contra a vadiagem. Em 11 de setembro de 1890, o Código Penal da República aprovava um Decreto21 que punia os indivíduos considerados vadios e ociosos.

A alternativa, nesse caso, era aceitar os trabalhos mais degradantes, por conseguinte, mal remunerados, uma vez que competiam diretamente com os brancos, estes, muitas vezes, mais “capacitados”, visto que ao negro lhe fora negado os bancos das escolas desde o ano de 1835, ratificada posteriormente com uma Resolução que os proibia o aprendizado da leitura e escrita desde 185422. Desse modo, cabia a eles os subempregos, a opção de moradia se encaminhava na mesma direção. Havia um ser desumanizado no sistema escravista, como também, esse sujeito continuaria desumanizado no período pós-abolição. Esse trajeto, de requerer sua humanização, foi longo e árduo,

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Decreto 847 condenava a vadiagem e a ociosidade. 22

“A Resolução Imperial n. 382 datada de 1o de julho de 1854, que determinava: Art. 35 – Os professores receberão por seus discípulos todos os indivíduos, que, para aprenderem primeiras letras, lhe forem apresentados, exceto os cativos, e os afetados de moléstias contagiosas” (Romão e Carvalho, 2003, p.66 apud <http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais15/Sem08/fabioreis.htm>).

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“Mas o pobre não repousa. Não tem privilegio de gosar descanço” (JESUS, 2012, p.12).

Isso não mudou. Até os idos do século XIX falava-se muito na relação Casa Grande e Senzala23, em que um ser era submisso e subserviente ao outro, estabelecendo uma relação de poder. Ainda hoje quase nada se modificou, apenas as denominações, uma vez que não podemos falar em senzala, dado que já foram extintas. O que temos, hodiernamente, são os locais análogos a esses alojamentos, tal como as moradias em condições desumanizadas como a favela. “Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado” (JESUS, 2012, p.42).

A abolição foi um contrato o qual, burocraticamente, findou um sistema escravista que, na teoria, hoje não existe. No entanto, os serviços e as condições os quais ainda permitem desumanizar os sujeitos, em especial o negro, contribuem para que, em situação de semelhança, o negro continue a pertencer às camadas mais inferiores da sociedade, salvo raríssimas exceções. Com base nos livros de história, teria muito para contar sobre os “méritos” que foi para o país a libertação dos negros, mas prefiro encerrar este subcapítulo com a verdade sobre as sanções que os indivíduos pobres e, sobretudo, o negro vêm sofrendo até hoje. “Para quem não sabe, já que as aulas de história por muito tempo envernizaram a escravidão, capitão do mato era uma espécie de caçador de fujões das senzalas, no período da Colônia e do Império” (RAMOS, L. 2017, p.18).

Nas palavras de Gato Preto24, o enredo contado pelos próprios protagonistas dessa narrativa de invasão, sequestro, violação, dor, sangue, luta, resistência e silenciamento

que destruíram índios e negros, destruindo a genuína cultura de cada povo, impondo práticas a atos impuros perante os olhos dos dois povos, violaram terras virgens, mataram, massacraram, estupraram seus filhos, sem respeito algum,

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Faço referência aqui às relações apresentadas na obra de Gilberto Freyre. 24

“Altino Jesus do Sacramento, conhecido como Gato Preto, integrou o grupo “A Família” e fez muito sucesso no RAP nos anos 2000”. Disponível em: <http://www.rapnacional.com.br/luto-morre-rapper-gato-preto-do-grupo-a-familia/>. Acesso em: 7-10-2017. O rapper foi executado com 8 tiros na noite do dia primeiro de agosto de 2016, onde morava, no Jardim Colombo, Zona Oeste de São Paulo. Mais de um ano após sua morte, nada mais se fala sobre seu assassinato. Como diria Carolina de Jesus, a sala de visita não se importa com o que é feito nos quartos de despejos das cidades.

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fincaram bandeiras em terras alheias, se apossando, raptando, sequestrando o povo africano.

E assim prosseguiram atitudes escravocratas em prol de um único objetivo, o lucro fácil, ouro, diamante de classe, foram eles, que escravizaram, mataram, torturaram, mas quem são eles? Os europeus, os norte-americanos foram eles e outros do primeiro mundo, e hoje querem posar de exemplo, espelho para o mundo. Depois de centenas de anos de chibatas, e troncos, senzalas, áurea, MAS SEMPRE ONDE HOUVER OPRESSÃO HAVERÁ UM REBELDE.

HERANÇA DA ESCRAVIDÃO Moreno (a) mulata (o) marrom bombom Complexo, medo, exclusão social Favelas, analfabetismo, marcas, traumas Sentimento de inferioridade, química no cabelo Falta de orgulho, auto-estima baixa, preconceito Racismo, dor, lágrimas, sem-terra, sem cavalos Crimes, acusação, desprezo, descaso, danos, descalços

Desconforto, discórdia, desespero, desemprego. Dona Isabel, outras leis estabelecidas pelos opressores são todas mentirosas (GATO PRETO apud Ferréz (org.) 2005, p.61).

A exclusão, entre conceitos outros, promove até os dias de hoje um desvio necessário às normas impostas para que indivíduos negros permaneçam na base de uma pirâmide de exclusão e silenciamento.

A luta entre escravizados e escravizadores mudou sua roupagem no biombo do século XIX para o século XX, mas prossegue com suas escaramuças, porque a ideologia de hierarquia das raças continua, segue mudando de cor como os camaleões, adaptando-se a situações novas, com manobras da hipocrisia sempre mais elaboradas (CUTI, 2010, L. 51).

A vida do negro, embora marcada pelo apagamento da sua presença, nunca foi de submissão, mas de opressão, muitas foram as vezes as quais tiveram de dissimular comportamentos a fim de resistir ao sistema, desde a captura em África até os dias atuais. Logo, é importante pensar que, assim como os escritores atuais vieram desse desvio à norma, Carolina Maria de Jesus é um caso que reflete o grito da cultura marginal com sua obra Quarto de despejo (1960).

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1.2 O Quarto de Carolina: a análise da obra.

“Quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (RIBEIRO, Djamila. 2017, L.313) Neste processo de mudança de comportamento assumo a tentativa de neste capítulo, além de mostrar as nuances camaleônicas do processo de resistência do negro, fazer uma análise da – versão publicada em 2012 da – obra inaugural de Carolina de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), cujo texto teve seu início com a passagem do aniversário de sua filha mais nova, Vera Eunice, mais precisamente no dia 15 de julho de 1955. Este diagnóstico tem como objetivo promover a escrita de Carolina como possível e necessária a todo aquele que deseja conhecer as particularidades de uma literatura precursora, que por meio da sua ousadia de escrita foi possível ao público ter acesso à vida da escritora dentro de uma favela nos anos de 1960, resistindo ao meio dentro de uma sociedade que invisibilizava os negros, os pobres e as mulheres. Por esse motivo procura-se a partir deste ponto proporcionar ao leitor olhares outros sobre a obra.

No tocante à leitura de um diário pessoal uma vez publicado, espera-se do leitor uma leitura que leve em conta a vida particular de um indivíduo. Nessa expectativa confia-se estar diante de um contrato com a verdade, possibilidade essa que contemple a narrativa sobre a vida daquele que escreve e assina esse contrato. É nesse sentido que a obra inaugural de Carolina de Jesus é avaliada como um diário, por se tratar de um texto que contemple sua vida dentro da favela, incluindo ainda alguns relatos em que seus vizinhos também são expostos, além disso, o relato vem acompanhado de data25.

Onde é possível estar emocionalmente nu e formalmente decomposto, o diário procede de um reconhecimento de si pela escrita que, efetuada em solidão, faz crer que quando alguém fala/escreve sobre si mesmo tende a ser mais sincero do que quando se dirige a outrem. Em geral, tais arquivos íntimos fazem alusões enigmáticas a fatos e pessoas; são receptáculos de impulsos, crises, confidências, que, por acompanhar o andamento do calendário, não são

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Essa é a mesma proposta que Carolina leva para o seu segundo livro, este sem muito sucesso, Casa de Alvenaria (1961).

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construções meramente retrospectivas, como as autobiografias, por exemplo (CUNHA, 2000, p.159).

Desse modo é pertinente pensar que temos diante de nós um leitor curioso que espera uma verdade que compreenda toda a obra desde as primeiras páginas até o derradeiro registro. Carolina, perspicaz como era, acreditava em leitores curiosos ansiosos pela história de uma mulher negra e favelada, e, estava certa, a curiosidade movia uma parcela de leitores26 que aguardavam ler a escritora favelada e negra que fora capaz de ousar na escrita.

Ainda que sua obra seja um diário pessoal, é seguro pensá-lo como uma autobiografia, visto que desde o início a escritora deseja ter sua vida exposta. Ao pensar nesse gênero textual, é oportuno apontar que não há autobiografias sem ficção, mesmo que haja o relato da verdade, os elementos ficcionais fluem. Ou seja, a partir da tentativa de narrar uma verdade, aos poucos grandes retalhos ficcionais vão adentrando o texto. Fernandez (2015) traz à discussão em seu texto

a ideia de “soi-même comme un autre”, de Ricoeur27 , mostra que há sempre um outro que incide sobre a narração desse eu, seja nesse movimento de captura do discurso alheio para dentro de seu texto, seja na sua interpretação do outro para si, para apropriar-se; seja na sua forma de traduzir a própria mirada tendo em vista um público leitor, seja através da intervenção alheia de seus interlocutor (FERNANDEZ, 2015, p.253). Para além desses outros e nas possíveis interpretações de si, também fez questão de incluir detalhes sobre o espaço em que vivia, a favela do Canindé, um local de produção o qual ela afirmava ser o lugar onde se colocava tudo aquilo que se desejava esconder da sociedade. Na intenção de refletir sobre isso, Carolina de Jesus aborda sobre questões políticas, sociais, bem como as reflexões intimistas sobre a condição de miséria e pobreza imposta a ela e aos moradores do Canindé. Em Quarto de despejo há uma narrativa que mescla linguagem

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Entre a descoberta de Carolina de Jesus pelo repórter Audálio Dantas e a publicação de Quarto de despejo, a escritora foi apresentada com alguns trechos do seu diário publicados na hoje extinta Folha da Noite, jornal para o qual o jornalista trabalhava quando descobriu a poeta do Canindé. Isso se deu em 1958, apenas quase dois anos depois é que ocorreu o lançamento da sua obra. 27

RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Éditions du Seuil, 1990. apud Fernandez (2015).

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literária com a informalidade de um relato autobiográfico, temos um autor, um narrador e uma personagem que apresentam a mesma assinatura, já anunciados no subtítulo do livro (LEJEUNE, 2014).

Pontos esses importantes para a análise de uma obra autobiográfica, outra questão pertinente à observação de um diário se faz por meio da linguagem nele apresentada, essa nem sempre apresenta uma gramática fiel à norma padrão, especialmente por ser um tipo de texto que não leve em conta os múltiplos leitores, pelo contrário, trata-se de contar sobre si para si.

O diário íntimo é um fenômeno social que parece ter proliferado no mesmo momento em que se tornou um gênero literário. Esse escrito, tido como secreto, tem como destinatário o seu próprio autor, e não está destinado necessariamente a ser relido. O fato de ser escrito na maioria das vezes por mulheres ─ por muito tempo, mesmo nas classes altas, proibidas de escrever e destinadas apenas a serem leitoras, piedosas ou apaixonadas ─ ou por adolescentes sem status, submetidas à tutela paterna, como sua mãe à conjugal, indica que papel social desempenhou na história esse lugar em que se construiu, na continuidade das páginas acumuladas, um reconhecimento de si que as sociabilidades não fornecem ou não conseguem mais fornecer (CHARTIER & HÉRBRAD apud CUNHA, MARIA TERESA 2000, p.43).

O diferencial de Carolina é que ela, apesar de escrever um diário pessoal, também desejava torná-lo livro. Desse modo é que encontramos nessa trama alguns fios emaranhados que se misturam entre uma linguagem mais informal com alguns vestígios de poeticidade das figuras de linguagem, artifício utilizado pelos bons e conceituados escritores da época. Entre as peculiaridades da obra de Carolina atrelada à vida pessoal da escritora, que tinha apenas dois anos de vida escolar, é que a poetisa da favela estaria “autorizada” a falar, diferentemente do que acontecia, ou seja, um porta voz escrevia contando sobre a vida de negros, pobres, pois, além de subestimar suas capacidades para tal feito, poucos negros eram escolarizados, motivo a mais para negar-lhes a autoria, uma vez que só estaria autorizado aquele que manejasse muito bem o uso da língua.

A destinação dos diários variou muito ao longo da história. No início, os diários foram coletivos e públicos, antes de entrarem também na esfera privada, depois individual, e, enfim, na mais

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secreta intimidade. Digamos apenas que um diário serve sempre, no mínimo, pra construir ou exercer a memória de seu autor (grupo ou indivíduo). Quanto ao conteúdo, depende de sua função: todos os aspectos da atividade humana podem dar margem a manter um diário. A forma, por fim, é livre. Asserção, narrativa, lirismo, tudo é possível, assim como todos os níveis de linguagem e de estilo, dependendo se o diarista escreve apenas para ajudar a memória, ou com a intenção de seduzir outra pessoa (LEJEUNE, 2014, p.302) Todavia, essa sedução e ousadia sempre ficaram restritas à classe mais letrada da sociedade, ou seja, Carolina escrevia em um tempo em que o sujeito autor de diários deveria ter um grau de instrução compatível àquele esperado para esse tipo de escrita mais intimista, não havendo, portanto, muitos diários escritos por sujeitos menos instruídos, ainda que não houvesse a intenção de publicação.

Qualquer um se sente autorizado a manejar a língua como quiser, escrever sem medo de cometer erros. Pode-se escolher as regras do jogo. Ter vários cadernos. Misturar os gêneros. Fazer de seu diário, ao mesmo tempo, observatório da vida e o ponto de encontro de seus escritos. Um diário raramente é corrigido [...] (LEJEUNE, 2014, p.306).

Muito mais que uma mescla de gêneros textuais, Carolina quebra de início alguns conceitos da época com a sua escrita, ademais ao abrir sua obra temos diante de nós um diário pessoal escrito por uma mulher negra e semianalfabeta. Todavia, além de dominar as letras de maneira adequada para a escrita de seu diário, foi capaz de dominar alguns recursos poéticos, tal como se pode constatar pela presença de algumas metáforas, as quais enriquecem seu texto ao narrar sobre a fome, a miséria e os inúmeros preconceitos àqueles que na favela do Canindé dividiam com ela e seus filhos a experiência da pobreza.

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Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe na rua Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria. (...) Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casemiro de Abreu28 que disse: “Ri criança. A vida é bela”29. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a epoca está apropriada para dizer: “Chora criança. A vida amarga” (JESUS, 2012, p.37).

Um texto é, na verdade, “um tecido de citações” (BARTHES, 2004, p.4)30, dentro dessa perspectiva é que temos diante de nós uma leitora que é uma artesã da literatura, não somente ela, mas característica atribuída aos escritores em geral. Barthes defende que, em outras palavras, não há textos inéditos, pois um novo texto compreende tramas diversas, dizeres múltiplos que ressoam em novos textos.

o seu único poder é o de misturar as escritas, de as contrariar umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas; se quisesse exprimir-se, pelo menos deveria saber que a «coisa» interior que tem a pretensão de «traduzir» não passa de um dicionário totalmente composto, cujas palavras só podem explicar-se através de outras palavras (BARTHES, 2004, p.4).

Há em Carolina de Jesus uma forma de contar, de narrar sua verdade por meio de uma prosa intimista31, ou seja, um estilo literário em que as emoções e sentimentos do escritor e dos personagens da obra

28

Casimiro José Marques de Abreu, mais conhecido como Casimiro de Abreu, foi poeta brasileiro que teve uma vida breve, morreu aos 21 anos de idade de tuberculos, em 1860 na cidade do Rio de Janeiro. Em Portugal escreveu a maior parte de sua obra. Seu verso mais famoso é o poema Meus oito anos.

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O poema que Carolina se refere aqui é Risos, mas ao contrário do que ela afirma, Casimiro de Abreu disse em versos: Ri, criança, a vida é curta,/ O sonho dura um instante./ Depois... o cipreste esguio/ mostra a cova ao viandante! 30

Texto publicado em: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004

Disponível em:

<file:///C:/Users/Erika/Downloads/A_morte_do_autor_barthes.pdf>. Acesso em: 11-11-2018.

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“No Brasil, a escritora modernista que merece destaque na produção da prosa intimista é sem dúvida: Clarice Lispector (1920-1977)”. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/prosa-intimista/>. Acesso em: 23-7-2018.

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são refletidos na escrita. Para além de um diário, é possível perceber a construção narrativa competente ao pacto autobiográfico, ou seja, quando há relação entre autor-narrador-personagem, confirmados desde a assinatura na capa do livro. O que possibilita ao leitor, conforme já mencionado, o aceite de uma verdade estabelecida a partir dessa relação (LEJEUNE, 2014).

A base do diário é a data. O primeiro gesto do diarista é anotá-lo acima do que vai escrever. “Quarta-feira, 2 de março de 1898” [...] um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital (LEJEUNE, 2014, p. 300).

Sem a presença de vocativos, mas fiel à presença de datas, Carolina permite ao leitor uma localização não só no espaço, como também no tempo. Ainda que não houvesse uma obrigação diária de escrita, a autora é fiel à marcação de tempo/data do seu relato. Carolina não escrevia diariamente como uma obrigação, muitas vezes, os afazeres de mãe e catadora de papel a impedia de uma continuidade de fatos.

Figura 2 Diário de Carolina.

No entanto, ela poderia escrever em qualquer horário, até de madrugada, como sua filha mesmo declarou, ela dormia com um caderno e lápis embaixo do travesseiro para que assim que as ideias surgissem, ou o sono escapasse, ela então escreveria, aproveitando o seu pouco tempo livre para a escrita do livro.

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Sobre o enredo, estes eram descontínuos, os conflitos eram distintos, não tinham uma continuidade, ou seja, quando retomava a escrita não partia de onde ela teria finalizado no último dia em que esteve com papel e lápis à mão. Se havia algo para ser dito, ela o fazia e terminava; no outro dia, sempre haveria um motivo a mais para continuar sua narrativa. No entanto é oportuno dizer que a fome sempre retornava à trama, como um anti-herói de uma narrativa.

Parte desses breves enredos narrativos, giravam em torno das brigas na favela; das queixas sobre seus vizinhos – com quem não tinha um bom relacionamento; da sua luta em busca de alimento para a sua fome e a de seus três filhos; da política e as reclamações que fazia aos políticos; do preço dos gêneros alimentícios; da escrita – sim, ela falava sobre o ato de escrever e de fazer dessa escrita a voz de quem estava na mesma condição de pobreza que a sua.

É possível, dessa forma, perceber seu gosto pela escrita e leitura como fruição, uma prática que assumia como aquela que lhe dava muita satisfação; quando podia, deixava de ir trabalhar para escrever. Por conseguinte, alimentava entre os vizinhos uma inveja, porque era entre eles uma das poucas, senão a única, que era alfabetizada.

Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. Sobrou macarrão, eu vou esquentar para os meninos (JESUS, 2012, p.42, grifo meu). O recurso de referenciar-se ao próprio ato de escrita dá-se o nome de metalinguagem, um artifício utilizado para falar sobre aquilo que se pratica, o que leva o leitor para fora da narrativa, fazendo com que o imaginário se desloque da leitura àquilo que está sendo referenciado.

Filmes e programas televisivos que se debruçam criativamente sobre si mesmo, seus produtos e processos, desmascarando e expondo seus procedimentos. É um discurso que, antes de qualquer coisa, fala de si. Por meio de um exercício de metalinguagem, o cinema e a televisão desconstróem seus tipos e estereótipos, suas fórmulas e formatos (FERRAZ, S., 2011, p.13).

Esse artifício, geralmente presentes em romances, foi exercido por grandes escritores, entre eles Machado de Assis. O escritor, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, ornamenta seu texto com várias

Referências

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