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Não é qualquer carnaval

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Universitária

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B877n Brito, Roberta Kelly de Souza.

Não é qualquer carnaval / Roberta Kelly de Souza Brito. – 2014. 169 f. : il. color.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Curso de Comunicação Social (Jornalismo), Fortaleza, 2014.

Orientação: Prof. Me. Ronaldo Salgado.

1. Livro-reportagem. 2. Carnaval. 3. Festa popular. 4. Maracatus. 5. Afoxés. I. Título.

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Universidade Federal do Ceará - UFC

Reitor

Prof. Jesualdo Pereira Farias Vice-Reitor

Prof. Henry Campos

Livro-reportagem apresentado para obtenção do título de bacharel em Jornalismo - UFC.

Revisão e Orientação: Prof. Ronaldo Salgado Capa: Gleydson Moreira

Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Gleydson Moreira

Ilustrações: Gleydson Moreira

Impressão:

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Roberta Souza

Não é qualquer carnaval

Fortaleza 2014

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À Liga Experimental de Comunicação. Quem foi, quem é e quem dela ainda será.

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“[...] um momento em que se pode totalizar todo um conjunto de gestos, atitudes e relações que são vividas e percebidas como instituindo e constituindo nosso próprio coração”. (Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, de Roberto DaMatta)

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Desde muito cedo aprendi com a filosofia religiosa Seicho-No-Ie a agradecer a todas as pessoas, coisas e fatos. Todas mesmo. Inclusive as que, porventura, pareçam dificultar a caminhada. Isso porque, naturalmente, elas ajudam a amadurecer.

Quando resolvi escrever sobre carnaval, pouco sabia do universo de possibilidades e desafios que se apresentaria para mim. Mas foram muitos os que me ajudaram a lançar um olhar curioso e apaixonado pela manifestação. Não só isso, abraçaram-me e ensinaram-me, pacientemente, a caminhar.

Papai Augusto, que, mesmo de longe, me ligava frequentemente para saber a quantas andava o livro; e mamãe Lourdes, que, em suas orações, sempre transmitiu bons pensamentos para este fim, dedico-lhes minha sincera gratidão. Vocês são, para mim, os representantes diretos de Deus na terra.

Meu querido irmão Roberto e suas palavras aconchegantes, que sempre me alertaram para a capacidade infinita que está alojada no profundo do nosso ser, muito obrigada. Com seu olhar amoroso, você sempre deixou claro para mim que tudo daria certo.

Aos amigos e modelos Amanda, Bárbara George, Cláudio Lucas, Luana e William, que acompanharam virtual e pessoalmente cada passo dado, cada entrevista transcrita e cada capítulo finalizado, meu coração. A inventividade dessa amizade ao longo do processo me fez rir mesmo quando o relógio quis Agradecimentos

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me tirar o tempo para tal façanha.

Às flores Andressa, Bárbara Rocha e Camila, que também me apoiaram com sorrisos, músicas e sonoros “vai dar certo”, minha gratidão. O companheirismo e a força de vocês levantaram o meu astral por incontáveis vezes.

A cada entrevistado que abriu a porta da casa e do trabalho para dividir suas memórias e também a todos aqueles que pularam carnaval comigo, direta ou indiretamente, ajudando a construir o que moldei em palavras, muito obrigada.

Ao fotógrafo, diagramador, ilustrador e amigo Gleydson, meu sincero agradecimento. O dom de ler meus pensamentos e desenhá-los aqui, você adquiriu, e com muita sensibilidade. Alegria é tê-lo ao lado para tornar possíveis os mais belos sonhos.

E, finalmente, ao orientador-folião mais fiel, que embarcou comigo nessa aventura regada a serpentina, confete e lança-perfume, as mais belas flores! Você é indispensável na vida de um jornalista em formação, Ronaldo Salgado. Obrigada, obrigada, obrigada.

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12 Apresentação

Em busca da serpentina

18 Introdução

Antes de começar a viagem

28 Primeira parada

Para revirar a memória da

cidade

58 Segunda parada

O som das loas e batuques

de maracatu

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100 Terceira parada

As cores de confetes dos

blocos

138 Quarta parada

Muitas vozes, um só caminho

163 Considerações finais

E pela lei natural dos encontros,

eu deixo e recebo um tanto

168 Bibliografia

Foto: Gleydson Moreira

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Não venho de uma família de foliões, pelo contrário. Carnaval para as bandas lá de casa e também do interior – onde mora a maior parte dos tios, tias e primos –, por um bom tempo, foi sinônimo de período do ano feito para descansar. Quatro dias de folga para esquecer o aperreio do dia a dia, uma boa rede para deitar e um café quentinho para tomar enquanto se joga conversa fora. Sossego.

Inquieta que sou, não via tanta vantagem nesses dias de ócio, a não ser pelas provas e pelos trabalhos escolares que costumavam ser adiados em função da data. Ah, isso era bom! No entanto, ficava me questionando o por quê dessa tranquilidade quando da televisão e do rádio saltitava aos meus olhos e ouvidos uma série de cores, sons, sorrisos. Ora, também quero me movimentar! Mas a cidade não me respondia. Até ecoava o desejo, mas calava na resposta.

No começo, tinha de me conformar com as festas improvisadas do jardim de infância. Mamãe arrumava uns retalhos, e estava pronta a fantasia. Um bom batom vermelho não podia faltar. Pelo menos nessa data, podia me maquiar (ou diria, borrar) com cores fortes sem ter ninguém me julgando. Era divertido. Com a sobra de confetes e serpentinas, fazia em casa meu próprio carnaval.

Depois veio a pré-adolescência e junto com os primos do interior, numa cidadezinha do Ceará cujo nome é Quixeré, e o sobrenome pode ser facilmente Em busca da serpentina

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Roberta Souza “Quentura”, ensaiava um mela-mela escondido, com água e maizena, para não afetar os ovos. Vez ou outra também conseguíamos ouvir umas marchinhas e dançávamos com hora certa para encerrar a barulheira. Pelo menos viajar para lá, a umas quatro horas de distância de Fortaleza, já me animava mais.

Precisei crescer um pouco para, no alto dos meus 15 anos, ir à primeira festa “grande” de carnaval. Foi lá também, na cidade da quentura, sob a água das bicas, que descobri o que era o empurra-empurra de uma turma de folião. Com os pisões nos pés, até conseguia lidar, só não me acostumava muito era com a música. Nunca fui muito afeita ao forró eletrônico, mas, já diria o ditado, “quem está na chuva é para se molhar”; e me molhei.

Era necessidade. Já não me conformava em ficar os quatro dias em clausura. Fortaleza fantasma me obrigava a fugir. E, que sorte, tinha encontrado no interior alguns amigos para pular na mesma sintonia. Não sei de onde saía tanta euforia. Mas, de certo, não era apenas influência dos programas rádio-televisivos. A menina precisava romper com o sossego e era na rua que encontrava motivos sonoros e coloridos para sorrir.

Mas encontro bom mesmo foi o proporcionado pela universidade. Sabe mania de calouro de ir abarcando tudo o que vê pela frente, na sede de conquistar cada cantinho que será dele por, no mínimo, quatro anos? Pois é. Essa era eu quando entrei para

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o curso Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), no primeiro semestre de 2011. Tratei logo de me engajar em projetos que me apresentassem de cara tudo que o bairro Benfica pudesse oferecer, dentro e fora das salas de aula.

Na agência Liga Experimental de Comunicação, programa de extensão da universidade, descobri-me jornalista, publicitária, militante e, claro, foliã. Explico. Com a correria das disciplinas e dos cursos de língua que todos começam a fazer no início da faculdade, o único tempo livre que resta para uma reunião de projeto é sexta-feira à noite. Sim, isso mesmo. Não que os pais gostem muito, mas é apaixonante.

Num desses términos de reunião, em plena sexta-feira de fevereiro, uma movimentação dos estudantes veteranos me inquietou. Apressados para voltar para casa? Que nada! Estava todo mundo se arrumando para curtir uma festa de pré-carnaval. Nem sabia direito como funcionava isso, mas resolvi arriscar. Mochila e alguns livros na mão, parti junto deles para a apresentação do Bloco Luxo da Aldeia, ali no Benfica mesmo.

Era noite, o que já contrastava com minhas experiências de carnaval no interior. Mas, em comum, a festa tinha muita gente. As músicas, conhecia poucas, mas soavam exatamente como a melodia das marchinhas que escutava quando criança, ao lado dos primos. Fáceis de memorizar, logo fui assimilando,

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Roberta Souza a ponto de cantar com naturalidade nas sextas subsequentes. Sim, eu voltei. E muitas vezes.

Durante a semana, cantarolava em casa e não conseguia conter a ansiedade de viver um carnaval. Mesmo que pré. Mas, instigante mesmo, foi ouvir mamãe cantar a continuação da marchinha, que eu jurava ser uma composição recente. Nem era. Estava explicado o encontro de diferentes gerações que acontecia na sexta-feira. Eram músicas do passado, cearenses. O carnaval era nosso!

Poderia eu ignorar essa cultura batendo em minha porta? De forma alguma. E, curiosa, tratei de pesquisar. Revirei memórias. Dos livros empoeirados aos CDs arranhados, descobri que tinha história para contar ali. Como assim vivi uns 18 anos sem saber nada disso? Tem gente que vive de carnaval aqui; que passa o ano todo esperando um período que para minha família e tantas outras da cidade é só mais um feriado. Ora!

Estava diante não apenas de mais uma curiosidade de estudante de jornalismo ou mesmo de um conforto em descobrir o que fazer nos dias que antecederiam a quarta-feira de cinzas. Era vida que pulsava naquelas páginas de jornais, nas fotos, nos livros, nos discos. Era poesia em forma de manifestação popular, festejo, alegria. Precisava de mais. Foi aí que descobri como brindar a conclusão do curso. Sem álcool, pois veja só que ironia. Na festa, que passei a descobrir em Fortaleza ano a ano

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dessa graduação, era com a música que me embriagava, e ainda hoje me embriago. Nada de bebida, ao contrário da maioria dos foliões. Menos saltitante, no entanto, asseguro que não fui, não sou. Apenas aprecio de um jeito diferente. Jeito de quem não quer perder nem os detalhes. E termina por registrar um pouco deles aqui.

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carnaval

quentura

blocos

maracatu

escolas

desfile

rua

clubes

iiieeeiiiiiiiii

aperreio

rede

mela-mela

bicas

ritual

diversidade

bailes

canelau

elites

moleque

enfeites

praças

militância

foliões

batuque

raízes

samba

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Antes de começar a viagem

Quando as ruas ainda respiram as festas de final de ano, com árvores e luzes de natal espalhadas pelas grandes avenidas e canções de Noel embalando lojas, restaurantes e lugares afins, os jornais já começam a noticiar: está chegando o (pré-)carnaval. O brasileiro mal se despede de uma comemoração e, prontamente, se insere em outra. É como um ritual. Um ano só termina para o outro começar findado o período de confraternização que se estende por, pelo menos, uns três meses.

Em Fortaleza, houve tempos mais reservados. Outros nem tanto. A questão é que nesse caminhar de fênix, que morre e renasce das próprias cinzas, a festa assumiu, aos poucos, um lugar diferenciado no imaginário do fortalezense. No passado, alguns fatores colaboraram para o esvaziamento da cidade, tais como a venda do litoral como um destino de descanso e não de folia. Hoje, os mesmos motivos parecem até fortalecer essa permanência. Acredite. Nem é tão difícil, basta observar.

Se um dia a divulgação da festa dependeu da “boa vontade” de cronistas como João Brígido (1829-1921), o primeiro a referenciar o entrudo cearense – em 1868 –, já não é isso que se presencia na atualidade. No enfeitado período do início do ano, manchetes e mais manchetes, capas de cadernos diários, especiais na Internet, vídeos na TV e programas contínuos no rádio dão outra perspectiva para essa manifestação.

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Roberta Souza Mas é mesmo na rua que se comprovam as transformações. Já não se passa janeiro, fevereiro e março em mansidão. O aquecimento do pré muda rotinas. Pelo menos um mês inteiro, sem ressalvas na semana ou no fim de semana. Tem programação para todos os gostos. Reside aqui a diversidade.

Com 128 blocos, 15 maracatus, sete escolas de samba, quatro cordões e quatro afoxés oficialmente registrados pela Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), brinda-se uma tradição que, apesar dos percalços, insiste em ser maior, ser mais intensa. Contraria discursos inflamados pela desconfiança. E segue. Muitas vezes, sem apoio público nenhum.

Do poder municipal, o apoio ao pré, que vem ressignificando a dinâmica cultural da cidade, é recente. Data de 2007 o primeiro edital de incentivo. De acordo com a própria Prefeitura, nos editais iniciais, o estímulo a essas atividades veio com a finalidade de “fortalecer as raízes culturais de Fortaleza” (FORTALEZA, 2008) e promover um carnaval que “dispense trios elétricos e opte pela tradição” (FORTALEZA, 2007a).

Ainda que hoje a proposta apareça mais suavizada, prevendo “o fortalecimento e a democratização do Carnaval de Fortaleza, valorizando as tradições e a participação das comunidades locais” (FORTALEZA, 2014, p.3), o diálogo permanece instigando quem faz, quem brinca e quem estuda as origens da festa.

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O carnaval, tido como um ritual nacional que mobiliza a população das cidades onde se realiza, tem muito a contar sobre o Brasil e as formas de representação social do País. Situado numa escala cronológica cíclica, que independe de datas fixas e é marcada pelo relacionamento entre Deus e os homens, a festa se configura num sentido universalista e transcendente. Ilustrando realidades de camadas sociais distintas, ela revela traços culturais construídos simbolicamente por meio do diálogo intergeracional e estabelece, anualmente, novas maneiras de pensar o mundo a partir da música, da arte, da fantasia, das cores, da dança.

Discutir essa manifestação cultural, acima dos estereótipos que ela agrega à imagem do Brasil mundo afora, é entender que aspectos são representativos de um povo que classifica a festa como um bem nacional, capaz de falar claramente sobre suas angústias e prazeres. É ainda uma forma de registrar o que vem sendo produzido aqui, a despeito das imposições culturais de outros países.

Em termos locais, é perceptível a pouca valorização que o carnaval teve ao longo da história. Ainda assim, com a emergência dos desfiles de maracatu na Avenida Domingos Olímpio e dos blocos de pré-carnaval nas principais ruas de Fortaleza, essa tradição foi repensada e assume, hoje, um lugar de maior destaque.

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Roberta Souza As poucas reflexões feitas em torno do tema, no entanto, reduzem as possibilidades de reconhecimento cultural da maioria das pessoas que vivem aqui. Falta à população fortalezense, antes do reconhecimento, o próprio conhecimento dessa manifestação como parte integrante da história.

A fragilidade dos vínculos caracteriza um desligamento prejudicial à cultura local como um todo. A retomada do tema contribui, portanto, para um registro memorial dessa produção no Estado, estimulando a perpetuação da prática como atividade característica de um povo.

A opção aqui é estabelecer um olhar aprofundado sobre as histórias de quem faz e vive (d) o carnaval de Fortaleza, apresentando de forma plural as características dessa manifestação e estimulando, assim, uma recuperação histórico-cultural importante para a memória cearense. Ora, como falar de algo sem retratar minimamente quem respira por ele? É preciso.

Dentro dessa perspectiva, o livro-reportagem “Não é qualquer carnaval” se insere. Debruçar-se sobre a festa como uma manifestação fortalecedora da cultura do Estado, sem perder de vista os interesses do poder público, e primando, por meio de técnicas jornalísticas, pela versão da história de quem ajuda a construir essa manifestação nos últimos anos. Afinal, são essas vozes que indicam os desafios e a necessidade de tornar públicas as cores

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e batucadas características do carnaval.

Compartilhar a festa é, portanto, uma estratégia sensorial. E é basicamente isso que se pretende fazer. Afinal, o fenômeno já foi teorizado do ponto de vista antropológico por alguns autores, sendo Roberto DaMatta e seu livro Carnavais, malandros e heróis (1997), uma referência no assunto. Ao definir essa festa como um momento em que as regras, rotinas e procedimentos são modificados, reinando a livre expressão dos sentimentos e das emoções, o autor refletiu sobre um processo histórico de dramatização.

Caracterizado por uma inversão de valores, o carnaval surge assim como uma festa sem dono, a qual pode ser possuída pelos que nada têm. “Não é por outra coisa que o carnaval pode ser o alvo de todas as projeções sociais. Ele surge, portanto, como uma imensa tela social, onde essas múltiplas visões da realidade social são simultaneamente projetadas” (DAMATTA, 1997, p. 122).

Com o formato escolhido, busca-se uma fuga das produções superficiais sobre o carnaval, o que implica também numa procura pelo preenchimento dos vazios informativos deixados pela notícia por meio de uma narrativa multiangular composta por ingredientes como contexto, antecedentes, projeção no futuro, suporte especializado e perfil dos personagens relacionados ao fato (LIMA, 2004).

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Roberta Souza do livro-reportagem de informar e orientar em profundidade sobre ocorrências sociais, episódios factuais, acontecimentos duradouros, situações, ideias e figuras humanas, de modo que ofereça ao leitor um quadro da contemporaneidade capaz de situá-lo diante de suas múltiplas realidades, de lhe mostrar o sentido, o significado do mundo contemporâneo (LIMA, 2004).

Baseada nessa escolha, a estrutura do livro será conduzida em quatro capítulos, todos cumprindo o papel de retratar o carnaval de Fortaleza como uma manifestação histórico-cultural em ebulição, pertencente ao universo memorial dos cearenses e mais bem contemplada a partir das vivências de quem faz e vive (d)a festa.

No primeiro capítulo, serão registradas as principais características do carnaval de Fortaleza com base na fala de brincantes e nas observações de pesquisadores da área, tais como Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez), Gilmar de Carvalho, Sérgio Pires, José Augusto Lopes, Pedro Alvares e Felipe Araújo.

Já no seguinte, pretende-se verificar a difusão do maracatu cearense a partir do olhar de pessoas ligadas a essa tradição, tais como o músico e artista plástico Descartes Gadelha, o presidente do maracatu Nação Fortaleza, Calé Alencar, o presidente do Maracatu Solar, Pingo de Fortaleza e o secretário geral do Maracatu Az de Ouro, Marcos Gomes.

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mostrar a evolução de alguns blocos de rua e a relação que eles estabelecem com a cidade baseada nas experiências dos organizadores, que não deixam de ser brincantes. Para isso, conta-se com a fala de Janius Soares, fundador do primeiro bloco de pré-carnaval de Fortaleza, o Periquito da Madame; Dilson Pinheiro, gestor do bloco Num Ispaia Sinão Ienche; Fernando Bustamante e José de Castro Moreira, respectivamente, diretor e presidente-fundador do Bloco Unidos da Cachorra; Artur Costa, membro fundador do Bloco Sanatório Geral e os integrantes do Bloco Luxo da Aldeia.

Para finalizar, será traçada uma perspectiva de políticas públicas voltadas para essa manifestação a partir da fala de cada folião contemplado nos capítulos anteriores e também da visão do atual secretário de cultura de Fortaleza, Magela Lima.

A ideia nada mais é que mergulhar e encontrar no oceano de cada história um laço que as conecte, mobilizando ondas de resgate e transformação cultural. Não é difícil, basta vestir-se com a melhor fantasia de leitura e cair na avenida das palavras disposto a entregar-se ao carnaval das memórias. Se preferir, apenas dance!

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Para revirar a memória da cidade

Sol, barulho, pressa, calor. O próximo ônibus sai em dez minutos. No terminal rodoviário, centenas de pessoas se movimentam com as bolsas cheias, as crianças no braço, o telefone no pé do ouvido, os bilhetes em mãos. A ansiedade toma conta de quem vai ver a família, descansar por uns dias, brincar com os amigos, beber com desconhecidos, namorar também. É carnaval em Fortaleza. Quem vai, ganha. Quem fica, perde (?).

O ritual é antigo. Se é para fazer nada, pelo menos seja em outra cidade, que, de preferência, ofereça um tudo. Aqui não. A capital cearense não carrega a fama de foliã. Mais fácil ir até os vizinhos. Recife, Olinda, Salvador. Ora, mais fácil ainda ir para as praias do próprio litoral do Estado. Aracati, Beberibe, Cascavel. Alguém sabe qual a boa do ano? Não se pode gastar quatro dias em vão. É o que se fala, o que se escuta.

Quatro dias. No calendário, a data nunca é precisa. Entre fevereiro e março, a festa tem uma origem que remonta à Antiguidade Pagã, tendo sido incorporado pela tradição cristã na Europa Medieval e transplantado para as Américas, em especial para o Brasil - onde fincou raízes.

Para além da dualidade sagrado/profano, as ideias de renovação e de liberdade propagadas pelo carnaval (do latim carnem leváre, “abstenção de carne”), já diria Bakhtin (1999), são universais e apontam para

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Roberta Souza o futuro e não para a justificação ou a manutenção de um status quo protegido pela Quaresma cristã, tempo de contrição e penitência.

No Brasil, no entanto, foi da tradição oriunda da península ibérica, católica, que beberam os folcloristas. A partir dela se descortinaram os hábitos temporais e, naturalmente, sem delongas, fez-se festa. Mas foi de forma diferente que ela ganhou feição na imensidão geográfica deste País.

Basta voltar para a rodoviária e ver: florescem inúmeros destinos de entrega. Os fortalezenses buscam fora aquilo que não encontram em casa. Argumenta-se a oferta, mas, talvez, resida aí pouca procura.

A capital cearense, por mais estranho que possa parecer, tal como as outras cidades brasileiras, viveu o Carnaval do velho Entrudo, que chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses no século XVII e manteve-se até meados do século XX; o Grande Carnaval, Carnaval Veneziano ou simplesmente Carnaval, de aproximadamente, 1850 a 1950 e o Pequeno Carnaval ou Carnaval Popular, de 1950 até os dias de hoje.

Essa divisão, metodologicamente proposta pela socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, permite-nos mergulhar numa história pouco conhecida, mas deveras importante para a configuração atual dessa festa popular pelos lados de cá, que sim, encontra-se em emergência.

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“cidade fantasma”. É como fechar olhos, ouvidos e boca para uma realidade, mesmo que inventada. Sim, por que não? (Re)cria-se diariamente em resposta à não-tradição propagada por aí. As ruas falam.

Então venha, entre. Sente-se na janela. No caminho, conheça quem faz e vive (d)essa festa. Não são poucos. Mas vale a pena escutar as histórias antes do carnaval passar e a gente simplesmente se acostumar com dias todos iguais.

Para começar, lembremos o Entrudo, antigo carnaval português cujas práticas eram encontradas em vários locais da Europa medieval e moderna, e que chega ao Brasil com os colonizadores, claro. Dentre as práticas, as mais comuns eram as aspersões d’água e outros materiais como “laranjinhas” e farinha, além da invasão das casas amigas.

Em Fortaleza, a pesquisa realizada por Caterina Maria de Saboya Oliveira memorialista cearense atribui as primeiras referências ao Entrudo às crônicas depreciativas de João Brígido (1829-1921). A manifestação era tida como “a sublevação, a licença, na sua mais alta expressão, o desaforo e a porcaria triunfal” ou ainda “uma gargalhada horrenda ao bom senso, uma deposição na praça pública da gravidade humana” (BRÍGIDO, 1969, p.334-336 apud OLIVEIRA, 1997, p.32).

Visão essa, compartilhada ainda hoje pelo memorialista cearense Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. “Eram umas brincadeiras grosseiras, com

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Roberta Souza bastante liberdade. Você fazia o que bem entendia. Eles tinham umas bisnagas grandes que enchiam de qualquer coisa e espremiam no pessoal. Aliás, nós estamos voltando a isso. Hoje colocam um monte de coisa em cima: é talco, é goma, é ovo podre, né?”, reflete.

Era com desprezo também que João Brígido se referia à figura dos Papangus, mascarados que, vestidos com camisolões ou dominós, isolados ou em grupos, andavam pelas ruas a dizer graças. As máscaras, que chegariam a Fortaleza em 1840, tornar-se-iam populares nos bailes dois anos depois. Mas, se estes bailes apontam para uma “civilização” do carnaval, é pelo caminho do “disciplinamento” que são levados os “aspectos bárbaros” dos tais mascarados.

“Com seus entrudos e cordões, o carnaval expressava em parte uma cultura afro-brasileira da qual a elite afinada com os padrões europeus se envergonhava”, revela Needell (1993), na pesquisa dedicada à Belle Époque carioca de 1898 a 1914 e citada por Caterina Oliveira em seu livro. É esse impulso civilizatório que reordena a festa na capital cearense.

“Disciplinaram o carnaval no Rio de Janeiro e ficou mais decente, mais comedido, mais fiscalizado. E isso se refletiu no resto do País. O Rio de Janeiro era a capital e tudo vinha de lá, principalmente cultura”, afirma Nirez.

O dito Carnaval Veneziano, marcado pela rua como centro da festa e pelos bailes das Sociedades

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Carnavalescas, estaria presente em Fortaleza somente nas duas últimas décadas oitocentistas, coexistindo com as práticas do Entrudo. Período áureo, copiado do modelo europeu, deixou em evidência sociedades como os Dragões de Averno, do Clube Cearense, e os Conspiradores Infernais, do Clube Iracema, que marcaram época no carnaval da cidade, a ponto de serem consideradas por Raimundo Girão, ainda de acordo com a pesquisa de Caterina, como “reformadoras dos processos momescos” na capital.

Da rivalidade entre essas sociedades, chegaria ao ápice a ostentação da elite. “Fogo de dinheiro”, descrevia o cronista João Nogueira a respeito do desfile de 1896. A elite emergente fazia do Carnaval uma competição de fortunas, e ganhava, assim, nova feição o espetáculo.

É o Corso, uma espécie de desfile de carros, que irá se somar a ostentação das Sociedades Carnavalescas, já na década de 20. O jornalista e folião histórico José Augusto Lopes recorda sua participação no Corso que percorria a Avenida Dom Manuel, décadas mais tarde. “Não chegavam a ser carros alegóricos. Era mesmo o carro da pessoa e os meninos fantasiados todos sentados. Eu desfilei muito assim”, conta.

O destaque, segundo ele, era a participação das prostitutas. “O Centro de Fortaleza era cheio de casa de bordeis, aqueles casarões antigos. Para escândalo da população local, tinha era um caminhão das prostitutas

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Roberta Souza no carnaval. E desfilavam democraticamente no Corso, ao lado dos carros chiques da cidade. Mas todo mundo esperava a passagem delas, mostrando um pedacinho da coxa”, recorda entre risos.

Ainda nos anos 30, ambientes como Clube dos Diários, Ideal Clube, Clube Iracema e Náutico ascendiam no período momino. Eles se configuravam como espaços elegantes onde os blocos desfilavam com clarins e eram recebidos na batalha de confetes e serpentinas, evolucionando nos salões no que culminaria na entrega de ramalhetes de flores à diretoria.

Mas não era só a elite que se divertia. De acordo com o jornalista José Augusto Lopes, os ditos clubes suburbanos, que tiveram maior participação na festa a partir da década de 1960, também fortaleciam a festa. “Naquele tempo existia uma diferenciação meio elitista. Mas os clubes suburbanos eram dezenas. Todo bairro que se prezasse tinha um ou dois, até três, às vezes. E eles promoviam festas de carnaval com o mesmo sucesso e a mesma frequência”, recorda.

Com o surgimento das agremiações populares no carnaval de rua, Fortaleza passa a diferenciar nitidamente os bailes nos clubes e os desfiles nas ruas. Enquanto os primeiros tornam-se recursos dos “elegantes cidadãos”, das “damas e senhorinhas”, que festejam com alegria a distinção do carnaval, os segundos configuram-se paulatinamente como o

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espaço dos grupos populares, ao lado da classe média baixa, que também integrava os blocos.

Para o músico e artista plástico Descartes Gadelha, essa divisão era reflexo de uma cultura artificial aristocrática instituída desde a formação da capital cearense. “Não existia uma alta sociedade aqui, mas eles se cognominavam assim, ao ponto de essa separação, apartheid, levar as coisas para um lado e para o outro legalmente”, explica. “Como posso provar isso? Muito fácil! Cito a relação Náutico Atlético Cearense, Ideal Clube, Clube Iracema, clube dali, clube dacolá. As pessoas se fechavam, cotizavam para viverem separadas dos maracatus, separadas dos blocos, separadas dos cocos, separadas da cultura”, afirma.

Eram nesses clubes que as pessoas vivenciavam seus anseios europeus, seus sonhos, suas viagens, sua glória, como príncipes e princesas, reis e rainhas pagando uma taxa mensal pela coroação do carnaval. A postura assumida, segundo Descartes, era tão radical que até mesmo na hora de contratarem as orquestras faziam-se ressalvas aos negros cearenses, optando-se por grupos de fora.

Quanto aos clubes mais populares, o músico dá destaque àqueles formados pelas elites do interior, que, ao chegarem na capital, travavam uma guerra com a aristocracia local. Centro Massapeense, Quixadaense, Sobralense, Camuciense, Iguatuense são apenas alguns exemplos citados. “Era a guerra das elites. E nesse

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Roberta Souza intermeio, existia a ralé, o canelau, que era uma ameaça a essas pessoas”, ironiza.

Muito embora os clubes da capital tenham mantido a primazia das festividades no Estado até a década de 1970, foram as agremiações populares que trouxeram importantes inovações no plano estético e antropológico. Entre as décadas de 1930 e 1960, identifica-se um conjunto de iniciativas culturais, artísticas, políticas e econômicas responsáveis por sedimentar uma cultura carnavalesca na capital cearense, as quais embasam a ideia de tradicionalidade dessa manifestação na cidade.

O bloco carnavalesco As Baianas, criado em 1922, é apontado como o precursor do carnaval popular na capital. “Faziam parte do bloco homens casados, respeitáveis senhores e seus filhos que se vestiam de mulher e iam para a rua brincar carnaval”, revela José Augusto Lopes.

Mas é somente na década de 1930, com a criação do bloco Prova de Fogo (1935) e do Maracatu Az de Ouro (1936), associada a eleição do Rei Momo (1936), no Clube Iracema, que a cena cultural da cidade expressa a força mobilizadora e integradora da festa em âmbito nacional.

Os grandes blocos da época não chegavam a ter 70 participantes, mas reuniam os trabalhadores dos setores populares para desfilar nos moldes de um bloco militar de dançantes, com a orquestra de instrumentos

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de sopro e percussão à retaguarda.

A participação direta de profissionais da imprensa foi decisiva para a criação da cultura carnavalesca na cidade. Merece destaque a figura do compositor cearense Lauro Maia, que conquistou projeção internacional com a canção-homenagem feita em 1941 ao Rei Momo I e Único Ponce de Leão.

Um ano depois, desfilava a primeira escola de samba da capital, intitulada Lauro Maia, que posteriormente, em 1946, com a ida do cearense para o Rio de Janeiro, passaria a se chamar Luiz Assunção – em homenagem ao compositor maranhense erradicado no Ceará –, mantendo-se em atividade até 1968. A escola, vencedora do carnaval de rua de Fortaleza em 1947, 1948 e 1949 era um bloco animado basicamente por instrumentos de sopro.

De acordo com Nirez, o ano de 1946 foi um marco no carnaval da capital cearense no contexto pós-guerra. “Tinham saído muito fracos os carnavais de 1944, 1943 e 1942. Muito fraco mesmo, a ponto de nem existir. Era como o de hoje”, critica. “Então, em 1946 foi o carnaval da vitória. Teve mais música vinda do Sul e também várias daqui. Proliferaram os blocos, cada qual com suas cores”, ressalta. Ainda segundo o memorialista, enquanto os blocos executavam os sambas da época, os cordões difundiam as marchas.

O Cordão das Coca-Colas foi uma das agremiações mais famosas a florescer por esses dias.

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Roberta Souza O nome, além de uma referência à bebida norte-americana, era também o apelido dado às jovens cearenses da época que se relacionavam com os soldados americanos instalados no Estoril, ambiente boêmio tradicional da cidade, no período da guerra.

José Augusto Lopes atribui ao Cordão alguns indícios do Ceará Moleque. “Senhores e rapazes travestidos de mulher satirizavam as meninas que namoravam os americanos. Era uma atitude também machista, sabe, porque esses americanos arrasaram. Levaram todas, mas as que não casaram ficaram faladas. Isso, às vezes, só por causa de um beijinho furtivo”, conta.

Os anos seguintes foram marcados pela ascensão dos Clubes e também pela relação mais estreita com a imprensa, com a criação, em 1948 da Associação dos Cronistas Sociais Carnavalescos do Ceará (ACSCC), que congregava os jornalistas encarregados da cobertura dos eventos carnavalescos nos veículos de comunicação.

A boa relação da Crônica Carnavalesca com os clubes e agremiações da cidade auxiliava na difusão da manifestação cultural, mas, ao mesmo tempo, também denotava algumas irregularidades no que dizia respeito à má utilização de recursos, à corrupção na indicação de Rei Momo e ao favorecimento da premiação de clubes.

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movimentação financeira para os promotores e prestígio social para os foliões, o que fortalecia o aspecto segregacionista da festa. A participação efetiva dos setores médios da população no carnaval de Fortaleza viria a intensificar-se mais precisamente nas décadas de 50 e 60, com a criação e o crescimento das escolas de samba inspiradas no modelo carioca.

O bloco “Vaçora Xuja”, que de 1954 a 1957 desfilou como um bloco de sujos, constituído por figuras da vida pública e do mundo artístico, foi um dos primeiros a difundir o samba carioca pelos lados de cá. Uma parceria do bloco, já pelos idos de 1963, com o sargento carioca da Base Aérea João Batista de Almeida, que havia participado da bateria do Salgueiro, inauguraria uma nova fase nas escolas de samba da capital, com a criação, à princípio da “Ceará Moderno”, cujos integrantes, mais tarde formariam a Escola de Samba Alencarina, também inspirada no modelo da Salgueiro.

Da desintegração desta última, que só chegaria a desfilar em 1966, seria fundado o bloco e posterior Escola de Samba Ispaia Brasa, cuja história está contemplada no livro do jornalista Sérgio Pires, “Ispaia Brasa: o bloco que foi escola”.

Tais transformações repercutiram de forma negativa entre os críticos da época e ainda são alvo de duras considerações até hoje. Nirez, por exemplo, é categórico. “Isso acabou com o nosso carnaval,

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Roberta Souza totalmente. O que nós tínhamos de carnaval foi para o brejo”, declara, referindo-se principalmente às mudanças nos julgamentos das agremiações, após a nova configuração baseada nos regulamentos das escolas de samba cariocas.

“O porta-estandarte ficou sem prêmio. A orquestra ficou sem prêmio. Você tinha que ter o que para ganhar prêmio? Mestre-sala, porta-bandeira, comissão de frente, adereços, bateria”, explica o memorialista. Além disso, as categorias passaram a concorrer entre si pelo primeiro lugar, o que gerou profundas discussões entre blocos, cordões, maracatus e escolas da época.

José Augusto Lopes partilha da opinião de Nirez. “Você acha que um carnaval feito assim, na marra, como é o carnaval cearense, quase sem apoio do poder público, sem incentivo de patrocinadores, poderia querer concorrer com as escolas de samba do Rio de Janeiro, nos mesmos moldes? Era impossível”, reflete.

Para o jornalista e professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFC) Gilmar de Carvalho, a transmissão dos desfiles cariocas pela televisão, a partir dos anos 1970 também seria decisiva para a nova configuração do carnaval, tendo em vista um pacote de estímulos difundido por todo o País. “Passamos a ter uma escola de samba que já não era mais aquela Escola de Samba Luiz Assunção, Lauro Maia, Prova de Fogo, mas eram escolas dentro de um modelo com forte apelo visual,

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com muito colorido, muita coreografia. Aí ficamos na caricatura, porque não era nossa cultura”, aponta.

A Escola de Samba Ispaia Brasa teve dez anos de vida (1968-1978), de acordo com os registros do jornalista Sérgio Pires. Sete anos campeã geral do carnaval de rua de Fortaleza, chegou a conquistar oito vezes o título maior da categoria, com notas máximas em vários quesitos. Em 1969, ela marca em definitivo a introdução do modelo carioca de escola de samba, promovendo a vinda de ritmistas da Salgueiro e da Unidos de Lucas.

Em seu livro, Sérgio Pires destaca que a escola tinha pressa em eliminar as raízes, esquecer a folia boêmia e, dentro dessa perspectiva, logo substituir as animadas mocinhas e os divertidos mocinhos pelas novas damas da Corte Imperial, belas e bem vestidas jovens da classe média, dançando com seus longos vestidos de baile.

Gilmar de Carvalho ressalta na escola a presença de adaptações e enredos mais aproximados da realidade local, tais como as homenagens a personagens do Nordeste, mas reconhece um modelo importado. “Não era uma coisa assim totalmente carioca, era meio híbrido. Mas o padrão vinha de lá. Não era algo desenvolvido aqui”, diz.

Diferente de Nirez, que condena a manifestação, o pesquisador tem uma visão mais abrangente da proposta. “A gente não tem nada contra, porque a

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Roberta Souza cultura circula. Mas ela só pode circular quando há um desejo da comunidade de aceitar que ela circule e quando aqueles modelos que são trazidos e que são ‘impostos’ são familiares para as pessoas; elas se sentem bem, se sentem à vontade e não constrangidas de estarem fazendo algo que não é o que elas fazem ou que faziam normalmente”, explica.

Nesse sentido, Gilmar enfatiza um processo de aceitação “natural” que ocorreu nesse período. As mudanças traduziam-se em premiação, em manchetes de jornal, e isso servia de estímulo para os brincantes. “Ficava nas entrelinhas que o que estava sendo trazido era algo elegante, de bom gosto, com outra ideia de carnaval, outras cores, outros movimentos, outras performances enriquecedoras. E aquele carnaval que estava para atrás precisava ser escondido, esquecido. Quando, talvez, não tenho soluções mágicas, o que a gente devia ter feito era trabalhar a partir do modelo que se tinha e não rejeitando-o”, reconhece.

O artista plástico Descartes Gadelha, por sua vez, que participou ativamente das atividades da Escola de Samba Ispaia Brasa avalia positivamente as mudanças pelas quais o carnaval de Fortaleza passou com a inserção das novas práticas culturais adotadas nesse período pela cidade. “O folclore significa, na tradução, a sabedoria popular dominante. E o folclore não pode estagnar. Por quê? Porque a sociedade não fica parada, não estagna. A sociedade é muito dinâmica.

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Sendo dinâmica, ela é folclórica. Se não for dinâmica, ela se acaba, porque ela tem que ser incorporadora, incorporar novas possibilidades”, acredita.

A intenção da Ispaia Brasa, segundo ele, foi exatamente essa: trabalhar a estética da escola de samba cearense com novas possibilidades visuais, novas roupas, novas organizações, sem perder a característica essencial. “O que mudou foram os enfeites, as coisinhas, uma decoração, uma alegoria e alguns valores rítmicos que eu trouxe, que eu incorporei, como a cuíca e o repinique. Mas o samba é o mesmo. Em qualquer parte do mundo, ele é um só: um compasso binário sincopado. Só, pronto”, finaliza.

Como alguém que se dedicou à pesquisa detalhada da história da Ispaia Brasa, Sérgio Pires admite que procurou retratar um momento da vida cultural fortalezense sem estabelecer julgamentos de valor. Mas o jornalista faz questão de salientar: “Como manifestação autêntica do carnaval, a escola morreu no segundo ano de vida”.

Para ele, a partir do momento em que a Ispaia Brasa se afastou da essência das bases mais populares as quais sua constituição estava ligada, ela se tornou um grêmio, sem vida comunitária, assentado basicamente no trabalho de Descartes Gadelha, que concebia os enredos, fazia os figurinos, desenhava as alegorias, adereços e ainda ensaiava a bateria.

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Roberta Souza comum apontado pelos integrantes de diferentes grupos – a falta de apoio das entidades governamentais – foi sendo inviabilizada a continuidade da maioria das agremiações.

Mesmo a ordem tecnocrática que reinou durante o período da ditadura militar de integrar as atividades carnavalescas às políticas de desenvolvimento nacional, por sua reconhecida potencialidade econômica, não seria suficiente para garantir o fôlego da festa do modo como ela vinha respirando nas últimas décadas.

Opta-se, assim, por uma nova saída: o carnaval-participação, animado por trios elétricos e essencialmente vinculado ao litoral do Estado, vendido como destino de praia, viagem, turismo e mela-mela. Desse modo, a capital cearense vai perdendo, aos poucos, sua hegemonia carnavalesca para as cidades do interior.

Na tese de doutorado sobre o Carnaval de Fortaleza defendida pela pesquisadora Vanda Lúcia de Souza Borges, fica evidente um descaso do governo para com as manifestações da capital. “O governo eximia-se de apoiar as expressões culturais que não estivessem ligadas de um modo sistemático à ação do Estado, isto é, às suas próprias instituições, o que correspondia a toda ação cultural de origem independente, quer fosse de origem popular ou erudita (...) Os setores populares não eram reconhecidos como produtores de cultura, nem foram incentivados a sê-lo”, afirma.

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É também nesse período de descentralização dos festejos carnavalescos da capital, mais precisamente na década de 1970, que emerge o pré-carnaval com duas tendências evidenciadas na pesquisa de Vanda Lúcia: a transição das festividades da classe média dos clubes para as ruas, efetivada mediante a criação das bandas carnavalescas das classes médias, tendo como principal desafio a busca de financiamento; e o pré-carnaval promovido pelos dois maiores sistemas de comunicação da cidade, interessados na difusão do “carnaval-participação” com os trios elétricos, realizando festas nos bairros da orla marítima, sendo o evento de maior circulação de turistas, como também nos dos segmentos populares das periferias urbanas.

Ainda na década de 1950, a temporada carnavalesca dos clubes já iniciava-se com a antecedência de um mês. Era o chamado “Grito de carnaval”. As adversidades da década de 1960 fizeram com que os clubes, ressentidos de um esvaziamento nos quatro dias de folias, inventassem seu pré. Foi o caso do Náutico Atlético Cearense e o “Carnaval da Saudade” de 1968 e do Iate Clube e o “Baile do Havaí”, a partir de 1970. Mas nada que interferisse na dinâmica das ruas.

É somente a partir de 1980, com as “Batalhas de Confete” animadas pelas agremiações do carnaval de rua, em praças e demais equipamentos públicos ou mesmo em clubes da periferia que essa movimentação começa a ganhar força, apesar das dificuldades

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Roberta Souza estruturais. São as iniciativas particulares, mais duradouras, que melhor representam este período, tais como a efêmera “Banda de Iracema”, criada em 1981, único ano em que se apresentou.

A Banda propunha-se a iniciar as atividades no último sábado do ano que antecedia o carnaval seguinte. Era no Estoril, que os brincantes se reuniam. Mas algumas propostas, salientadas por Vanda em sua tese, como a de romper com a “inconveniência” da hierarquia provocou a rejeição da classe média, até então habituada com as experiências elegantes dos bailes e clubes.

Outras manifestações surgiriam depois. Assunto para as próximas estações. Permita-me, antes, apresentar algumas histórias e opiniões sobre esse pré-carnaval, que entre inúmeras críticas e transformações, é uma das principais formas de resistência dessa festa popular da cidade ainda hoje.

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Fotos: Arquivo Nirez.

I. Cordão das Coca-Colas e II. Escola de Samba Luiz Assunção, 1950.

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otos: Arquiv

o Nirez.

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A identidade pré

São poucos os que têm o privilégio de nascer em plena festa. Aquarianos e piscianos bem entendem dessa sorte. Janeiro, fevereiro e março: meses propícios para o nascimento de legítimos foliões. Foi mesmo nos primeiros pré-carnavais, mais precisamente o de janeiro de 1953, que despontou entre confetes e serpentinas a vida do jornalista e cineasta Pedro Carlos Alvares.

Um médico, em pleno exercício da atividade pré-carnavalesca, foi chamado para a tarefa no Centro da Cidade. “Salvou a minha mãe e a mim, mas estava bêbado, vinha de uma festa no Náutico”, conta entre risos o cineasta. Nascia ali uma relação de amor.

Alinhado desde a infância com a organização da festa, Pedro recorda os dias leves e os mais difíceis também. “Quando eu era criança, uns 10, 11 anos, nosso carnaval era idêntico ao que eu vi já depois de adulto e pai de família, em Olinda e no Recife Antigo”, diz. “Mas aqui era muito crítico. Nos anos 60, parecia a passeata dos 100 mil, todo mundo com plaquinha esculhambando o governo”, recorda.

Era em resposta a repressão da ditadura que os foliões se manifestavam. “Para azar nosso, o Castelo Branco foi o primeiro “presidente”, o primeiro ditador do golpe militar de 1964, e era cearense. Então, ele tratou logo de dar um jeito no Ceará. Por exemplo, você já viu um carnaval sem bebida alcóolica? Pois teve um em Fortaleza que não podia vender, porque era inconstitucional. Não foi fácil, e foi fundamental essa

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Roberta Souza ação do Estado contra a alegria, a liberdade e o espírito do carnaval de Fortaleza para ele se acabar”, acredita. A situação estava intimamente ligada com a proposta de fortalecer a festa em outros pontos do Estado.

Nos anos seguintes, fortaleceu-se a ideia de preservação da capital cearense como centro emissor de turismo para os demais municípios, localizados principalmente no “cinturão litorâneo”. E foi com ensaios e apresentações de aquecimento no mês que antecedia os quatro dias de atividades momescas, que deu-se início à nova fase.

Entre altos e baixos, a manifestação prévia encontra desafios ainda hoje, principalmente com as reviravoltas dadas a cada quatro ou oito anos, com a mudança da gestão pública da cidade. O artista plástico Descartes Gadelha transfere um olhar crítico, ácido - como ele mesmo faz questão de salientar - a essa prática cultural.

“É uma coisa meio chata esse negócio de fazer pré-carnaval. A palavra pré vem do francês que significa o antes do advir, então, se existe o pré, é porque vai acontecer algo. Mas Fortaleza é tão esdrúxula culturalmente que existe o pré e não existe o carnaval. Quer dizer, é como se tivesse um pré e houvesse um aborto cultural. Foi criado pela inexistência do espírito carnavalesco, que morreu, não existe mais. Mas como você pode criar um pré-gestativo se não tem a concepção uterina? Não existe

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a gestação”, aponta o artista.

Como um ritual, Descartes descreve esta fecundação, que, para ele, tem início no mês de setembro. “Eu começo a desenhar minha fantasia, juntar meu dinheiro e ir me contaminando a cada mês: setembro, outubro, novembro, dezembro… A euforia vai aumentando! Janeiro, Fevereiro! Aí eu paro, do verbo parir. Expilo aquela alegria total, aquela explosão, é o ‘delivance’, a liberação da minha folia”, retrata.

Como num parto, a criança – a grande festa do carnaval – nasce dentro de uma mística de preparativo e transformação. Da transfiguração psicológica e física do folião, dá-se o ritual, a cultura. “Mas se isso for eliminado, não existe mais. Se a pessoa extrair o útero, se o meu útero carnavalesco for extraído de mim por uma condição qualquer, ou política, não importa, eu não posso mais engravidar carnavalescamente”, defende.

O cineasta Pedro Alvares, mesmo tendo participado da organização dos primeiros pré-carnavais da cidade, também não minimiza nas críticas. “Quando falta a alma, o âmago, uma hora cai e não volta mais. Eu estou vendo esse pré-carnaval que é feito hoje – com blocos de repertório baseado nas escolas de samba do Rio – condenado”, desabafa.

Já o pesquisador Gilmar de Carvalho admite as falhas, mas vê de forma positiva o modo cuidadoso como a mídia tem se referido ao pré nos últimos anos.

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Roberta Souza “Ele está sendo tratado de uma forma muito carinhosa e acho que isso é bom, porque o pré-carnaval tem muita espontaneidade. Conheço o pessoal que faz alguns dos blocos e não tem picaretagem, não é para ganhar dinheiro. As pessoas querem sair, querem   brincar e acho que a mídia conseguiu captar isso”, reflete.

Em verdade, a relação entre os profissionais de imprensa e o carnaval de Fortaleza é bem antiga. Afinal, a própria Crônica Carnavalesca já anunciava isso dada sua   criação em 1948. Nas décadas mais recentes, a história não se fez diferente. Exemplo disso na capital é o envolvimento do jornalista Felipe Araújo.

Um dos representantes da movimentação inicial do Bloco Unidos da Cachorra na Praia de Iracema, cuja parada na história ainda está prevista nas próximas páginas dessa viagem, Felipe é ainda mais otimista em relação a festa. “Chegou um tempo em que o carnaval de rua praticamente não existia aqui. Em função do sucesso do pré-carnaval, ele contaminou o carnaval no melhor sentido da palavra. E aí a coisa ganhou corpo”, acredita, tomando como referência o contexto de realização atual.

Ao analisar a forma como o fortalezense tem se relacionado com o carnaval nos últimos anos, o jornalista faz questão de ressaltar os novos laços que vem sendo atados com a cidade. “Vou teorizar um pouquinho”, adianta. “O fortalezense tem uma relação muito esquisita com a sua cidade. Ele sempre procura o

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o espaço privado dentro do espaço público. E o pré-carnaval e o pré-carnaval ajudam-no a ir para a rua, a se reencontrar com a rua”, acredita.

Mesmo sendo um apaixonado pelo carnaval carioca e tendo dedicado dez anos consecutivos à festa momesca do Rio, o jornalista comemora a nova fase. “2014 foi meu terceiro ano em Fortaleza e eu não vou mais sair daqui porque eu gosto mesmo é desse carnaval”, declara, projetando uma cena cada vez mais forte para os próximos anos.

José Augusto Lopes também apoia a realização do pré. “O pré-carnaval foi uma coisa muito salutar. Além de desmentir o mito de que o fortalezense não tem espírito carnavalesco, é uma festa que tem repercussão nacional. Vem gente de fora e você pode ir a qualquer um dos focos que são todos animadíssimos e concorridíssimos”. Na opinião do jornalista, a capital cearense deve se notabilizar ainda mais com essa manifestação. Mas, por outro lado, ele descrê de uma “contaminação” que repercuta nos quatro dias rituais de festa.

“Já está muito arraigada essa mania de sair da cidade. Era preciso um investimento grande para manter as pessoas aqui. E isso não existe ainda nem por parte do poder público nem do privado”, critica. Mas não se desilude por completo. “O pré-carnaval foi um sucesso por si mesmo, como tudo que acontece no Ceará. O povo cria. O cearense é criativo, vai em frente”.

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Roberta Souza Sigamos, então. Há bastante colorido e sonoridade por vir. Algumas vozes orientarão o percurso. Elas cantarão. E pelos caminhos de quem faz e vive (d)essa festa, descobriremos onde vive ou se esconde esta tal alma do carnaval fortalezense. Que ela venha nos assombrar!

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Enquanto ela se organizava para seguir viagem, tocou no ônibus. “Não é qualquer carnaval, não é qualquer litoral que faz a minha cabeça, não”. E o que é que é, Petrúcio Maia? Custa facilitar na hora de dizer a resposta? Nada. Lá vou eu procurar um

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O som das loas e batuques de maracatu Da janela lateral, é possível ver o cortejo. À frente, a baliza abre o desfile vestindo colete, turbante, saiote ou calção, com uma fantasia cujas cores lhe são oficiais. O passo acrobático da dança é marcado ao lado do porta-estandarte, o qual, carregando uma peça confeccionada de cetim ou veludo, com franjas ou rendas na borda inferior e o símbolo identificador pintado ou bordado no centro, anuncia a presença do maracatu. Eles são os guias. E carregam na mão os lampiões, simbolizando a necessidade real dos escravos de manter a chama sempre acesa.

Em filas indianas se apresentam os índios brasileiros, as negras e as baianas. Estas últimas marcam a segunda parte do cortejo, antecedendo o balaieiro, os pretos velhos e a corte real. São representativas a negra da calunga, que conduz em uma das mãos uma boneca de roupa idêntica à dela – símbolo de grandeza, imensidão, deus, mar e morte, como consta no Novo dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes –, e a negra do incenso, que carrega o incenso ou defumador, usado para abrir os caminhos e perfumar o itinerário do cortejo.

Em seguida, vem o balaieiro. Na cabeça, o balaio, cesto de palha carregado de frutas e legumes, configura as oferendas a entidades espirituais protetoras do maracatu. E o personagem evolui com graça, lembrando os antigos escravos de ganho, ao mesmo tempo em que inclui um elemento ecológico no desfile.

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Roberta Souza Então, chegam os orixás e, um pouco mais, o casal de pretos-velhos, usando bengalas e fumando cachimbos, representando a sabedoria e a experiência dos mestres mais idosos das tribos africanas e dos cultos afro-descendentes. Depois deles, a corte real ganha o desfile, com o príncipe, a princesa, o rei e a rainha. Acompanham ainda, as damas de honra, também chamadas de damas do paço, as mucamas e os vassalos.

Um leque e uma sombrinha redonda e colorida carregados pelos vassalos reverenciam e protegem a rainha, figura principal, em honra de quem o cortejo se apresenta. E é o som dos batuqueiros – tocadores de tambores (surdos, bumbos) e ferros (chocalhos, triângulos e ganzás) – que executa a marcação para o canto e a evolução do maracatu. É ainda papel do tirador de loa ou macumbeiro apresentar a toada. Apoiado pelo coro do cordão de negras, estimula todos os brincantes a cantarem temas ligados à cultura, à religião e à história da África e do Brasil, durante o desfile.

A cena é característica da manifestação cearense e ganha o corredor da Avenida Domingos Olímpio, desde 1999, no domingo de carnaval por meio de 15 grupos, todos envolvidos por uma diversidade rítmica e estética, apesar de representarem uma mesma tradição: a lembrança e a reverência às origens africanas, suas formações e identificações culturais.

Os registros dos primeiros cortejos cearenses não estão ligados ao carnaval, é verdade. Aliás, a

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manifestação em si tem outros laços muito mais antigos que antecedem a folia momesca. Herança dos escravos africanos – pertencentes às irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que já no século XVI se reuniam em Portugal –, a festa era desenvolvida no formato de uma peça de teatro, com música e dança em homenagem aos monarcas africanos.

A ligação dos africanos com Nossa Senhora do Rosário, já nos lembraria Pingo de Fortaleza no livro Singular e Plural: A História e a Diversidade Rítmica do Maracatu Cearense Contemporâneo, é apontada pelo jornalista, crítico musical e pesquisador José Tinhorão como uma possível relação entre o rosário cristão e um objeto semelhante utilizado pelo orixá Ifá, por intermédio do qual se consultava o futuro.

Na pesquisa, Pingo identifica na chamada “Coroação de Reis Negros”, que acontecia na Europa, um enredo através de cortejos e representações, fazendo, em geral, referência ao encontro e ao embate entre os cordões do Rei Dom Cariongo – monarca africano que no processo de colonização do reino do Congo pelos portugueses converteu-se ao catolicismo – e a rainha N’ginga N’bandi da Angola, que se aliou aos mouros na luta contra os portugueses cristãos.

A similaridade da manifestação é notabilizada no Brasil a partir da criação das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em diferentes territórios. Em Pernambuco, os primeiros registros datam do século

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Roberta Souza XVII, enquanto em Fortaleza, somente em meados do século XIX surgiriam as primeiras notícias de festejos.

O músico e estudioso da manifestação Descartes Gadelha retoma o período em que o Brasil estava sob a égide do rei Dom Manuel para exemplificar o comportamento dos escravos africanos, que associavam o monarca a um ser divino. “Aos domingos pela tarde, quando eles terminavam os trabalhos, vestiam as fatiotas, aqueles paletós grandes doados pelos patrões, ou botavam saia de mulher. Ficava tudo muito bonito e iam para a missa tocando seu ritmo”, afirma.

Segundo ele, apoiado em leituras de Câmara Cascudo e de outros mestres, após os cânticos, as danças e as brincadeiras, os negros voltavam para casa, mas, quando retornavam, enfrentavam o preconceito aristocrático no caminho. “Chamavam de tudo que você pudesse imaginar: doido, maluco, porco espinho, vários apelidos”. Descartes explica ainda que Catu é a referência a um porco espinho e Maraca, a um instrumento. O nome maracatu seria, no entanto, mais do que isso, uma senha, um código para dizer que a polícia estava chegando.

“Os militares prendiam os negros, açoitavam e é por isso que a palavra maracatu, um apelido dado pelos brancos, era utilizado imediatamente como um sinal de aviso: debanda, negada, que a polícia vem aí!”, reforça, fazendo questão de lembrar que, apesar de não

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estar vivo na época, é essa a ideia transmitida pelos pesquisadores do passado.

O músico aponta o maracatu como um verdadeiro teatro desde esse período, no qual a rainha, uma senhora negra, representava para os escravos uma dama de muita importância. “Ou ela tinha sido negra na África ou era filha, neta ou bisneta de um negro, de uma pessoa importante, de um político em sua terra”, explica.

Mas de volta aos festejos especificamente na cidade de Fortaleza, a pesquisa de Pingo ressalta ocorrências registradas para além das igrejas, nas praças e nos logradouros, compactuando com uma dinâmica cultural que agrega e renova conteúdos e valores, deslocando-se e modificando-se no espaço e no tempo. A movimentação ocorria, normalmente, no primeiro fim de semana de outubro, instituído pelo Papa Pio V, em 1571, para as comemorações da Festa de Nossa Senhora da Vitória – por sua vez, denominada a partir de 1573 pelo papa Gregório como Festa de Nossa Senhora do Rosário.

É ainda nas últimas décadas do século XIX, no período de realização das festas dos “Autos dos Congos” nas praças que começam a aparecer os primeiros escritos sobre maracatu no carnaval da cidade. Trata-se de relatos e crônicas de vários escritores cearenses, tais como Gustavo Barroso e João Nogueira, referindo-se a grupos de homens negros (ou pintados de tinta negra)

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Roberta Souza fantasiados e tocando instrumentos percussivos no carnaval.

Pingo de Fortaleza atribui às manifestações citadas, dentre as quais merecem destaque o Maracatu do Oiteiro, o Maracatu Cosme Damião, o Maracatu da Apertada Hora e o Maracatu do Morro do Moinho, a denominação “maracatus do século XIX de Fortaleza”. Segundo o pesquisador, o termo define os agrupamentos existentes na cidade anteriores à fundação dos maracatus com atividades eminentemente carnavalescas, como, por exemplo, o Maracatu Az de Ouro, fundado em 1936.

São poucos os registros dessas manifestações citadas pelos cronistas. Não foram encontrados materiais sonoros e são escassas as referências precisas de suas origens, caráter social, relações religiosas, familiares e características estéticas. Assim, a partir do enfraquecimento da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por inúmeros motivos, tais como o processo de romanização e o crescimento urbano, a diminuição da dinâmica de apresentação dos Congos e o desaparecimentos dos “maracatus de Fortaleza do século XIX”, deixa consolidada a expressão cultural do maracatu mais precisamente na esfera carnavalesca.

Dentro dessa lógica, é a atitude de um experiente brincante de Congo, general de fragatas e outros folguedos da cultura popular que irá definir

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os novos rumos dessa manifestação na capital cearense. Raimundo Alves Feitosa, mais conhecido como Raimundo Boca Aberta, fecunda em 1936 o embrião da maioria dos grupos que passariam a existir em Fortaleza até os dias atuais, com a criação do Maracatu Az de Ouro, convidado ainda naquele ano pelo rei momo Ponce de Leon para desfilar no carnaval.

Exímio tecelão, Boca Aberta trabalhava fazendo redes e, chamado pelo patrão, para passar uma temporada no Recife (1930-1932), teve os primeiros contatos com o maracatu de Pernambuco e as demais manifestações carnavalescas daquele estado. Ali, o lado artista ficou ainda mais desperto, o que contribuiu para a consolidação da festa na capital cearense após o retorno dele. Isso conduziu por muito tempo o pensamento difundido por alguns pesquisadores, como Nirez, por exemplo, de que o maracatu cearense é uma importação. Na visão do historiador, é preciso separar o espetáculo folclórico do século XIX das atividades desenvolvidas no carnaval.

Mas a questão gera embate. O jornalista e professor Gilmar de Carvalho – um dos mais respeitados pesquisadores da cultura no Ceará – discorda desse modelo de importação e cita a existência das irmandades no Crato e em Icó, Aracati, Fortaleza e Sobral, que registravam o cortejo de africanos no século XIX, como pioneiras da manifestação no Ceará.

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Roberta Souza Descartes Gadelha, por sua vez, enfatiza: “Só existe um maracatu. O maracatu é maracatu, tanto faz ser aqui como na Europa. O maracatu cearense é igual, nem poderia ser diferente do de Pernambuco. Não pode porque é a mesma matriz, foram as mesmas pessoas que trouxeram: os imalês”.

As diferenças musicais e estéticas entre o maracatu cearense e pernambucano, no entanto, são observáveis em vários aspectos. De início, o maracatu cearense participava das festas religiosas da Igreja, apresentando-se hoje como bloco carnavalesco. Em Pernambuco, o maracatu está estreitamente associado aos terreiros de candomblé ou umbanda.

Os personagens do cortejo também são distintos. O cearense conta com o balaieiro, os pretos velhos e uma maior representatividade dos índios, enquanto no maracatu pernambucano o destaque é para a presença de várias calungas. Além disso, sempre houve, no Ceará, a tradição de todos os brincantes, com exceção dos índios, pintarem a cara com tinta preta brilhante. No maracatu pernambucano, os brincantes não pintam os rostos.

Quanto à musicalidade, o ritmo e os instrumentos utilizados também são diferentes. O ritmo do maracatu cearense é mais lento, semelhante ao auto dos congos. Cadente, dolente e solene. Já o maracatu pernambucano é mais acelerado, usa a caixa com esteira e tem ritmos característicos:

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baque virado e baque solto.

Na pesquisa desenvolvida por Pingo de Fortaleza, no entanto, fazem-se ressalvas a essas divisões rítmicas. O primeiro registro sonoro da manifestação data de 1943. Numa gravação realizada pelo musicólogo Heitor Corrêia de Azevedo, Raimundo Alves Feitosa interpreta músicas executadas em ritmos como coco, samba e baião de maracatu e maracatu solene, em andamentos distintos, o que aponta para a pluralidade rítmica desde o princípio.

Pingo ressalta ainda que, um ano antes, em 1942, uma matéria do jornal O Povo registra a chegada do cineasta americano Orson Welles no Ceará e a recepção, imagine, já era guiada pelo coco de maracatu apresentado pelos pescadores do Mucuripe.

Com o avançar das décadas e o surgimento de outros maracatus – como Az de Espada, Leão Coroado e Estrela Brilhante –, os desfiles no carnaval tornaram-se frequentes em frente aos palanques dos órgãos de imprensa, montados em diversos locais do Centro da cidade. A partir de 1960, a prefeitura estabeleceu um itinerário menor para os grupos e definiu o domingo como único dia de apresentação dos maracatus.

Nesse período, os concursos de fantasias também alterariam a dinâmica do desfile, chegando até mesmo a influenciar no ritmo plural iniciado em 1942. A pesquisa de Pingo de Fortaleza reforça que a indumentária pesada dificultava a apresentação

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Roberta Souza dos brincantes no desfile, já que o trajeto era seguido por um ritmo de andamento acelerado. Assim, os grupos passaram a adotar um ritmo único para os batuques, em andamento lento, semelhante ao solene utilizado na solenidade de coroação da rainha negra.

Descartes Gadelha aponta outro motivo para essa escolha da maioria dos maracatus cearenses. Para o músico, os brincantes se apaixonaram pelo ritmo solene e fizeram dele o único elemento da festa. No entanto, essa transformação, segundo Descartes, também estava inserida dentro de um contexto segregacionista.

“Muita gente branca migrou para dentro do maracatu e não tolerava coisa de negro. Olha que coisa dramática! As pessoas brancas, da alta sociedade, artistas que migraram para o maracatu nessa época diziam: ‘Vamos desfilar só com essa roupa, esse ritmo lento, porque é um ritmo elegante. Dá para a gente arrasar com uma fantasia maravilhosa de 200 kg nas costas?’ E não dá para dançar…” – critica.

Na opinião do músico, essa característica, que se reflete até hoje nas apresentações, empobrece a manifestação. “O maracatu de Fortaleza hoje é um espetáculo visual. Precisa de batuque? Não precisa. Mas bote qualquer coisa só para dizer, ‘bem devagarzinho para não incomodar meus ouvidos porque eu tenho horror ao barulho’”, ironiza entre risos.

Há, no entanto, quem veja com outros olhos essas mudanças. Inclusive os representantes do

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maracatu tradicional cearense. Antes de travar esse diálogo, portanto, permita-me fazer algumas paradas de apresentação. Nas próximas páginas, iremos conhecer alguns traços da história dessa manifestação por meio das falas de Antônio Marcos Gomes da Silva, secretário do grupo mais antigo e ainda atuante no carnaval de Fortaleza, o Maracatu Az de Ouro; Calé Alencar, presidente do Maracatu Nação Fortaleza; e João Vanderley Roberto Militão (Pingo de Fortaleza), presidente do Maracatu Solar.

Com perspectivas diferenciadas, cada um enaltecerá pontos que melhor identificam suas práticas culturais, destacando, como gestores, os desafios e a necessidade individual e coletiva de vencê-los. Prepara os instrumentos. Vamos maracatucá!

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Grupos de Maracatu na Avenida Domingos Olímpio.

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Referências

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