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PET / FILOSOFIA UFPR. (Fichamento da segunda parte do capítulo 1, do livro Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, de Alexandre Koyré)

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PET / FILOSOFIA – UFPR

Bolsista: Luiz Data: 12.03.2014

(Fichamento da segunda parte do capítulo 1, do livro Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, de Alexandre Koyré)

*

Capítulo I: O céu e os céus (The sky and the Heavens) – Parte II

Nicolau de Cusa (continuação)

(...)

Segundo Koyré, não é possível alcançar um conhecimento preciso a partir do universo descrito por Nicolau de Cusa. Seu caráter “instável”, revelado pela falta de uniformidade nos movimentos físicos e a carência de um ponto central (observável) que oriente as disposições do cosmos, não permite que haja uma representação unívoca e objetiva do universo. Os registros “científicos” que partissem do exame das atividades dos entes intramundanos não teriam caráter de absoluto, mas apenas parcial e conjectural1. Isto pois nenhum ente é igual a outro, e, por conseguinte, não há nenhum movimento aparente que possua inteira regularidade no universo; tudo é desigual. – E, como seria possível uma ciência precisa onde nenhuma atividade serve de parâmetro a outra? Ou seja, como seria possível qualquer resolução cientificamente segura acerca do universo, quando este está sempre revelando que, em suas atividades (relacionais), não há segurança absoluta? Por questões como estas, tornam-se compreensíveis as formulações que põem em xeque o posto de Nicolau de Cusa (como precursor de Copérnico ou como um moderno, por exemplo) e interrogam sua relevância à ciência que o sucedeu2. Pelo apresentado, e levando a exposição da Douta Ignorância às considerações astronômicas que haviam se desenvolvido até à época do cardeal, Koyré afirma

1 KOYRÉ, Alexandre. From the Closed World to the Infinite Universe. Baltimore: T. J. Hopkins Press, 1957. p.

8.

2

(2)

que não apenas o conteúdo factual, mas o verdadeiro ideal da astronomia grega e medieval é falacioso e deve ser abandonado3.

Dado esse pequeno contexto, o autor de Do Mundo Fechado ao Universo Infinito diz:

Contudo, Nicolau de Cusa vai ainda mais longe e, arrancando a (penúltima) conclusão desde a relatividade da percepção do espaço (direção) e movimento, ele afirma que a imagem de mundo [world-image] de um dado observador é determinada pelo lugar que ele ocupa no universo; e como nenhum desses lugares pode alegar um valor absolutamente privilegiado (por exemplo, aquele de ser o centro do universo), nós temos que admitir a possível existência de diferentes, e equivalentes, imagens de mundo, o caráter relativo – no pleno sentido da palavra – de cada uma delas e a total impossibilidade de formar uma representação objetivamente válida do universo.4

O que se tem em jogo, portanto, é a possibilidade de que os conhecimentos relativos ao modo de funcionamento do universo variem de acordo com a posição na qual esses conhecimentos estão sendo “retirados”. Se se considera, por exemplo, a terra como o centro do universo, isto ocorre pois, em um âmbito genérico, a Terra é o plano para todas as visualizações celestes; ela (a Terra), comportando os homens, serve de palco comum a todos que estiverem olhando o céu. No entanto, em um âmbito restrito, onde os zênites - mesmo a partir da terra - se alteram pela própria forma (arredondada) do plano observacional, não há como postular um centro fixo, já que qualquer posição onde o observador estivesse seria apenas parcial e não levaria em conta as demais posições existentes na superfície. Como nos mostra Nicolau de Cusa, ainda que nos esforcemos para considerar as disposições terrestres como centro do universo, a diferença observacional que se revela a partir dessas instalações indica que as concepções resultantes desses pontos não são constantes, pois há sempre uma disposição terrestre distinta para “reafirmar” o centro ou aquilo que se pretende uniforme (estável, fixo). Em outras palavras, “como os antípodas têm, como nós, o céu acima, assim, aos que existem em ambos os polos, a Terra lhes pareceria estar no zênite, e, qualquer lugar que fosse, creria estar no centro”5

. Ademais, sempre parecerá ao observador, estando ele na Terra, em Marte, na Lua, no Sol ou em qualquer outro astro, que ele se encontra no centro. Os polos referentes aos movimentos celestes sempre serão determinados a partir do próprio observador, que, podendo ser encontrado em pontos distintos do universo, refletirá, nas díspares organizações cosmológicas, que o centro está em toda parte. Assim sendo, “a

3 Ibid. p. 16. 4 Id.

5 et sicut antipodes habent sicut nos caelum sursum, ita existentibus in polis ambobus terra appareret esse in

(3)

máquina do mundo terá o centro em qualquer lugar e a circunferência em nenhum, pois a circunferência e o centro são Deus, que está em todas e em nenhuma parte”6

.

Diante disso, bem como dos demais apontamentos feitos pelo cardeal, Koyré afirma:

Nós não podemos deixar de admirar a ousadia e profundidade das concepções cosmológicas de Nicolau de Cusa, quais culminaram na surpreendente transferência ao universo da pseudo-hermética caracterização de Deus: “uma esfera da qual o centro está em todo lugar e a circunferência em nenhum”. Mas nós devemos reconhecer também que, sem ir mais além dele, é impossível liga-las [as concepções de Nicolau] com a ciência astronômica ou basear sobre elas a “reforma da astronomia”.7

A impossibilidade de ligar as teorias de Nicolau de Cusa às concepções astronômicas da ciência que se desenvolveu logo após a sua aparição, revela – talvez – o porquê de o desdém com relação ao conteúdo de sua obra por parte dos cientistas que foram surgindo na sua contemporaneidade. Mesmo que alguns tenham tido contato com o que fora escrito, poucos – próximos de sua época – reconheceram qualquer influência do cardeal nas novas teorias cosmológicas que inauguraram a modernidade.

É certo que, apesar da falta de reconhecimento imediato, poderiam ser encontrados diversas relações entre o que fora apresentado por Nicolau e aquilo que o sucedeu – cientificamente falando. No entanto, desde o literal do De Docta Ignorantia, é muito difícil extrair uma afirmação peremptória – que possua estrutura formadora de conhecimento técnico - acerca dos objetos estudados pela ciência. “Além disso, em profunda oposição à inspiração fundamental dos fundadores da ciência moderna e da visão de mundo moderna, que, certa ou erroneamente, tenta afirmar a panarquia da matemática, ele [Nicolau] nega a mera possibilidade do tratamento matemático da natureza”8.

Depois das considerações acima, Koyré menciona outro aspecto da dita “cosmologia de Nicolau de Cusa”, que, segundo o autor, talvez fosse, historicamente falando, o mais importante9: “sua rejeição da estrutura hierárquica do universo e, bem particularmente, sua recusa – junto com sua [da Terra] posição central – da singularmente baixa e desprezível posição designada à Terra pela cosmologia tradicional”10. No entanto, Koyré afirma que, em casos de ordem especificamente físico-científica, a profunda intuição metafísica do cardeal “é estragada por concepções científicas que não eram avançadas, porém, ao contrário, estavam

6 Unde erit machina mundi quasi habens undique centrum et nullibi circumferentiam, quoniam eius

circumferentia et centrum est Deus, qui est undique et nullibi. (capítulo XII, livro II)

7 KOYRÉ, Alexandre. From… p. 18. 8 Ibid. p. 19.

9 Id. 10

(4)

atrás de seu tempo; tal como, por exemplo, a atribuição à Lua e mesmo à Terra de uma luz de si próprias [of a light of their own]”11.

O “desligamento” das concepções que ramificavam o universo em uma estrutura hierárquica - e, automaticamente, a recusa de que a Terra estivesse em um ponto bastante inferior dessa estrutura – vieram com argumentos que aventam a incapacidade de se identificar parâmetros (ou medidas) que pudessem delimitar as “castas celestes”. A falta de um ponto fixo (ou um conceito fixo) aparente que instaurasse um mínimo e um máximo para onde os astros (ou mesmo todos os entes) pudessem se desenvolver fez com que toda uma estrutura de valores fosse deixada. Qual é a medida para se saber que um astro é mais valoroso que outro? – A medida é Deus. Contudo, se Deus não é nenhum ente e nem está em um lugar específico dentro do cosmos, como “usar” essa medida para saber qual é o astro mais desenvolvido? Não há como, pois não há como relacionar Deus à coisa alguma. Assim:

Vemos, pois, claramente como o máximo é o mesmo que a esfera máxima; de que maneira é a única medida simplíssima e adequadíssima de todo o universo e de tudo que existe no universo, posto que nele não é maior o todo que a parte, como não é maior a esfera que a linha infinita. Deus, pois, é a única simplíssima razão de todo o universo, e, do mesmo modo que depois de infinitas circulações se origina a esfera, assim, Deus como a esfera máxima, é simplíssima medida de todas as circulações, pois toda vivificação, movimento e inteligência é desde Ele mesmo, Nele e por Ele...12

Dessa forma, os argumentos que encadeavam (a partir dos elementos físicos que se apresentavam como medida) a estrutura hierárquica do universo não prosperariam mais. As “cabeças” que eram usadas para organizar os ramos da estrutura, por se darem através das relações entre os entes, não serviam mais às concepções do cardeal. Na perspectiva do infinito (do maximum), o que poderia ser grande, belo, estar mais no centro ou ser o mais ínfimo? Nada pode ser comparado ao infinito - e, portanto, quando se está em jogo a ordem hierárquica do universo, cujo modo avaliativo se dá pela proximidade (ou centralidade) do ente avaliado ao máximo (ou Deus), não há como colocá-lo frente a outros entes. Assim sendo, em uma perspectiva geral, só caberia dizer: “do qual se infere que toda criatura, enquanto tal, é perfeita, ainda que pareça menos perfeita com relação a outra”13

.

Nesse contexto, coube o trecho citado por Koyré, quando é dito, entre outras palavras:

11 Ibid. p. 19 – 20.

12 videmus nunc clare, cum maximum sit ut sphaera maxima, quomodo totius universi et omnium in universo

existentium est unica simplicissima mensura adaequatissima, quoniam in ipso non est maius totum quam pars, sicut non est maior sphaera quam linea infinita. Deus igitur est unica simplicissima ratio totius mundi universi; et sicut post infinitas circulationes exoritur sphaera, ita Deus omnium circulationum – uti sphaera maxima – est simplicissima mensura. Omnis enim vivificatio, motus et intelligentia ex ipso, in ipso et per ipsum... (capítulo XXIII, livro I)

13 ex quo subinfertur omnem creaturam ut talem perfectam, etiam si alterius respectu minus perfecta videatur.

(5)

Tampouco é a Terra uma parte proporcional ou alíquota do mundo, pois, não tendo o mundo máximo nem mínimo, não tem meios nem partes alíquotas, como tampouco o homem ou o animal, pois a mão não é uma parte alíquota do homem, ainda que seu peso pareça estar em proporção ao corpo e o mesmo possa se dizer com respeito a magnitude ou a figura. Tampouco a cor negra [da Terra] é um argumento sobre a sua vileza. Pois, se alguém estivesse no Sol, não veria a claridade que é vista por nós.14

Ademais, a Terra, para o cardeal, é um astro nobre, pois possui luz, calor e influência distinta e diversa dos demais astros. Esta nobreza, no entanto, está no fato de ela ser ela mesma, de uma forma ou de outra, no cosmos. Não é uma relação de bem-nascença (nobreza) com outros astros, mas, ao contrário, um “desenvolvimento de si pela própria razão”15 (- se é que é possível utilizar estes termos) que acaba influenciando outros astros. Portanto, o adjetivo “nobre” (nobilis) não se dá de maneira a configurar um painel hierárquico de entes que se dispõe no universo, porém, de outro modo, ele se ilumina com o grau de “desenvolvimento de si” de cada ente, que pode, por ventura, se relacionar com outros entes. A relação (a influência entre os astros) que configura outro ente (por exemplo, o sistema solar ou/e o próprio universo), cujo aparecimento não se dá em prol de uma parte dessa união (desse ente), como se fosse em prol do Sol ou da Terra (tais como as teorias heliocêntricas ou geocêntricas), mas porque os entes estão sempre à mesma razão; em outras palavras, a diversidade de entes se reúne e aparece em forma de um outro ente, pois eles possuem a mesma razão de ser. Por isso, o cardeal enuncia:

Disso se manifesta que não é cognoscível pelo homem se a região da Terra seja mais perfeita em grau ou mais ignóbil com respeito às regiões dos demais astros, que a do Sol ou a da Lua e as restantes. Tampouco com respeito ao lugar, porque este lugar do mundo seja habitação dos homens, animais e vegetais, que são mais ignóbeis que os habitantes do Sol e de outros astros[...]. Assim, pois, o homem não apetece outra natureza, senão só ser perfeito na sua.16

Por isso, Koyré afirma:

14

neque est ipsa terra pars proportionalis seu aliquota mundi. Nam cum mundus non habeat nec maximum nec minimum, neque habet medium neque partes aliquotas, sicut nec homo aut animal; nam manus non est pars aliquota hominis, licet pondus eius ad corpus videatur proportionem habere; et ita de magnitudine et figura. Neque color nigredinis est argumentum vilitatis eius; nam in sole si quis esset, non appareret illa claritas quae nobis. (capítulo XII, livro II)

15 Conforme nos fala Nicolau de Cusa, “nenhuma coisa é, pois, em si mesma, exceto o máximo, e, toda coisa que

por sua razão é em si mesma, é porque sua razão é o máximo” [nulla igitur res est in seipsa nisi maximum, et omnis res ut in sua ratione est in seipsa, quia sua ratio est maximum. (capítulo XVII, livro I)]

16

quare patet per hominem non esse scibile, an regio terrae sit in gradu perfectiori et ignobiliori respectu regionum stellarum aliarum, solis, lunae et reliquarum, quoad ista. Neque etiam quoad locum; puta quod hic locus mundi sit habitatio hominum et animalium atque vegetabilium, quae in gradu sunt ignobiliora in regione solis et aliarum stellarum habitantium [...]. non enim appetit homo aliam naturam, sed solum in sua perfectus esse. (capítulo XII, livro II)

(6)

De fato, no infinitamente rico, infinitamente diversificado e organicamente ligado-junto [linked-together] universo de Nicolau de Cusa, não há centro de perfeição em respeito ao qual o resto do universo poderia exercer uma parte subserviente; ao contrário, é por serem eles próprios, e afirmarem suas próprias naturezas, que os vários componentes do universo contribuem para a perfeição do todo. Assim, a Terra, em seu modo [way], é tão perfeita quanto o Sol ou as estrelas fixas.17

Por meio da perspectiva comentada por Nicolau, todos os valores derivados das relações de entes poderiam ser postos em xeque, já que não é possível saber – tendo em vista Deus – qual é a razão (em termos de conhecimento) do todo ou de cada ente em particular. Até o modo como os entes aparecem aos nossos sentidos poderia ser apenas mais um modo frente à infinitude. O fato de o cardeal ter afirmado, por exemplo, a luminosidade própria da Terra e da Lua não parece nada absurdo nessa perspectiva. Imaginemos, talvez, que aquilo que é a Terra e a Lua, aos nossos olhos, seja tal que não pareça produzir luz; no entanto, para uma forma distinta da nossa, cujo modo de ser permita que os nossos elementos negros sejam vistos como extremamente claros, ao modo, por exemplo, da nossa luz solar18, esse enquadramento é perfeitamente possível. Até mesmo a afirmação de habitantes do Sol não é nada absurda, se pensarmos que nossos instrumentos (corpo e tecnologia mecânica) não são capazes de visualizar aquilo que talvez seja mais sutil que o grosseiro de nossa matéria, e, por isto, não revelem formas que não nos são imagináveis.

O fato é que não há como ter certeza acerca do que nós mesmos conjecturamos sobre o universo ou aquilo que nós nos relacionamos. Por mais que tenhamos constatações diversas que provem ou deem referências contundentes acerca das noções que nós postulamos, não há como dizer que esses são os parâmetros dados pelo plano divino a nós. Afinal, segundo Nicolau de Cusa, “nada podemos responder sobre nós, nem por nós, pois não temos a ciência sobre nós, senão só Aquele por cujo entender somos o que Ele quer, manda e sabe. Todas as coisas são mudas e é ele o que fala em todas, e Ele só é quem sabe o que somos e como e para quê. Se desejas saber algo sobre nós, busca-lo em nossa razão e em nossa causa, não em nós”19

.

17 KOYRÉ, Alexandre. From… p. 21.

18 Deus, em um determinado momento do capítulo XIII, do livro II, do De Docta Ignorantia, é caracterizado

como “a luz inacessível” (lucem inaccessibilem). Essa luz, que é responsável por tudo, não nos é de conta; o que impede, dada a perspectiva do infinito, que hajam luzes, dentro do quadro universal, que também nos são inacessíveis – mesmo à nossa fronte?

19 ex nobis nihil neque ex nobis tibi aliud quam nihil respondere possumus, cum etiam scientiam nostri non nos

habeamus, sed ille solus, per cuius intelligere id sumus, quod ipse in nobis vult, imperat et scit. Muta quidem sumus omnia; ipse est, qui in omnibus loquitur. Qui fecit nos, solus scit, quid sumus, quomodo et ad quid. Si quid scire de nobis optas, hoc quidem in ratione et causa nostra, non in nobis quaere. (capítulo XIII, livro II)

(7)

Marcelo Stellatus Palingenius

Após abordar alguns pontos da obra De Docta Ignorantia, de Nicolau de Cusa, Koyré faz referência a Marcellus Stellatus Palingenius, um escritor do século XVI, autor da popular Zodiacus vitae (Zodíaco da vida), obra em versos hexâmetros, dividida em 12 capítulos (um para cada signo do zodíaco), publicada em 1534, e que foi muito utilizada como material didático nas escolas inglesas (e europeias em geral) dos séculos XVI e XVII.

De acordo com a reivindicação feita por alguns historiadores modernos, Palingenius teria afirmado a infinitude do universo – e aí estaria a sua importância para o “desenrolar” do assunto tratado no Do Mundo Fechado ao Universo Infinito -, mas Koyré não parece crer na sustentabilidade de tal reivindicação. Porém, ainda que para o autor os fundamentos que alimentam a reivindicação dos historiadores sejam ainda menores que no caso de Nicolau, Koyré traz algumas questões que integram a obra de Palingenius.

Primeiramente, aliás, há um breve comentário sobre a influência neoplatônica instaurada a partir do século XV no ocidente, que teria acarretado talvez fortes consequências às teorias de Palingenius, principalmente pelo fato de ter havido certa rejeição do caráter absoluto da autoridade aristotélica pelo autor. Não se faz possível afirmar que Palingenius leu Nicolau de Cusa - e, ademais, não se sabe ao certo o que ele estaria lendo em geral, já que o formato de sua obra traz pouquíssimas referências diretas, o que ocasiona diversos problemas aos interessados em analisar os autores que influenciaram a obra Zodiacus vitae.

Quanto à estrutura geral do universo, Koyré cita um trecho de Palingenius, que diz o seguinte:

Alguns creem também que os astros, singularmente, podem

ser ditos “mundo circular” [globo terrestre, orbital – orbes], e, à terra, se dirigem como “astro opaco”: que preside o mínimo do divino (...)20

Com vistas ao pequeno trecho acima, o autor de Do Mundo Fechado ao Universo Infinito afirma que Palingenius não teria em mente Nicolau de Cusa, mas sim os antigos cosmologistas gregos. Isto porque a Terra, segundo a interpretação de Koyré, não era um

20 singula nonnulli credunt quoque sidera posse

dici orbes, terramque appellant sidus oppacum,

cui minumus divum praesit [praesum] (...). (Zodiacus vitae, Livro VII, Libra, versos 497 - 499) Opção de tradução de Koyré (KOYRÉ, Alexandre. From… p. 24.):

But some have thought that every starre a worlde we may call, The earth they count a darkened starre, whereas the least of all.

(8)

astro no Zodiacus vitae: livro que sempre manteve a distinção entre a região terrestre e a região celestial.

A vida (ou aquilo que pode habitar um “território”) não era propriedade exclusiva da Terra. Ainda que os habitantes de nosso globo fossem muito grosseiros, materiais e – por isto – destituído de prestígio, haveria, dado o enorme “espaço” celestial, possibilidade de muitas “espécies” de habitantes (vidas) “extraterrestres” – muito melhores (mais sutis e até incorpóreos) que os da Terra.

Em um breve resumo (que mais parece um índice) do livro VII, do poema didático de Palingenius, Foster Watson diz o seguinte:

Esse livro traz à tona mais questões abstrusas. O primeiro e principal de todos é Deus; Ele é um simples e puro bem. Deus não tem corpo, não como alguém poderia supor: um corpo infinito. Pois, então, não poderia haver espaço para outros órgãos. Vida é uma substância, não um acidente. Provavelmente, muitos seres são, na existência, melhores e mais nobres que o homem, pois são menos corporais e talvez incorpóreos. A deplorável Terra possui muitos animais; provavelmente, o céu contém habitantes que são menos grosseiros e materiais que aqueles da Terra. O poeta dá liberdade à sua imaginação mais alta e alegra-se muito com um mundo melhor que aquele dos homens (...).21

Com relação à infinitude do universo, como visto anteriormente, Koyré comenta que Palingenius não a afirmou. Mesmo que haja a negação da finitude da criação divina, ou talvez, a incerteza com relação a tal finitude22, não há expressões que ditam a infinitude por oposição à suspeita de Palingenius. Fortemente seguro com relação ao poder infinito de Deus e sua plenitude, o poeta conclui que “a obra do onipotente Deus é infinita” (infinitum esse Dei

omnipotentis opus23)24. Isto, no entanto, não quer dizer que o universo, sendo obra e

“depósito” de obra divina, é infinito; pois, ao que me parece, nem todas as obras de Deus fariam parte do universo. Além disso, nenhuma obra divina se compararia ou privaria o próprio Deus; assim sendo, não há de se falar em um universo (que é obra divina) que tenha a qualidade infinita de Deus; - e, caso fosse infinito, não poderia ter corpos em seu interior, ou

21 WATSON, Foster. The Zodiacus Vitae de Marcellus Palingenius Stellatus: an Old School-Book. London:

Philip Wellby, 1908. p. 53.

22 Com vistas à “negação” da finitude do universe, Koyré cita o “princípio da plenitude” [principle of plenitude]

elaborado por Lovejoy, mas ele não explica do que se trata. Então, não há como falar nada a respeito.

23 (Zodiacus vitae, Livro XII, Peixes, versos 53 – 54)

24 Koyré parece estar se referindo a isso que eu citei, no entanto, não faz nenhuma menção ao informado (pelo

menos na edição de 1957 de seu livro) – o que é muito estranho. Supreendentemente, embora diferente da tradução espanhola, as traduções portuguesa e italiana de Do Mundo Fechado ao Universo Infinito incluem outras partes de texto que não foram citadas por Koyré. Ambas, ademais, utilizam como base à tradução a edição de 1957, que, como dissemos, não traz nada a respeito do citado. Não há notas explicativas, não há comentários, não há nada.

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seja, não poderia ter astros. Talvez por isso que Koyré tenha afirmado: “é o céu de Deus, e não o mundo de Deus, que Palingenius afirma ser infinito”25

.

Referências:

CUSA, Nicholas of. De Docta Ignorantia. Minessota: E. Banning Press, 1990. CUSA, Nicolas de. La Docta Ignorancia. Barcelona: Aguilar, [19..].

KOYRÉ, Alexandre. Dal Mondo Chiuso All’universo Infinito. 4. ed. Milano: Feltrinelli, 1981. KOYRÉ, Alexandre. Del Mundo Cerrado al Universo Infinito. Madrid: Siglo XXI, 1979. KOYRÉ, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. 4. ed. Rio de Janeiro: F. Universitária, 2006.

KOYRÉ, Alexandre. From the Closed World to the Infinite Universe. Baltimore: T. J. Hopkins Press, 1957.

KUES, Nikolaus von. Die belehrte Unwissenheit (De Docta Ignorantia). 2. ed. Hamburg: Felix Meiner, 1970.

KUES, Nikolaus von. Opera Cusana. Berlin: Gruyter, 1967.

KUES, Nikolaus von. Opera Cusana. http://www.cusanus-portal.de/

WATSON, Foster. The Zodiacus Vitae de Marcellus Palingenius Stellatus: an Old School-Book. London: Philip Wellby, 1908.

STELLATUS, Marcelus Palingenius. Zodiacus Vitae. Leipzig: Weise, 1871.

25

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