A música como linguagem e a musicologia como idiossincrasia:
a ementa, o conteúdo programático e a bibliografia do curso
“História e Música C”
Carlos Palombini
Da ementa
O teor da ementa de direito é o seguinte:
Signos e funções sociais de elementos constitutivos da linguagem musical em diferentes períodos da história : escalas, temperamentos, modos, tonalidade, serialismo, elementos da retórica, esquemas formais. Funções exercidas pela escrita musical na elaboração da linguagem. Estruturas em músicas de tradição oral. Abordagem histórica e crítica da análise musical enquanto disciplina e suas correntes metodológicas.
“Signos” e “funções sociais” são categorias distintas, e o que quer que se afirme de um termo, dificilmente valerá para o outro. O que seriam estes “signos [...] de elementos constitutivos da linguagem musical” que se devem apresentar em “diferentes períodos da história”? De acordo com Émile Benveniste,1 se a música
é uma língua (na acepção de Ferdinand de Saussure), ela é uma língua que tem sintaxe, mas não tem semiótica — isto é, não tem signos. Se todos estivessem de acordo com Benveniste, as semiologias e as semióticas da música dos anos setenta não se teriam desenvolvido. Mas elas proliferaram,2 e foram esquecidas,
sua reputação comprometida por acusações de envolvimento com o projeto das grandes narrativas, quando, na verdade, eram terrivelmente idiossincráticas. A ementa não alude a signos da linguagem musical, mas a “signos de elementos
constitutivos da linguagem musical”. Que se explique então o que possa ser isso.
1 “Sémiologie de la langue (1)”, in Thomas E. Sebeok (org.), Semiotica 1 (1): 1–12, 1969. 2 Cf. os trabalhos de Umberto Eco, Roman Jakobson, David Lidov, Jean-‐Jacques Nattiez, Willy
Corrêa de Oliveira, Gino Stefani, Eero Tarasti e outros, cujas referências bibliográficas me omito de citar aqui: elas estão listadas na introdução de minha tese de doutorado, “Pierre Schaeffer’s Typo-‐Morphology of Sonic Objects”, departamento de música, Universidade de Durham, Reino Unido, 1993, p. viii.
Note-‐se que a bibliografia do curso que versa sobre “a música como linguagem” não oferece sequer um título fundamental sobre lingüística, semiótica ou semiologia. Em outras palavras, o curso não tem fundamentação teórica.
A segunda parte da proposição é tão enigmática quanto a primeira, e mais evidentemente incongruente: já não se trata de brumas conceituais ou de frases mal construídas, mas de erros propriamente ditos. Ela impõe o estudo de
“funções sociais de elementos constitutivos da linguagem musical em diferentes períodos da história: escalas, temperamentos, modos, tonalidade, serialismo, elementos da retórica, esquemas formais”. Que “elementos constitutivos da linguagem musical” possam ter “funções sociais” é uma novidade para mim. Alguém me saberia explicar a função social do ternário simples? Temos na pós-‐ graduação uma linha especializada em “música e cultura” que deve ser capaz de convencer-‐me disso. Infelizmente, as publicações nas quais porventura se defenda essa teoria não são listadas na bibliografia.3 Ao incluir “escalas,
temperamentos, modos, tonalidade, serialismo, elementos da retórica, esquemas formais” entre os “elementos constitutivos da linguagem musical”, a ementa, mais uma vez, confunde categorias, agora de modo comprometedor para um departamento que se denomina “de teoria geral da música”. Como e quando o serialismo se torna um dos “elementos constitutivos da linguagem musical”? E que “linguagem musical” é essa que se concebe em termos genéricos,
universalizantes? Com muito boa vontade, se poderia ler aí um gesto em direção à sociologia da música. A hipótese não encontra confirmação na bibliografia.
“Funções exercidas pela escrita musical na elaboração da linguagem”, não seria um tema pertinente a “música e seus suportes”, História e Música B? Entre as tantas obras representativas das vanguardas institucionalizadas dos anos
3 Não creio que se trate de modéstia aqui, uma vez que integrantes do grupo não tiveram pudor
de impingir-‐se a si próprios como “leitura obrigatória” na última prova de ingresso no mestrado, ainda que, de acordo com o Google Scholar, até 2 de abril de 2011, ninguém mais os cite no universo das publicações científicas. Para uma verificação, entrar no site <scholar.google.com.br> e inserir na caixa de informações, entre aspas, o termo “Música e História: desafios da prática interdisciplinar”.
cinqüenta, às quais se combinam os textos secundários ou terciários de celebridades locais (nem todas da melhor reputação possível), onde, na
bibliografia, essa questão é abordada com profundidade suficiente para justificar sua inclusão num curso superior de música? Nenhures.
“Estrutura” é o termo chave da música pura, absoluta. Sua hegemonia foi
contextualizada, se não liquidada, há algumas décadas pela musicologia. Trata-‐se de aplicá-‐lo aqui às músicas de tradição oral, numa demonstração brutal de etnocentrismo. Que títulos fundamentais sobre a oralidade se listam na bibliografia? Procurem-‐se!
Por último, “abordagem histórica e crítica da análise musical enquanto disciplina e suas correntes metodológicas”. Eis uma frase bem formulada sobre um tópico pertinente que faz sentido. Na musicologia anglo-‐americana, a crítica sistemática da análise musical, já perfeitamente formulada por Pierre Schaeffer em 1966,4 foi
catalisada pelo artigo de Joseph Kerman “How We Got into Analysis and How to Get out”, em 1980.5 Desde então, Susan McClary6 e Suzanne Cusick7 utilizaram a
análise para mostrar a organização musical como expressão da opressão de gênero, Kofi Agawu8 protestou, e Fred Everett Maus9 falou da análise
4 Pierre Schaeffer, “Les trois impasses de la musicologie”, Traité des objets musicaux: essai interdisciplines, Paris, Seuil, 1966, pp 18–20.
5 Joseph Kerman, “How We Got into Analysis and How to Get out”, Critical Inquiry 7 (2): 311–
331, 1980.
6 Feminine Endings: Music, Gender and Sexuality, Minneapolis e Londres, University of Minnesota
Press, 1991.
7 “Of Women, Music, and Power: A Model from Seicento Florence”, in Ruth A. Solie (org.), Musicology and Difference: Gender and Sexuality in Music Scholarship, Berkeley, University of
California Press, 1993, pp 281–304.
8 “Analyzing Music under the New Musicological Regime”, The Journal of Musicology 15 (3):
297–307, 1997.
9 “The Disciplined Subject of Musical Analysis”, in Andrew Dell’Antonio (org.), Beyond Structural Listening? Postmodern Modes of Hearing, Berkeley, Los Angeles e Londres, University of California
schenkeriana como perversão sado-‐masoquista. Esse debate é bem conhecido, inclusive no Brasil,10 e faz parte da cultura geral da musicologia. Não há traços
dele nas referências bibliográficas. Não há nada sequer sobre cada um dos diferentes sistemas de análise musical. Em que se embasa então essa erudição que se expressa em palavras como “histórica”, “crítica”, “correntes
metodológicas”? Nas nuvens, no ar, no vento. Ela foi substituída por um simulacro de senso crítico. O significado dessas palavras é meramente conotativo. Em outros termos, são pernosticismos.
Do conteúdo programático
O teor do conteúdo programático de direito é o seguinte:
A música como linguagem ou músicas e linguagens? Músicas e sociedades, espelhos e estruturas
Classicismos e neoclassicismos
Com o que se faz a música? Matérias, técnicas e estilos Gêneros e formas
O primeiro tópico coloca a ementa em questão com um jogo de palavras frívolo, pretensamente cheio de espírito. Tão pouco à vontade no passado quanto no presente, na musicologia como na etnomusicologia, na música como na lingüística, o programa não tem outra saída senão pela tangente. “Músicas e sociedades, espelhos e estruturas” seria uma alusão lacunar às noções de infra-‐ estrutura e super-‐estrutura de Karl Marx? Se for assim, é deplorável ver o
filósofo tratado com superficialidade e coquetismo. Dessa forma, quando o tópico “classicismo e neoclassicismo” cai de pára-‐quedas, sem que se saiba de onde nem por que, já nada surpreende. Pode-‐se esperar de tudo.
Da bibliografia
A bibliografia de direito é desatualizada, cita obras questionáveis e questionadas, não fornece embasamento teórico algum nem em linguagem nem em história, e
10 Cf. Heitor Martins Oliveira, “Teoria, análise e nova musicologia: debates e perspectivas”, Opus
não guarda relação nem com a ementa nem com o conteúdo programático, já por si sós incongruentes, e incongruentes entre si.
Note-‐se que, à parte a disciplina de “história e música D”, criada por e para um dos autores do ementário, ela é igual para os módulos A, B e C. É lícito notar também que os módulos A e D têm conteúdo programático preciso: eles foram criados, cada um, por e para cada um dos autores do ementário, que, no presente, os não ministram. São como essas bolsas que ocupam lugares em restaurantes lotados, reservando a cadeira de seus donos. É o retrato do paroquialismo e do compadrio vigentes no que se convencionou chamar “a área de musicologia” na UFMG.
Cita-‐se o New Grove de trinta anos atrás, edição obsoleta desde 2001. E quem quer que escreva “Macmilliam” no lugar de “Macmillan”, evidentemente nunca citou o livro. As chamadas “fontes gerais” não oferecem nem o melhor nem o mais representativo em termos das “histórias gerais da música”. Elas omitem o principal, a Oxford History of Western Music, de Richard Taruskin, em seis
volumes, de 2004, inserindo a história da música ocidental no âmbito da história das idéias. Grout e Palisca são citados numa edição mexicana, quando a tradução portuguesa está disponível desde o ano 2000. É evidente que quem elaborou essa bibliografia não está familiarizado com a literatura da área e nos serve um pot-‐pourri indigesto, tendendo ao modernista, com verniz antropológico, eivado de erros de ortografia.
Do estado “de direito”
O qualificativo “de direito” se utiliza não sem ironia. Não vou entrar em detalhes — não aqui — quanto às táticas através das quais esse direito aberrante se mantém, meramente as cito:
• uma sucessão de comissões — participei de todas — invariavelmente integradas por um bom número de pessoas não comprometidas com a disciplina, cujo resultado são reformas inócuas, seletivamente
implementadas, de acordo com o princípio do plus ça change, plus c’est la
• a designação, para a coordenação da área, de uma pessoa que não atua na disciplina, recém admitida, através de concurso de características
peculiares (eu era membro da Câmara à época);
• uma campanha de difamação profissional e pessoal da qual sou
constantemente forçado a tomar conhecimento por intermédio de colegas e alunos, faz já dez anos;
• uma sucessão de abaixo-‐assinados misteriosos, com número reduzido de assinaturas, ou sem assinatura alguma, dos quais a maioria dos alunos matriculados na disciplina não toma conhecimento, promovidos por orientandos, monitores e protegidos de autores da ementa
(evidentemente, por mera coincidência);
• a instalação, em postos estratégicos, dos autores do ementário, a fim de impor, pela administração, aquilo que não se impõe pelo teor científico.