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Dedico este livro aos meus avós. Moacyr e Conceição. Meus amores de toda a vida. Meu marinheiro, meu amor moreno de olhos agateados que me deu o

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Dedico este livro aos meus avós. Moacyr e Conceição. Meus amores de toda a vida. Meu marinheiro, meu amor moreno de olhos agateados que me deu o gosto pelas palavras e a ternura de se estar no mundo. E a minha velha louca, mulher que apagava incêndios e que me deu a violência necessária para estar viva e permanecer viva.

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Prefácio

Traços, retraços, retratos

Partout il existe des traces non visibles de leur présence et de leur départ.

Jean-Luc nancy

Ler e reler o texto de Raïssa de Goés é aventurar-se em interstícios do con-ceito ali onde ele verte e reverte a vida. algo de convulsivo habita a beleza de sua “travessia”. curiosamente um convulsivo anti-moderno, podería-mos dizer, dada a sua capacidade de desalojar o visível, o memorável, a presença e o corpo de seus espaços delineados, de seus contornos defi-nidores e, sobretudo, de algumas formas dentro das quais habitaram um longo sono.

Sua pesquisa prático-teórica em torno do autorretrato encetou um triplo movimento, cuja definição a própria autora oferece: “estas muitas vozes fizeram o texto e o texto seguiu fazendo-se ao mesmo tempo em que fazia este rosto, este retrato ao qual chamo autorretrato. Produzir o texto, a imagem e o conceito foram gestos que se misturavam”.

O texto, a imagem e o conceito atuam como escritas plástico-poé-ticas que fazem, numa primeira instância, diferir o próprio conceito de escrita daquele de texto, assim como fazem repensar as múltiplas relações em torno da noção de “auto”, tais como autoria, autoridade, identidade, representação e semelhança. Suas escritas acabam por operar naquele que escreve e naquele que lê um efeito de desapropriação. Traço fundamental para se aproximar política e esteticamente dos processos de subjetivação

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no mundo contemporâneo. como disse Raïssa: “conhecimento também não é propriedade. nem a escrita. É minha essa escrita? Quem é que sabe? escrita acontece, acontece em mim, por mim e apesar de mim. assim, como uma embolada. Faca, pés descalços, um calor da porra. uma raiva. um retrato.”

entre o susto e o crivo, a precipitação e a contenção, o disperso e o resto, o desaparecido e o fantasma, o morto e o vivo, uma séria infinita de nuances, de “traços não visíveis”, citando a provocadora e paradoxal cita-ção de Jean-Luc nancy. espaço “entre” que vai incidindo sobre o gesto da escrita de Raïssa crivando corpos, abrindo vazios, fazendo da reflexão e da própria possibilidade de seu autorretrato uma imagem que se mistura ao seu próprio apagamento.

O convite para ler o seu texto, por um lado se inscreve num espaço de reivindicação – voz daquilo que não fala – e por outro lado se “excreve”, se coloca nas bordas do texto, como um toque, um ponto tênue de con-tato, frágil, vertendo sobre o nada, abrindo-nos ao inesperado, muito mais do que ao desconhecido: “Qual é meu gesto? Pergunto a ninguém, per-gunto ao silêncio, a esse jeito de fim de festa no qual se encontra meu peito depois que eles, os que fizeram o texto, me deixaram. ninguém responde. nenhuma voz canta ao longe. nenhuma musa. nada. nem rosto, nem palavras. nada. Talvez assim não termine, mas se comece uma escrita.”

O inesperado atualiza mundos possíveis, faz ver não o que foi, nem o que teria sido, mas o que poderá ser. a memória para o texto de Raïssa, assim como seus autorretratos (escritos, fotografados, filmados), são habi-tados por uma multiplicidade, uma manada, uma matilha, uma “embo-lada”. Seus devires abrem-se para dar crédito ao que normalmente não se dá, não se vê, não se ouve.

numa exigência que percorrerá o leitor suavemente: deixe-se habitar pelo que te desaloja!

Ana Kiffer

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Introdução

autorretrato. uma fotografia, uma pintura, desenho. autorretrato. uma imagem. Imagem de alguém, imagem desse alguém feita por ele mesmo. ele mesmo. O que será isso? Será possível isso? Ser eu mesmo. Definir eu mesmo. um retrato de meu próprio rosto. existe isso? Próprio rosto. ele aparece no espelho. Será meu? Desconfio. Foi meu avô quem me fez des-confiar de coisas assim. a minha propriedade. Quando ele dizia, não era do rosto que falava. eram as terras. eram os direitos, educação, saúde. era um sonho. Ver o povo de pés no chão alfabetizando-se. alfabetizando-se, pois um ensinaria ao outro. conhecimento também não é propriedade. nem a escrita. É minha essa escrita? Quem é que sabe? escrita acontece, acontece em mim, por mim e apesar de mim. assim, como uma embolada. Faca, pés descalços, um calor da porra. uma raiva. um retrato.

escrita de ponta de faca e ponta de pena. alguém já disse isso. Rosto feito na ponta da faca, do lápis, da unha. Rosto feito no trajeto. Travessia. Palavra de João. Palavra de rio, de Diadorim. Palavra/texto produzindo espaço. O verbo faz espaço. cria coisa que nem querendo a gente pode abandonar. O verbo cria bicho e criaturas que nem com pau a gente se livra. Travessia foi o que aprendi no livro. O livro mais triste e bonito. Por que triste? não sei dizer. uma tristeza que, parece, faz a vida, hora ou outra. e nem não é. um homem dizer a um corpo. “não sabia por qual nome chamar. exclamei, me doendo: meu amor” (Rosa, 1986, p. 530).1 Dói

em mim também. Dói, não a história, dói escrita. mas é uma dor que faz dizer “meu amor”.

1 cena do livro O Grande Sertão:Veredas, de Guimarães Rosa. nesse momento, Riobaldo vê o corpo morto de Diadorim e percebe ser um corpo de mulher.

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Pense no porquê disso estar aqui. nem escrevo sobre Guimarães Rosa. meu objeto, como se deve dizer, nem é o Grande Sertão: Veredas. mas este texto que apresento foi escrito depois de um percurso. Travessia. no matulão,2 coisinhas que carrego. umas me foram dadas pela formação.

Outras, adquiridas por aí, encontros de “por aí”. com gente e com texto. Foi o estudo, foi este livro, foi meu avô, que de certo modo me trouxeram aqui para esta escrita. De certo e de modo errado também. não errado, mas errante. caminho por um pedaço de mundo e de tempo tão cheios de desvios. Às vezes, eu canso. Queria andar de bonde. Trilho certo.

e tem sentido, isso? Sei de sentido, nada. Sei de meu caminho, esse que ando bem perto do chão, olhando a estrada, sem vista chegar, muito a correr para frente. caminho que tracei pelos corredores de uma universi-dade. Falas e escritas vindas de dentro e de fora dos muros da escola. Texto escrito, cantado, dançado. Foi o que ouvi.

escuto e me lembro de uma canção pernambucana. uma ciranda? não sei se é. Por qual nome chamar?

era um caminho3

quase sem pegadas onde tantas madrugadas folhas serenaram era uma estrada muitas curvas tortas quantas passagens e portas ali se ocultaram

era uma linha sem começo e fim e as flores desse jardim meus avós plantaram era uma voz

um vento, um sussurro relampo, trovão e murro nos que se lembraram

uma palavra quase sem sentido um tapa no pé do ouvido todos escutaram um grito mudo perguntando aonde nossa lembrança se esconde

2 uma espécie de bolsa para se carregar provisões.

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17 meus avós gritaram.

era uma dança quase uma miragem cada gesto

uma imagem

dos que se encantaram um movimento um traquejo forte traçado, risco e recorte se descortinaram

uma semente no meio da poeira chã da lavoura primeira meus avós dançaram uma pancada um ronco, um estralo um trupé e um cavalo guerreiros brincaram quase uma queda quase uma descida uma seta remetida as mãos se apertaram era uma festa chegada e partida saudações e despedida meus avós choraram. Onde estará

aquele passo tonto

e as armas para o confronto onde se ocultaram

e o lampejo da luz estupenda que atravessou a fenda e tantos enxergaram ah! se eu pudesse só por um segundo rever os portões do mundo que os avós criaram.

É uma música de Siba, do jeito que ele canta vai mudando o tempo do verbo. Para caber na melodia, se ouve “encantarão”, “chorarão”. a música fica em um tempo ambíguo entre passado e futuro. Por que tudo isso? Porque não se pode, ou fui eu quem não pôde escrever sobre autorretrato sem me colocar em autorretrato. Porque a escrita provocou outros escritos, outros ditos inscritos em mim, em Raïssa. e ela, a escrita, foi feita assim, desses arremedos, desses trapos de outras falas. coisa que ouvi no

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nho de minha vida, lembranças, invenções, aprendizados. Por vezes, me engano e ninguém disse nada. mas parece que a voz vem de algum lugar. Seja eu, seja memória, seja o esquecido esse lugar.

estas muitas vozes fizeram o texto e o texto seguiu fazendo-se ao mesmo tempo em que fazia este rosto, este retrato ao qual chamo autorretrato. Produzir o texto, a imagem e o conceito foram gestos que se misturavam.

nos anos em que estive entre os muros de uma universidade, aprendi que a literatura faz pensar. Lembrança, escrita ou ficção não estão necessa-riamente em caminhos diferentes. não é sempre preciso andar em linha reta.

O título deste livro é Autorretrato, esta é a palavra escrita e inscrita em sua capa. me coloco diante desta tarefa: pensar e escrever sobre esta categoria do retrato. O primeiro impulso foi tentar produzir uma ima-gem. Simplesmente postar-me diante da câmera e sacar uma foto de meu próprio rosto. Deixei o espaço em volta de mim vazio, olhei para a lente e esperei o tempo necessário. Poucos segundos e a foto foi sacada. Depois fiquei diante de meu próprio rosto e olhei. Desta sequência de gestos sur-giu uma série de questões.

O que constitui um autorretrato? como chamar de “eu mesmo” um objeto destacado de meu corpo? este objeto-fora, este rosto, ele vê? meu rosto está na foto e está também ausente dessa foto. em que isso implica? como se dá essa presença do ausente? Posso pronunciar essa frase: próprio rosto? Que propriedade é essa? me vi, primeiramente, enredada por essas perguntas, dúvidas que surgiam diante de mim a cada passo dado em dire-ção à feitura de um autorretrato. Reuni as questões e busco desenvolvê-las aqui, em forma de capítulos. O primeiro, sobre o olhar e o rosto; o segundo, sobre o retrato e sua relação com a morte; o terceiro, sobre o estranha-mento provocado pelo deslocaestranha-mento do rosto/retrato; e, finalmente, o quarto. este se aproxima de uma conclusão, embora não possa dizer que algo seja de fato concluído. O quarto capítulo fala sobre a superfície e sobre como o autorretrato se inseriria neste espaço: o da superfície.

essas questões são desenvolvidas nestas páginas. Desenvolvidas desta forma: forma de pensamento que se mistura à forma de escrita. Jeito de se estar e se fazer no mundo.

as questões vão surgindo em forma de capítulos, de imagens, de peque-nas narrativas. O olhar, o retrato do morto, o estranho, a superfície, a escrita... mais não digo aqui. Sigam a leitura. Descubram as ideias do texto. Leiam.

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1. Os olhos da macaca

não pode haver nenhuma história do pensamento, o pensamento é uma fuga nele mesmo.

Lacan

me lembro de uma história vivida por meu pai. Recordo a narrativa. Vivia ele em sua fazenda, arredores de manacapuru. acompanhado de seu cachorro maradona, um da raça dos dogue alemão. Bicho grande e abestalhado. Por lá, em outras casas, moravam também os homens trabalhadores da fazenda.

Ocorreu a visita de uma onça numa noite qualquer. O estrago foi grande, a fera correu pelo milharal da beira do rio, deixando tudo no chão, as galinhas iam sumindo pra dentro de seu estômago. e maradona, no alto de sua falta de juízo, foi meter-se a enfrentar o demônio. Bastou a ponta da unha, um gesto só e o pobre cão caiu num ganido agudo. caía ferido em sua virilidade. O grito do defensor da fazenda acordou noronha, o faz tudo daquelas terras.

O homem que havia chegado do nordeste tempos antes, trouxe con-sigo um pedaço de rapadura e o hábito de deitar-se na varanda com uma espingarda na mão durante a noite toda. Rapadura se acaba mais depressa que os hábitos. Se dizia que noronha nunca dormia mais de quarenta e cinco minutos seguidos. Por respeito ao silêncio dos homens de boa fé, como se diz, nunca lhe perguntaram o porquê. Se era medo ou bravura.

Pois bem, o homem já acordou atirando. O estopim assustou a pintada que fugiu. O cachorro ficou ali, na beira do rio, gemendo feito menino. mandaram vir o veterinário, maradona sobreviveu, mas não deixaria des-cendentes. Os homens, talvez por cumplicidade, se apiedaram e deseja-ram vingança. com o sol já chegando, montadeseja-ram em seus cavalos e fodeseja-ram,

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espingardas e pistolas atrás da coisa ruim. meu pai, muito apegado ao com-panheiro e tendo visto sua agonia nas últimas horas, foi junto.

nada de avistarem a felina. a fome do pão quente com manteiga já amarrava suas barrigas e paciência. Iam voltando. mas sabe como são os homens de decisão. Sem morte, não retornariam à sede da fazenda.

Os caminhos quase não se viam, misturavam-se na mata. Por ali vagava um bando de macacos. Praguinhas cujas invasões eram lamentadas pelos trabalhadores. um bolo de fubá sumido numa tarde, a fruteira da cozi-nha desfalcada de manhã. Pronto. era dali mesmo que sairia o sangue. Os

homenscavalos correram atrás do bando. Davam tiros, mas os espertos

des-viavam pelos galhos. exceto um. Tem sempre um. esse corria mais deva-gar. Sua agilidade era prejudicada por um defeito nas costas. corcunda. Pega o corcundinha, berravam os bárbaros. O pequeno foi encurralado. Viu-se, pois ele mostrou, em suas costas não havia defeito. O macaco, a macaca, tirou o filhote que vinha nela agarrado e o mostrou aos homens, enquanto lhes olhava nos olhos. a bicha pedia piedade. Sabia de sua imi-nente morte e pedia um pouco mais de existência, era por causa da edu-cação que deveria dar ao pequeno. Justificava. meu pai a olhou nos olhos. Voltou em silêncio. Foi beber café preto na porta da casa. Ficou calado, olhando o mundo. com os olhinhos da macaca sempre cravados sobre ele. a macaquinha o enxergou, ela olhou para meu pai. não foi o apelo, mas seu olhar que o fez calar. Passou a ser desconfiado com os bichos. avesso à caça. até o peixe, mandava que servissem sem a cabeça. Quando seu amigo, maradona, morreu anos depois, não quis ver o corpo. Joguem na beira da estrada, ordenou.

Reafirmo. não foi a pena da mãe ou saudade de seus próprios filhos o motivo de lançar-se em um silêncio secular. Foi aquele olhar. Foi que, naquela manhã, meu pai descobriu alguma coisa de perturbadora. O ani-mal via. Devolvia-lhe o olhar. era constrangedor ter sido assim, visto por um ser de outra espécie, um que não era sua imagem e semelhança. e quem pode ser, pai? Quem pode ser a imagem e semelhança de alguém? Ou até de si mesmo?

***

O olhar talvez seja o eixo mais impressionante quando se trata de um retrato. O olhar lançado sobre a fotografia e o olhar da fotografia devolvido

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para fora da foto. O horizonte deste livro está permeado das relações entre olhar, rosto, retrato e memória. Porém, será necessário, para pensarmos o olhar, retornar um momento à pintura.

ao pensar em autorretrato dentro da história da arte, é praticamente impossível não lembrar das inúmeras obras produzidas por Rembrandt, artista holandês do século XVII. não farei um panorama da história da arte

para inserir Rembrandt em um determinado contexto. Tenho um abuso danado de contexto. Gostaria somente de um apontamento: ao longo de sua vida, este pintor produziu impressionantes quadros, e, dentre eles, mui-tos autorretramui-tos. O que possibilita infinitas e interessantes leituras sobre sua obra. uma abordagem recorrente sobre seu trabalho é, por exemplo, a comparação entre seus retratos de quando era jovem e os retratos feitos já em sua velhice, onde se percebe que não somente a imagem se modi-fica, pois o homem está velho, como também o modo de construção da imagem é diferente. Se percebe uma diferença de nitidez vinda da relação entre figura e fundo. em seus últimos retratos, a figura, o corpo, tem seu contorno ligeiramente mais borrado, mais integrado ao fundo. O que pode sugerir que não houve uma linha de desenho a ser preenchida, mas a pin-tura foi feita com áreas de cor e sombra. Ou seja, a pinpin-tura foi construída puramente com sua própria técnica, não se misturando ao desenho.

aqui, usarei um viés, dentre muitos outros possíveis, de seu traba-lho. Falarei de como o olhar pictórico age provocando o espectador. Pois é sobre o olhar que procuro me deter agora. O olhar que sustenta a relação do retrato com seu espectador.

este exemplo a seguir é, não de uma de suas pinturas, mas de seus desenhos. Desenhos que poderiam ser utilizados pelo artista como esboço da obra, mas que possuem a força de uma obra pronta. na medida, é claro, em que as obras ficam prontas. O desenho aqui me desperta interesse tam-bém por ser feito de traços e manchas. como disse anteriormente, sua pin-tura, principalmente os retratos de sua maturidade, são construídas por áreas de cor e não contornos. O desenho, por sua vez, é feito de linhas. Linhas que aqui chamo de traços. esses traços podem ser trazidos ao plano da escrita e, deste modo, a feitura de um desenho e de um texto se apro-ximam. Proximidade trazida pelo gesto e pela fragilidade de uma linha riscada em uma superfície. Digo fragilidade mais por carinho com a linha e com o espaço que ela cria do que por duvidar de sua potência ou força. Pois podemos ver aqui, em Rembrandt, essa força contida na linha.

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Há muitos conceitos pousados sobre a ideia de traços no desenho, principalmente na construção de um rosto. como mostra ana Kiffer em seu texto “abismo sem fundo da face: este o inacessível plano da superfície” (Kiffer, 2003). mas neste texto devo retornar à questão do olhar, é ela quem rege este capítulo. Os traços, deixarei ainda um pouco em suspenso. Quem sabe eles retornem em outro objeto, outro livro ou outra superfície?

ImaGem 2 – Rembrandt, Self-Portrait 1628; 127 x 94 cm;

Rijksmuseum, Amsterdam

Pode-se perceber o olhar do pintor diretamente para fora da tela. ele olha fixamente para um lugar fora do quadro. Diante deste quadro esta-mos nós, espectadores, assim o olhar bate em nós, não é mais dirigido a um horizonte infinito, ele encontra um obstáculo, seu caminho é inter-rompido por nosso corpo. corpo de espectador, ou seja de quem vê. Há um encontro entre esses olhares que provoca uma espécie de constrangi-mento naquele que ocupa, a princípio, o lugar de sujeito. uma espécie de nudez; o quadro, o objeto, nos pegou vendo. Ocorreu um encontro entre dois voyeurs. Porém, um desses voyeurs é um desenho, objeto inanimado. aquele que olha para o objeto é quem comandaria a ação, tem olhos e vê. como explicar, então, a sensação de estranhamento ao ver-se visto? e mais;

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ver-se visto por um outro, “um totalmente outro” (Derrida, 1999. p. 29). nem alguém que se possa dizer, ele é como eu, estamos em pé de igual-dade, fomos pegos, ambos trocando olhares. mas não se passa assim. esse que vê é quadro, é objeto. um objeto que age. coisa que produz uma ação e nos torna alvo dessa ação, já que somos vistos.

no caso do retrato de Rembrandt, esse olhar da figura do quadro era dirigido a sua imagem no espelho enquanto pintava, eu riscava seus traços. Sendo assim, esse olhar nos joga para o lugar do autor do quadro, era ali que ele estava quando o produziu. no momento em que a obra era feita havia o que chamo de “encontro de olhares”, artista pintando e artista no espelho, ambos se encarando. a obra é o que resta desse encontro ou con-fronto. Resto capaz de desencadear esta experiência: encarar o lado de lá. Lado de fora ou do outro. como se olhássemos para Rembrandt enquanto trabalhava, o quadro não apenas nos vê, mas nos coloca na pele do pintor. mais uma vez um outro. Há uma surpresa, um espanto como um relâm-pago, e, após esse estrondo, tudo parece voltar ao normal.

esse momento é curto, nem é visto por todos, é necessário dar-se a ver, ver e dar-se a ver. Há uma predisposição para o olhar, e muitos não possuem essa predisposição. Gente que passa rápido pela vida e não liga muito para o meio do caminho. Quer chegar lá. Onde é “lá”? Pensa que o bom é a hora da chegada, voa pelo caminho e não olha pra nada, vai para o fim pensando ser abobado aquele que gosta de prestar atenção. caminhar devagar pode ser arriscado. escolho o risco, caso me façam escolher.

Ver uma dessas pinturas coloca o espectador e/ou vidente como ele-mento de uma operação ou mesmo equação: ser visto pelo objeto e ser colocado no lugar do outro, no caso, o próprio Rembrandt. Faço um parêntesis. É curioso, mas quanto mais permaneço na questão do autorre-trato, mais as palavras vão se colocando em fuga. mesmo, próprio, outro, sujeito... vão escapulindo. as coloco aqui e finjo não perceber o quanto elas não se encaixam, querem se deitar, ir embora, e eu amarrando as bichi-nhas. esperem, finjam que está tudo bem, logo mais irão embora. mesmo quando falar parece pouco ou inapropriado, o que fazer se não falar? Fecho meu parêntesis.

essas operações me levaram a pensar o quanto o olhar do outro pode me constituir. não me constituir, mas interferir no formato de meu rosto. muitas vezes aconteceu comigo de mudar de rosto perto de alguém. acontece. ele incha ou se apruma, os olhos se afundam e ficam feios, ou a pele se amorena um pouco e surgem lábios. Sei lá se é assim, mas acontece.

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como o sujeito feito de casca de árvore: ele se enfurnava num quar-tinho de trás da casa. esperava que a vida melhorasse, por enquanto vou indo, dizia. Vida não melhora, nem piora. É assim, como é. Possuía famí-lia, pai, mãe e uma ruma de irmãos. arranjou até uma moça. a moça de olhos amarelados, meio verdes em dia de sol. era nova e teve a curiosidade. Fizeram uma menina, filhotinha da moça e do homem de casca de árvore. Ficou amuado, irritado, sei precisar, não. não presenciei, ouvi só. não que-ria a menininha. É feia, esses olhos aí, tem brilho não, não puxou a mãe, não. Pra encurtar, chegar logo no sentido dessa história calhar por essas páginas, caso é que a menininha perto do pai se enfeava toda, feito raiz torta. Tiraram ela dali. Deixa a criança, deixa. Deixa a menina fora desse quarto de bolor. Foi o milagre, ficou uma flor de beleza. uma riqueza que só vendo, não vi, mas soube. era assim, tornou-se moça e a situação não mudou. era só os olhos do pai de casca chegarem perto pra moça encru-nhar. Pois bem, era o olhar dele. a moça em si, nem feia, nem bonita. a moça, em si, existia não.

Iniciei este capítulo trazendo um conto sobre o olhar de uma macaca e o silêncio de quem recebeu esse olhar. Diante dos olhos do bicho, um silêncio secular. esse encontro ocorre também no texto do filósofo francês Jacques Derrida (2002): O animal que logo sou.

era o verão de 1997 e Derrida abria sua aula no terceiro colóquio de cerisy, França.1 Depois dos agradecimentos e lembranças, desenha uma

cena. Também um encontro entre o humano e o animal. Descreve um breve encontro entre ele e seu gato, na verdade uma gata; a bichana o vira nu. este olhar o constrangeu, a gata, nua desde sempre, o vira despido. ele percebe que pode despir-se e encontrar-se nu, a gata não. Por nunca usar roupas, estar despida não fazia parte de sua natureza. não há oposição. assim é o bicho, por isso não pode despir-se, por isso não pode vir a ficar nu. não pretendo discutir a nudez, mas o constrangimento do filósofo ao ser flagrado pelos olhos da gata, pelo “ponto de vista do outro absoluto” (Derrida, 1999. p. 28). O outro vê, possui um ponto de vista. ao nos darmos

1 Durante essa introdução, uma coincidência: o filósofo menciona e estima melhoras ao tam-bém filósofo francês, que passara, anos antes, por uma cirurgia de transplante de órgãos, Jean-Luc nancy. este último se fará presente logo mais neste mesmo capítulo e durante toda a dissertação, mas já aparece ali, nas palavras de Derrida. como se presente desde antes de sua chegada, sua sombra percorre todo este texto.

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conta disso, há um transtorno nos lugares nos quais acreditamos habitar.2

Ocorre um abalo na segurança, um abalo na nossa segurança. Passamos de sujeito que vê, para objeto visto. esse abalo é também político. ele se dá no campo político na medida em que o outro, o do lado de lá da borda, é tam-bém vidente. cuidado: “eles” possuem olhos! agem, são tamtam-bém dotados de possibilidade de ação. a ação de ver.

ver-se visto nu sob um olhar cujo fundo resta sem fundo, ao mesmo tempo inocente e cruel talvez, talvez sensível e impassível, bom e malvado, ininter-pretável, ilegível, indizível, abissal e secreto: completamente outro, o comple-tamente outro que é todo outro mas que em sua proximidade insuportável, não me sinto ainda com nenhum direito e nenhum título para chamá-lo meu próximo ou ainda menos meu irmão. (Derrida, 1999, p. 30).

Derrida vê nessa oposição animal/humano, esse “completamente outro”, mas com uma “proximidade insuportável” , outro que insiste em se fazer presente, outro que é também sujeito da ação de ver, uma oposição desequilibrada. Onde o ponto de vista humano ocupa o privilégio de ser o sujeito único. esta unilateralidade seria balizada pela falta de palavra do animal. O homem nomeia, o animal responde ao chamado, mas não pos-sui a palavra. O verbo do animal seria este: ver.

2 estenderei esta nota de rodapé para indicar a leitura de eduardo Viveiros de castro, especifi-camente seu texto sobre o perspectivismo ameríndio. não lidei diretamente com seu ensaio aqui, mas seu pensamento me ajudou a perceber essa ideia de um outro olhar. ele não é um texto fundamental para a construção desta dissertação, mas as ideias do antropólogo sopram de algum modo por aqui. Farei um breve e grosseiro resumo do que vem a ser seu texto. eduardo Viveiros de castro parte de uma análise do pensamento ameríndio. Tal modo de ver ameríndio se caracterizaria por entender a relação entre natureza e cultura de forma diferente daquela entendida pelo pensamento ocidental. Dentro do mundo ameríndio, a natureza não é vista como uma universalidade povoada de pequenas diferenças, chamadas de culturas. mas, ao contrário, teríamos várias naturezas, diferentes mundos.

esta ideia fica clara se tomarmos a noção de “ponto de vista”. O que é um ponto de vista? Ora, o lugar do qual se vê. como esse “olho” é moderno, ele possui um corpo, um sujeito. Pois bem, o “ponto de vista” é o lugar donde o sujeito vê. O que ele vê? O objeto.

Segundo este pensamento, o objeto possuiria, por sua vez, também um ponto de vista. aquilo que é visto por nós, enquanto sujeitos, nos devolve o olhar, o ponto de vista constitui o sujeito, distorcendo a famosa frase do linguista Ferdinand Saussurre: o ponto de vista constitui o objeto. Para os ameríndios, o espírito não é o diferencial entre humanos e não humanos. assim como ocorre aos ocidentais, aos colonizadores etc. no pensamento desses indígenas, o espí-rito seria substância material e integradora, enquanto o corpo, sujeito à afecções, seria aquilo que diferencia. esse corpo está ligado à ideia de vestir uma roupa. essa roupa seria um corpo que veste-se. no caso de rituais, o processo ficaria mais claro. as máscaras e inscrições ves-tidas serviriam para trazer o corpo do outro, o corpo estranho. Introjetar esse outro corpo. Portanto aí não cabe um conceito de essência e é preciso que isso fique claro. não se trata de uma essência travestida, mas de corpos fundindo-se.

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Os olhos da macaca são ligeiramente diferentes dos olhos da gata. em um certo sentido, a macaca se aproxima mais dos olhos do retrato. Quantas vezes já não fomos violentamente afetados ao perceber a seme-lhança? Se poderia sussurrar: você vê a semeseme-lhança? uma ida ao zooló-gico e aquelas figuras tão parecidas conosco enjauladas e a perturbação: parecem muito, não é? Sim. Também a literatura se apercebe dessa pro-ximidade inconveniente. Kafka percebeu essa sombra em nossa história (“somos como eles”) e escreveu Comunicação a uma academia,3 conto no

qual um chimpanzé relata aos “prezados membros da academia” como se tornara um humano; mostra-se tão humano que também ele se sente desconfortável ao ver-se diante da fêmea de sua espécie. É afetado por esse não completamente outro.

ImaGem 4 – Antigo cartão postal

O desconforto provocado pelo olhar do símio é diferente porque força uma proximidade, não pela convivência, mas pela semelhança. Talvez guardem algo de nossa origem, algo que não suportaríamos ver. Há uma semelhança, eles ficam em pé como nós, não ocupam o lugar do totalmente diferente, mas também não fazem parte de nossa espécie. Funcionariam como um calo, uma interseção entre o humano e o inumano, antes o qua-se-humano. O pai silencia diante desse olhar, aqui o silêncio é do homem. 3 este conto está aqui trazido pela memória. Foi lido por mim diversas vezes há algum tempo em mais de uma edição. ele é escrito na forma de uma carta, um relato mesmo à academia. O conto foi adaptado para o teatro no Brasil, com o ator Ítalo Rossi no papel do macaco e também em países da europa.

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