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Expressionismo Cinematográfico, Arquitetura e Cidade

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Impulso, Piracicaba, 17(44): 67-74, 2006

Expressionismo

Cinematográfi co,

Arquitetura e Cidade

CINEMATOGRAPHIC EXPRESSIONISM,

ARCHITECTURE AND CITY

Resumo O expressionismo, além da sua estrita defi nição como uma corrente estética com manifestações na pintura, na literatura e, mais tardiamente, no cinema, funda-se no movimento geral das idéias de uma época e de uma nação. A Alemanha, no começo do século XX, possuía status de grande país industrial, entretanto, os temas dos primeiros fi lmes desse período, como Os Nibelungos, Fausto, Golem e Nosferatu, privilegiam um passado medieval, povoado de velhas

lendas, e não refl etem, como produção cinematográfi ca, a realidade urbana do país desenvolvido. É como se os alemães, ao recusar a derrota ao fi nal da guerra, procurassem consolo numa situação anterior, por meio de suas lendas e contos mais característicos. Na representação desse universo, o expressionismo cinematográfi co não vê, mas tem visões. Os fatos e objetos existem como visões e sensações interiores que provocam. Assim, do objeto concreto passa-se ao abstrato. A casa, a rua, o conjunto de habitações, a cidade enfi m, sem perder sua forma objetiva e concreta, tornam-se subjetivos e abstratos.

Palavras-chave EXPRESSIONISMO CINEMATOGRÁFICO – CIDADE – URBANISMO

– ARQUITETURA.

Abstract Expressionism, besides its strict defi nition of an aesthetic current with manifestations in painting, literature and later in the cinema, is based on a general movement of ideas of a time and nation. Twentieth century Germany had a status of a great industrial country, however, the themes of the fi rst fi lms of that period, like The Nibelungos, Faust, Golem, Nosferatu, privileged a medieval past

surrounded by old legends and do not refl ect, as cinematographic production, the urban reality of a developed country. It was as if the Germans, when refusing the defeat at the end of the war, searched for consolation in a previous situation, through their legends and characteristic tales.

In the representation of this universe, cinematographic expressionism does not see, but has visions. The facts and objects exist as internal visions and sensations they provoke. Hence, from the concrete object it goes to the abstract. The house, the street, the block of houses, the city, without loosing its objective and concrete shape, become subjective and abstract.

Keywords CINEMATOGRAPHIC EXPRESSIONISM – CITY – URBANISM –

ARCHITECTURE.

DENIO MUNIA BENFATTI Pontif’cia Universidade

Cat—lica (PUC-Camp) dbenfatti@uol.com.br WILSON RIBEIRO DOS SANTOS JR. Pontif’cia Universidade Cat—lica (PUC-Camp) wilsonrsj@terra.com.br Impulso44_art05.indd 67 Impulso44_art05.indd 67 27/11/06 20:24:4427/11/06 20:24:44

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expressionismo, além da estrita defi nição de uma cor-rente estética com manifestações na pintura, na litera-tura e, mais tardiamente, no cinema, funda-se no mo-vimento geral das idéias de uma época e de uma nação. Ainda assim, para o cinema, essa época não poderia ser defi nida de forma restrita entre o fi m da Primeira Guerra Mundial e o aparecimento do nazismo. Os te-mas caros ao expressionismo cinematográfi co já aparecem em O Estudante de Praga, realizado por Paul Wegener, em 1913. Esse fi lme seria o primeiro a inaugurar, na Alemanha, a fascinação por criaturas demoníacas, pela du-alidade da alma, bem como a violência do destino e, mais tardiamente, a oposição entre a felicidade modesta do lar e o anonimato ameaçador da grande cidade que encontramos em muitos fi lmes expressionistas.

Apesar da necessidade de remarcar a existência prematura desse fi l-me de características expressionistas, será de fato no ambiente posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-18), assinalado por taxas elevadas de urba-nização, desordem social, miséria, fome e, por outro lado, envolvido num ambiente de descobertas técnicas e científi cas e pela formação de importan-tes movimentos culturais, que o cinema desse período irá se desenvolver.

A Alemanha, no começo de século XX, já possuía status de grande

país industrial, com a produção de aço às vésperas da Primeira Guerra bas-tante superior à da Inglaterra. Entretanto, os temas dos primeiros fi lmes dessa época, como Os Nibelungos, Fausto, Golem e Nosferatu, ao evocar um passado medieval povoado de velhas lendas, não refl etem a produção cinematográfi ca de um país desenvolvido. É como se os alemães, numa recusa ao fato incontestável da derrota ao fi nal da guerra, e também de suas conseqüências, sentissem alguma necessidade de retornar a uma si-tuação anterior, por meio de suas lendas e contos mais característicos. O período de luzes é, em sua aparência, colocado entre parêntesis e o uni-verso fi ccional retorna não apenas à natureza em contraposição à cidade, mas a uma temática voltada para a reagrarização e a submissão a temores primitivos, a dominação do instinto sobre a razão.

A difi culdade de viver na cidade, sempre associada não à

civiliza-ção, mas a uma nova barbárie, e a impossibilidade de retorno à natureza,

de deixar a cidade, é um grande tema e bastante amplo na representação da experiência urbana. Na verdade, é uma tensão entre essas duas situa-ções e, por mais que se exalte o poder regenerador da natureza e da vida rural, até mesmo os críticos da cidade mantinham certa atração estética pelo modo de vida metropolitano. Os relatos de viajantes que voltavam à Alemanha, vindos de Nova York e Chicago, no início do século XX,

tra-ziam essa marca. O fi lme Metropolis, de Fritz Lang (1926), é a represen-tação cinematográfi ca desses relatos. Em uma de suas cenas, a intenção de atrasar o relógio da grande máquina associa-se ao relógio da história. É uma metáfora que mostra a cara reacionária do expressionismo acerca do futuro da civilização, algo que os expressionistas compartilham com os críticos do período moderno.

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Na época, a participação dos arquitetos ex-pressionistas – Hans Poelzig, Bruno Taut, Paul Thiersch, entre outros – concentrava-se muito mais na construção de cenários para o teatro, considerado um meio de expressão elevado. En-tre esses profi ssionais, a atuação mais fecunda e marcante coube a Hans Poelzig, na construção dos cenários de O Golem – como veio ao mundo, de Paul Wegener (1920). Um dos fi lmes impor-tantes do período, na construção desse imaginá-rio de lendas, Golem trata os poderes mágicos de um rabino, que infundiu vida a um gigante de barro (Golem) e, com isso, salvou a vida dos judeus habitantes do gueto de Praga. O bairro judeu dessa cidade ajustava-se perfeitamente à atração dos artistas da época pela arte gótica. Poelzig reconstruiu toda a ambiência do gueto de Praga em estúdios, incluindo a muralha, as portas da cidade, as ruelas tortuosas, as paredes inclinadas, os ambientes internos, como salas de castelos medievais, as escadas em caracol e todos os detalhes de uma arquitetura ao mesmo tempo tortuosa e retorcida.

O tratamento do espaço em Golem, no qual toda uma cidade foi construída em gesso, é com-pletamente distinto de O Gabinete do Dr. Cali-gari, em que os cenários são construídos sobre telas pintadas. Esse fi lme, realizado por Robert Wiene, em 1919, irá marcar profundamente toda a evolução do cinema. Do ponto de vista da temá-tica e do tratamento estético, ele é exemplar. Ca-ligari manipula os espíritos e impõe sua vontade criminal. Trata-se do primeiro fi lme que traz um questionamento da autoridade e das instituições, e, segundo Jean Mitry, é uma das obras maiores do expressionismo cinematográfi co. “O que jus-tamente chamamos de expressionismo cinemato-gráfi co legendário, onírico, fantástico ou realista; e onde as qualidades signifi cantes poderiam ser entendidas como simbolismo plástico, simbolis-mo arquitetônico ou realissimbolis-mo simbólico, segundo o sentido de suas manifestações.”1

Os cenários de O Gabinete do Dr. Caligari foram desenvolvidos por três pintores

expressio-1 MITRY, 1974, p. 50.

nistas de Sturm: Hermann Warm, Walter Röhrig e Walter Reimann. Eles deram a esses cenários um estilo expressionista que lembra as gravuras de Lyonel Feininger. Segundo um dos cenógrafos, o decorador Walter Reimann,2 para um roteiro tão

insólito como o proposto para esse fi lme, a con-cepção geral dos cenários, as formas urbanas e as edifi cações cotidianas utilizadas deveriam encon-trar uma forma decorativa tão estranha quanto a história. Do mesmo modo, a execução deles de-veria distanciar-se do real, assumindo efeitos fan-tásticos e picturais. As distorções da arquitetura, dos espaços cenográfi cos propostos, as ruelas tor-tuosas, as casas inclinadas, o contraste reforçado das sombras pintadas sobre o chão e as paredes, as escadarias e os corredores assumem a projeção de um universo inconsciente, do estado psíquico dos homens, ou mesmo, no caso de Caligari, do olhar de um louco.

O emprego de formas urbanas e de objetos como parte do drama, com poder de suscitar fascí-nio ou inquietação, deverá permanecer nos fi lmes do período, mesmo nas produções realistas do fi -nal dos anos 1920 e até início da década seguinte. “A arquitetura das cidades é na maioria das vezes gótica, medieval, ou inspirada nas ruelas de Praga. É sempre a mesma seqüência de pequenas ruas tortuosas, de habitações escuras e ameaçadoras. O gosto pelas escadarias e pequenos pátios inter-nos aparece em quase todos os fi lmes. O espaço é sempre um espaço fechado, mas que, ao mesmo tempo, parece infi nito.”3

O Gabinete do Dr. Caligari, apesar de ser considerado um dos principais fi lmes dessa época, é ao mesmo tempo uma obra específi ca demais. Somente histórias de loucos, montadas sobre ce-nários que representavam o próprio desajuste dos personagens, poderiam permitir excessos geniais como os cometidos nesse fi lme. A quantidade signifi cativa de fi lmes que seguiram essa linha conduziu à origem do termo caligarismo, entre-tanto, não conseguiu alcançar a mesma expressão signifi cativa. O caligarismo foi, em diferentes

2 EISNE, 1985, p. 27. 3 PALMIER, 1980, p. 258.

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momentos, confundido com o próprio expressio-nismo, levando vários grandes diretores daquele tempo, entre eles, Fritz Lang, Lupu Pick e Paul Wegener, a recusar a associação de suas obras ao rótulo expressionista. Essas diferenças podem ser estabelecidas tomando o caligarismo como um ci-nema mais próximo a manifestações aplicadas da pintura, em contraposição aos fi lmes posteriores, que encontraram uma forma de expressão mais propriamente cinematográfi ca.

Além dos fi lmes derivados ou associados ao caligarismo, as demais produções cinemato-gráfi cas ocorrem com um ligeiro descompasso temporal, mas ainda em simultâneo a essa fase de evocação de tiranos e monstros ambientados em recantos góticos e de aparência ameaçadora, de caos e de anarquia. Tais produções passam a re-fl etir também um outro universo, agora mais as-sociado à realidade da época: a agitação da grande cidade, as ruas de iluminação fraca e vacilante, a multidão, os automóveis, os cabarés, as prostitu-tas são os seus personagens mais freqüentes. Em muitos deles teremos, de maneira recorrente, a perturbação e a angústia da pequena burguesia, a vida morna e acanhada no interior de seus pe-quenos lares, em oposição à agitação e ao mundo desregrado das ruas. As obras mais importantes desse expressionismo realista, tanto do ponto de vista cinematográfi co quanto de representação dos temas envolvendo as grandes cidades foram A Rua (1923), O Último Homem (1924) e A Rua Sem Alegria (1925).

Realizado por Karl Grune, A Rua conta a história de um homem, pequeno burguês, que leva uma existência rotineira e, certa noite, en-tediado com seu pequeno mundo limitado pela sala de jantar, deixa sua casa para vagar pelas ruas. Uma prostituta o atrai a um dancing. Ele joga car-tas, perde e vai até a casa dela. Enquanto a aguarda no quarto, dois gigolôs entram na casa, assassinam outro cliente, na tentativa de roubar-lhe a carteira, e fogem em seguida. O homem, então, é acusado de assassinato. É madrugada, os verdadeiros cul-pados acabam sendo presos. O homem é libertado e volta para casa. Sua esposa o acolhe e tudo entra novamente em ordem. Esse foi o primeiro fi lme

a mostrar o cortejo de imagens tristes e violentas que envolvem a existência cotidiana separada em dois mundos. É a história de uma tentação, um homem atraído pelo universo mágico e fascinante da rua e que, em seguida, se fecha no arrependi-mento e na resignação.

Será, no entanto, com Murnau, em O Último Homem, que teremos o fi lme mais genial do ex-pressionismo realista. Com roteiro de Carl Mayer, cenários de Robert Herlth e Walter Rohrig (o mes-mo de Dr. Caligari), é um dos mais perfeitos fi lmes do cinema mudo. Tematiza a miséria e o mal-estar da pequena burguesia e a oposição de classes sim-bolizada por dois cenários urbanos distintos: um fundo de pátio cercado por edifícios miseráveis, as chamadas mietkasernen (habitações populares se-melhantes a casernas, construídas, em sua maioria, na segunda metade do século XIX e muito comuns em Berlim) e, em contraponto, uma praça central bem movimentada e iluminada, onde se situa o ho-tel de luxo Atlantic. O porteiro desse hoho-tel, Emil Jannings, encarna de modo genial uma mistura de altivez e dignidade dadas pelo uniforme galonado, em razão do qual é respeitado e saudado como uma espécie de general, no lugar onde mora.

Com o tempo, o velho porteiro não mais consegue portar as pesadas bagagens e é transfe-rido para o lavatório dos homens. Deverá trocar seu uniforme por um simples avental branco. A perda do uniforme é vivida como uma verdadeira desgraça social. Os vizinhos, seus semelhantes, ao tomar conhecimento do fato, passam a rir do po-bre homem, a tratá-lo com escárnio. Ele agora é o último dos homens. Conhecedora do espírito ale-mão, para Lotte Eisner a perda do uniforme trata-se de uma tragédia alemã por excelência, que não se compreende senão na Alemanha, onde o uni-forme é rei, é deus. Um espírito latino tem grande difi culdade em conceber seu alcance trágico.4

O realismo de Murnau, em O Último Ho-mem, é largamente ultrapassado por uma qualida-de formal impressionante. O fi lme não trata ape-nas, e de maneira literal, de uma descida ao inferno, como indica Eisner, mas de uma decadência social

4 EISNER, 1985, p. 141.

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constantemente explicitada por seu contexto, aqui representado pela oposição de ambientes so-ciais distintos. No bairro operário onde habita o porteiro, Murnau mostra as alegrias e tristezas co-tidianas que o ambiente de miséria não humaniza em nada. Envolvido pelo seu uniforme, o porteiro dá mais importância à sua função social que à sua condição social. Pertence, pela sua origem e pelo seu modo de vida, ao mundo proletário, mas sua função, seu uniforme o faz participar simbolica-mente do mundo dos ricos. É uma espécie de elo de ligação entre esses dois universos. As comadres do bairro o admiram e invejam.

Como outros fi lmes desse período, O Últi-mo Homem tematiza de forma realista uma cena da vida cotidiana, limitada no espaço e no tempo. “O real inteiramente elaborado, composto, não é tomado senão por aquilo que possa existir de sig-nifi cante. Nada é gratuito. O grande hotel, a praça, as ruas, os prédios de habitação do subúrbio são representados por cenários estilizados e transpos-tos o sufi ciente para extrair de cada coisa, de cada elemento, sua expressão a mais expressiva.”5 O

fi lme de Murnau se insere numa situação econô-mica e política da Alemanha, na qual o drama de nosso velho porteiro, a difi culdade em reconhecer sua condição social e o risco de proletarização são exemplares.

Os anos de 1924 a 1929 caracterizam-se por uma relativa estabilização, infl ação mais baixa e certa perspectiva de retomada do crescimento econômico, creditada ao Plano Dawes.

Graças aos empréstimos, acordados tanto às orga-nizações públicas quanto às comunidades e homens de negócios, os industriais alemães modernizaram e aumentaram suas empresas. No fi nal do período de estabilização, a Alemanha possuía um parque in-dustrial cuja capacidade ia muito além de suas neces-sidades imediatas. Sua implantação signifi cou, por outro lado, um aumento enorme das funções admi-nistrativas. De 1924 a 1928 o número de emprega-dos (funcionários) multiplica cinco vezes, enquanto o número de operários apenas dobra. A classe dos colarinhos brancos se transforma em uma

impor-5 MITRY, 1974, p. 59.

tante camada social. Simultaneamente uma outra transformação importante ocorre, denominada na época “a racionalização da economia”: os métodos da cadeia de montagem industrial são transferidos à administração. Isto signifi cava, no que concerne as condições econômicas e de trabalho, que a maior parte dos funcionários não era em nada mais favore-cida que os operários. Mas em vez de reconhecer sua existência proletarizada, os funcionários se esforça-vam em manter seu status anterior de classe média. Comparado aos operários que tinham sua fé e es-perança, esses 3,5 milhões de funcionários estavam espiritualmente sem abrigo, ainda mais quando a classe média em si mesmo havia começado a vacilar. Eles povoavam as cidades e não pertenciam a nada. Tendo em conta sua posição crucial na estrutura so-cial, muitos dependiam de suas reações. Os fi lmes também levaram isso em conta.6

Essa evolução política e social se refl etem no cinema por um retorno ao cotidiano, ao banal, à procura de um novo realismo correspondente ao que foi chamado de socialismo branco. A estética expressionista se manifesta ainda nos fi lmes por meio de um certo senso de cenário e iluminação que perpetua a tradição, mas, pouco a pouco, os novos temas aparecem.

No momento em que a vida havia retomado um as-pecto normal e que a revolução social não mais ame-açava, os personagens fantásticos e os cenários irre-ais dos fi lmes pós-guerra se dissolvem no ar como o vampiro Nosferatu. Bem entendido, as produções de estúdio persistiram muito tempo após 1924, mas no seu conjunto, os fi lmes do período de estabiliza-ção estavam voltados para o mundo exterior, para a rua, passando das aparições às aparências, das paisa-gens imaginárias aos cenários naturais. Esses fi lmes eram essencialmente realistas.7

Do ponto de vista cinematográfi co e de do-cumentação de diferentes espaços urbanos e da vida nas cidades, entre os fi lmes mais importantes desse período dito de estabilização, Metropolis (1926), de Fritz Lang, aparece em destaque, por ser uma das matrizes das produções de fi cção científi ca, colo-cando em questão a cidade como fruto de utopias

6 KRACAUER, 1988, p. 145. 7 Ibid., p. 149.

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tecnológicas e da exaltação da sociedade industrial. Lang traça um inventário seletivo das angústias as-sociadas à cidade moderna, ao poder maléfi co da técnica, além de um elogio à colaboração de classes, propondo, em seu roteiro, uma reconciliação entre o proletariado e o capital.

Também interessantes são alguns fi lmes que fazem o contraponto entre a cidade e a casa, o lar: A Rua Sem Alegria (1925), de W. Pabst, A Flor do Asfalto (Asphalt, 1929), de Joe May, e A Tragédia da Rua (1927), de Bruno Rahn. Como outros aqui ci-tados, eles se articulam em torno da rua, com seus habitantes mais característicos – trabalhadores, de-socupados, prostitutas e os realejos que parecem fazer parte da decoração urbana daqueles anos. No entanto, à diferença dos anteriores, o universo ur-bano exterior, em que a rua representa o elemento principal, tornou-se o lugar da redenção, o refúgio da poesia e do afeto que o pequeno burguês não mais consegue encontrar em seu lar. Essa nova abordagem de temas semelhantes, denominada nova objetividade, caracteriza-se por uma inclina-ção ainda maior pelo real e uma fascinainclina-ção pelos aspectos mais negativos e sombrios da existência.

A Rua Sem Alegria é a primeira grande ex-ploração de realidade proposta por Pabst. Descre-ve com bastante realismo a vida social em Viena, nos anos 1920, assolada pela infl ação do pós-guerra. Os ambientes representados colocam em oposição o enriquecimento desenfreado de um pequeno grupo, a ruína dos pequenos poupadores e a miséria geral. Nesse universo, um membro da classe média é salvo da fome e da prisão ao pre-ço da prostituição de sua fi lha (Greta Garbo). O fi lme se desenvolve na rua Melchior, onde Mme. Greifer mantém um clube noturno dissimulado, atrás de uma loja de modas. Do outro lado da calçada, em frente ao açougue, durante toda ma-drugada os habitantes do bairro fazem fi la, na es-perança de comprar um pouco de carne, quando amanhecer o dia.

Enquanto isso, nos hotéis de luxo, antes de se encontrar no clube noturno de Mme. Greifer, os especuladores tramam golpes na bolsa de va-lores, que certamente irão prejudicar os peque-nos poupadores. O fi lme conta a história de duas

mulheres jovens e belas, fi lhas de famílias pobres, e a relação que geralmente se estabelece entre a decadência econômica e a ameaça de corrupção moral, na qual os valores tradicionais tornam-se inoperantes. Sobre essa relação, Kracauer salienta que “a maior parte dos indivíduos da classe média procuravam o compromisso, ou simplesmente cediam ao poder da corrupção”.8

Pabst rodou seu fi lme em estúdio. Não existem tomadas em cenários naturais. A rua Mel-chior é um espaço fechado, onde não se percebem a animação cotidiana e sua ligação com a cidade. A ação se passa sobretudo à noite e, à parte a fi la diante do açougue, não se vê a atividade dos ha-bitantes. Apesar disso, não há nada forçosamente estilizado. O realismo da rua, mesmo se tratando de cenário, merece toda credibilidade.

A partir de 1929, o ambiente de crise eco-nômica recrudesce: é o fi m do curto período de estabilização. O número de desempregados cres-ce a cada dia, na Alemanha, sobretudo em Berlim, e em vários outros países. O partido nazista está em ascensão e os SS desfi lam nas ruas. No cinema, aumenta a censura aos fi lmes que se contrapõem aos interesses dos nazistas e de grupos industriais. O fi lme falado chega para fi car e substitui, com sucesso, o cinema mudo. Passa-se a encorajar a re-alização de fi lmes com mensagens otimistas, nos quais mesmo “a classe operária vai ao paraíso”. Nesse novo contexto podemos citar dois fi lmes que conseguem furar esse véu de otimismo ofi cial e mostrar a violência da realidade: M – o vampiro de Dusseldorf (1931), de Fritz Lang, e O Anjo Azul (1930), de J. Sternberg.

Rodado pela Universum Film A. G. (UFA),9

com base numa novela de Heinrich Mann intitu-lada Professor Unrath, O Anjo Azul é, sem dúvida, uma das produções mais belas e cruéis dessa épo-ca. Primeiro fi lme falado produzido na Alemanha,

8 Ibid., p. 186.

9 Empresa formada em 1917, a partir de iniciativa do alto comando

alemão e com a participação de fi nancistas e industriais. O Reich fi cou com cerca de 1/3 das ações, com o que indicou como missão ofi cial da UFA a produção de propaganda da Alemanha. Alguns anos após, o Deutsche Bank adquiriu as ações do Reich, passando a companhia cine-matográfi ca a atuar mais em fi lmes comerciais, mas isso não acarretou mudanças signifi cativas em suas orientações de conduta.

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sua história, mediante a crueldade de Lola e das humilhações a que ela submete o professor Rath, representa todo um mundo que se desmorona. É o mundo da respeitabilidade burguesa, dos valo-res morais e da hierarquia social que se dissolve.10

Filmes como O Anjo Azul, realistas no tema e ainda expressionistas na forma, mas já devida-mente desembaraçados dos cuidados exclusiva-mente picturais dos cenários, conseguem atingir um simbolismo do drama, valendo-se da utiliza-ção dramática de objetos. As ruas e casas conti-nuam tortuosas e oblíquas e todos os elementos cenográfi cos apresentam-se de modo ainda mais intenso, como uma visão amplifi cada da realidade. Poças d’água, muros, bicos de gás, a lama, tudo isso compõe uma ruela com todas as suas particu-laridades. Entretanto, no expressionismo os fatos e objetos existem como visão e sensações inte-riores que provocam. Assim, do objeto concreto passa-se ao abstrato, e a ruela, sem deixar de ser objetiva e concreta, torna-se subjetiva e abstrata. “Além disso ela é também uma espécie de tradu-ção plástica do estado de espírito do professor Unrath, que fugindo dos olhares vai encontrar Lola no Cabaré Anjo Azul. Ela [a ruela] torna-se o símbolo de sua degradação”.11

Qualquer que seja o objeto em questão, as pedras da rua, as poças d’água, um muro, quando introduzido numa situação dramática, passa a re-fl etir um estado de espírito, a representar aquilo para o qual foi concebido. Já M – o vampiro de Dusseldorf inscreve-se em registro bastante dis-tinto de O Anjo Azul: uma grande cidade alemã, por volta de 1930. Um assassino de crianças ater-roriza toda a cidade. A opinião publica é mobili-zada. A polícia passa a fazer blitze freqüentes, que acabam prejudicando os negócios do submundo, mas mostra-se incapaz de prender o assassino, e

10 PALMIER, 1980, p. 244. 11 MITRY, 1974, p. 60.

o sindicato do crime resolve também procurá-lo. Uma montagem em paralelo coloca em destaque a ação da polícia, apoiada em métodos científi cos, e a dinâmica do submundo, mobilizando todas as espécies de marginalizados em ações bastante pre-cisas. Esses últimos aparecendo mais simpáticos e efi cazes que a primeira.

Vasculhando a cidade atrás do assassino, Lang constrói um quadro surpreendente das condições de vida e de miséria numa grande cidade, e tam-bém da própria sociedade alemã, na qual o crime organizado e a polícia, duas excrescências particu-larmente desenvolvidas no interior das metrópoles, partilham o poder segundo acordos tácitos. Os marginais acabam prendendo o assassino e subme-tendo-o a julgamento, numa paródia de tribunal que, de uma forma ou de outra, também os havia condenado, mostrando até que ponto a Alemanha havia perdido a confi ança em suas instituições de-mocráticas, em particular na justiça burguesa.

A censura, as campanhas violentas contra alguns fi lmes que contrariavam interesses dos na-zistas e de grupos industriais e o incentivo a fi lmes otimistas, entre outros, são alguns elementos que explicam a decadência do cinema alemão, que já se fazia sentir desde os últimos anos do cinema mudo. Com O Anjo Azul e M – o vampiro de Dusseldorf, exceções raras nesse início dos anos 1930, fecha-se um ciclo. Lang é convidado por Goebbels para dirigir os fi lmes de propaganda do nacional-socialismo e não tem dúvida alguma, na manhã seguinte já se coloca em viagem aos EUA.

Como ele, vários outros técnicos e cineastas to-mam o mesmo rumo e vão trabalhar com cinema nos Estados Unidos. A partir daí, os fi lmes nacio-nalistas e de propaganda nazista passam a dominar a produção cinematográfi ca alemã.

É o fi m.

Referências Bibliográfi cas

CITÉS-CINÉS. Catalogue de l’Exposition Cites-Cinés. Editions du Ramsay et la Grande Halle/La Villette, 1987. EISNER, L. A Tela Demoníaca. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985.

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_______. Fritz Lang. Paris: Editions de L’Etoile/Cinemathéque Française, 1984. EWALD FILHO, R. Dicionário de Cineastas. São Paulo: L&PM, 1988.

KAEL, P. Noites no Cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

KRACAUER, S. De Caligari a Hitler. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988. LYNCH, K. La Imagen de la Ciudad. Barcelona: Gustavo Gili, 1998.

MITRY, J. Le Cinema Experimental – histoire et perspectives. Paris: Editions Seghers, 1974. PALMIER, J.-M. L’Expressionisme et les Arts. Paris: Payot, 1980.

PEIXOTO, N.B. A Sedução da Barbárie. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

SICA, P. La Imagen de la Ciudad. De Esparta a Las Vegas. Barcelona: Editora. G. Gilli, 1977. WOLFGANG, P. Arquitetura Expressionista. Barcelona: Editora Gustavo Gili, 1975.

Dados dos autores

DENIO MUNIA BENFATTI Doutor em urbanismo e planejamento urbano pelo Institut d’Urbanisme de Paris (Université de Paris XII). Diplôme d’Études Approfondies (DEA). Estudos Teatrais e Cinematográfi cos (Université de Paris VII), professor do Programa de Mestrado em Urbanismo (CEATEC) da Pontifícia Universidade Católica (PUC-CAMPINAS). WILSON RIBEIRO DOS SANTOS JUNIOR Doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Programa de Mestrado em Urbanismo (CEATEC) da Pontifícia Universidade Católica (PUC-CAMPINAS). Recebimento: 11/abr./06 Aprovado: 22/jun./06

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