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Palavras-chave: patrimônio cultural imaterial; patrimônio alimentar; tradições doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas (RS).

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POR UMA LEITURA TERRITORIAL DO PATRIMÔNIO: ESTUDO DE CASO

DAS TRADIÇÕES DOCEIRAS DE PELOTAS (RS)1

Luciana de Castro Neves Costa Universidade Federal de Pelotas lux.castroneves@gmail.com

Resumo: A abertura temática de referentes culturais passíveis de patrimonialização promovida pela noção de patrimônio imaterial viria a incluir, em seu rol, aqueles vinculados à alimentação. A noção de patrimônio alimentar envolve, além dos alimentos, artefatos, espaços, práticas, representações e conhecimentos, resultado da ação continuada de coletividades. Tal compreensão nos convida a lançar um olhar sistêmico ao patrimônio, que articula não apenas questões identitárias, mas ainda ecológicas, políticas, econômicas, religiosas, de gênero, e que, ao mesmo tempo, indicam os desafios de sua salvaguarda. Constituindo-se no primeiro bem registrado no Livro dos Saberes, em 2002, o ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES) abre caminho para a patrimonialização de uma série de manifestações culturais alimentares, dentre as quais as tradições doceiras de Pelotas e antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu/RS). A cidade tem uma importante parte de sua história vinculada aos elementos opostos porém interdependentes sal e açúcar, à produção de charque e de doces, que, por sua vez, dialogam estreitamente com a configuração paisagística local, articulando o urbano e o rural por meio das tradições doceiras. Na presente discussão, propõe-se a analisar de que forma as tradições doceiras de Pelotas articulam uma leitura territorial da cidade, em uma relação dialógica com o patrimônio tombado.

Palavras-chave: patrimônio cultural imaterial; patrimônio alimentar; tradições doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas (RS).

Introdução

As transformações promovidas na noção de patrimônio cultural, ao longo do tempo, viriam a abrir espaço a diferentes entendimentos e, da mesma forma, a diferentes manifestações culturais abarcadas sob tais entendimentos, dentre as quais aquelas relacionadas a alimentação. No Brasil, apesar de algumas iniciativas pontuais de

1 Este estudo, que integra uma pesquisa mais ampla sobre a patrimonialização de referentes culturais

alimentares no Brasil, contou com o apoio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para sua realização.

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valorização de práticas alimentares como patrimônio, será a partir da institucionalização da categoria de patrimônio imaterial, em 2000, que este tema passará a figurar no rol de bens reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Neste sentido, é significativo considerar que o primeiro bem registrado no Livro dos Saberes, ainda em 2002, constitui-se no ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES), inaugurando o instrumento e abrindo caminhos para a patrimonialização de outros bens relacionados com a alimentação, como o ofício das baianas de acarajé (BA), o sistema agrícola tradicional do Rio Negro (AM), e o modo artesanal de fazer queijo de Minas, nas regiões do Serro, das Serras da Canastra e do Salitre (MG).

Apesar da diversidade de configurações que as práticas alimentares assumem no espaço, dos simbolismos e das identidades representadas a partir delas, o que estes bens registrados compartilham é o valor patrimonial centrado na noção de "saberes" e significados atribuídos pelos grupos a alimentação. Tais saberes, por sua vez, articulam-se em torno de uma série de dimensões, para além de sua dimensão identitária e afetiva, envolvendo ainda questões ecológicas, políticas, de gênero, de religiosidade, e que não podem ser consideradas dissociadas do meio em que se produzem e reproduzem pelas comunidades. Nesta perspectiva, o patrimônio alimentar nos convida a lançar um olhar sistêmico ao patrimônio, onde as diferentes partes (ou dimensões) contribuem para uma leitura territorial das manifestações culturais, e que devem ser, portanto, consideradas nas medidas de salvaguarda - o que, por sua vez, sinaliza os desafios de garantir condições de transmissão que permitam sua permanência no tempo.

Partindo-se desta reflexão, adota-se o caso do registro das tradições doceiras de Pelotas e antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu). A cidade tem sua história estreitamente vinculada à produção do charque (carne bovina desidratada e salgada), que, por sua vez, viabilizaria o desenvolvimento das tradições doceiras. Tradições estas que consolidam Pelotas como a capital do doce em uma terra onde não se plantava cana de açúcar, e que mobilizam a economia local por meio da

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produção doceira e da realização da FENADOCE - Feira Nacional do Doce, que em

2019 recebeu 246 mil pessoas e comercializou 1,3 trilhão de doces2.

Dentro deste contexto, propõe-se a analisar de que forma as tradições doceiras de Pelotas articulam uma leitura territorial da cidade, em uma relação dialógica com o patrimônio tombado.

O patrimônio alimentar na narrativa patrimonial brasileira

A consideração de referentes vinculados a alimentação foi objeto de iniciativas pontuais, e que não tiveram uma linha de continuidade direta na política de preservação conduzida pelo IPHAN, até a institucionalização da Política Nacional de Patrimônio Imaterial, em 2000. Teremos, como uma primeira aproximação ao tema, o anteprojeto de Mário de Andrade, em 1936, ao contemplar nas tipologias de arte ameríndia e arqueológica elementos como cantos, lendas, medicina e "culinária ameríndia", bem como na arte popular, a contemplar, entre outros referentes, "receitas culinárias" (ANDRADE, 1980, P. 57).

Também com o desenvolvimento da noção de "referências culturais" e de estudos conduzidos por Aloísio Magalhães a frente do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), entre as décadas de 1970 e 1980, essa temática será tratada. Dentre estes, Castriota (2009, p. 216) destaca o estudo envolvendo os usos do caju, tomado como um produto conhecido desde o período do descobrimento, com grande abrangência territorial, e que possui diferentes usos associados tanto associados às propriedades nutricionais quanto medicinais. O estudo ainda considerava a prática da produção de vinhos de caju no Brasil, que, se abundante no século XIX, estaria restrita, na década de 1980, a apenas uma fábrica, na Paraíba (CASTRIOTA, 2009, p. 217). Assim, numa tentativa de patrimonializar esta prática, ocorre o tombamento da Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva, em João Pessoa (PB), que possibilitou a manutenção do acervo arquitetônico e maquinário da instalação fabril, mas não foi capaz de manter as

2 Informações obtidas na página eletrônica da FENADOCE. Disponível em:

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práticas de produção dos vinhos de caju, sendo a fábrica fechada após o tombamento em 1984.

Assim, a patrimonialização de referentes culturais alimentares no Brasil se tornaria possível via política patrimonial a partir do Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2000, que cria a figura do patrimônio imaterial e novos instrumentos de acautelamento, consolidados no inventário, no registro e em planos de salvaguarda. Patrimônio imaterial passa a contemplar as práticas, conhecimentos e técnicas - consideradas em conjunto com instrumentos, objetos e lugares associados - que as comunidades reconhecem como parte de seu patrimônio cultural. Os quatro livros de registro criados sinalizam o entendimento dos bens enquadrados sob esta tipologia: Celebrações (envolvendo rituais e festas relacionados a vivência coletiva do trabalho, de religiosidade, de lazer); Formas de Expressão (envolvendo manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas); Lugares (envolvendo mercados, feiras, santuários, praças e espaços onde se reproduzem práticas culturais coletivas); e Saberes (envolvendo conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades).

Os bens vinculados a alimentação encontram-se registrados no Livro dos Saberes, evidenciando que não é a comida em si que constitui o bem patrimonial, e sim os saberes envoltos em sua produção e consumo, bem como os significados

mobilizados. São eles3: o ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES/2002); oficio das

baianas de acarajé (BA/2005); modo artesanal de fazer queijo de Minas, nas regiões do Serro, da Serra da Canastra e do Salitre (MG/2008); sistema agrícola tradicional do Rio Negro (AM/2010); produção tradicional e práticas socioculturais associadas à cajuína (PI/2014); sistema agrícola tradicional das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP/2018); e tradições doceiras na região de Pelotas e antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu) (RS/2018).

A variabilidade dos referentes culturais registrados envolve desde os saberes e significados atribuídos aos produtos gastronômicos em si (como o simbolismo religioso

3 A relação dos bens registrados como patrimônio imaterial pode ser obtida na página eletrônica do

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do acarajé; a cajuína como vetor de sociabilidade; o queijo como resultado do aproveitamento do leite pela dificuldade de escoamento, estreitamente vinculado às características físicas do meio), como também suportes materiais para a confecção de determinadas comidas territorialmente referenciadas (como as panelas de barro para o preparo da moqueca capixaba), ou ainda sistemas agrícolas tradicionais que articulam diversos domínios da vida social de grupos indígenas e quilombolas, garantindo a preservação da biodiversidade por meio de práticas agrícolas.

Essa apropriação de referentes alimentares nas políticas patrimoniais dá-se pois a comida não pode ser pensada exclusivamente no âmbito de uma necessidade fisiológica. Conforme aponta Montanari (2008, p. 15), a comida é cultura quando produzida, pois não utilizamos apenas aquilo que encontramos na natureza, mas criamos a nossa própria comida. É cultura quando preparada, pois uma vez adquiridas as matérias-primas, as mesmas são transformadas mediante o uso do fogo e de técnicas de transformação. É cultura quando consumida, pois embora possamos comer de tudo, selecionamos a comida baseada em critérios ligados a condicionantes econômicos e nutricionais, mas também em valores simbólicos atribuídos à comida. Por este motivo, a comida se apresenta como um elemento decisivo da identidade humana, e como um dos instrumentos para comunicá-la (MONTANARI, 2008, p. 16).

Segundo Menasche (2013, p. 182), a comida é constitutiva de relações sociais, de modo que a própria etimologia da palavra 'companheiro', que remonta à expressão latina cum panis, refere-se ao ato de compartilhar o pão. Se somos o que comemos, podemos considerar que nossa identidade se define pelo que comemos, mas também por onde, quando e com quem comemos, e pelos significados que compartilhamos.

Tomada a partir de uma perspectiva patrimonial, a noção de patrimônio alimentar envolve produtos agrícolas, ingredientes, pratos e artefatos culinários, mas também compreende a dimensão simbólica da comida (modos de consumo e rituais), além de comportamentos e crenças relacionadas, e se estende a processos de seleção, descontextualização, adaptação e reinterpretação, combinando conservação e inovação (MATTA, 2016, p. 339). Para González Turmo (2010, p. 197, tradução nossa), o patrimônio alimentar engloba "além dos alimentos, objetos, espaços, práticas,

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representações, expressões, conhecimentos e habilidades, fruto da ação histórica continuada de comunidades e grupos sociais". Ainda de acordo com a autora, por este mesmo motivo, a preservação do patrimônio alimentar é indissociável da preservação da paisagem.

Podemos afirmar, então, que a comida é uma importante fonte de informação sobre determinado local e seu aproveitamento e transformação pelos grupos que ali vivem, mas também sobre redes de trocas e intercâmbios entre diferentes lugares e grupos. De acordo com Gândara, Gimenes e Mascarenhas (2009, p. 181),

a alimentação pode ser considerada uma importante fonte de informações sobre um determinado grupo humano e também sobre um determinado período histórico, não apenas no âmbito do que era consumido e das técnicas de preparo, mas também como reflexo de fluxos migratórios, representações ligadas ao alimento e a própria estruturação da economia, no que se refere à produção e trocas de produtos. Assim, justamente por revelar questões políticas, étnicas, éticas, religiosas, de estrutura econômica, cultural, ou mesmo do nível do desenvolvimento agrário da comunidade que produz e consome determinados pratos, a alimentação constitui um importante elemento identitário, um ponto de conexão e conhecimento sobre determinado grupo social.

Seria a partir de sua capacidade aglutinadora de informações e dos valores atribuídos que a comida viria a integrar o rol de bens potencialmente patrimonializáveis. É dentro desta compreensão sistêmica que se busca propor uma leitura territorial do(s) patrimônio(s) de Pelotas a partir de suas tradições doceiras.

Do sal ao açúcar: uma leitura de Pelotas a partir de suas tradições doceiras

Pelotas é um município situado na região sudeste do Rio Grande do Sul (RS), com uma população estimada em 343.132 pessoas, distribuída em uma área de

1.609,708km2 (IBGE, c2020). Em uma relação dialógica e complementar, sal e açúcar

configuraram parte importante da história da cidade, e que hoje manifesta-se (de forma tangível e intangível) em seus bens patrimoniais. Em 2018, foram analisados e deferidos simultaneamente o tombamento de seu conjunto histórico e o registro das tradições

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doceiras, sinalizando a relação estabelecida entre o patrimônio edificado (relacionado a riqueza advinda da atividade charqueadora) e as tradições doceiras.

Pelotas possui um dos maiores acervos arquitetônicos em estilo eclético do Brasil, e desde 1955 contou com alguns tombamentos em nível federal, como o Obelisco Republicano (naquele ano); Theatro Sete de Abril (em 1972), conjunto arquitetônico envolvendo as casas 2, 6 e 8 na Praça Coronel Pedro Osório (em 1977), e Caixa d'Água na Praça Piratinino de Almeida (em 1984). Já o conjunto histórico tombado em 2018 envolve: Praça Coronel Pedro Osório; Praça José Bonifácio; Praça Piratinino de Almeida; Praça Cipriano Barcelos; Parque Dom Antônio Zattera; Charqueada São João; e Chácara da Baronesa.

Já no que se refere às tradições doceiras, estas foram definidas em duas vertentes, para fins de inventário e registro, e que se relacionam com as configurações geográficas do território que compunha a antiga Pelotas (envolvendo os outros quatro municípios): os doces finos, ou doces de bandeja, relacionados com a atividade charqueadora na planície; e os doces coloniais, relacionados com as atividades agrícolas desenvolvidas pelos imigrantes que se instalaram na Serra dos Tapes. Tal compreensão demonstra a estreita relação entre os saberes associados ao patrimônio alimentar e a(s) configuração(ões) da paisagem (GONZÁLEZ TURMO, 2010, p. 197).

Retomando um breve histórico da cidade a partir da relação entre sal e açúcar, o desenvolvimento das charqueadas será um marco na história de Pelotas. O charque é a carne bovina salgada e desidratada que foi, por muito tempo, o principal alimento da população escravizada e de populações pobres em diversos países da América (IPHAN, s.d., p. 12). Se a região Nordeste destacava-se na produção do charque, uma grande seca entre os anos de 1777 a 1779 leva a que José Pinto Martins, estabelecido em Aracati (CE), busque a região à margem direita do arroio Pelotas para a construção de uma charqueada. Conforme Magalhães (1993, p. 22), o êxito deste empreendimento viria a estimular a criação de outras charqueadas, iniciando-se a exploração da indústria saladeiril em larga escala em território rio-grandense.

Ainda de acordo com Magalhães (1993, p. 31), Pinto Martins aproveitou-se de algumas facilidades do território, como a instalação em uma região brasileira com um

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grande rebanho bovino disseminado, e cuja carne, até então, destinava-se apenas para consumo doméstico e quase exclusivamente imediato; e instalação em um local um pouco afastado do litoral (portanto mais protegido geopoliticamente), mas de fácil acesso ao mar (garantindo a via de escoamento da produção).

O charque produzido em Pelotas era embarcado em navios para o Rio de Janeiro, Salvador e Cuba, navios estes que, ao retornarem, traziam produtos diversos como revistas, móveis, mantimentos, e açúcar do Nordeste. Tal fato possibilitou o desenvolvimento de tradições doceiras em uma região em que não se plantava cana de açúcar. Segundo Ferreira, Cerqueira e Rieth (2008, p. 98), o intercâmbio com o Nordeste "constitui-se em um dos fatores que deram suporte à emergência da tradição doceira em Pelotas, tradição essa que servia como indicadora de suntuosidade, riqueza e requinte da sociedade pelotense", já que os doces eram servidos em ocasiões especiais, devido ao açúcar ser um produto caro e pouco acessível. Podemos perceber, nesta constatação, a rede de fluxos e intercâmbios econômicos articulados a partir da comida, e que podem ser, por meio dela, compreendidos.

A riqueza gerada pela atividade charqueadora e os longos períodos de entressafra (a produção ocorria entre os meses de novembro a abril) levaram ao estabelecimento de residências longe das instalações produtivas. O auge da produção saladeiril deu-se nas primeiras décadas do século XIX e, posteriormente, entre 1860 e 1890, período em que se verificou um importante desenvolvimento urbano de Pelotas, e que atualmente está refletido no tombamento do conjunto histórico. Se a atividade charqueadora encontra-se materializada em várias edificações da cidade, dentre elas algumas charqueadas remanescentes, seria a partir de seu declínio que as tradições doceiras extrapolam a esfera doméstica. De acordo com Ferreira, Cerqueira e Rieth (2008, p. 98),

foi justamente a crise desse modelo econômico baseado na indústria saladeirl que esteve na base da formação das primeiras doceiras, uma primeira geração de mulheres que se utilizaram, de maneira profissional e com vistas ao provimento da economia doméstica, dos conhecimentos até então aplicados na execução de doces nas cozinhas dos casarões.

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Assim, os doces finos, formados, entre outros, por camafeus, ninhos de fios de ovos, ameixas recheadas, fatias de Braga, e remetendo a uma alegada tradição portuguesa, passam a figurar no cenário público, vendidos em portas de igrejas e nas praças, por mulheres negras e ambulantes. Inicialmente, a comercialização de doces não apresentava clara distinção entre uma doçaria profissional e a própria clientela, uma vez que a rede de circulação dava-se dentro de um mesmo grupo social, em festividades mais ligadas ao domínio familiar, como batizados e casamentos (IPHAN, s.d. p. 47). Com o tempo, com o surgimento das confeitarias e dos cursos de profissionalização de doceiras, os doces finos passam ao domínio do cotidiano. Cabe destacar a relação de gênero que as tradições doceiras permitem refletir, com o protagonismo das mulheres doceiras, e que, de modo geral, estende-se para a maioria dos bens patrimoniais alimentares registrados, como as paneleiras de Goiabeiras, as baianas de acarajé e mesmo nos sistemas agrícolas tradicionais.

Se a tradição dos doces finos desenvolve-se no contexto urbano, em paisagem de planície, na Serra dos Tapes desenvolve-se a tradição dos doces coloniais. A organização da colônia de imigrantes, a partir de 1840, consolidou uma nova atividade produtiva: o minifúndio policultor, levando ainda ao desenvolvimento de cultivos frutíferos, como pêssego, uva, figo, goiaba, laranja, maçã, pêra e marmelo - e sua transformação em doces. Entre tais doces figuram os doces de frutas em conserva (introduzidos por franceses e italianos), os doces de tacho, como as schmiers (feitas, sobretudo, por alemães e pomeranos), as passas de frutas, os doces de massa (figadas, pessegadas, goiabadas, marmeladas), os doces de frutas cristalizados e glaciados, entre outros, em uma recriação de saberes transmitidos por antepassados e adaptados aos recursos locais (IPHAN, s.d., p. 71).

A geografização dos doces coloniais extrapolou a zona rural, principalmente quando da proliferação das indústrias de compotas de pêssego na zona urbana de Pelotas. As primeiras fábricas instaladas no começo do século XX localizavam-se em áreas próximas ao porto, ou nas imediações da estação férrea (antiga área fabril da cidade), o que facilitava o escoamento da produção (BACH, 2017, p. 91). A partir da década de 1950, a indústria conserveira urbana concentrou-se junto às duas principais

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vias de acesso a cidade: as atuais avenidas Duque de Caxias e Fernando Osório. Essa localização favorecia a recepção de matéria-prima da zona rural, o escoamento da produção e a entrada de mão-de-obra, consolidando o sistema viário dos séculos XIX e XX, demarcado pela circulação de gado rumo às charqueadas e de produtos coloniais que abasteciam a cidade (GUTIERREZ, 199, p. 172; BACH, 2017, p. 91). A decadência das indústrias de conservas de pêssego na cidade fizeram com que grande parte dos vestígios físicos desta atividade se perdessem com o tempo.

Se as tradições doceiras passam a articular diferentes áreas da zona urbana e rural, não menos importante é o suporte material relacionado a tais saberes e práticas, e que se encontra preservado em instituições museológicas, como o Museu do Doce (que, por sua vez, reafirma essa relação dialógica entre sal e açúcar, material e imaterial, por estar situado em um casarão tombado, construído em 1878, diretamente relacionado com o ciclo do charque). Conforme Ferreira (2020, p. 204), o Museu do Doce assumiu a responsabilidade de ser um "espaço de visibilidade da cultura material associada ao doce, de guarda e arquivamento de documentos, objetos e narrativas vinculadas aos diferentes processos da tradição doceira", servindo como um "mediador entre a tradição doceira viva, a memória e os sentidos e significados atribuídos ao doce".

Por serem do domínio cotidiano, os utensílios e objetos encontram-se também nas propriedades das famílias do doceiras (ainda em uso ou como objeto afetivo). Para além de utensílios de trabalho, artefatos como os tachos de cobre, colheres de pau, livros de receitas, constituem-se, muitas vezes, como objetos biográficos, que informam sobre a trajetória de diferentes gerações das famílias doceiras, influenciando o próprio aprendizado do saber doceiro, e estabelecendo vínculos afetivos e memoriais.

E se o suporte material pode ser considerado uma parte importante da constituição e transmissão do saber doceiro (e que permite sua continuidade), esse saber se configura (e se transmite) em grande parte por um conhecimento adquirido pela experiência e pela percepção, "um saber que se introjeta no sujeito gerando no mesmo uma memória sensorial", para a qual participam olfato, tato, audição, além do treino e da reprodução de receitas a partir da observação e aprendizados em caráter intergeracional (FERREIRA, CERQUEIRA, RIETH, 2008, p. 104). Este saber doceiro

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demonstra a estreita vinculação entre as práticas e os sujeitos que reproduzem tais práticas, evidenciando os desafios em sua manutenção uma vez que, segundo Ayala (2020, p. 112), os valores que encarnam os patrimônios alimentares, em uma dinâmica viva, são as pessoas, que são as responsáveis por recriar práticas alimentares e garantir sua transmissão no tempo.

Considerações Finais

Ao articular o rural, o urbano e o industrial, o material e o imaterial, a configuração natural e sua apropriação, além dos valores de sociabilidade, requinte, e igualmente valores de caráter identitário, afetivo e, inclusive, econômico, as tradições doceiras transitam e se manifestam em diferentes espaços da cidade de Pelotas, compondo uma narrativa histórica que pode ser compreendida a partir de um eixo ainda vivo e dinâmico, em uma leitura ampliada e integrada do território.

Tais tradições permitem a valorização não apenas do patrimônio reconhecido por instituições patrimoniais, como o IPHAN, qual seja por meio de seu conjunto tombado, mas ainda de referências culturais componentes desse universo doceiro, como as propriedades rurais, as edificações e instalações fabris (ainda existentes ou já em ruínas) e a própria configuração paisagística, que ajuda a compor e narrar estas tradições, em um discurso relacionado não à monumentalidade, mas ao domínio do cotidiano.

Se a noção de patrimônio alimentar abrange desde produtos agrícolas, a técnicas de preparo, modos de consumo e significados atribuídos às práticas alimentares, promovendo uma leitura sistêmica das manifestações contempladas (e seus sujeitos, como parte indissociável do processo de transmissão destas práticas), sua potencialidade na abordagem do patrimônio cultural apresenta-se, também, como um grande desafio. Neste sentido, as políticas de salvaguarda acabam tendo que envolver também ações relacionadas a políticas sanitárias, políticas econômicas, bem como políticas de regularização fundiária e políticas ambientais (especialmente no caso dos sistemas agrícolas tradicionais, com a sobreposição de unidades de conservação).

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O binômio regulação x tradição é constantemente problemático no tratamento e manutenção do patrimônio alimentar. Assim, por um lado, tem-se uma legislação sanitária que determina parâmetros gerais de segurança alimentar e de normas a serem adotadas e seguidas, e por outro, uma dinâmica alimentar que se constrói no tempo e no espaço estreitamente associada ao aproveitamento dos recursos do território e aos modos de fazer. No caso das tradições doceiras, principalmente de doces coloniais, a padronização do fazer doceiro estimulada pela proibição e substituição de determinados utensílios historicamente utilizados, como o tacho de cobre (a ser substituído por tachos de aço inoxidável), bem como alterações no processo de produção (como a secagem de passas de pêssego tradicionalmente ao sol, que passa a ser feita em estufas), acarretariam em mudanças no gosto, na consistência e na textura dos doces, sendo visto como uma ameaça à sua transmissão, inclusive pelo próprio saber doceiro estar estreitamente associado a um saber corporal, em relação com tais objetos.

Além disso, o patrimônio alimentar não só é um importante referente cultural e um bem a salvaguardar, mas também, por vezes, um ativo socioeconômico (AMAYA, 2020, p. 111). Por este motivo, diante da dificuldade de controle sobre a dinâmica de mercado dos bens alimentares registrados, muitas vezes recorre-se a instrumentos normativos, como os selos de indicação geográfica, aliados ao registro como patrimônio imaterial, como no caso das panelas de Goiabeiras, do queijo de Minas artesanal da região do Serro, e igualmente dos doces de Pelotas.

Assim, em 2011, ocorre o registro de indicação de procedência dos doces de Pelotas junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Sob este selo,

encontram-se quinze doces4, sendo apenas um deles relacionado à tradição dos doces

coloniais, o que evidencia dois elementos importantes de análise. No que se refere a certificação em si, apesar de visar proteger a manutenção de tais práticas, ordenando esta tradição doceira, tal selo pode gerar mecanismos de exclusão entre as doceiras, e também acabar congelando manifestações culturais dinâmicas, e que são apenas transmissíveis por sua adaptação no tempo, no delicado balanço entre conservação e

4 São eles: amanteigado, beijinho de coco, bem-casado, broinha de coco, camafeu, doces cristalizados de

frutas, fatias de Braga, ninho, olho-de-sogra, pastel de Santa Clara, papo de anjo, queijadinha, quindim, trouxas de amêndoa e panelinha de coco (IPHAN, s.d., p. 69).

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inovação. Por outro lado, ao conter apenas um doce relacionado à tradição colonial, pode-se perceber um desequilíbrio entre ações de valorização e difusão das duas tradições doceiras, elemento que aponta a necessidade dos planos de salvaguarda a serem adotados contemplarem de modo mais igualitário as duas tradições (a comissão de salvaguarda das tradições doceiras de Pelotas encontra-se em fase de formatação).

Inovação, conservação, processo, produto, passado, presente, natural, cultural, o patrimônio alimentar nos instiga a refletir sobre novas formas de pensar o patrimônio e de preservá-lo, em uma trajetória ainda em construção, diante dos desafios enfrentados.

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Referências

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