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Simone SOUZA* RINDO E RESISTINDO COM O IMPERADOR DO ACRE

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Academic year: 2021

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R I N D O E R E S I S T I N D O C O M O IMPERADOR DO ACRE

Simone SOUZA*

Enquanto modalidade do c ô m i c o , a sátira deflagra o riso destrutivo que visa, principalmente, atacar o objeto (seja a sociedade, i n d i v í d u o ou i n s t i t u i ç ã o social) de forma direta. De acordo com J o ã o A d o l f o Hansen (1990, p.8) "etimologicamente, sátira tem o sentido geral de 'mistura'de g ê n e r o s " , e t a m b é m de vozes. Ela atua em dado contexto social, trabalhando com c o n t e ú d o s que se aproximam do grotesco, do h í b r i d o , daí seu sentido de ' m i s t u r a ' . Segundo Henri Bergson (1983, p. 14) " n ã o h á comicidade fora do que é propriamente humano. O riso parece precisar de eco; e para c o m p r e e n d ê - l o é preciso c o l o c á - l o no seu ambiente natural, que é a sociedade." A s s i m , a sátira comumente é elaborada com base em a v e r s õ e s nacionais, ou seja, é c o n s t r u í d a em cima daquilo que se nega, que n ã o é aceito, com a i n t e n ç ã o de c o r r e ç ã o de algum erro. C o n t e r á portanto, certo grau de efemeridade, j á que se c o n s t r ó i a partir de um dado h i s t ó r i c o que se apresenta recusado aos olhos do receptor daquele momento. E uma forma de resistência.

A sátira desempenha a função de d e n ú n c i a social. Ela terá, portanto, um forte sentido moral. D a í outra importante c a r a c t e r í s t i c a da sátira: ela aflora especialmente em momentos de crise, na medida em que figura como a d e n ú n c i a de um dado contexto que se quer transformar, mostrando-se engajada, demolidora.

Dentro dessa c o n f i g u r a ç ã o acerca do satírico, estudaremos a obra Galvez, Imperador do Acre (1976), do amazonense M á r c i o Souza. Ela surge num momento de crise da vida brasileira (Ditadura M i l i t a r ) e procura evidenciar o inadequado na v i d a p o l í t i c a do Amazonas do s é c u l o X I X . A obra t e r á um

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c a r á t e r marcadamente circunstancial, destacando a v i s ã o de mundo de um grupo s ó c i o - c u l t u r a l e s p e c í f i c o ; mas t a m b é m pode ser lida c o m o uma m e t á f o r a invertida do Brasil sob o regime da ditadura militar, conforme observa R ú b i a Prates G o l d o n i em Galvez, um pícaro nos trópicos (1989, p. 128). A o b s e r v a ç ã o de J o ã o A d o l f o Hansen é esclarecedora neste sentido; diz o autor em uma c o n f e r ê n c i a :

é que a sátira encontra a realidade não como cópia verisla ou realista da empiria. mas nas convenções discursivas partilhadas pela recepção, pautadas todas pela concordância acerca da imagem caricatural que o discurso efetua, mantendo em circulação o estereótipo de grupos, tipos, vícios e situações criticáveis (1990, p.8).

A sátira em Galvez, Imperador do Acre c o m p õ e um discurso que, em v á r i o s momentos, é atravessado por outros discursos. A polifonia s e r á a base da c o n s t r u ç ã o discursiva da obra; seja a t r a v é s da p a r ó d i a , como no d i á l o g o entre o mito Jurupari e sua v e r s ã o degradante, ou a t r a v é s do d i á l o g o entre a história oficial (negada) e a i n s t a u r a ç ã o da r e p ú b l i c a do Acre, que no texto se d á em c l i m a d i o n i s í a c o , numa c a r n a v a l i z a ç ã o , ou ainda pela dupla voz narrativa, que se apresenta como persona satírica turista e como Galvez protagonista.

Para atingir seus objetivos, a sátira trabalha uma grande quantidade de recursos expressivos, tanto no â m b i t o do riso das a ç õ e s , quanto no â m b i t o da dubiedade do discurso. Neste texto analisaremos apenas os recursos referentes à persona satírica e à caricatura. Os demais recursos s e r ã o apenas citados.

A PERSONA SATÍRICA EM GALVEZ, IMPERADOR DOACRE DE MÁRCIO SOUZA

Enquanto recurso f r e q ü e n t e m e n t e utilizado pela sátira, a persona é uma m á s c a r a vazia de sentido, mas que utilizada em dado texto passa a ter v o z e assume um sentido que, muitas vezes, é a voz de um discurso indignado em r e l a ç ã o à ( s ) pessoa(s) ou s i t u a ç õ e s . De acordo com L u i z Costa L i m a ( 1 9 9 1 , p.46) "o importante a considerar é que a armadura da persona é sempre uma plástica argila, p a s s í v e l de desenhos a t é mesmo c o n t r a d i t ó r i o s " . Desse modo, a

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persona nunca pode ser confundida com a figura humana do satirista, j á que ela faz parte do arranjo textual. Por conseguinte, a persona satírica s e r á quase sempre um O u t r o em r e l a ç ã o ao e s p a ç o em que se encontra naquele momento; a p a r e c e r á como "estrangeiro" ao universo satirizado, como porta-voz de um discurso indignado em r e l a ç ã o a dada s i t u a ç ã o , mantendo, em c o n s e q u ê n c i a de viver num contexto onde ele é o outro, o distanciamento n e c e s s á r i o para melhor apresentar a realidade satirizada.

Comumente, a persona satírica usa diversos recursos para motivar a identificação com o leitor, sendo comum c h a m á - l o de "amigo, companheiro"; utilizando sutilezas v á r i a s , humor, referência a autores c l á s s i c o s , contando fatos e n g r a ç a d o s e bem particulares de sua vida que, aparentemente, nada t ê m a ver com os fatos narrados, mas t ã o somente cumprem a função de "aliciar" o leitor e manter um tom de cumplicidade n e c e s s á r i o à vivacidade do texto. Por outro lado, a persona lança m ã o de tais referências t a m b é m para melhor realizar o apelo da v e r o s s i m i l h a n ç a na obra.

Em Galvez, Imperador do Acre deparamo-nos com duas personas, m á s c a r a s distintas que assumem em momentos diferentes o f i o na narrativa. Cabe à primeira, que se auto-identifica "turista brasileiro" em Paris - a a p r e s e n t a ç ã o do herói e da história por ele contada:

Esla é uma história onde o herói, no fim, morre na cama de velhice. Não importa, não se faz mais histórias de aventura como antigamente... (Souza, 1992, p. 13).

diz o turista. Essa persona m a n t é m um distanciamento e s p a ç o - t e m p o r a l em r e l a ç ã o aos fatos narrados. Está em Paris, em 1973, o c a s i ã o em que encontra os manuscritos com a n a r r a ç ã o das aventuras, que se passam na A m a z ô n i a em fins do s é c u l o X I X . O artifício à v e r o s s i m i l h a n ç a é ainda mais visível quando, r e f o r ç a n d o o efeito de distanciamento, a persona e x p õ e , com farta dose de ironia, seus j u í z o s de valor, discutindo, por exemplo, o atraso cultural na A m a z ô n i a :

Em 1922 do gregoriano calendário o Amazonas ainda sublimava o latifoliado parnasianismo que deu dores de cabeça a uma palmeira de Euclides da Cunha. Agora estamos fartos de aventuras exóticas e mesmo de adjetivos clássicos e é possível

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dizer que este foi o último aventureiro exótico da planície. Depois dele: o turismo multinacional (Souza, 1992, p. 13).

ao mesmo tempo que demarca o tempo da aventura como ímpar, ressalta que depois dele s ó a e x p l o r a ç ã o turística e comercial, numa clara alusão à Zona Franca de Manaus ( d é c a d a de 70). Assim procedendo, a persona acaba por enfatizar que vive outro momento e s p a ç o - t e m p o r a l , em c o n t r a p o s i ç ã o ao narrado pelo herói das aventuras.

A partir desse ponto, a persona que se intitula "turista brasileiro" cala-se (ou antes, finge calar-se), e s ó v o l t a r á a reaparecer nas i n t r o m i s s õ e s que fará para chamar a a t e n ç ã o do leitor para os cuidados que este deve ter com a fantasiosa i m a g i n a ç ã o do herói. A q u i a persona parece que apenas troca de m á s c a r a , pois em v á r i o s momentos na narrativa demonstra saber tanto ou mais que o herói das aventuras. A voz do "turista brasileiro", portanto, s e r á reguladora da voz do h e r ó i , conforme exemplo em destaque em que a persona refuta a i n f o r m a ç ã o do herói acerca da e x i s t ê n c i a de índios a n t r o p ó f a g o s :

"Perdão leitores! (diz a persona turista brasileiro) mais uma vez sou obrigado a intervir na narrativa. Em 1898 já não havia índios nas margens do baixo Amazonas. E desde o século

XVI11 não se tinha notícias de cenas de antropofagia na região.

Nenhum branco, pelo menos por via oral, havia sido comido no século X I X " (Souza, 1992, p.82).

Observemos o tom irônico com que a persona marca seu discurso: "...nenhum branco, pelo menos por via oral, havia sido comido no s é c u l o X I X . . . " ; numa dubiedade que deixa ver t a m b é m a ênfase no baixo corporal. E m sua p e n ú l t i m a i n t e r v e n ç ã o , a persona acaba por abandonar a idéia de regular as desmedidas do herói dizendo: pensando melhor, para que desviar o leitor da fantasia?" (Souza, 1992, p 176). Dessa maneira, s ó v o l t a r á a retomar o discurso para observar, no final da n a r r a ç ã o , que o herói existiu de fato e diz: "...quem duvidar que procure um l i v r o sério que confirme nossa a f i r m a ç ã o . . . " (Souza,

1992, p. 195), numa a l u s ã o aos dois n í v e i s de referências que c o m p õ e m a obra: o h i s t ó r i c o e o ficcional.

A segunda persona do texto - o p r ó p r i o herói Galvez, que se apresenta caricaturado.

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a caricatura designa, habitualmente, um retrato que ataca um caráter mediante uma reprodução jocosa, sublinhando e exagerando certos traços para tentar deslindar a compleição física e mental do visado.

Comenta A n d r é Jolles (1976, p. 216). Dessa maneira, essa segunda

persona,

ou sua segunda instância (se considerarmos que a

persona

apenas troca de m á s c a r a , ator m ó v e l que é ) parece encetar o d i á l o g o p a r ó d i c o com a t r a d i ç ã o picaresca, compondo assim uma e s p é c i e de meta-picaresca. C o m efeito, verificamos que a narrativa é c o n s t r u í d a com a ê n f a s e no parentesco de L u i z Galvez com o p í c a r o espanhol. Esse fato pode ser observado a t r a v é s da u t i l i z a ç ã o dos seguintes procedimentos:

1) como na narrativa picaresca tradicional, Lazarillo de Tormes; Gusmão de Alfarache ( s é c u l o s X V I - X V I I ) , Galvez, Imperador do Acre (1976) lança m ã o do recurso a u t o b i o g r á f i c o , com personagem que, a p ó s a e x p o s i ç ã o de sua genealogia, t a m b é m destaca-se pela c o n d i ç ã o de orfandade e m i s é r i a , determinando sua futura c o n d i ç ã o de p í c a r o .

...meu pai morreu em 1896 e minha mãe, dois meses depois dele, de profunda melancolia. Foi quando descobri que meu pai era um entusiasmado jogador e não havia me deixado herança. De fato, não me deixou nada... (Souza, 1992, p. 41).

Deve-se observar, entretanto, que o personagem L u i z Galvez ostenta uma pseudo-aristocracia, incomum na picaresca c l á s s i c a mas acaba t a m b é m na m i s é r i a em d e c o r r ê n c i a do pai ser viciado em jogos de azar.

2) o despertar dos protagonistas para uma performance e atitudes picarescas. A série de aventuras em que se envolvem, r e s p o n s á v e l assim por suas constantes viagens e contato v á r i o s com "diferentes e s p a ç o s culturais" (conforme assinala Edward Lopes, 1993, p. 139), e finalmente o castigo exemplar, s ã o procedimentos encontrados na picaresca c l á s s i c a (Lazarillo de Tormes - 1554) e t a m b é m em Galvez, Imperador do Acre, considerado por M á r i o Gonzalez, em sua obra O romance picaresco (1988) e A saga do anti-herói (1994) c o m o narrativa neo-picaresca.

A s s i m , chegamos à c o n c l u s ã o de que o personagem L u i z Galvez n ã o é um p í c a r o , mas a caricatura de um p í c a r o , e que a narrativa apenas parodia a

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-t r a d i ç ã o picaresca. Se -tivermos em men-te que a carica-tura -trabalha com " u m detalhe, um pormenor, mostrado de forma exagerada, e que todas as demais c a r a c t e r í s t i c a s de quem é submetido a c a r i c a t u r i z a ç ã o (Propp, 1992, p. 88)" s ã o deixadas de lado, entenderemos e n t ã o que Galvez é a caricatura do p í c a r o , pela ê n f a s e acentuada à sua performance como imperador do Acre.

Enquanto narrativa satírica Galvez, Imperador do Acre elabora assim v á r i o s recursos expressivos provocadores do riso, que v ã o desde a ê n f a s e do riso no â m b i t o das a ç õ e s , a realidade encenada em forma de h i p é r b o l e , por exemplo, a t é o riso no â m b i t o da dubiedade discursiva, com e x p r e s s õ e s ligadas à escatologia, ao baixo corporal, enfim. N o que diz respeito à persona satírica "alinhavador dos manuscritos" c o n c l u í m o s que seu discurso visa acima de tudo endossar, a t r a v é s da ficção, o efeito de v e r o s s i m i l h a n ç a do narrado, colocando-se assim, pelo distanciamento que elabora, na p o s i ç ã o de quem está acima de qualquer suspeita para melhor denunciar a realidade social na A m a z ô n i a .

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

BERGSON, Henri. O r n o Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

GOLDINI, Rúbia Prates. Galvez; um pícaro nos trópicos. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FLCH-USP, 1989.

GONZALEZ, Mário. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. GONZALEZ, Mário. O romance picaresco. São Paulo: Ática, 1988.

HANSEN, João Adolfo. Anatomia da sátira. (Conferência ministrada em Araraquara-1990)

JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.

L I M A , Luiz Costa. Pensando nos Trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. LOPES, Edward. A palavra e os dias. São Paulo: Ed UNESP/ UNICAMP, 1993. PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.

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