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O Pensamento Aristotélico em O Colar da Pomba

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Academic year: 2021

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(1)O Pensamento Aristotélico em O Colar da Pomba Celia Daniele Moreira de Souza. 1. 1. Introdução: A epístola “Tawq Al Hamama” (‫) ق ا‬, em português O Colar da Pomba, foi escrita por Ibn Hazm, literato cordovês, no século XI em Játiva, cidade pertencente à Província de Valencia. O Colar é considerado uma das obrasprimas arábico-andaluzas,2 e sua influência, para alguns especialistas, não teria se restringido ao mundo árabe medieval, mas também teria chegado ao Ocidente cristão, como exemplifica García Gomez ao apontar semelhanças entre passagens desta obra com a de autores cristãos, como Andrea Capellanus, capelão francês do século XII; Iacopo da Lentino, poeta siciliano do século XIII; Dante Alighieri, escritor, poeta e político de Ravenna (atual Itália) do século XIII; entre outros.3 Além disso, esta epístola também é tida como a precursora do “amor cortês”, gênero literário que marcaria a Europa cristã a partir do final do século XI.4 A epístola chegou até nós por meio de um único códice datado do ano de 1338, escrito na antiga língua dialetal levantina5 mashriqi. Este códice foi encontrado em Istambul no século XVII pelo alemão Levinus Warner (16191665), que foi embaixador dos Países Baixos e responsável – graças ao seu interesse pela língua árabe – pelo acervo de manuscritos e epístolas árabes que hoje detém a biblioteca da Universidade de Leiden, na Holanda, onde se. 1. Celia Daniele Moreira de Souza é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2 GARCÍA GOMEZ, E. Introducción. In: IBN HAZM de Córdoba, El Collar de la Paloma. Tradução de Emílio García Gómez. Salamanca: Alianza Editorial, 2008. p. 54. 3 Ibid. p. 337-359. 4 MUJICA PINILLA, R. Nota Preliminar. . In: El Collar de la Paloma del Alma: Amor sagrado y amor profano en la enseñanza de Ibn Hazm y de Ibn Arabi,. Madrid: Hipérion,1990. p. 9-10. 5 Relativo aos países do Levante, isto é, do Oriente Médio..

(2) encontra tal códice.6 Segundo Jan Just Witkam, professor desta universidade, esta epístola faria parte de uma biblioteca mameluca,7 que com a conquista otomana, em 1517, fora transferida, assim como todas as outras bibliotecas, para Istambul.8 A primeira edição de Tawq Al-Hamama foi lançada em 1914 por DK Pétrof, professor da Universidade Imperial de São Petersburgo, com introdução em francês e texto em árabe, publicada pela editora Brill de Leiden.9 Anteriormente, em meados do século XIX, o arabista holandês Reinhart Dozy havia publicado alguns trechos da epístola em Historie des Musulmanes d’Espagne, o que levou Adolf Friedrich von Schack, poeta e historiador alemão, a escrever em 1865 o primeiro artigo citando-a.10 Em 1931, A. R. Nykl publicou a primeira tradução ao inglês, relacionando, em seu prólogo, O Colar ao amor cortês. Essa associação entre o amor que Ibn Hazm traz em sua epístola e o amor cortês passou a nortear a maioria dos artigos e traduções, conforme relata Sánchez Ratia. O Oriente somente passaria a produzir reflexões sobre a epístola de Ibn Hazm na década de 70 do século XX, com autores como Sayrafi, Taher Makki, Ahsan Abbas, Salah al-Din al-Qasimi, entre outros.11 A tradução crítica de Sánchez Ratia é a mais atual e é também a única bilíngue. Em sua edição, buscou reconstruir o texto tornando-o mais próximo 6. SÁNCHEZ RATIA, J. Quince bagatelas en torno a Ibn Hazm. In: IBN HAZM al-andalusi. El Collar de la Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la nube. Tradução de Jaime Sánchez Ratia. Madrid: Hiperión, 2009. p. IX – X. 7 Os mamelucos eram mercenários trazidos principalmente do Leste Europeu para atuarem nos exércitos abássidas nas regiões distantes do reino, sobretudo no Egito. Em 1250, formaram um sultanato que ia do Egito até a Síria. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 203-204. 8 WITKAM, J. Beyond the Codex: Codicology in Scholarship. In: The Levantine Foundation Museology & Conservation Training Programme. Cairo. 2010. Disponível em: http://www.islamicmanuscripts.info/files/Beyond%20the%20codex-2010-x.pdf. Acesso em: 30 Jul 2010. 9 SÁNCHEZ RATIA, J. Quince bagatelas en torno a Ibn Hazm. In: IBN HAZM al-andalusi. El Collar de la Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la nube... op. cit, p. X. 10 VON SCHACK, A. Cantos de Amor. Poesía y arte de los árabes en España y Sicilia, s/p, 2003. Disponível em: http://www.biblioteca.org.ar/libros/89284.pdf Acessado em: 21 Jul 2010. 11 SANCHEZ RATIA, J. Op. Cit., p. XI..

(3) do que seria o original em árabe clássico, utilizando para tal tanto o códice do século XIV como outros manuscritos contemporâneos de Ibn Hazm, que citaram trechos da epístola.12 Uma das hipóteses levantadas por Sánchez Ratia ao tentar remontar O Colar da Pomba, tentando ir além das mutilações que o próprio copista afirma ter feito ao transcrevê-la,13 é a da adulteração do título da mesma. Segundo Abd al-Haqq Al-Turkmani, tradutor de uma versão de 2002 publicada pelo Islamic Research Center de Gotemburgo, na Suíça, a epístola de Ibn Hazm teria passado por diversas fases de existência que teriam alterado seu título original, que seria maior, por uma versão reduzida. O título original seria O Colar da Tórtola14 e a Sombra da Nuvem, e seria uma expressão proverbial árabe do paradigma do efêmero e do passageiro, daquilo que não deixa rastros.15 Para Sanchez Ratia, este título era uma contraposição entre a perenidade do colar (o amor verdadeiro), um presente divino à ave (alma), em oposição ao amor passageiro, que só busca o prazer carnal, representado pela sombra da nuvem.16 Além disso, outros autores medievais citam que O Colar possuía por volta de 300 páginas, mas o que chegou até nós possui apenas 140 páginas. O Colar da Pomba se propõe a revelar o que é o amor e como identificálo. A intenção do autor era responder ao apelo de um amigo que pedira em carta que ele escrevesse retratando o amor, seus aspectos, suas causas e imprevistos da maneira o mais sincera possível. A resposta de Ibn Hazm é uma risala17, que aqui vamos chamar de epístola, sobre o amor, relacionando suas. 12. Ibid, p. XXXI - XXXVI. COLOFÓN. In: El Collar de la Paloma del Alma: Amor sagrado ..., op. cit., p. 335. 14 Tórtola é uma ave da família da pomba. Na tradução, achei mais conveniente manter a diferenciação que Sanchez Rátia dá entre as palavras “paloma” e “tórtola”, pois estas aves são de espécies diferentes. 15 SÁNCHEZ RATIA, J. Quince bagatelas en torno a Ibn Hazm… op. cit., p. XXXI - XXXII. 16 Ibid, p. XXXIII. 17 A partir do século VIII, passou-se a chamar risala um gênero composto de diversos assuntos, tanto epistolar como ensaístico, que abarcava variedade de conteúdos, sendo eles teológicos, gramaticais, sapienciais e até jurídicos. Por antonomásia, a risala é a pregação da mensagem 13.

(4) memórias, histórias que ouviu e conceitos filosóficos para definir o que seria o amor. Ao longo da leitura da risala ( ‫)ر‬, percebemos que o autor se baseia em diversos modelos de pensamento para justificar a sua concepção de amor. A própria palavra que utiliza “hub” (), já diferencia o amor de Ibn Hazm, que é um sentimento mais elevado, que se relacionaria a uma percepção mais sublime, a um dom de Deus, diferentemente da palavra “hawa” (‫ )هوى‬ou à “ishq” (), que também se traduzem por amor, mas estariam relacionadas à “paixão”, algo mais frívolo, ou então “ulfa” (‫)ا‬, mas que seria mais ligada à “ternura”. Ibn Hazm também utiliza outras palavras para o amor durante suas passagens, mas “hub” é a palavra que ele escolhe quando fala sobre o “Amor” com letra maiúscula, sendo este sentimento que ele procura doutrinar. A forma como Ibn Hazm trata o amor também se relaciona com a sua vida pessoal, que a todo o momento é relembrada nas passagens da epístola. De família aristocrática, Ibn Hazm perdera tudo com a queda do Califado Omíada,18 vindo a ser um exilado, primeiramente na cidade de Almería e depois na cidade de Játiva. O Colar da Pomba traz não só um caráter doutrinário do amor para seu amigo, como também é uma maneira do autor relembrar nostalgicamente da sua vida e principalmente de sua juventude na Córdoba de Al-Andalus. A sua juventude, entretanto, não figura no O Colar somente pelo seu cunho nostálgico, mas pelas experiências literárias e políticas que o autor teve. Cinco anos antes do desterro de sua família, Ibn Hazm passou a fazer parte de um grupo de estetas de Córdoba, que possuía como característica principal a “arabização” da literatura hispano-muçulmana, isto é, a valorização da língua árabe clássica, trazendo o estilo cordovês o mais próximo possível das modas literárias de Bagdá, justamente as quais se identificariam profundamente com o 17. divina. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 290. 18 Sobre o Califado Omíada trataremos mais detalhadamente no capítulo I: “Ibn Hazm: reflexões biográficas”..

(5) amor verdadeiro proposto por Ibn Hazm: o amor udri ou bagdalí.19 Esse grupo literário esteta também se relacionaria ao zahirismo, doutrina religiosa e política, que se assemelharia à doutrina sufi e grega, e carregaria uma forte identificação política com o califado Omíada. Não é à toa que muitos autores, conforme relata Sánchez Ratia, estabelecem que O Colar da Pomba é totalmente devedor do tratado O Livro da Flor, ou O Livro de Vênus, de Ibn Dawud, representante da filosofia zahirista.20 O Colar carrega uma característica notável: a influência das teorias platônicas e aristotélicas. Ibn Dawud, líder do grupo zahirista de Córdoba, inicia as discussões baseadas em Platão e a literatura amorosa propriamente dita em Al Andalus21 e Ibn Hazm segue seu caminho.22 A diferença é como Ibn Hazm utiliza a realidade que vivenciou para aplicar as teorias gregas relidas por Ibn Dawud sobre o amor e a alma e assim doutrinar seu amigo de Almería. Aristóteles, que foi sem dúvida a grande referência da filosofia grega para os árabes andaluzes,23 está presente em Ibn Hazm, só que combinado com as doutrinas platônicas24 – estas provenientes, principalmente, de O Banquete. 2. O pensamento árabe andalusi e a influência aristotélica:. 19. Este “amor udri” vem de uma tribo nômade do Iêmen chamada Banu Udra, “filhos da virgindade”, que praticava uma abstinência de contatos físicos e sexuais a fim de obter uma união intelectual (das almas) entre os amantes, tornando o ser amado a própria manifestação divina. ”. MUJICA PINILLA, R. Capítulo Dos: La tradicion literária de los mártires del amor: guerras santas entre el espejismo y el espejo. In: El Collar de la Paloma del Alma: Amor sagrado y amor profano en la enseñanza de Ibn Hazm y de Ibn Arabi. Madrid: Hipérion, 1990. p. 82. 20 LÓPEZ PITA, P. El collar de la paloma. Tratado sobre el amor y los amantes. Espacio, Tiempo y Forma, História Medieval, Madrid, Serie III, t. 12, p. 65-90, 1999. 21 LIROLA, J. Ibn Hazm Al-Andalusi, el riguroso anhelo del absoluto. Revista Jábrega, Málaga, n.97, p. 21-29, 2008. p. 24. 22 ARIÉ, R. Ibn Hazm et l'amour courtois. Revue de l'Occident musulman et de la Méditerranée, Lyon, n. 40, p. 78-80, 1985. 23 ATTIE FILHO, Miguel. “Ide buscar o saber até a China...” A recepção. In: Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002. p. 144-154. 24 FERNANDEZ VILLANUEVA, C. El concepto del amor. El Collar de la Paloma de Ibn Hazm: El Platonismo Musulmán. Reis: Revista española de investigaciones sociológicas, Madrid, n. 84, p. 125-146, 1998..

(6) A análise do amor de Ibn Hazm abre caminhos para a pesquisa do conhecimento filosófico e literário da Espanha muçulmana, e, de certa forma, de uma vertente histórica que possui grandes influências em todo o Ocidente medieval. Um dos pontos pouco conhecidos, mas de grande importância para a compreensão do tempo no mundo árabe-islâmico e da inovação andalusi iniciada por Ibn Hazm é a questão do “passado-presente” no pensamento desta sociedade. O filósofo Mohamad Abed Al Jabri, autor de Introdução à Crítica da Razão Árabe comenta que a relação com o passado é totalmente diferente para a cultura árabe-islâmica em relação ao que é para os cristãos. O presente para o Islã é sempre visto em referência ao passado, concebido como tradição (turath - ‫)اث‬. A tradição, segundo a conceituação de Al Jabri, seria como “um eterno passado-presente”.25 Assim, todo o pensamento árabe se submetia à autoridade dos “pais fundadores”, ao mecanismo de analogia do conhecido ao desconhecido. Desta forma, enquanto o Ocidente conseguira realizar uma superação do passado, podendo enxergá-lo como espectador, o Oriente expresso na cultura árabe-islâmica via a “tradição” não como um passado desconectado do presente, mas como um presente latente, um “todo cultural que compreende uma fé, uma Lei, uma língua, uma literatura, uma razão, uma mentalidade, um apego ao passado, uma projeção para o futuro, etc.”.26 O pensamento árabe se estabeleceria, portanto, em três ordens cognitivas: a “indicação” (bayan - ‫)ن‬, a “iluminação” (‘irfan - ‫ )ارن‬e a demonstração (burhan - ‫)هن‬. Estas ordens são utilizadas tanto para pensar o passado como para o futuro subsequente. A “indicação” é a principal, ela se define como o uso da razão para extrair do texto – sobretudo corânico – o sentido para as leis sociais, naturais, lógicas, etc.. Sendo assim, a compreensão está totalmente subordinada à providência divina e o homem é visto sempre como paciente, jamais como agente. A “iluminação” advém da 25. AL JABRI, M. Para uma crítica científica da razão árabe. In: AL JABRI, M. Introdução à crítica da Razão Árabe..., op. cit, p. 51. 26 GEOFFROY, M e MAHMOUD, A. Apresentação. In: AL JABRI, M. Introdução à crítica da Razão Árabe..., op. cit, p. 12-13..

(7) “indicação”: ela é a responsável pela estruturação das correntes filosóficas xiitas e sufis, é a capacidade do homem de exteriorizar o oculto, de extrair as verdades em seu próprio ser, o qual deve se aniquilar para o mundo a fim de alcançar a sua origem; o pensamento analógico é plenamente utilizado, não se baseando na afinidade entre coisas, mas em sistemas de semelhança numa lógica abdutiva. E por fim, a “demonstração” utiliza o silogismo e o modo de raciocínio, sendo devedora, sobretudo, à lógica aristotélica, em que as ideias surgidas por meio da “indicação” e da “iluminação” são postas em prática na sociedade.27 Ibn Hazm romperia com esse modelo de pensamento, o que Al Jabri chama de “ressurgimento andalusi”. Essa ruptura iniciada com a metafísica emanacionista, quando se fundiu filosofia e religião no paradigma árabeislâmico medieval, teve seu segundo momento inaugurado pelas contribuições críticas de Ibn Hazm, que buscavam, sobretudo, formar uma “ideologia do adversário”, uma demonstração de autonomia do Califado de Córdoba ante o Califado Abássida, e que derivavam da ortodoxia religiosa literalista.28 Epistemologicamente, a doutrina de Ibn Hazm assumiria um projeto intelectual de dimensão filosófica, que aspiraria reconstruir a “indicação” enquanto ordem cognitiva fundadora do pensamento sunita, dando-lhe como novo fundamento a “demonstração” de influência aristotélica (silogismo aristotélico) e apagando completamente a “iluminação”, mais característica dos xiitas e sufis, ainda que a analogia para Ibn Hazm possa ser válida quando feita com elementos da mesma natureza.29 Com o emprego da “demonstração”, uma atribuição do pensamento aristotélico, a ciência não seguiria isolada e distante da religiosidade, ela seria uma forma de legitimá-la e até mesmo de estruturar a vida social de acordo 27. Idem. p. 16-18. Ibid. p. 18-19. 29 AL JABRI, M. O “zahirismo” de Ibn Hazm: uma visão crítica e um método demonstrativo. Os fundamentos epistemológicos do pensamento teórico em al-Andalus. O ressurgimento andalusi. In: . In: AL JABRI, M. Introdução à crítica da Razão Árabe..., op. cit, p. 110-113. 28.

(8) com a Lei corânica. No entanto, mais do que uma expressão cultural, os modelos sucessivos de pensamento científicos se sujeitam muito mais a contextos políticos-religiosos do que ideológicos, e este foi o caso de Ibn Hazm, no contexto de Al-Andalus. 3. O Pensamento Aristotélico em O Colar da Pomba de Ibn Hazm A influência aristotélica em O Colar da Pomba, ao contrário da influência platônica, não é tão discutida. Entretanto, esta influência não pode ser ignorada, uma vez que está fortemente presente em outras obras do autor, assim como na própria proposta de Ibn Hazm para a cultura árabe-islâmica, como diz o filósofo Al-Jabri: Aprove-se ou não a Ibn Hazm, deve-se, em todo caso, reconhecê-lo como o pioneiro de uma nova era da crítica na cultura árabe-islâmica: crítica global da visão e do método da “Iluminação”, sob sua dupla forma xiita e sufi, e crítica não menos global dos temas e dos métodos da teologia dialética, da analogia jurídica e da imitação. O objetivo de Ibn Hazm não era criticar por criticar, mas sim superar as crises de crescimento da cultura árabeislâmica e propor-lhe um método de reconstrução que consista. em. fundamentar. “Demonstração”,. para. a. erradicar. “Indicação”. na. definitivamente. a. “Iluminação”. Para este trabalho, Ibn Hazm preconizava o método do silogismo e o exame indutivo, tanto em matéria de dogma quanto a ciência da sua época (as ciências físicas de Aristóteles) para construir uma nova visão “indicacional” princípios. científica. que. da Religião, tais. concordasse como. com. os. são enunciados. literalmente, permitisse a abertura dogmática e não.

(9) entravasse a ação humana. Essa liberdade exercia-se no campo do “permitido”, campo este que devia ampliar-se indefinidamente,. junto. com. o. progresso. dos. conhecimentos e o desenvolvimento da sociedade. (AL JABRI, 1999, p. 119) A utilização dos métodos aristotélicos que, como o próprio Al Jabri comenta, faziam parte do pensamento científico da época de Ibn Hazm, é uma característica que não pode ser desprezada na leitura de O Colar da Pomba. Por certo, Platão é o único citado nominalmente e as analogias explícitas da descrição do amor com a teoria platônica levam a maioria dos estudiosos a percebê-las e a aprofundar a relação que estabelecem. Em toda tradução da epístola na edição crítica de Sanchez Ratia, por exemplo, há apenas uma nota de rodapé que atribui a Aristóteles uma ideia professada por Ibn Hazm, que é a capacidade das almas, uma vez unidas, se reconhecerem, mesmo tendo vivido distantes umas das outras, o que remontaria ao princípio da amizade formulado por Aristóteles em Ética a Nicômaco.30 No entanto, isso não é tudo a se apontar como legado aristotélico à epístola. Acreditamos que diferentemente das ideias de Platão, que são pontuais, a presença aristotélica no texto se dá de uma forma aprofundada, e extremamente associada à maneira como Ibn Hazm organiza seus exemplos e a mensagem que quer apresentar ao destinatário de sua risala. O título do capítulo 1, Discurso sobre a essência do amor, em árabe ‫ا! م‬ ‫" ه ا‬, é um exemplo desta influência. A palavra “essência” (mahia – ‫)ه‬ remonta à ideia aristotélica de que tudo possui uma identidade; o amor para ser al-hub (‫ )ا‬detém certas características que o diferencia de outros tipos de amor. A epístola possui um caráter doutrinador, e para tal, Ibn Hazm defende que o amor possui uma essência, que o distingue e o define, e assim o torna 30. SANCHEZ Ratia, J. In: IBN HAZM al-andalusi. El Collar de la Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la nube..., op. cit., p. 33..

(10) passível de compreensão. Para o filósofo Angioni, o interesse de Aristóteles ao propor a ideia de essência é justamente concebê-la como “forma”, relacionando-a à questão da “matéria”, de modo que a essência em seu todo se tornaria o princípio suficiente da ciência demonstrativa.31 A presença do pensamento demonstracional na cultura árabe-islâmica é uma elaboração andalusi, que se difundiu através da corrente racionalista maghrebino-andalusi e promoveu a renovação do pensamento árabe, e fora efetivamente iniciada pela obra de Ibn Hazm.32 A compreensão do amor a partir do conhecimento da sua essência pressupõe outra teoria aristotélica, que é a teoria da inteligibilidade.33 O amor, ao possuir uma essência, é capaz de ser compreendido, estudado, pormenorizado, e é exatamente isso que Ibn Hazm faz nos demais capítulos de sua epístola: ele destrincha o que seria o amor pela forma como ele se apresenta nos viventes, como estes se comportam e o que a eles estaria suscetível de acontecer sob a influência do amor. Tais capítulos se seguem após a apresentação da essência do amor, os quais se intitulam: Sinais do amor (‫ ;)ب  ت ا‬Sobre quem se apaixona em sonhos (‫ م‬%‫;)ب ا " ا‬ Sobre quem se apaixona por alguém que lhe foi descrito (&'  ‫ ;)ب ا‬Sobre quem se apaixona por um só olhar (‫*ة وا)ة‬+ , ‫ ا‬, ‫ ;)ب‬Sobre quem não se apaixona senão após um longo período (‫ و‬-‫ ا‬. /‫ ا‬0 / ‫ ;)ب‬Sobre quem havendo amado uma qualidade já não pode amar ninguém que destaque o contrário (120 1 ‫ ه‬3 ‫) ه‬4 ,5650 7 ' ‫ ;)ب ا‬Sobre as insinuações da fala (‫ ل‬9 :046‫ ;)ب ا‬Sobre os sinais com os olhos (,4 ‫;رة‬/‫ ;)ب ا‬Sobre a correspondência (< ‫ ;)ب اا‬Sobre o mensageiro do amor (5‫ ;)ب ا‬Sobre a guarda do segredo (5‫ ;)ب " ا‬Sobre a divulgação do segredo (‫ذا‬/‫;)ب ا‬ Sobre a submissão (-‫ ;)ب ا‬Sobre a desavença (2‫ ;)ب ا‬Sobre o 31. ANGIONI, L. O conceito de metafísica no Livro VII da “Metafísica” de Aristóteles. Campinas, 1997. 122f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Curso de Filosofia – Universidade Estadual de Campinas, 1997. p. 113-114. 32 GEOFFROY, M e MAHMOUD, A. Apresentação. In: AL JABRI, M. Introdução à crítica da Razão Árabe. São Paulo: UNESP, 1997. p. 18 e 20. 33 ANGIONI, L. op. cit. p. 119..

(11) repreendedor (‫ذل‬4‫ ;)ب ا‬O amigo disposto a ajudar (‫> ان‬/‫ ا‬, )5‫ ;)ب ا‬O espião (?‫ ;)ب ا‬O caluniador (";‫ ;)ب ا ا‬A união (@' ‫ ;)ب ا‬O retraimento ( ‫ب‬ A1‫ ;)ا‬Sobre a fidelidade (‫ ;)ب ا ء‬Sobre a traição (‫)ر‬C‫ ;)ب ا‬Sobre a separação (,D‫ ;)ب ا‬Sobre o contentamento (‫ ع‬%9‫ ;)ب ا‬O consumo (F%G‫ ;)ب ا‬O consolo do esquecimento ( <5‫ ;)ب ا‬A morte (‫ ;)ب ا ت‬Sobre a feiura do pecado ( HD? ‫ب‬ I4‫ ;)ا‬Sobre a excelência da castidade (&46‫@ ا‬G ‫)ب‬. Esta organização, que inicialmente se fixa apenas na forma como o amor se revela no amante e se relaciona com o ser amado, passa no final da epístola a relacionar a essência e a inteligibilidade do amor à religião, o que automaticamente remete essas ideias à onisciência e onipotência divinas. Quem dá o amor e quem o criou foi Deus, assim como a capacidade de todos os humanos compreenderem sua Criação por meio da ciência (ilm - 7<), além disso, todos os seres estariam sob o jugo divino (maktub - ‫ ب‬6!). Essa analogia entre essência, inteligibilidade e Deus não estaria em desacordo com a teoria aristotélica, muito pelo contrário, Deus se assemelharia ao Ato Puro de Aristóteles, aquilo que se mantém ante as transformações, um princípio primeiro, eterno, privado de qualquer materialidade e potencialidade.34 A recepção do pensamento aristotélico no mundo árabe-islâmico se deu pelas traduções realizadas no âmbito da Casa da Sabedoria, em Bagdá, tendo seu auge no século IX. A tradução de Metafísica é atribuída ao filósofo Ishaq Ibn Hunayn (? – 911) e a tradução de Ética a Nicômano a Abū Uthmān alDimashqī (? – 910).35 Segundo o filósofo Miguel Attie, as obras de Aristóteles foram traduzidas integralmente, seja diretamente do grego ou por meio do siríaco, e essa leva de traduções teria tido três momentos: o de recepção, este representado por al-Kindi; de aprofundamento no entendimento das teorias. 34. ARISTÓTELES. A demonstração da substância suprassensível. In: Metafísica: Ensaio Introdutório I. São Paulo: Loyola, 2005. p. 114. 35 MACEDO, C. A recepção de Aristóteles no mundo islâmico medieval: uma outra história. Disponível em: http://revistapandora.sites.uol.com.br/aristoteles/cecilia_recepcao.htm Acessado em: 20 Nov 2011..

(12) aristotélicas, representado por al-Farabi, e o terceiro momento, este já posterior a Ibn Hazm, que fora o de sistematização das teorias por Ibn Sina.36 Na edição crítica de O Colar da Pomba, Sanchez Ratia apenas cita a possível presença de uma teoria aristotélica na epístola em sua introdução, na qual aponta que seria provável que Ibn Hazm tivesse tido acesso à Pseudoteologia de Aristóteles, uma versão parafraseada de Plotino – que teria circulado pelo mundo árabe-islâmico – da qual poderia ter extraído suas investigações metafísicas sobre a alma, permeadas de neoplatonismo.37 Ele não considera que Ibn Hazm tivesse tido contato com traduções de Aristóteles, mas é extremamente provável que Ibn Hazm tenha tido acesso aos comentários de Al-Farabi, até mesmo pela forma que ele relaciona a sua obra e seu caráter zahirista ao aristotelismo. Dessa forma, ainda que a presença das teorias aristotélicas não se sobressaia tão fortemente quanto as teorias platônicas, é inegável que ela se faz presente no pensamento de Ibn Hazm expresso ao longo da risala. 4. Conclusão: O amor para Ibn Hazm não é puramente um sentimento, ele ganha status de filosofia ao longo de sua epístola, O Colar da Pomba. O amor é estudado a fim de ser compreendido e, portanto, ter uma função de aprofundamento intelectual. Função esta que viria ao encontro da própria religião, o Islã, que valoriza a inteligência como dom dado por Deus para que o homem possa compreender o Absoluto.38 A transcendência do amor exemplificada nas passagens da epístola, que também narra a vida aristocrática do califado de Córdoba, demonstra mais do 36. ATTIE FILHO, M. Falsafa: A filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002. passim. 37 SANCHEZ RATIA, op. cit., p. XXIII. 38 SCHUON, F. Para compreender o Islã: Originalidade e universalidade da religião. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006. p. 17..

(13) que um simples objetivo do autor em esclarecer ao seu destinatário o que é o amor, mas comprová-lo epistemológico e empiricamente, como uma iniciação filosófica doutrinária. Ibn Hazm procura, então, legitimar a sua doutrinação amorosa por meio da teoria aristotélica. A utilização de um pensador grego não seria um contrassenso no pensamento em al-Andalus do século XI, muito pelo contrário, ela já era legitimada e valorizada pelo califado abássida desde o século IX, quando o califa Al-Ma’mun trouxe os manuscritos filosóficos a Bagdá e criou a Casa da Sabedoria, após um sonho em que teria dialogado com Aristóteles.39 A todo momento que se lê Ibn Hazm, assim como se lê autores cordoveses do califado Omíada de Córdova, percebe-se a conexão que al-Andalus possui com o califado abássida: ainda que houvesse um rompimento no campo político, o campo intelectual e cultural continuava a ter um contato extremamente rico, a ponto das modas literárias de Bagdá (como do amor udri) serem sempre copiadas e prestigiadas pelos círculos intelectuais andalusi. Aliada a influência bagdalí, o uso do pensamento aristotélico por Ibn Hazm também se justifica pela sua postura zahirista, só que diferente de um zahirismo literalista e intransigente proposto por Dawud, seu fundador, Ibn Hazm propunha uma crítica racional, vinculada ao Texto, partindo somente deste para compreender determinado assunto definitivo, mas pensando também naquilo que escapa ao domínio do Texto como ilimitado, sujeito à liberdade do homem, o que não restringiria o campo da razão e seria deixado à sua razão e livre arbítrio.40 O uso da filosofia grega seria mais um instrumento de compreensão do mundo e da religião, elementos que não estariam opostos, nem distantes entre si, mas comporiam a noção de “ser muçulmano” na época de Ibn Hazm.. 39. ATTIE FILHO, M. Falsafa: A filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002. p. 1718. 40 AL JABRI, M. Introdução à crítica da razão árabe. São Paulo: UNESP, 1999. p. 119-120..

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