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Monteiro Lobato e Mário de Andrade: confluência da cultura popular brasileira

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Academic year: 2021

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MONTEIRO LOBATO E MÁRIO DE ANDRADE:

CONFLUÊNCIA DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA

MONTEIRO LOBATO AND MÁRIO DE ANDRADE:

CONFLUENCE OF BRAZILIAN POPULAR CULTURE

Resumo: Neste artigo apresentamos uma leitura de textos dos escritores

mo-dernistas Monteiro Lobato e Mário de Andrade, apontando pontos de apro-ximação entre os autores no que se refere à exploração do folclore e da cultu-ra popular bcultu-rasileicultu-ra. No caso de Lobato, fizemos uma leitucultu-ra de Histórias de

tia Nastácia e O Saci; enquanto em Andrade abordamos a obra Clã do Jabuti.

Propomos uma análise das obras buscando evidenciar que ambos os autores transitam entre o erudito e o popular e por isso conseguem explorar com ma-estria tais elementos em seus textos. Nesse sentido, cabe ressaltar que o apro-veitamento estético das marcas da oralidade, na escrita desses dois autores, é que promove uma relação entre a moderna literatura nacional e a tradição da cultura popular.

Palavras chave: escritores modernistas, cultura popular, Brasil.

Abstract: In this article we present a reading of texts by the Modernist writers Monteiro Lobato and Mário de Andrade, by approaching them regarding the analysis of Brazilian popular folklore and culture. About Lobato, the analyzed texts were Histórias de tia Nastácia and O Saci; while in relation to Andrade, the analyzed text was Clã do jabuti. It is proposed the analysis of these works in order to identify that both authors pass through erudite and popular and, thus, they can explore such elements in their texts with mastery. In this sense, it should be emphasized that the aesthetic use of the marks of orality in the writing of these two authors is what promotes a relationship between the modern national literature and the tradition of the popular culture.

Keywords: modernist writers, popular culture, Brazil.

Recebido em: 24/07/2018 Aceito em: 06/07/2019

Autora | Author Silvani Lopes Lima*

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INTRODUÇÃO

No presente estudo propomos uma aproximação entre Monteiro Lobato e outro modernista, figura chave do movi-mento de 1922, o escritor Mário de Andrade. Ambos os autores produziram textos que tomaram como conteúdo, ou pelo me-nos como inspiração, histórias do universo folclórico e mítico do povo brasileiro. No caso de Monteiro Lobato, ficaram céle-bres suas personagens recortadas do povo como Tia Nastácia e Tio Barnabé, ou aquele que passou a ser o grande represen-tante do caipira no Brasil, Jeca Tatu. Mário de Andrade, por sua vez, voltou-se para a cultura popular nacional como um todo, aproveitando a figura do caipira, a música, as lendas, as festas, etc. Mais que um ficcionista da cultura popular, Mário de Andrade foi alguém que estudou, teorizou sobre e compilou registros dessa cultura.

Costa Lima (1968) defende a ideia de que os modernistas brasileiros pouca influência tiveram das vanguardas europeias, ou que pelo menos suas propostas vanguardistas não possuí-am o mesmo sentido daquelas. Para ele, enquanto a Primeira Guerra apresentava uma face cruel para os artistas europeus, com “o desmascaramento sangrento da euforia burguesa da

Bèlle Epoque e da crença no infinito progresso da razão e do

homem” (COSTA LIMA, 1968, p. 36), as mudanças infraestru-turais ocorridas no Brasil não geravam grandes conflitos. Os modernistas brasileiros buscavam a terra, algo já inconcebível para os europeus, mas que no Brasil ainda apresentava sentido, pois uma vez que “o sistema literário nacional estivera em con-fundir natureza com cartão postal” (p. 36), a preocupação com a realidade nacional apresentava um dado novo.

Essa preocupação apontada por Costa Lima se conjuga na abordagem que propomos da obra dos dois modernistas em questão, pois a tematização da cultura de um povo nada mais é do que o “aprofundar-se” no conhecimento sobre a terra.

A COMPREENSÃO DO “SER POVO” EM MONTEIRO

LOBATO

Aludimos aqui a duas obras de Monteiro Lobato, O Saci (1921) e Histórias de Tia Nastácia (1937), por considerar que ambas enfocam a cultura do povo, especialmente através do reaproveitamento das narrativas orais circundantes no país. Conforme Otávio Farias Filho (1999), quando analisa as per-sonagens do Sítio, é Tia Nastácia quem encarna o folclore po-pular de origem africana e nativa dentro daquele universo. Isso se confirma quando vemos que a eleita para contar as histórias

do povo é a velha empregada do Sítio, que se mostra um gran-de repositório das narrativas locais. Walter Benjamin (1987), em seu conhecido ensaio intitulado O narrador, tece inúmeras considerações a respeito desta instância. Ele afirma que a nar-rativa oral, fonte de todo texto narrado, surge de dois tipos de narradores anônimos que se interpenetram: aquele que vem de longe – pois o povo diz que “quem viaja tem muito a con-tar” –, mas também aquele que nunca saiu da sua terra natal e que conhece suas histórias e sua tradição. Podemos apontar a personagem de tia Nastácia como pertencente a um dos tipos arcaicos de narradores apontados por Benjamin: ela é o narra-dor sedentário, aquele que nunca saiu de suas terras e que, por-tanto, conhece as tradições e histórias locais. Por isso é essa a personagem escolhida por Lobato para ser a narradora de seu livro de “estórias”, ninguém melhor do que alguém do povo para saber contar as histórias deste povo. Tia Nastácia ganha importância nesse contexto, pois, apesar de ser analfabeta, ela, melhor do que qualquer outra pessoa do sítio, tem internaliza-dos os causos passainternaliza-dos oralmente através de gerações.

Assim, em Histórias de Tia Nastácia, o narrador onisciente introduz a narrativa, lança o motivo para os relatos no primei-ro capítulo e depois passa a palavra à negra velha que conta os causos. Entretanto, quando se trata de trazer a etimologia da palavra folclore – atendendo a uma curiosidade de Pedrinho – o narrador recorre à Dona Benta, que simboliza a cultura letrada no reino do sítio. Isso ocorre porque obviamente uma pesquisa de cunho filológico não poderia ser exigida da Tia Nastácia que disso nada entende, porém Pedrinho reconhece: “Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de es-premer tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela”. (LOBATO, 1964, p. 7). No final de cada história contada, o narrador abre espaço para os comentários dos ouvintes, mas sinaliza na grafia essa mudança de narrador.

As histórias são muito repetitivas, há um grande número de narrativas sobre reis, riqueza e dinheiro; e a grande maioria das histórias são fábulas, nas quais os protagonistas das ações são animais, há quase sempre um jogo de esperteza entre os bichos que se repetem nas diferentes narrativas: o macaco, a onça, o jabuti (sobre quem há mais histórias – sete relatos), o lagarto, a raposa, o veado, o coelho, a formiga, o pinto e o sapo. Além de repetitivas, as histórias são muitas vezes ingênuas e sem sentido, pois na passagem de “boca em boca” elas vão sen-do deformadas. Sobre esse aspecto, Lobato gera um interes-sante debate a respeito do contraste e da falta de entendimento que há entre a alta literatura e a literatura popular, através da fala de Emília, a grande personagem lobatiana. Marcada pelo

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seu conhecimento do mundo da alta cultura e pelas suas posi-ções críticas, Emília vê sempre de “nariz torcido” as histórias que tia Nastácia conta, percebe que, em relação às histórias dos autores clássicos que o pessoal do Sítio está lendo, aqueles rela-tos são muito simples e bobos. Emília nota como as estruturas se repetem, como podemos ver nos fragmentos reproduzidos abaixo:

– Bom – disse Emília. Esta já está mais bem arrumadinha. Mas eu noto uma coisa: as histórias populares parecem que são uma só contadas de mil maneiras diferentes. Falam tanto na tal imaginação do povo e eu não vejo nada disso. Vejo ape-nas uma grande pobreza. (LOBATO, 1964, p. 40-41)

– Continua o negócio do número três – disse Emília. Tudo tem que ser três! O povo não passa sem um rei e três prínci-pes, dois maus e um bom. E o bom é sempre o mais criança.

– E o castigo dos maus – ajuntou Narizinho – também é sempre o mesmo: a amarração em cauda de cavalo ou burro bravo. Acho muito bárbaras essas histórias. (LOBATO, 1964, p. 80)

Podemos observar, nessa incompreensão que Emília e Narizinho têm em relação à cultura da grande massa, a pre-sença, na ficção lobatiana, de uma problematização apontada por Maria das Graças Paulino em um artigo sobre a leitura popular na obra do autor, diz ela:

É admirável a serenidade com que Lobato constatou que, para a grande maioria das pessoas, faz parte do entendimento e do gosto uma boa dose de repetição. [...] Como sabia Lobato, o repetido está entrelaçado à vida popular. Lembremo-nos dos ritos, ou dos refrões, por exemplo. Por outro lado, é ine-gável que os artistas sofrem a ânsia do novo de maneira muito mais intensa que as pessoas comuns. Ao artista, facilmente repugna tudo que parece redundante, repetido. (PAULINO, 1983, p. 55)

Como não poderia deixar de ser, a boneca fica exultante com as histórias onde a esperteza e a inteligência vencem a força bruta, é o caso das fábulas e de algumas histórias sobre homens, em que o homem pobre vence o rico, ou o pobre consegue tornar-se rico pela esperteza. No caso das fábulas, os animais símbolos da esperteza são o macaco e o jabuti, que sempre vencem os desafios. Em oposição a eles está a onça,

que sempre tenta usar a força e se dá mal. Notemos isso na seguinte história:

Uma vez uma onça ouviu a música da gaitinha do jabuti e aproximou-se.

– Como você toca bem, jabuti! De que é feita essa gaitinha? – De osso de veado, ih, ih! – respondeu o cascudo. A onça, que estava querendo apanhar o jabuti, veio com um plano.

– Sou um pouco surda – disse ela. Toque mais perto da abertura do buraco.

O jabuti apareceu na abertura do buraco e tocou, mas no melhor da festa a onça deu um bote para pegá-lo. O jabu-ti afundou a tempo; mesmo assim ficou com uma pata nas unhas da onça.

– Ah, ah, ah! riu-se ele. Pensa que agarrou minha pata, mas só pegou uma raiz de pau! Fiau!...

A onça soltou as unhas, desapontada. O jabuti deu outra gargalhada.

– Grande boba! Era minha pata mesmo que você havia agarrado. Fiau! Fiau!

A onça jurou que não sairia da beira daquele buraco en-quanto não apanhasse o jabuti – e ficou lá até morrer de fome. (LOBATO, 1964, p. 151)

Também é interessante notar o homem e os animais sendo postos em pé de igualdade, ou até mesmo de superioridade destes em relação àquele, nas fábulas. É o que ocorre nas his-tórias de O jabuti e os sapatinhos e O jabuti e o homem. Na primeira, o homem disputa com o jabuti e o lagarto a mão da filha da onça, e o jabuti, usando de esperteza, logra os ou-tros dois. Na segunda, o homem inicialmente subjuga o jabuti ao levá-lo para casa e prendê-lo em uma gaiola. Mas depois o jabuti, sempre com sua gaitinha, engana os meninos, filhos de seu raptor, e foge para o mato. O homem até tenta pegá-lo ou-tra vez, mas: “O homem foi lá. – Ó jabuti! O jabuti respondeu: ‘Oi!’. Por mais que o homem procurasse, não o achava. – Vem cá, jabuti! E o jabuti: ‘Oi!’. Cada vez respondia de um lugar diferente, até que o homem danou e voltou para casa, muito desapontado” (LOBATO, 1964, p. 147). Assim se estruturam as fábulas presentes em Histórias de tia Nastácia, sempre nesse jogo de esperteza dos personagens.

As últimas histórias narradas remetem ao universo popu-lar de outros países, portanto exigem um conhecimento que ultrapasse o local. Por isso essas histórias são narradas pela avó, Dona Benta. A tia Nastácia esgota o seu repertório de “es-tórias”, ou pelo menos se impacienta de narrá-las, e vai cuidar

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de seus afazeres. As histórias narradas pela avó passam por Cáucaso, Pérsia, Congo, pelos povos esquimós, pela Rússia, Islândia e acaba no Brasil novamente, com uma história do Rio de Janeiro.

A outra obra escolhida por nós para representar o universo popular tematizado por Lobato é O Saci, um texto que se cons-trói como uma verdadeira “iniciação” ao mundo das lendas brasileiras. O ente responsável por essa introdução a esse uni-verso é uma das figuras mais representativas das nossas len-das, o saci pererê. É ao negro velho tio Barnabé que Pedrinho recorre para investigar sobre o saci. Tio Barnabé representa a voz do povo, portanto ninguém melhor do que ele para falar do “talzinho” que, segundo conta,

é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mun-do, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci fica por toda a vida senhor de um pequeno escravo (LOBATO, 1988, p. 14).

Sobre as reinações que apronta o saci, Tio Barnabé diz que o pequeno ser

azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesou-rinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. (LOBATO, 1988, p. 14)

Assim como inúmeras pessoas do povo, Tio Barnabé jura ter visto o saci e relata as visitas que recebeu do dito serzinho na sua cabana. Por ser um grande conhecedor dessa entidade, o negro velho inclusive se dispõe a ensinar Pedrinho como pe-gar um saci em redemoinho.

É interessante notar que tio Barnabé diz que, para o ho-mem em plenos sentidos, o saci é invisível, quando se tem um saci preso em garrafa não se pode vê-lo, a menos que se caia na “madorra”: “num dia bem quente, quando os olhos da gen-te começam a piscar de sono, o saci pega a tomar forma, até que fica perfeitamente visível” (LOBATO, 1988, p. 17). Sendo assim, o mundo a que estamos sendo introduzidos não se

es-trutura pelo estado consciente, pelo pleno senso de realidade, mas muito pela imaginação, no estado limite entre a realidade e a fantasia, ou mesmo no próprio mundo da fantasia. De al-guma forma, o texto adverte que é com esse entendimento que devemos olhar para as “estórias” que iremos conhecer.

Depois de pegar um saci, Pedrinho faz com ele um acor-do e a criaturinha o insere no munacor-do secreto da mata virgem. Nesse contexto, ressalta-se a inferioridade do homem em lação à natureza, nesta aquele é um ser muito atrasado em re-lação às criaturas da mata. O saci, quando fala das vidinhas da mata, diz que cada qual nasce sabendo fazer o certo – e não er-ram. Os grilos nascem sabendo fazer buracos, os pernilongos nascem sabendo picar, e assim por diante. Sobre isso Pedrinho argumenta: “Sim, nascem sabendo e nós temos que aprender com nossos pais ou nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em não saber e aprender pelo estudo”. (LOBATO, 1988, p. 25) Ao que o saci responde:

Perfeitamente – concordou o saci. – Não nego o mérito do esforço dos homens. O que digo é que são seres atrasa-díssimos – tão atrasados que ainda precisam aprender por si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não precisamos aprender coisa nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda a ciência da vida lá dentro ou ter de ir aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos erros? (LOBATO, 1988, p. 25).

Diante disso, Pedrinho obriga-se a concordar com o seu interlocutor que é mais cômodo nascer sabendo: “– Sim, nes-se ponto você tem razão, saci. Mas que é que faz todas essas vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende” (LOBATO, 1988, p. 25-26). Assim, Pedrinho vai tendo inúmeras lições com o saci, sobre a vida, sobre a morte e sobre o medo. Até que começa a conhecer os seres das lendas de quem sempre ouviu falar: o boitatá e o negrinho do pas-toreio (ambos de lendas do sul do país); conhece a Iara; vê a onça e a sucuri de perto; conhece o local de origem da sacizada e consegue vê-los ainda nos “casulos”, em gomos de taquara.

Entretanto, nessa vida intensa da mata, há um horário fatídico para os seres noturnos, é a meia-noite. Ansiosos, Pedrinho e saci aguardam a hora zero do dia para verem os seres da escuridão. Nesse momento, o menino sente medo e é o saci quem resolve tudo:

– Não se arreceie de coisa nenhuma. Deixe tudo por minha conta, que nada de mal há de acontecer – disse o saci, cor-rendo os olhos em redor como em procura de alguma coisa.

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Há ali uma peroba minha conhecida, onde encontraremos o melhor dos refúgios.

[...]

Muito bem – disse o menino – mas só quero saber como poderei enxergar qualquer coisa de noite nesta floresta que de dia já é tão escura.

– Para tudo há remédio – foi a resposta do saci. – Espalharei pelas árvores vizinhas centenares de lanterninhas vivas, de modo que você enxergará como se fosse dia. Mas antes é preciso que coma estas sete frutinhas vermelhas – concluiu, apresentando ao menino um punhado de frutinhas do tama-nho de amoras bravas.

Pedrinho desconhecia aquelas frutas e foi com uma careta que mordeu a primeira, tão amarga era. Mas comeu as sete, e logo em seguida sentiu uma deliciosa tonteira invadir-lhe o corpo, deixando-o num esquisito estado de consciência jamais sentido. Era como se estivesse dormindo acordado. (LOBATO, 1988, p. 31-32).

Observamos mais uma vez que, assim como foi para ver o saci, o menino precisa estar com os sentidos afetados para po-der viver essa experiência. É nesse estado, próximo ao onírico, que Pedrinho vê acontecer a reunião da sacizada, que combina as reinações que serão feitas durante a noite, e vê desfilar na mata o lobizomem, a mula-sem-cabeça, a porca dos sete lei-tões e o caipora. Do lobizomem, Pedrinho não pode deixar de notar, apesar do medo, “que o monstro tinha a pele virada, isto é, o pêlo para dentro e a carne para fora – uma coisa horrível! No mais, era um perfeito lobo, embora de dimensões muito avantajadas”. (LOBATO, 1988, p. 33). Sobre a mula-sem-ca-beça, saci alega que se trata do “mais sinistro duende que há no mundo; tem o dom de transtornar a razão de todos que a vêem”. (LOBATO, 1988, p. 34).

O mote da captura do saci foi o modo de o autor apresentar ao mundo ficctício do sítio e ao mundo do leitor o universo fascinante das lendas populares. Notamos que tudo se passa em estado à parte da razão, já que em posse de todos os sen-tidos não é possível o acesso a esse espaço e tempo mágicos.

Tanto em Histórias de tia Nastácia quanto em O saci, por meio da curiosidade das personagens crianças, do conhe-cimento das personagens recolhidas do povo, das narrativas recuperadas (lendas, mitos, fábulas, etc.) e graças ao recurso

do nonsense, Lobato consegue fazer um passeio pela cultura popular do Brasil.

Na sequência, veremos como Mário de Andrade, em Clã

do Jabuti, também constrói sua poesia a partir de motes

popu-lares, percorrendo diferentes regiões e costumes do país.

CLÃ FOLCLÓRICO: CONFIGURAÇÃO DO

POPULAR MÁRIO DE ANDRADE

O percurso de Mário de Andrade como poeta foi objeto de estudo de João Luiz Lafetá em Figurações da intimidade: imagens na poesia de Mário de Andrade (1986), no qual o crí-tico aponta que a produção poética do autor é resultante de diferentes máscaras: do poeta arlequinal, do poeta das diversi-dades, do poeta aplicado, do poeta espelho sem reflexos e do poeta político.

Clã do Jabuti (1927), texto sobre o qual propomos algumas

reflexões, escreve-se sob a máscara do poeta aplicado, dentro da perspectiva de Lafetá. Nesse livro, diferentemente de alguns publicados anteriormente, como Paulicéia desvairada (1922), o autor se afasta da cidade de São Paulo, da imagem da cidade grande que se movimenta freneticamente, e se estende para todo o país, citadino e rural, objetivando mostrar as diferen-tes faces do Brasil. Faz poesia das cantigas populares (modas, rondós, sambinha, arraiada, toada), recorrendo muito ao ver-so em redondilha maior. Lendas e crenças do povo brasileiro também se tornam temas na lírica do Clã.

Sendo assim, é a incorporação da cultura popular na cons-trução poética que tomamos como pauta para esta leitura dos poemas do Clã do jabuti. O poeta procura romper as fronteiras da forma erudita e incorporar a diversidade cultural na escrita literária. Ao que parece, na época da produção desse livro de poesias, o Modernismo, no auge das vanguardas, ainda está marcado pela positividade e pela euforia em relação à integra-ção dos estados e das classes através da arte. No texto A arte

e o futuro da cultura, de Eduardo Subirats (1986), que trata

da crise da modernidade, vemos que a vanguarda pensava a libertação da arte e o que houve de fato foi a banalização artística. Parece que o “poeta folclórico”, conforme Antonio Candido (2000) denomina o poeta de Clã do jabuti, constrói a sua obra imbuído desse espírito de libertação da arte de que fala Subirats. Ao usar os temas e as formas do folclore, o poeta alcança a libertação da poesia das amarras da elitização ime-diatamente anterior.

Clã do Jabuti é um livro que tematiza o local ao se voltar

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sutileza da linguagem, na presença do imaginário enquanto lugar de produção de significados, alcança o universal. Não deixa de se fazer presente na obra a face do poeta estudioso e conhecedor da cultura clássica do ocidente, mas ele também é, antes de tudo, um grande conhecedor da cultura popular local, diminuindo assim a distância entre o ilustrado e o po-pular – o poeta que observa o carnaval carioca “treme em seus preconceitos eruditos”, nem por isso deixa de explorar de perto a grande festa do povo.

O autor alcança na sua produção o que o texto moderno propunha conforme a definição de João Alexandre Barbosa (1982, p. 29): “leva para o princípio de composição um des-compasso entre a realidade e a sua representação, exigindo, as-sim, reformulação e rupturas dos modelos ‘realistas’, mudando a maneira de articular a realidade no espaço da linguagem”.

Nos poemas de Clã do jabuti sintetizam-se as contribui-ções do Modernismo levantadas por Antonio Candido (2000): a destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literá-rio, a paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, enfim, a irreverência como atitude. Candido afirma que há dois grandes momentos de ruptura na literatura brasileira: pri-meiro com o Romantismo e depois com o Modernismo. Mas o primeiro foi muito mais uma mudança das formas do que do conteúdo, mantém-se uma escrita de convenção na afirma-ção do nacional idealizado. O segundo momento realiza uma libertação das formas e do conteúdo. Agora a afirmação do nacional se dá pela valorização do conteúdo primitivo, rústico, pela exposição do Brasil como ele é. (CANDIDO, 2000).

Os modernistas quiseram desvelar a nação quando se vol-taram para suas diferentes manifestações culturais, poetizando e teorizando esses conteúdos. Ao relermos Monteiro Lobato e suas inúmeras realizações, percebemos que isso não se deu somente com os modernistas de 1922 (nestes incluído Mário de Andrade), mas também com aqueles que fizeram uma re-volução e marcaram a literatura brasileira nesse período, ainda que não tenham sido reconhecidos como integrantes do grupo da Semana de Arte Moderna. Nos textos desses autores mo-dernistas, a cultura popular perde seu caráter exótico que a distanciava e a diminuía em relação à cultura erudita.

Quando pensa o Modernismo e a manifestação das van-guardas no Brasil, Ferreira Gullar enfatiza essa questão. Ele acredita que,

como Alencar, Mário de Andrade quer também criar uma ‘língua brasileira’, e como Alencar ele cria, na verdade, um es-tilo literário. A diferença fundamental é que, como já agora o país existe muito mais – possui alguma autonomia econômica em comparação com a do século XIX, classes mais definidas,

pontos de referência críticos e perspectivas mais claras dos problemas sociais e culturais – o pensamento artístico pode se exercer com mais objetividade e profundidade, apoiado em uma realidade social bem mais palpável. (FERREIRA GULLAR, 1984, p. 41).

Gullar afirma ainda que as vanguardas europeias foram adaptadas à realidade brasileira a qual não podia se servir do negativismo fundamental que marcava aquelas correntes. O Modernismo aceitou, mas ainda assim com outro sentido, “o irracionalismo como valorização do ‘primitivismo’ nacional, da cultura indígena (lendas e mitos) e da selva, como repo-sitório presente, daquela cultura. Deu-se uma ‘barbarização’ da sofisticação europeia.” (FERREIRA GULLAR, 1984, p. 47).

Zilá Bernd aponta como Mário de Andrade escreve

Macunaíma (1928) em oposição aos modelos do Romantismo,

afirma que

a identificação de Mário com a visão do mundo do povo e a adesão à sua concepção mítica, que se opunha frontalmente ao esquema lógico-racional da tradição europeia, fez com que incluísse no fluxo narrativo elementos insólitos, a exemplo do realismo maravilhoso latino-americano. (BERND, 1992, p. 48).

A autora observa ainda que:

a concepção do tempo na sua escritura deixa de fundar-se em um retorno nostálgico ao passado, para introduzir a no-ção de busca simbolizada pelos constantes deslocamentos – viagem – do personagem. Essa viagem simboliza a pro-cura do conhecimento, da verdade e da própria identidade. (BERND, 1992, p. 48).

Em Clã do Jabuti, escrito anteriormente à Macunaíma, já notamos esses elementos na obra: a identificação do poeta com a visão mítica do povo manifestada no reaproveitamento das lendas e mitos na sua poesia, assim como a “viagem” que o poeta realiza por diferentes espaços nacionais, procurando não só conhecer e mostrar o Brasil como afirmar a sua pró-pria identidade. É o que encontramos na afirmativa de Lafetá (1986) de que o poeta aplicado realiza dois movimentos simul-tâneos: um é a descoberta, a revelação e o aprimoramento do Brasil; outro, a descoberta, a revelação e o aprimoramento do próprio “eu”.

Nesse sentido, ao empreendermos uma análise dos poe-mas que compõem o Clã, encontramos em um poema como

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comuni-dade nacionalmente unificada, com a força de coesão de uma língua comum e a encarnação de uma consciência coletiva e de uma experiência partilhada, como fica evidente no fragmento em destaque (v. 372-378):

Que importa que uns falem mole descansado Que os cariocas arranhem os erres na garganta Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais? Que tem se o quinhentos réis meridional

Vira cinco tostões do Rio pro norte?

Juntos formamos este assombro de misérias e grandezas, Brasil, nome de vegetal!...

(ANDRADE, 2013, p. 258)

O poeta come amendoim, poema que abre Clã do Jabuti,

pode ser visto como poema-síntese, que resume o Brasil, ca-racterizando o povo através da referência à religiosidade, às cantigas e danças, à língua falada e à própria história do país, enquanto colônia e depois quando se torna República, quando ainda não sabia o que era ser uma nação independente: “Duma feita os canhamboras perceberam que não tinham mais es-cravos / Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã / A gente ainda não sabia se governar...” (ANDRADE, 2013, p. 208, v. 9-11). Ao ler os versos, depara-mo-nos com um Brasil imenso e bom, escrito “de palavras in-certas num remelexo melado melancólico...” (v. 24), que marca bem a lentidão e até mesmo a languidez desse povo “tropical”. Na estrofe que refere o título do poema, o amendoim parece ser o “combustível” da reflexão do poeta sobre a cultura brasi-leira. Olhemos os versos 21-27:

Brasil...

Mastigado na gostosura quente do amendoim... Falado numa língua curumim

De palavras incertas num remeleixo melado melancólico... Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons... Molham meus beiços que dão beijos alastrados E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas... (ANDRADE, 2013, p. 209)

A lentidão da linguagem, dada pela repetição de sons nas aliterações e nas assonâncias, sugere ao leitor que o poeta “ru-mina” as palavras e as ideias que desenvolve nos versos.

Em Carnaval carioca, o eu lírico, representante da cultura erudita, faz-se observador da grande festa popular. O carnaval

simboliza a mistura de raças própria do Brasil – “um negro dois brancos três mulatos, despudores” (ANDRADE, 2013, p. 211, v. 15) – em um mundo liberto de pecados. No entanto, essa alegria aparentemente completa não o é, pois é um mo-mento de fuga da realidade de pobreza, como verificamos nos versos a seguir (v. 55-59):

Ele tinha nos beiços sonoros beijando se rindo Uma ruga esquecida uma ruga longínqua

Como esgar de uma angústia indistinta ignorante... Só eu pude gozá-la.

E talvez a cama de ferro curta por demais... (ANDRADE, 2013, p. 212)

O poeta leva ao carnaval o poder transformador da lingua-gem, capaz de tornar sublime a realidade vulgar, como verifi-camos nos versos abaixo (v. 84-87;89;97-101):

Eu mesmo... Eu mesmo, Carnaval... Eu te levava uns olhos novos

Pra serem lapidados em mil sensações bonitas, Meus lábios murmurejando de comoção assustada [...]

É que sou poeta [...]

Sou o compasso que une todos os compassos, E com a alegria dos meus versos

Criando ambientes longínquos e piedosos Transporto em realidades superiores A mesquinhez da realidade. (ANDRADE, 2013, p. 213-214)

Os demais poemas do Clã completam essa revelação do Brasil na sua originalidade, passeando de norte a sul do país, mostrando um pouco dos cenários, costumes e atividades do norte, nordeste e sul. Estamos pensando em poemas como

Tempo das águas (p. 266), Tostão de chuva (p. 269), Coco do major (p. 274) e Acalanto do seringueiro (p. 288), que remetem

a esses espaços.

No poema Tempo das águas, o vocabulário empregado nos leva a crer que o universo retratado é o do Sul do país, em um

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cenário também campesino. Vejamos o fragmento selecionado (v.1-5; 14-24):

O gado estava amoitando na capoeira.

Agora é a guapiara agachada no lombo do morro Vazia que não tem mais fim.

De repente faz cócega na cara da gente A mão de chuva do vento.

[...]

E a água lava até a espinha da gente E encrespa a crina do animal. Que gostosura!

Você rejeita o forde da fazenda na porteira

E continua tchoque-tchoque na tijuqueira peguenta da [estrada. Em casa,

No brim novo com cheiro de ribeirão Você deita na rede da varanda, Chupita o traço da abrideira... E se conversa.

E se conversa sobre a baixa do café. (ANDRADE, 2013, p. 266)

No trecho, notamos o uso de um vocabulário bastante es-pecífico como “guapiara” (pedregulho ralo e seco) e “abrideira” (cachaça, que serve para abrir o apetite), mas há outros vocá-bulos como “amoitado” (escondido), “forde” (automóvel), “ti-juqueira” (água suja, escura), “peguenta” (barrenta, grudenta), “chupita” (sorver devagar), “animal” (referindo-se a cavalo), que retratam esse universo campesino. Entretanto, o tema da conversa é a baixa do café, o que nos permite pensar que a si-tuação econômica do país, com uma possível sisi-tuação de crise, interfere ou mesmo quebra essa aparente paz do campo.

Em Tostão de chuva aparece a persona Antônio Gerônimo, um sitiante do fundão que acaba perdendo o único bem que possuía por ter sido “desabusado” em oração que fez a pa-dim Pade Ciço. Tendo ele pedido um “tostão de chuva”, Padre Cícero teria dito: “Pros outros mando muita chuva não, / Só dois vinténs. Mas pra Antônio Gerônimo/ Vou mandar um tostão” (v. 14-16). O excesso de chuva acaba por matar o cava-lo do homem, o único bem que ainda lhe restava. Em tom de troça, o poema aborda a triste realidade do nordeste do país,

com uma população castigada pelas constantes secas, a qual fica sempre à espera de que um milagre a salve.

O poema Coco do major se volta também para o espaço do Nordeste, em específico para o estado do Rio Grande do Norte. Esse poema aborda os costumes regionais e conta um “causo” sobre um major fazendeiro que possuía três filhas, as moças mais lindas da região. Certa vez um sujeito que se atre-veu a ir espiá-las, chegando à fazenda com a desculpa de pedir um copo d’água para poder ver as moças, foi obrigado a tomar três moringas cheias d’água. Desde esse episódio, ninguém mais se atreveu a ir ver as moças do major, porque o pai “as guarda com água de pote” (v. 50). Mas uma vez nos deparamos com o tom de troça, mostrando o jogo de esperteza entre o mocetão e o major, do qual este sai vencedor, mas o poema aborda também costumes rígidos do interior do país.

Em Acalanto do seringueiro, como o próprio nome revela, o poeta quer compor um acalanto que embale o sono do serin-gueiro e, ao longo do poema, vai se questionando quem é esse homem que vive nas profundezas da floresta, o que ele tem em comum consigo (poeta), que fala a partir de outro espaço, pro-vavelmente o urbano. O poema é composto de sete estrofes, com número irregular de versos, sendo que a última estrofe é composta apenas por versos repetidos, como um refrão, que se tornam o próprio acalanto, alterando entre “seringueiro, dorme” e “brasileiro, dorme”. Notemos, a título de ilustração, a segunda estrofe do poema (v. 13-25):

Como será a escureza Desse mato-virgem do Acre? Como serão os aromas A macieza ou a aspereza Desse chão que também é meu? Que miséria! Eu não escuto A nota do uirapuru!... Tenho de ver por tabela, Sentir pelo que me contam, Você, seringueiro do Acre, Brasileiro que nem eu. Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. (ANDRADE, 2013, p. 288)

Nos versos retomados, o eu lírico levanta questionamentos no sentido de tentar desvendar quem é esse seringueiro, esse “outro” que se opõe ao “eu”, a quem este só pode “ver por tabe-la” ou “sentir pelo que [lhe] contam”, mas que mesmo assim é

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brasileiro que nem ele. Esse sujeito embrenhado nos fundos da mata também trabalha como o eu lírico “[...] pra pagar as pérolas/ Do pescocinho da moça/ Do deputado Fulano” (v. 53-55). Evidencia-se nos versos uma crítica ao descaso com um imenso contingente da população brasileira que vive na invisibilidade.

No que se refere ao aproveitamento das lendas do folclore brasileiro, vemos isso tematizado em poemas como Toada do

pai-do-mato (p. 264), Poema (p. 267) e Lenda do céu (p. 270),

que aproveitam crenças e lendas indígenas.

O poema Toada do pai-do-mato é composto de quatro quadras, seguidas de refrão, o qual enfatiza o conteúdo do último verso de cada quadra. A composição do poema é tí-pica de composições populares. Luís Câmara Cascudo (1999) recupera alguns sentidos desse tipo de composição musical, resumindo que “os elementos possivelmente típicos e cons-tantes ocorrem noutros modelos e ficam no quadro geral das modas ou modinhas matutas, em quadras, com refrão [...]” (CASCUDO, 1999, p. 872). O pai-do-mato é uma figura fol-clórica do interior do Brasil, popular especialmente na região centro-oeste do país, a qual teria pés de cabrito e o corpo todo coberto de pelos, um ser meio bicho meio homem, que de-fende a natureza e os animais da floresta (CASCUDO, 1999, p. 659-660). No poema, uma moça que vai à floresta colher frutas é atraída por uma cantiga entoada pelo próprio pai-do -mato. Vejamos as estrofes finais do poema (v. 13-23):

Enganada pelo escuro Camalalô fala pro homem: Ariti, me dá uma fruta Que eu estou com fome. -Ah...

Estava com fome.... O homem rindo secundou: - Zuimaalúti se engana, Pensa que sou ariti? Eu sou pai-do-mato. Era o pai-do-mato!

(ANDRADE, 2013, p. 264-265)

O diálogo retratado se passa entre uma moça indígena e o pai-do-mato. A moça emprega o termo “ariti” para se referir ao seu interlocutor, o termo pertence ao vocabulário

indíge-na, da tribo dos parecis, cujos membros se autodenominavam “aritis”. Há outros termos do vocabulário indígena como “ca-malalô” e “Zuimaalúti”, empregados para designar a moça, o que demonstra que a lenda do pai-do-mato tem uma forte relação com a cultura indígena, esta que é abarcada nos poe-mas do Clã.

Também em Poema o universo retratado é o indígena, com a abordagem da lenda da Iara ou mãe-d’água. Conta a lenda que a mãe-d´agua, posteriormente designada Iara, é uma espécie de sereia que encanta e mata os homens, afun-dando-os na água. Observemos como essa lenda é apresenta-da no poema de Mário de Andrade:

Neste rio tem uma iara...

De primeiro o velho que tinha visto a iara Contava que ela era feiosa, muito! Preta gorda manquitola ver peixe-boi. Felizmente velho já morreu faz tempo.

Duma feita, madrugada de neblina, Um moço que sofria de paixão

Por causa de uma índia que não queria ceder pra ele, Se levantou e desapareceu na água do rio.

Então principiaram falando que a iara cantava, era moça, Cabelos de limo verde do rio...

Ontem o piá brincabrincando Subiu na igara do pai abicada no porto, Botou a mãozinha na água funda

E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá. Neste rio tem uma iara...

(ANDRADE, 2013, p. 267-268)

Segundo a vertente europeia, a mãe-d’água “é alva, lou-ra, meia peixe, cantando para atrair o enamorado que mor-re afogado quemor-rendo acompanhá-la para bodas no fundo das águas.” (CASCUDO, 1999, p. 532). Na versão indígena, aquela originalmente corrente no Brasil, há uma variante da lenda na qual esse ser fantástico não se relaciona com a ima-gem da mãe, pois a tradição indígena não admite a conotação sexual ligada à mãe, origem de tudo, assim “o mito das águas compreendia a outra expressão misteriosa, não defensiva ou protetora, mas sempre contrária e assassina: a cobra-d’água, cobra-grande, mboiaçu, a cobra-preta, boiúna.” (CASCUDO,

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1999, p. 532). Em Poema aparece as duas versões do mito, pri-meiro como cobra feiosa e posteriormente como uma moça sedutora que encantou um índio apaixonado, mostrando que a lenda nativa já sofreu a influência daquela que vem de fora do país.

Em Lenda do céu, a linguagem é delicada e cheia de en-cantos. No recorte do poema trazido para ilustração (v. 17-24; 39-56 e 66-73), percebemos como o recurso de repetição e as rimas externas dão cadência ao poema:

O menino malvado Taperá machucou. E já morremorrendo A coitada falou:

– Piá não me maltrata não... Eu levo você pro céu... E nunca ninguém não cansa De ver as coisas do céu... [...]

E avoando avoando Afinal se chegou. Andorinha desceu. Curumim apeou. Abriu os olhos e viu. Era o céu... ôh boniteza! Tinha espingarda gangorra Estilingue... tinha bichos E tinha tantas surpresas

Que era mesmo um desperdício. Olha o cachorro jaguar!

Olha a ave seriema! Da gente bolear nhandus!... Era que nem um pomar Com tanta fruta aromando Que o ar ficava que ficava Bonzinho de respirar.

[...]

Tinha mandioca e açaí Mate cana arroz café Muita banana e feijão Milho cacau... Tinha até Pra lá do cercado novo Cheio de taperebás Um rancho do nosso povo Com seu mastro de São João. (ANDRADE, 2013, p. 270-272)

No poema, uma andorinha que é constantemente maltra-tada por um curumim muito traquinas resolve levá-lo para um passeio no céu. Nesse paraíso celeste, além de rever os parentes que há muito não via e matar as saudades, o me-nino observa que o espaço é povoado de elementos tipica-mente nacionais. Ali, ele poderá viver brincando eternamen-te. Percebemos que as belezas da fauna e da flora nativas são ressaltadas a ponto de ser possível cogitar que viver no Brasil é viver no próprio céu.

As musicais populares, por sua vez, aparecem em muitos poemas que compõem o livro, nos quais figuram títulos com termos como “rondó” (p. 229), “sambinha” (p. 233), “moda” (p.235, 236, 277 e 288) “acalanto” (p. 237 e 288), “arraiada” (p. 263), “toada” (p. 264) e “coco” (p. 274), que remetem a gêne-ros musicais populares.

Nessa leitura empreendida a partir de alguns poemas do

Clã, percebemos que a cultura popular do Brasil, com suas

lendas, mitos e ritmos musicais, permeia todo o conjunto po-ético, por meio do qual o poeta nos conduz magistralmente a um passeio em busca de nossa própria identidade cultural, ou, como ressalta Ana Nunes em seu estudo de mestrado, ao longo de todo o Clã do jabuti constatamos “o tom de brasili-dade [...] que o poeta tão belamente imprime em seu texto”. (NUNES, 2006, p. 61).

CONFLUÊNCIA ENTRE OS AUTORES

Ao propor uma reflexão sobre a cultura brasileira, Alfredo Bosi (1987) diz que não há uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos discursos e comportamentos, e que a ad-missão de seu caráter plural é o principal passo para compre-endê-la. Assim, a cultura das classes populares se encontra, em determinadas situações, com a cultura de massa, e esta, com a cultura erudita e vice-versa. Nesse sentido, a cultura de

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massa seguidamente se apropria da cultura popular, ocul-tando o seu enraizamento, passando ainda a disputar o espa-ço da formação e do conhecimento delegado à cultura eru-dita. A indústria cultural, ao dirigir o gosto, engole as outras, sobretudo a popular. Essa fusão de culturas começa já pelo contato inter-étnico que se dá no país desde a sua formação. A partir da análise das obras de Mário de Andrade e Monteio Lobato do ponto de vista aqui poposto, pode-se di-zer que tanto o primeiro quanto o segundo percebem esse caráter plural essencial da cultura brasileira apontado por Bosi. Na posição de pensadores da cultura nacional, ao se voltarem para as culturas populares, os autores fazem ponte entre os diferentes níveis de cultura. Em Lobato, verificamos isso na exploração que o autor faz das narrativas populares e lendárias em suas obras, opondo o narrador local e enrai-zado, conhecedor da cultura de seu povo, ao narrador que conhece outros lugares e que pode contar também sobre ou-tras culturas. Em Mário de Andrade, notamos um eu poéti-co que se desloca entre o erudito e o popular, representando a diversidade existente na cultura brasileira. Nesse desloca-mento, passa pelo carnaval carioca, pela cultura mineira, pelo homem rústico e incomum que vive entranhado nas matas do amazonas, pelos “causos” que circulam de norte a sul do país, pelas lendas brasileiras e pela riqueza das com-posições musicais populares.

É preciso ressaltar ainda que Lobato, na prosa, e Andrade, na poesia, conseguem estabelecer uma relação entre a mo-derna literatura nacional e a tradição da cultura popular pelo aproveitamento estético que fazem das marcas da orali-dade em sua escrita. Tanto Histórias de tia Nastácia e O Saci quanto Clã do jabuti alicerçam essa relação e concretizam a ideia de que tais marcas podem adquirir um status literário, uma vez que carregam particularidades de uma literatura nacional.

Assim sendo, a busca das raízes europeia, indígena e africana que se fincaram em nossas representações cultu-rais possibilitou de fato apresentar uma visão mais real do país que, na sua essência, é mestiço. Os elementos da cultura popular recuperados nos textos estudados funcionam como dispositivos de reconstituição de um Brasil que se amparava em arquétipos europeus e que a partir da proposta moder-nista busca trilhar o caminho desde suas caraterísticas

lo-cais, pensando e sentindo por si mesmo e refletindo sobre as questões de seu povo.

REFERÊNCIAS

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LEITE, Lígia Chiappini M.. O foco narrativo. São Paulo, Ática.

CURRÍCULO

Referências

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