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Empresas de Salvação e Capitalismo do Imaginário como Desafio à  Sociologia da Religião a Relação entre Religião e Política como um Desafio à  Sociologia da Religião na Atualidade

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ALBERTO DA SILVA MOREIRA

Resumo: o deslocamento do religioso trouxe também uma diluição das

fron-teiras entre religião e sistema econômico. As interrelações entre capi-talismo e religião não são recente, como Marx e Weber na sua época já mostraram, mas atualmente parecem ter atingido uma intensidade ou uma qualidade nova. Correntes teóricas funcionalistas e liberais, como a chamada “economia religiosa” e a “escolha racional” aplica-ram sem rodeios as categorias de análise da economia de mercado ao fenômeno religioso. Outra corrente, inspirada no marxismo e que parte da teologia, tem denunciado a pretensão religiosa do próprio sistema econômico. A sociologia da religião enfrenta a metáfora do cobertor curto: ela precisa pensar abordagens teóricas para enfrentar a complexidade crescente do econômico que pervade e desloca o campo e a noção de religioso.

Palavras-chave: religião, capitalismo, bens de salvação, economia EMPRESAS DE SALVAÇÃO

E CAPITALISMO DO IMAGINÁRIO COMO DESAFIO À SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO

Parece-me que a pluralidade e a novidade do fenômeno religioso nos horizontes da modernidade capitalista tardia estão questionando tanto conceitos como procedimentos teóricos tidos como assegurados na sociologia da(s) religião(ões). Ao ler estudos tão diferenciados como um texto de Mariano (1998) sobre as práticas monetárias da Igreja

A

O dinheiro transforma a lealdade em deslealdade.

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 128128128128128 Universal ou uma análise sobre a religiosidade invisível na Europa Ocidental, de Knoblauch (2003), ou ainda ao passar pela discussão acerca do fim da religião e o deslocamento do sagrado, de Lee (2008), não me livro da metáfora do cobertor curto: parece que a análise sociológica atual ao recobrir uma parte do seu objeto de estudo, dei-xa continuamente a descoberto outros elementos essenciais para a sua compreensão.

Esta situação de opacidade ou complexidade aumenta quando algumas ca-tegorias básicas de intelecção sociológica a respeito da religião, como a bem-sucedida noção de campo religioso de Bourdieu (1974), já não falam por si mesmas: os conceitos continuam tendo certo poder explicativo, mas não incluem aspectos impor-tantes da realidade. Como exemplo dessa insegurança, tomemos o par de categorias troeltsch-weberianas de seita e igreja. Apesar da insistência sobre sua perma-nência e o sucesso alcançado por este par de conceitos básicos da sociologia das instituições religiosas, igreja e seita não retratam toda a diferenciação interna do campo religioso. Talvez nunca tenham re-tratado. Isso mostrou com propriedade Párker (2000) para a Améri-ca Latina. Segundo Parker só é possível analisar a pluralização do campo religioso latino-americano como fenômeno social total, se consideramos como tipos básicos de expressão e estudo da religião não seita e igreja, mas igreja, movimento religioso e religião popular. O fato é que os conceitos criados e as situações descritas pelos clássicos tendem a identificar o religioso com a experiência histórica do cristi-anismo ocidental e sempre num recorte masculino. Mas na América Latina e em outros continentes a criatividade religiosa criou uma “nebulosa de heterodoxias”, para usar um termo cunhado por Champion (1989). No caso da América Latina, além do cristianismo, continu-am vivos e operantes elementos das religiões indígenas, africanas e mesmo asiáticas. Párker sugere, por exemplo, que o crescimento ob-servado da magia e do esotérico “apaga o limite que demarcava a religião da magia e a própria religião não pode mais ser identificada de forma unívoca com a Igreja” (PÁRKER, 2000, p. 88).

A noção tradicional de “religião”, que a ligava a povos e culturas específi-cos, também ficou problemática uma vez que as realidades histórico-sociológicas às quais é aplicada, por exemplo as grandes religiões mundiais, perderam sua ancoragem geográfico-cultural e “flutuam” no cenário globalizado (C. Geertz), sendo assumidas e ressignificadas

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em contextos, formas e conteúdos às vezes muito distintos daqueles de origem. Além disso, o próprio religioso se encontra em “peregri-nação” e movimento (HERVIEU-LÉGER, 2001), em deslocamento (MOREIRA; OLIVEIRA, 2008), pois as fronteiras que o circunscre-viam em relação a outros âmbitos da vida social, como lazer, turis-mo, medicina e terapia, administração, economia e espetáculo se tornaram porosas e permeáveis. No entanto, a ciência como ativida-de regular só é possível se há significados compartilhados; não se pode a cada momento redefinir o que os conceitos significam ou o próprio objeto de estudo. Nesse sentido os sintomas na sociologia da religião parecem indicar, nos termos de Kuhn (2003), uma situação de pré-colapso de paradigma científico.

Aliás, além da metáfora do cobertor curto, também a metáfora da cama de Procrusto expressa os dilemas atuais da sociologia da religião, ou tal-vez da própria sociologia. Como a cama é muito curta, não cabe nela toda a complexidade do fenômeno religioso, e assim, para salvar a cabeça cortam-se os pés, mas sem pés a teoria sobrevivente não pode ir muito longe. Sem dúvida, talvez nunca tenhamos um teoria que cubra todo o corpo, mas penso que é tarefa da auto-crítica tentar, pelo menos, registrar as amputações que cometemos.

Creio que hoje é no campo das inter-relações entre religião e mercado, religião e capitalismo, que nos falta avançar e onde ainda estamos devendo mui-to à complexidade da realidade. Nesta contribuição tentarei recuperar de forma sumária algumas correntes que nas ciências sociais estabelecem esta relação religião e capitalismo e onde continuam alguns entraves ou desafios teóricos a serem enfrentados. Mais do que avançar uma teoria própria, de que não disponho, tentarei assinalar algumas lacunas e pon-tos cegos que as teorias fazem surgir ao tratar da religião e do mercado. Como se fossem frankensteins que adquirem vida própria, essas ampu-tações e membros deslocados do “corpo” (doutrinal) estão desafiando o paradigma vigente da sociologia da religião.

Se junto com o emprego da ciência é importante reconhecer interesses, de-sejos e projeções do pesquisador, visto que não existe conhecimento neutro, digo então que este texto nasce de um incômodo e de um interesse. Incômodo sobre a insistência simplificadora com que de-terminada sociologia diz consistir a religião, e interesse em localizar os pontos cegos que esta sociologia, por suas preferências não explicitadas, não consegue ou não quer ver.

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 130130130130130 Ao falar das inter-relações entre capitalismo e religião, retomo em grandes linhas duas grandes correntes nas ciências sociais que refletem e ela-boram, a partir de pressupostos próprios, que encontram sobretudo em Durkheim, Weber e Marx, a relação entre religião e empresa capi-talista: o funcionalismo-liberal e o marxismo. Mesmo consciente do quadro ideológico completamente novo, dos entrelaçamentos e recí-proco enriquecimento havidos na história, mantenho aqui por sim-ples recurso de redução de complexidade o que uma corrente talvez denominasse “empresas de salvação” e o que a outra talvez chamasse de “capitalismo do imaginário”. Depois de expor o pensamento de alguns autores em cada corrente, tentarei ressaltar os avanços e impasses em cada uma; em terceiro lugar gostaria de identificar alguns desafi-os teóricdesafi-os à sociologia da religião que continuam em aberto.

TEORIAS ECONÔMICAS DA RELIGIÃO – EMPRESAS DE SALVAÇÃO

Max Weber ao tratar na primeira parte de sua obra Economia e Sociedade dos conceitos da ação social, define empresa (Betrieb) como “uma ação contínua que persegue determinados fins, e associação empresa-rial como um consórcio [ou societarização seg. Pierucci], cujo qua-dro administrativo age continuamente com vista a determinados fins” (WEBER, 2004, p. 176-7). Weber logo a seguir define estabeleci-mento (Anstalt) como um tipo de associação num âmbito dado de atuação, cujas normas e regulamentos podem ser impostos com rela-tiva eficácia às ações de qualquer pessoa para a qual se aplicam deter-minadas características. Entre estas, a origem de família, o domicílio e o uso de determinados dispositivos e atribuições (WEBER, 2004). Weber coloca no terreno político o estado e no campo religioso, en-quanto esta utilizar normas racionalmente fixadas, a igreja como exem-plos típicos de estabelecimento. Assim como o clube-associação (Verein) e a empresa, os estabelecimentos são regidos por normas racionais estabelecidas e perseguem de forma planificada e constante objetivos próprios. Bem mais adiante Weber (2004, p. 2650-1) vai dizer que

A moderna empresa capitalista baseia-se fundamentalmente no cál-culo. Para existir ela necessita de uma Justiça e de uma Administra-ção, cujo funcionamento, pelo menos em princípio, pode ser

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racionalmente calculado em termos de normas gerais fixas, da mes-ma formes-ma como se calcula o funcionamento previsível de umes-ma má-quina.

Para Weber a “empresa é um elemento chave da racionalidade econômica encarnada no espírito do capitalismo” (SERRA, 2005, p. 32). Mas apesar de perceber a afinidade eletiva entre o espírito do capitalismo e a ética racionalizada e disciplinadora do puritanismo, Weber não aplica totalmente a racionalidade meios-fins, própria do tipo de or-ganização empresarial capitalista, às instituições religiosas. Apesar de empregar diversas vezes o termo “bens de salvação”, ele nunca utiliza a noção “empresa religiosa” (religiöser Betrieb) e, enquanto conheço, apenas uma vez o termo “empresa de salvação” (Heilsbetrieb) (WEBER, 2004; Wirtschaft und Gesellschaft, II. Teil, p. 920). Por outro lado, emprega freqüentemente o conceito de “estabelecimento de salva-ção” (Heilsanstalt) ou “instituição distribuidora de graças” (Gnadenanstalt), atribuindo-o especialmente à Igreja Católica (WEBER, 2004, p. 1143-4). Com respeito ao “estabelecimento de salvação” valem sempre os três princípios: apenas através do pertencimento à Igreja o fiel pode ter acesso à salvação; é o ministério da Igreja e não a qualificação religiosa do sacerdote que decide sobre a eficácia da graça conferida; a salvação é acessível a qualquer pessoa, ela basica-mente não depende das virtudes religiosas do fiel (WEBER, 2004). Essas características distinguem a “certitudo salutis” (certeza da sal-vação) oferecida pela igreja (Heilsanstalt) da incerteza ligada ao pertencimento a uma seita (Heils-Verein), na qual apenas através do carisma pessoal, da prática de uma ética ascética ou pela convicção de uma eleição divina, pode o fiel ter alguma segurança sobre sua salvação. O fato de Weber, não equiparar simplesmente organização religiosa com organização empresarial tem a ver, como veremos adi-ante, com sua análise do carisma e do dom.

Na discussão contemporânea foram Bourdieu e Berger os autores mais im-portantes a tematizar o funcionamento do mercado como analogia ou modelo para o funcionamento da religião. Ambos retomam um diálogo explícito com Weber e Marx, pensam o campo da religião estruturado de modo análogo ao da economia e utilizam conceitos econômicos para descrever práticas e instituições religiosas. Bourdieu (1974) ao buscar entender a relação entre a estrutura dos sistemas

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 132132132132132 simbólicos e as estruturas sócio-econômicas, atribui às igrejas um papel legitimador em relação à divisão em classes da sociedade. Ele denomina as igrejas “empresas burocráticas de salvação” e afirma que “a relação “vendedor/cliente” está na base das relações entre especia-listas religiosos e leigos (BOURDIEU, 1974, p. 95). “Pois é dos lei-gos,” afirma Mariano (1998, p. 8) “destituídos de capital religioso e sob domínio do corpo sacerdotal, que toda empresa de salvação ex-trai rendimentos e poder”.

Também Berger, em O dossel sagrado (1985, p. 149), ao analisar as condi-ções geradas pelo pluralismo religioso nas sociedades demo-cráticas, nas quais bens religiosos não podem ser impostos pela autoridade, afirma:

a tradição religiosa... agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser ‘vendida’ para uma clientela que não está mais obrigada a ‘comprar’. A situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de mercado. Nela, as instituições religiosas tornam-se agências de mer-cado e as tradições religiosas tornam-se mermer-cadorias [commodities] de consumo. E, de qualquer forma, grande parte da atividade religi-osa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da economia de mercado.

As instituições religiosas, agora agências de mercado, competem livremente para manter e, se possível, ampliar as suas cotas de fiéis no mercado religioso. A própria atividade religiosa reveste-se da forma da merca-doria, dominada que é pela lógica da economia de mercado. Mesmo se a leitura que Berger faz de Weber não tem a pregnância política e dialética que lhe dá Bourdieu, que ressalta os embates entre os espe-cialistas do sagrado e a expropriação imposta aos leigos no controle dos meios de produção simbólica (SERRA, 2005), não resta dúvida de que Berger deu uma contribuição importante para a seqüência desta questão na sociologia da religião.

O que Berger ainda coloca entre aspas (“vender”, “comprar”) ao falar da religião na situação de mercado será letra corrente e dadi óbvio para os autores do chamado Modelo da Economia Religiosa (religious

economies). Esta corrente, unida à teoria da “escolha racional” e

liga-da ao nomes de Rodney Stark, Roger Finke, William Bainbridge e Laurence Iannaccone, assumiu declaradamente um modelo

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econô-, Goiâniaeconô-, v. 6econô-, n. 1econô-, p. 127-158econô-, jan./jun. 2008 133

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mico de inspiração funcionalista e liberal ao tratar da religião. Se-gundo Serra, grande parte da conceituação empregada por esses au-tores vem do campo econômico por influência de Adam Smith (apud SERRA, 2005, p. 46),

que na obra A riqueza das nações afirmou que o auto-interesse moti-va tanto o clero como as empresas seculares e que os benefícios da competição, o peso do monopólio e o risco da regulação do Estado eram tão reais na religião como em qualquer outro setor da econo-mia.

A ECONOMIA RELIGIOSA

Para o objetivo deste artigo não é necessário fazer uma apresentação minu-ciosa dessa corrente, elencar as críticas que recebeu e nem mencionar suas próprias revisões internas ao longo desses últimos vinte anos1. O que nos interessa é ressaltar seu entendimento das relações entre reli-gião e economia de mercado. O modelo da economia religiosa repre-senta um ideal-tipo e o resultado acabado da longa trajetória do funcionalismo-liberal, uma das mais expressivas correntes teóricas que nas ciências sociais se dedicaram a pensar tais relações.

Stark e Finke sumarizam num texto básico Dynamics of religious economies, escrito para o Handbook of the Sociology of Religion (DILLON, 2003) em cinco pontos o essencial desta teoria (IANNACCONE, 1998; 2006) também atualiza as afirmações básicas). Para eles, desde a fundação das ciências sociais o estudo da religião foi dominado pelo paradigma que explica a religião como um epifenômeno, como um “ungüento para enfermidades sociais”. A religião, criticam eles, seria na concepção tradicional apenas uma realidade segunda ou de-rivada, um anestésico para a frustração, um remédio para as priva-ções e sofrimentos da vida humana, dirigido principalmente para as classes mais pobres e que atua justificando situações de dominação, dificultando a tomada de consciência e a elaboração do pensamento racional. Este paradigma antigo estaria baseado no controle do mo-nopólio religioso por um “dossel sagrado”, uma homogeneidade ou síntese que envolve todas as instituições sociais e que marca todos os processos sociais, garantindo à religião sua plausibilidade e autorida-de inquestionável (FINKE; STARK, 2003).

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 134134134134134 Para os autores, a tese que une as diferentes versões deste paradigma tradicio-nal na sociologia da religião é a seguinte: o avanço da modernidade significa a derrota da religião. A tese da secularização estaria, portanto, aninhada profundamente nos quadros gerais das teorias da moderni-zação, que propõem que à medida em que “a industria-limoderni-zação, urbani-zação, racionalização e o pluralismo religioso crescem, a religiosidade

tem que diminuir” (FINKE; STARK, 2003, p. 97). Segundo Finke e

Stark, para este paradigma a secularização traz inevitavelmente um declínio da consciência e do engajamento religioso. Esta também é a posição de Antonio Pierucci, para quem a secularização tem trazido um declínio irreversível do religioso (PIERUCCI, 1997).

Justamente nesse ponto Finke e Stark colocam a emergência do que conside-ram um novo paradigma.2 Afirmando que existe uma “economia de bens religiosos”, assim como existe uma “economia de bens econômi-cos”, eles, ao lado de outros autores, postulam que “a modernidade é compatível com a religião” (FINKE; STARK, 2003, p. 100), enten-dendo implicitamente que a religião é perfeitamente compatível (e intercambiável?) com o capitalismo. Para os teóricos da religious economy a religiosidade pode crescer e se dinamizar em ambientes altamente influenciados pela modernização. Se o antigo paradigma afirmava a superioridade dos sistemas de crenças apoiados pelo Estado, o novo paradigma afirma que num ambiente religioso sem intervenção esta-tal, desregulado, pluralista e com crescente competição entre as empre-sas de salvação, a atividade religiosa só vai aumentar.

Entre todos os sistemas sociais Finke e Stark localizam um subsistema que engloba toda a atividade religiosa. Este subsistema social é identificado por eles como uma “economia religiosa”. Economia religiosa consiste

... em ‘todas’ as atividades religiosas que acontecem em ‘qualquer soci-edade’, incluindo um ‘mercado’ de atuais e potenciais adeptos, um conjunto de uma ou mais organizações procurando atrair ou manter adeptos, e a cultura religiosa oferecida por essa(s) organização(ões)

(FINKE; STARK, 2003, p. 100).

Assim como numa economia comercial se distinguem os elementos da oferta e da procura de bens, o mesmo se dá na economia religiosa com uma oferta e uma demanda de bens religiosos. O que Finke e Stark querem enfatizar, porém, é o lado da oferta. Ao invés de tentar explicar porque

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a modernidade deveria causar uma inevitável queda na demanda por religião (tese da secularização), o novo paradigma tenta explicar as va-riações religiosas existentes privile-giando o lado da oferta de religião. Para eles o velho paradigma (europeu) só via a demanda decrescente dos fiéis por bens religiosos e por isto não estaria em condições de explicar a grande atividade religiosa em países como os Estados Uni-dos ou na América Latina (FINKE; STARK, 2003). Vejamos alguns dos princípios básicos que os autores enumeram do seu paradigma:

• A característica mais importante de uma economia religiosa é o grau

em que ela é desregulada.

Ou seja, se esta economia é aberta e livre e, portanto, controlada pelas leis do mercado, ou se é por outra parte regulada pelo Estado em favor de institui-ções religiosas que detém um monopólio. Para Finke e Stark (2003), ne-nhuma firma religiosa pode satisfazer todos os nichos e segmentos do mercado; por isso os monopólios religiosos são favorecidos pelo Estado e se baseiam em coerção. O pluralismo religioso será sustentado por firmas religiosas especializadas, cada uma delas ocupando e defendendo um nicho específi-co de específi-consumidores ou um específi-conjunto de nichos do mercado.

• Na medida em que uma firma religiosa adquire um monopólio, ela

tentará exercer sua influência sobre outras instituições e levará a uma sacralização da sociedade.

Finke e Stark aludem aqui ao monopólio religioso da Igreja Católica na soci-edade medieval. Por sacralização da socisoci-edade entendem uma baixa diferenciação interna do sistema: pouca diferenciação entre institui-ções sociais, religiosas e políticas e principalmente o controle e uso, por parte de uma determinada firma religiosa, dos poderes coercitivos do Estado contra seus competidores.

• Na medida em que uma firma religiosa adquire um monopólio, ela tentará exercer sua influência sobre outras instituições e levará a uma sacralização da sociedade.

·Na medida em que há uma desregulação da sociedade sacralizada, aumenta a diferenciação interna e o número das empre-sas de salvação e aos poucos instala-se um pluralismo religioso.

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 136136136136136 O pluralismo religioso, ao invés de erodir a plausibilidade de todas as reli-giões e de acelerar o processo de secularização (como afirmaram Berger e grande parte dos teóricos da secularização), favorece a competição entre as firmas religiosas. O pluralismo mobilizaria muito mais as competências e os recursos de cada firma religiosa, trazendo um di-namismo para o mercado religioso. Finke e Stark dão como exemplo a economia religiosa dos Estados Unidos, onde o pluralismo religio-so só teria aumentado o dinamismo do mercado religioreligio-so, com taxas de freqüência às igrejas muito maiores do que no final do século XIX. Outro exemplo de dinamismo religioso que citam é a América Latina e o Brasil, que também passaram por um processo de desregulação dos seus mercados religiosos.

· Na medida em que as economias religiosas são desreguladas e com-petitivas, em toda parte os níveis de engajamento religioso serão al-tos (FINKE; STARK, 2003).

Para Finke e Stark a competição entre as firmas religiosas é a força que impulsiona toda a economia religiosa. O pluralismo religioso, a pre-sença de diversas firmas fornecedoras de bens religiosos, só é impor-tante porque diversifica a oferta e permite múltiplas escolhas por parte dos consumidores. Mas a partir de um determinado nível pode ser que o mercado fique saturado. Para Stark e Finke os grupos religiosos individuais são mais energéticos e mobilizados se eles forem minoria, ou seja, se tiverem apenas uma cota reduzida do mercado. Ao tentar abocanhar uma fatia maior do mercado são obrigados a oferecer pro-dutos diferenciados, adaptados aos clientes e precisam ser criativos e rápidos. A competição pode virar conflito quando uma firma religi-osa tem pretensões de dominar o mercado.

OBSERVAÇÕES CRÍTICAS

Entre os muitos reparos e críticas que esta teoria recebeu, apontadas por outros autores e resumidas num artigo por Mariano (2002), mencio-no apenas as que parecem mais importantes: Afirma-se que essa cor-rente fez uso de procedimentos estatísticos questionáveis ao contabilizar denominações, fixou-se demasiado no confessionalismo norte-ame-ricano e desconsiderou países, como a Polônia e a Irlanda, nos quais há pouca concorrência, e onde mesmo assim há dinamismo religioso

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e a Igreja Católica tem boa aceitação. Outros artigos acadêmicos so-bre pluralismo religioso não teriam encontrado relação alguma entre pluralismo e compromisso religioso, ou concluíram que o pluralismo é prejudicial ao compromisso religioso (SHEA apud Mariano, 2002). Gorski (2003) criticou sobretudo a negação que os autores do mode-lo da Economia Religiosa fazem da teoria da secularização. Para ele a teoria da secularização trata primariamente de uma mudança socioestrutural – a crescente diferenciação entre esfera religiosa e es-feras não-religiosas na vida social – e apenas secundariamente dos seus efeitos na vida individual. Para Gorski (2003, p. 114),

... no geral, as reivindicações do modelo da Economia Religiosa de ter superado a tese da secularização e lançado os fundamentos para um ‘novo paradigma’ na sociologia da religião são um tanto exageradas.

Entre nós Ricardo Mariano usou as teses de Finke, Stark e Bainbridge para demonstrar que a situação pluralista e concorrencial que encontra-mos no mercado religioso na segunda metade do século XX foi pos-sibilitada pelo fim da política estatal, a partir da proclamação da república, de garantir o monopólio religioso da Igreja Católica. A não-intervenção do Estado se tornou garantia estatal do pluralismo religioso, e tal fator influenciou enormemente os rumos das igrejas pentecostais no Brasil, particularmente da Igreja Universal do Reino de Deus (MARIANO, 2002).

Em outro artigo sobre O debate acadêmico sobre as práticas monetárias da

Igreja Universal, citando Berger, o mesmo Mariano (1988, p. 8)

afir-ma que, “enquanto mercadoria, a atividade religiosa torna-se domi-nada pela lógica da economia de mercado”. Cada instituição se coloca em competição no mercado para, entre outras coisas, extrair dos lei-gos mais poder e mais rendimentos. Citando Bourdieu (1998), tal fato constituiria uma “verdade objetiva” e por isso não deveria haver surpresa nenhuma em relação aos métodos de arrecadação da Uni-versal. Mariano vai além ao apresentar a exploração do sofrimento dos pobres como algo praticado por toda religião:

A condição econômica desfavorável e a posição social subalterna (dos pobres) os predispõem a buscar compensações imediatas neste mundo, a procu-rar soluções de natureza mágica, a querer, com o máximo de urgência,

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 138138138138138 ver-se livres de seus tormentos e sofrimentos terrenos. Para atendê-los, não faltam empresas de salvação no mercado religioso. Nesse sentido, pode-se dizer que as igrejas pentecostais exploram o sofrimento, a doen-ça, a miséria, a carência, as precárias condições de vida dos pobres. E nada há de eticamente condenável nisso. Pois, religião, ‘qualquer que seja’, de um modo ou de outro, vive disso, de prover conforto espiritual e soluções simbólicas para as angústias, aflições, necessidades de sentido, interesses materiais dos leigos de ‘todas classes sociais’. Se as religiões não oferecessem respostas (pouco importa se satisfatórias ou não) para pro-blemas que afligem os homens, como o sofrimento, a injustiça, a morte, isto é, se elas não explorassem ou não se incumbissem de temas como estes, simplesmente não fariam sentido algum, nem teriam o menor ape-lo. Explorar as limitações da condição humana e as precárias e conflituosas condições de existência social, propondo soluções simbólicas, rituais, mágicas para elas, portanto, não constitui prerrogativa do pentecostalismo (MARIANO, 1998, p. 16, grifo nosso).

Diante de tantas afirmações peremptórias e “definitivas”, e ao que parece amparadas pelos dados, parece heresia perguntar: mas afinal religião, a religião real, se esgota nisso? É apenas aproveitamento do sofrimen-to dos pobres e proposta de saídas simbólicas e rituais para situações sem saída? Religião, mesmo o catolicismo tão criticado, se reduz a esse jogo de interesses e de receitas mágicas para enfrentar as limita-ções da condição humana? Antes de prosseguir no trato dessas ques-tões, é útil fazer um resumo do que já foi apresentado.

RESUMO: LINHAS DE FORÇA

Podemos sintetizar as afirmações desta longa linha de argumentação libe-ral-funcionalista de forma esquemática:

- As organizações religiosas, num ambiente de mercado, atuam como empresas;

- Há não apenas uma isomorfia ou um espelhamento entre o funci-onamento da economia de mercado e da economia religiosa, insti-tuições religiosas tornam-se de fato empresas;

- O próprio da empresa religiosa é vender bens simbólicos àqueles cuja produção simbólica, os leigos, ela ao mesmo tempo desapro-pria e desautoriza;

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- A força que impulsiona a economia religiosa é a competição entre as empresas religiosas;

- Ao tornarem-se empresas, as religiões provêem os pobres e pessoas de todas as classes sociais de bens simbólicos, eficazes ou não, para o enfrentamento da contingência e das limitações da condição hu-mana.

- Ao realizar esta “função” não praticam nada de eticamente conde-nável.

BALANÇO PROVISÓRIO

Vejamos se é possível perceber alguns pontos cegos nesta linhagem argumentativa:

- Se num ambiente de mercado capitalista as instituições religiosas se tornam (forçosamente) empresa de bens simbólicos, outras institui-ções que atuam no mesmo “segmento” simbólico (arte, es-porte, cultura, comunicação) devem passar pelo mesmo processo. Mas se tudo se reveste da lógica empresarial, o mercado se torna tudo em todos, não há como negar sua pretensão totalizante e tota-litária. Do ponto de vista científico seria necessário uma mega-hiperteoria que desse conta dessa totalidade. Nesse caso é preciso perguntar se existe ainda algo que é próprio da religião (e de outras esferas do simbólico), irredutíveis à lógica do mercado. Pode-se usar o mesmo instrumental teórico para analisar cada campo sem praticar violência para com as diferenças específicas ou mesmo des-conhecer as mutações vindas dos embates e interações do comple-xo religioso com seu ambiente? A insistência em fazê-lo não decorre mais de obediência a necessidades teóricas intra-sistêmicas e anti-patias ideológicas do que um recurso ao crivo da história?

- A história recente já mostrou de modo farto que a religião e as instituições religiosas, mesmo em situação de mercado, nem sem-pre agem como emsem-presas ou seguem a lógica emsem-presarial. Baste mencionar aqui os exemplos paradigmáticos de Gandhi para o hinduísmo, de Martin Luther King para o protestantismo negro norte-americano, da luta (também teológica) de igrejas cristãs con-tra o Appartheid (concon-tra oucon-tras igrejas cristãs que o apoiavam), da figura de D. Oscar Romero em El Salvador, do papel dos cristãos

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 140140140140140 na revolução nicaragüense e, portanto, de toda a imensa contribui-ção da teologia da libertacontribui-ção, em termos políticos, econômicos, culturais, pedagógicos e teológicos para a sociedade brasileira e la-tino-americana (MADURO, 1981). Em milhares de exemplos, principalmente quando envolveram e envolvem o sacrifício livre e consciente da vida, tanto de “agentes especializados” como de “lei-gos”, pessoas que lutaram ou continuam lutando por causa de sua fé pelos direitos humanos, sociais, culturais, sexuais e ambientais, não é correto dizer que ao fazê-lo estavam ou estão a serviço da estratégia de controle do mercado por parte de sua empresa religi-osa. Mesmo porque às vezes estavam ou continuam em conflito com a própria instituição religiosa. Não se pode mais falar da “re-ligião” como se esse Cristianismo da Libertação, para usar o termo caro a Michel Löwy (2000) nunca tivesse acontecido. E como se não tivesse deitado raízes fundas dentro do próprio pentecostalismo. Fazê-lo não demonstra apenas um des-conhecimento da história, mas ignorância do fato de que esse movimento também se globalizou, entrando nas motivações e na espiritualidade de movimentos soci-ais tão diversos como os grupos ambientalistas, movimentos inter-nacionais de camponeses, movimentos críticos da globalização e pelo controle do capital financeiro, a teologia feminista, a parada

gay, a luta por independência dos Tamiles no Sri Lanka ou o

movi-mento Ming Jung na Coréia. Sem falar na mudança que exerceu para a auto-compreensão e para os programas oficiais de muitas igrejas cristãs.

- Alguns estudos da religião afirmam que vivemos atualmente um fenômeno mais ou menos generalizado de individuação, particula-rização e interioparticula-rização do religioso. Isso significa que os indivídu-os além de tomarem nas próprias mãindivídu-os a tarefa de organizar seu sistema religioso e de sentido (de maneira paralela ou por fora das instituições religiosas), submetem a experiência religiosa à valida-ção de sua própria instância interior (STEIL, 2008). Como seria isto possível em larga escala se as empresas religiosas num ambiente pluralista competem pelo domínio de todos os nichos e de todas as necessidades religiosas de um “mercado” dado? A conclusão mais simples e óbvia é admitir que as empresas religiosas são estrutural-mente incapazes de suprir todas as necessidades religiosas de seus “clientes”. Isto não se deve a uma incapacidade das religiões, mas

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ao fato de que a experiência do ser humano gera um excesso de sentido, um plus de significado e de criatividade que, aliado ao imprevisível, nunca será totalmente redutível a uma determinação mercadológica ou a um modelo sociológico.

- O modelo da economia religiosa avança em relação à matriz funcionalista tradicional (e à atual) ao admitir que a religião tem natureza própria, não é segunda instância em função de uma reali-dade “primeira” (FINKE; STARK, 2003); no entanto, tal percep-ção se perde praticamente por completo quando os autores analisam em concreto a dinâmica do mercado religioso e a concorrência das empresas de salvação em oferecer produtos que satisfaçam as de-mandas religiosas dos seus consumidores. Novamente a metáfora do cobertor curto encontra aqui um lócus privilegiado.

- Religião, na forma de empresas ou não, sempre foi vista não só pela linhagem funcionalista, como Kontingenzbewältigung, superação da contingência humana (o que por si só já seria uma tarefa psico-social de magnitude). No entanto, um de seus expoentes mais cri-ativos Niklas Luhmann pelo menos não simplifica:

Geralmente, quando se interpreta a religião funcionalmente, ela é re-duzida a profundas necessidades humanas. Não considero que este seja um ponto de partida fecundo. E não o é porque é praticamente impos-sível encontrar essas necessidades de forma independente das ofertas religiosas; e tampouco o é porque as necessidades adscritas ao “huma-no” variam de um humano para o outro e em muitos – se não em todos os humanos – sequer estão presentes. Acostumou-se então a di-zer que quando as pessoas passam por grande necessidade, elas se vol-tam para a religião... este é um argumento demasiado pobre quando se trata de determinar a função da religião (LUHMAN, 2002, p. 139).

Luhmann repropõe, incorporando as teorias dos sistemas e da complexida-de, a tese de que o sentido da morte é um problema com o qual a religião tem que se medir e comprovar seu valor. A religião, como um subsistema da sociedade, está encarregada de lidar com um dado com que nenhum outro subsistema consegue lidar da mesma forma: a morte. Só a religião, como (sub)sistema, conseguiria mobilizar su-ficientemente recursos, conhecimentos acerca do mundo e atualizar suficientes redundâncias para que a morte, que é um caso em que o

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 142142142142142 próprio sentido (vital para o funcionamento de todo o sistema soci-al) é experimentado como paradoxo, se retraia e seja acolhida em um mundo que pode ser tratado como conhecido e familiar.

Mas como não levar em conta que a religião, mesmo na sua institucionalização mais burocrática, tem sempre que lidar, além do paradoxo da morte, com outros dois irredutíveis de que ela, malgrado seus sistemas de controle, também é guardiã e testemunha: o dom e a revolta?

A ECONOMIA DO DOM

Uma das melhores respostas a tais questões foi dada por Pace (2006) em um artigo recente, mostrando que a religião não vive só da economia econômica, mas sobretudo da economia do dom. Pace afirma que os bens de salvação não são governados apenas pela economia da troca de mercadoria, mas também pela economia do dom, conforme Max Weber já havia mostrado. Esses bens tem menos a ver com a lógica da ação social voltada para o retorno do lucro e mais com aspectos não-utilitaristas do comportamento. Os bens de salvação tem caracterís-ticas que lançam sérias dúvidas sobre a hipótese de que eles são governados basicamente por forças de mercado. Para chegar a essa conclusão o autor analisa a liturgia e a manifestação do carisma reli-gioso.

Primeiro, os bens de salvação podem ser produzidos pelos indivíduos – esta é a dimensão autopoiética da religião (KILANI, 1997), independen-temente das instituições religiosas que existam em qualquer socieda-de dada. Em segundo lugar, estes bens são adquiridos e produzidos como dons livres, geralmente fora da lógica da economia de troca (BOURDIEU, 1971; GUIZZARDI, 1979).

Isto acontece sobretudo em situações que o autor chama de interação carismática, nas quais as relações básicas entre o líder religioso e seus seguidores estão fundadas em aspectos não-econômicos da experiên-cia religiosa. Esta situação muda se uma organização religiosa inter-vém na administração dos bens ou no processo de rotinização do carisma (PACE, 2006). Pace (2006) traça uma distinção entre bens de salvação livres, de um lado, e bens religiosos para o mercado, de outro lado. Bens de salvação livres são especialmente resistentes a tentativas por parte de um sistema de crenças para diminuir sua com-plexidade, ou seja, incorporá-los. Os outros bens, por outro lado,

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são produzidos e colocados no mercado por uma instituição que cons-cientemente trata do problema de como reproduzir-se no tempo e na sociedade.

Segundo Pace (2006, p. 50), a ideia do mercado religioso funciona como o panóptico de Bentham: ele nos previne de escapar da metáfora eco-nômica, mas ao mesmo tempo nos oculta a conexão entre o sagrado e o dom, “do qual as religiões – mesmo as mais racionalizadas – são custodiarias”. Pace distingue pelo menos três tipos de “mercadorias religiosas”: as primeiras, no lado da oferta, são aquelas preparadas e ofertadas por uma instituição religiosa em disputa com outras. Nessa categoria de bens entrariam os “marcadores de identidade”, que dis-tinguem seus usuários de outros grupos de pessoas. O segundo tipo, mercadorias do lado da demanda, são produzidas por agentes religi-osos de forma imprevisível e um tanto anárquica, sem ser necessaria-mente controlados pelo lado da oferta. Exemplo desses bens são aqueles produzidos pela “religião popular”, presente como corrente subterrâ-nea em praticamente todas as grandes religiões oficiais, com sua car-ga de mitos, crenças anticar-gas, reapropriações simbólicas e criatividade espontânea.

Em terceiro vêm aqueles bens que são majoritariamente gratuitos, isto é mercadorias que não podem ser reduzidas à lógica da troca simbólica uma vez que eles contém “valor agregado”. A natureza gratuita do dom permite a alguém imaginar “um outro mundo”; trata-se de uma forma de comunicação que não tem nada a ver com a lei da utilidade marginal que normalmente governa os grandes sistemas de crenças religiosas. Eles se baseiam em expectativas de futuros possíveis retor-nos, resultando parcialmente de fatos existentes e parcialmente de eventos futuros.

Para Pace (2006, p. 52), “se adotarmos o quadro caro aos teóricos da esco-lha racional, bens de salvação são apenas aqueles produzidos pela lado da oferta... Fazendo assim, a ‘religião’, como objeto fica empobrecida...”, pois o religioso tem duas facetas: a primeira é pro-dução espontânea dos bens de salvação, inclusive através da busca pessoal e da experimentação (experiências místicas, extáticas, transe, visões, revelações, etc.). A segunda faceta é o especto gratuito que forma parte estrutural de muitos bens de salvação, como a manifes-tação e o reconhecimento do carisma, sua natureza essencialmente não-econômica... Pace (2006) ainda lembra que a existência de dons

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 144144144144144 ou bens de salvação, fora dos limites estreitos das análises de custo-benefício, aponta para um aspecto importante, visto tanto por Durkheim como por Weber: a conexão existente entre ordem e desordem na produção do sagrado e mais tarde da religião”.

Em suma, o sagrado e a religião também podem ser fatores de desordem, de revolta ou desagregação de determinadas ordem experimentadas como injustas ou contrárias aos desígnios divinos.

Talvez o risco de aplicar sem mais as leis do mercado à religião enquanto empresa religiosa, como o fazem os autores do modelo da economia religiosa, implique em produzir um conhecimento que sabe muito sobre o mercado e pouco sobre a religião. Por outro lado, tratar a experiência religiosa de forma isolada da sua ancoragem sócio-eco-nômica pode produzir o inverso, explicações piedosas sobre o funcio-namento da economia de mercado. Este desafio permanece atual para a sociologia, especialmente para a sociologia da religião.

- Finalmente, se existem pontos cegos teimam em aparecer nos apa-ratos teóricos que tentam dar conta da religiosidade realmente exis-tente, como deveria ser uma teoria sociológica que desse conta de tantos imponderáveis/variáveis?

TEORIAS TEOLÓGICAS DO MERCADO E DO CAPITALISMO

Nesta parte tentarei abordar, dentro da brevidade possível, uma crítica teo-lógico-política acerca do mercado que ajudou a lançar uma luz dife-rente para a compreensão do capitalismo contemporâneo. Delinearei apenas algumas linhas de força, que podem servir como indicação para a sociologia da religião dar um tratamento mais detalhado a tais questões.

Já faz mais de 160 anos que Marx, ao tratar nos seus escritos – desde a

Contribuição à crítica da filosofia do Direito de Hegel até o Capital

(MARX-ENGELS, 1979) –, afirmava ser necessário entrar na esfera nebulosa da religião para entender o fetiche da mercadoria, coração do capitalismo. Inúmeras são as metáforas religiosas utilizadas para entender o capitalismo, como sua descrição de Adam Smith como o novo Lutero da economia política; assim como o segundo “conver-teu a religiosidade na essência interior do homem”, assim teria Smith incorporado a propriedade privada ao próprio ser do homem

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ENGELS, 1971). Por outro lado, ao falar da classe que possui o di-nheiro, a burguesia, Marx (1968) previa num conheci-do texto do

Manifesto Comunista, escrito entre dezembro de 1847 e janeiro de

1848, a capacidade intrínseca do capitalismo de transmutar-se e de revolucionar sua própria natureza:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamen-te os instrumentos da produção, e portanto as relações de pro-dução, a totalidade das relações sociais... A contínua mudan-ça da produção, o permanente abalo de todas as condi-ções sociais, a eterna insegu-rança e eterno movimento caracterizam acima de tudo a época bur-guesa...

Marx escreveu este texto sob o impacto da vitória do imperialismo inglês nas Guerras do Ópio contra a China, em 1839 e 1856. Hoje a expan-são da civilização do mercado já atingiu todo o planeta, incorporan-do os mercaincorporan-dos regio-nais, a mão-de-obra mais longínqua, os recursos minerais mais inacessíveis, a bio-diver-sidade das florestas e dos ma-res. Além desta expansão exten-siva, que já chegou aos seus limites (ALTVATER; MAHNKOPF, 2002) há uma expansão intensiva: o capita-lismo incor-po-ra ao seu modo de organização social também as esferas subje-ti-vas da vida huma-na, como a convivência amoro-sa, as artes, o lazer, a sexuali-da-de, a emotivida-de, a fanta-sia, o imaginário. Tudo pode potencialmente virar merca-do-ria, e como tal ser produzido para ser vendido no mercado. E neste processo o próprio capita-lismo se transforma, se revolu-cio-na. Ao transformar a natureza das relações sociais e transformar-se o capitalismo incor-pora os bens simbólicos e a própria religião à sua forma própria de organizar o mundo, a forma da troca econômica.

Max Weber na Ética protestante e o espírito do capitalismo, como vimos, mostrou a influência da religião (principalmente do ethos puritano-calvinista com suas concepções do trabalho-vocação e da vida acética) na formação da cultura e da mundividência do capitalismo. Weber (1922) não estabelece uma relação causal direta entre protestantismo e capitalismo, ele pretende apenas analisar se houve e quais seriam as influências religiosas que contribuíram para o enraizamento e a ex-pansão do ethos capitalista. Weber descobre as “afinidades eletivas” entre formas da fé religiosa e a ética do novo sistema econômico, sem

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 146146146146146 a qual dificilmente ele teria se internalizado nas consciências e nas práticas cotidianas.

Mas é Walter Benjamin, na seqüência de Weber, quem afirma decidida-mente num fragmento de 1921, intitulado Capitalismo como Reli-gião, que não há apenas paralelos, influências ou afinidades eletivas entre cristianismo e capitalismo, mas que o capitalismo tornou-se uma forma inaudita de religião (BENJAMIN, 1991). Segundo Deutschmann (2001), Walter Benjamin no fragmento Capitalismo como Religião, caracteriza o capitalismo não apenas como um fenô-meno que é infuenciado pela religião, como a interpretação socioló-gica convencional afirma, mas como um sistema de caráter “essencialmente religioso”. O capitalismo provê a satisfação exata-mente das mesmas “preocupações, dores, misérias, frustrações e ansi-edades” da religião tradicional.

Benjamin menciona quatro características dessa estrutura religiosa: “Pri-meiro, o capitalismo é uma pura religião de culto”; ou seja, uma reli-gião sem teologias ou doutrinas, voltada para a pura utilidade. Segundo, no capitalismo esse culto é permanente, não para nunca; o ritual é celebrado o tempo todo (ou seja, não há mais tempo sagrado, o tem-po se torna indistinto e homogêneo no presente contínuo das rela-ções mercadológicas). Terceiro, esse culto torna todos endividados ou carregados de culpa (jogo de palavras: Schuld significa ao mesmo tempo culpa e dívida). Para Benjamin o endividamento/culpabilização são universais e impregnam as consciências, tornando o sistema sem saída. O mais impressionante é que o capitalismo não conhece for-mas de reparação ou purificação. “Nisso consiste o inaudito históri-co do capitalismo, que a religião não é mais a reforma do ser, mas o seu aniquilamento” (BENJAMIN, 1991, p. 101). A quarta caracte-rística é que o deus do capitalismo precisa constantemente ser ocul-tado, ele é uma deidade sem transcendência, misturado com o próprio destino do homem e participante do seu desespero.

Benjamin parte de uma perspectiva entre filosofia social crítica e reflexão teológica, para ele “no capitalismo deve-se reconhecer uma religião, quer dizer, o capitalismo satisfaz essencialmente as mesmas preocupa-ções, penas e inquietações para as quais antigamente as chamadas reli-giões davam resposta.” Para Benjamin no capitalismo não se trata, como para Weber, apenas de uma formação econômica com traços religio-sos, mas de um sistema essencialmente religioso (HENGSBACH, 1990)

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Por isso ele afirma que o capitalismo tem uma “estrutura religiosa”, uma identidade funcional com a religião, quer dizer, o capitalismo preenche social e psicologicamente as funções de uma religião. O texto é um fragmento, Benjamin não o desenvolveu ou aprofundou,

reco-nhecendo que suas teses na época criariam uma enorme polêmica. O inusitado no seu método é que ele analisa processos sociais com a ajuda da teologia judaica e a partir de experiências ou tipos religiosos primor-diais realiza um mordente diagnóstico da cultura do capitalismo. Outro autor clássico que se dedicou a pensar a relação entre capita-lismo e religião foi o também alemão Georg Simmel. Na sua obra

Filosofia do dinheiro, Simmel aborda numa perspectiva social

psico-lógica, entre outras coisas a relação entre dinheiro e religião. Simmel está interessado, como Weber, no espírito do capitalismo, e por isso dá ao dinheiro, condição central e componente estrutural do capita-lismo, muito mais atenção do que o próprio Weber. Na Filosofia do

Dinheiro Simmel analisa o duplo papel do dinheiro, como elemento

que media uma reviravolta na liberdade social, bem como a seme-lhança psicológica entre interesse no dinheiro e devoção a Deus. Primeiro aborda em detalhe o processo pelo qual o dinheiro perdeu seu

valor de substância (moedas de ouro ou prata, p. ex.), para tornar-se apenas valor nominal, abstrato, meio de facilitação nas relações de troca. Mas o dinheiro para Simmel não esgota sua função como meio de troca; ele se manifesta de dupla forma: tanto como indicador do valor de algo, como objeto de valor em si mesmo, equivalente uni-versal e como tal é cobiçado. Quem possui grande quantidade de dinheiro tem um poder não apenas por aquilo que de fato faz com seu dinheiro, mas pelo que potencialmente está à sua disposição fa-zer (SIMMEL, 1994). Assim a posse do dinheiro expressa sempre mais um poder e torna-se desejável por si mesma. Simmel atribui ao dinheiro uma polaridade interna, para tornar-se o meio absoluto e justamente por isso torna-se para a maioria das pessoas a finalidade última a ser buscada na existência.

Na América Latina e dentro do esforço de pensar a luta dos pobres pela libertação contra a dominação capitalista temos os estudos de Franz Hinkelammert, Hugo Assmann e de Jung Mo Sung. Também eles pensaram a natureza ou o funcionamento do capitalismo como reli-gião. Uma das obras marcantes de Hinkelammert, As armas

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 148148148148148 em 1977, colocou com força a necessidade de repensar os aspectos simbólicos do capitalismo, a teoria marxista do fetiche da mercado-ria, e o aspecto sacrificial do sistema, que exige continuamente víti-mas humanas para continuar funcionando. Há vinte anos, em agosto de 1989, saía na Coleção Teologia e Libertação o livro de Hinkelammert e Assmann, A idolatria do mercado – ensaio sobre economia e

teolo-gia. Para Assmann (1994) esta crítica não se dirige tanto a examinar

o possível caráter mercantilizador da religião, das práticas econômi-cas abusivas ou ilegais das igrejas, mas antes a denunciar que o capi-talismo intenta nos nossos dias tornar-se religião, a única religião ou metafísica tolerada.

Ao retomar a tradição marxista da crítica à metafísica da mercadoria os autores queriam completar teologicamente o que faltava nesta críti-ca, ir adiante onde a análise de Marx parou:

Marx mostrou que o capitalismo é um reino de deuses sumamente ativos, dinâmicos, processuais. Sua característica principal é a per-versa infinitude. Todos os conceitos e as próprias teorias específicas da economia burguesa têm uma marca de infinito, de ilimitado... Por razões diversas não parece haver preocupado, em demasia, a Marx a inversão detalhada das verdades fundamentais do cristianismo nes-te processo... a inversão da imagem de Deus, a inversão do preceito do amor ao próximo, a reviravolta em praticamente todas as virtu-des... os vícios privados se tornando virtudes públicas...tudo isso... não foi elaborado por Marx (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989,

p. 174).

Mais adiante Assmann, apresenta outras características da “religião econô-mica”: “Quem obedece plenamente aos impulsos do seu interesse próprio e se insere, competitivamente, nos mecanismos do mercado pode es-tar tranqüilo de que encontrou a melhor maneira de fazer o bem a seus semelhantes...” (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 175). A “religião econômica” resolveu a seu modo a questão do pecado, das angústias, da limitação e da finitude pessoais. O egoísmo e a competitividade desbragada são justamente a ponte, o caminho para que a nova Providência divina da “mão invisível” traga, não para to-dos – pois quem se mostrou incapaz é auto-culpável e pecador -, mas para os eleitos a satisfação de todos os seus desejos, presentes e

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ros. Basta ter fé ilimitada na sabedoria dos mecanismos econômicos. A promessa de um bem-estar infinito e constantemente aberto ao futuro precisa negar sempre que o humano e os bens da terra são perecíveis e finitos. O mais impressionante é que a “religião econô-mica” opera com todas as profundas experiências devocionais sem precisar apresentar-se como religião, mas para isso precisa ocultar constante e ciosamente o seu caráter de idolatria.

Jung Mo Sung dedicou-se igualmente a pensar a natureza religiosa do capi-talismo e sua estruturação mitológica nas mentes e nas práticas soci-ais. Em 1998 apareceu Desejo, mercado e religião, onde ao falar de transcendência e mercado o autor indica:

Quando se pretende revalorizar a religião como um instrumento de criação de confiança oude outros objetivos em vista do aumento da eficácia e, em última instância, da riqueza, está negando à religião o que lhe é mais próprio: a referência à transcendência e, portanto, a relativização de todas as instituições humanas. Esta instrumentalização da religião ou redução da religião a um instrumento da acumulação econômica só é possível e compreensível com a absolutização de algo que é exterior à experiência religiosa e que é inteiramente humano: o mercado... O mercado é transcendentalizado, isto é, elevado à condi-ção de sobre-humano absoluto. É o ídolo (MO SUNG, 1998, p.

129-30).

Portanto, ao contrário do que pensava de um mundo desencantado e pós-religioso, o mercado torna-se um transcendental, um mito organizador não apenas da atividade econômica, mas de tendencialmente de to-das as atividades sociais. Todavia, a existência dos pobres e excluídos que ele gera, hoje mais de um bilhão de pessoas, e a amplitude da destruição ambiental, tornam quase impossível esconder os pés de barro do ídolo. Mas negar a idolatria do mercado e mostrar seus limites não significa negar de forma religiosa e dogmática o merca-do: “isso seria idolatria ao revés; o que precisamos é a adequação do mercado ao objetivo de vida digna e prazerosa para todos os seres humanos” (MO SUNG, 1998, p. 133), o que também exige uma agenda propositiva.

Talvez a insistência de Pierucci (1997) sobre a tese da secularização faça sentido, sobretudo ao afirmar que o alardeado reencantamento não

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 150150150150150 tem força social de coesão ou de transformação social em termos decisivos, que no fundo todo esse reavivamento não questione, mas ao contrário, se adapte bem ao ritmo férreo da racionalização sistêmica e seu cotidiano. Ainda que tal convencimento sobre a irreversibilidade da secularização se mostre ele mesmo, pela filosofia da história nele embutida, mesclado com crença e desejo, deve ser examinado com seriedade como uma variável possível. Mas o que dizer, no entanto, da outra variável possível, de o capitalismo ter substituído a religião como quadro de interpretação do mundo e de referência para a vida e nesse sentido ter-se tornado um monopólio religioso sem jamais levar este nome? Isto significaria que a religião, ou melhor, o seu componente mais fundamental, a busca do sagrado, ao invés de per-der relevância ou de se encontrar numa trajetória supostamente irreversível de declínio (como quer Pierucci) começa a fazer parte essencial da lógica que explica o sucesso e o funcionamento do siste-ma social capitalista? Além dos já mencionados teólogos, que o pro-puseram há mais de vinte anos, apenas alguns filósofos franceses, como Dufour (2007) ou alemães, como Baecker (2009) parece terem levado essa possibilidade a sério.

Balanço Provisório - Problemas e Avanços do Marxismo:

- A rejeição quase sob o efeito manada que observamos nas ciências sociais e da religião acerca do pensamento marxista tem a ver, em parte, com a justa crítica de alguns de seus pressupostos, como as relações mecânicas que o economicismo atribuía à esfera da cultu-ra, religião e política com a chamada “base econômica” ou a infra-estrutura econômica, atribuindo à religião apenas o papel de anestésico e máscara dos reais conflitos sociais;

- A teleologia determinista na sua visão do progresso histórico da sociedade não foi bastante auto-crítica para reconhecer seus pró-prios pressupostos teológicos, ou pelo menos não fundamentados; - O materialismo ateu e militante como parte da política dos estados socialistas tornou-se inimigo da liberdade e contrário à democra-cia;

- A visão cientificista de cunho positivista sobre o papel iluminista das ciências, principalmente as exatas, a ênfase no papel político das vanguardas esclarecidas sobre o restante da população,

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- O marxismo mostrou que para entender a sociedade capitalista é preciso entender a religião; não apenas no sentido que Marx apon-ta, de precisar entrar para a região nebulosa da religião para enten-der o quid pro quo do fetiche da mercadoria, mas que a própria metafísica da sociedade produtora de mercadorias, que hoje se globalizou pelo mundo inteiro, será melhor entendida se analisar-mos a conjunção feita pelo capitalismo entre desejo, transcendência e mercadoria.

- A inspiração marxista nos estudos sobre a metafísica do capitalis-mo recupera a compreensão da religião cocapitalis-mo produto das relações sociais (invertidas), mas ressalta, como Hinkelammert, Maduro e Michel Löwy, os potenciais de mobilização social, de pedagogia dos sujeitos e de enfrentamento político do poder que as tradições religiosas, apropriadas por segmentos sociais subalternos, podem desempenhar dependendo da circunstância histórica concreta.

Desafios à Sociologia da Religião

- O que ainda significa a expressão de Bourdieu “autonomia relati-va” do campo religioso em relação a outros “campos” do social, como a cultura e a economia, se o religioso consistentemente é incorporado, se desloca, é funcionalizado fora do seu “contexto” ou “pertinência” originais?

- Tem a micro-sociologia que analisa os meandros da experiência religiosa pessoal que abdicar necessariamente de uma busca por uma perspectiva de totalidade? Traz a busca pelo entendimento da totalidade, como a intuiu Adorno, sempre a busca pelo totalitaris-mo e repristina esquemas de dominação que impedem considerar o heterodoxo, singular e disfuncional? ou o que consideramos he-terodoxo, singular e disfuncional não tem sido ele mesmo funcionalizado numa esfera mais ampla e de maior complexidade pelo próprio sistema?

- O longo debate que entende secularização apenas como perda da relevância e da capacidade das instituições religiosas de conformar a vida social parece esgotado; esta perda de influencia, que é real para algumas instituições e religiões, mas não para todas ou na mesma intensidade, no entanto, não diminui ou não responde em nada à questão sobre as intensas formas de busca pelo sagrado, pela

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, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 127-158, jan./jun. 2008 152152152152152 transcendência e pelo sentido nas sociedades atuais;

- A tese da secularização afirma antes, como condição básica, o avanço da racionalização, o aumento do espaço e da decisão racional. O capitalismo, a ciência e a racionalização são os vetores da modernidade. Se racionalização e secularização contribuíram para transformar a religião em mercadoria e o próprio mercado em religião, como pensar uma sociologia da religião auto-crítica a respeito das próprias mi-tologias que ajuda a produzir?

CONCLUSÃO

A especulação financeira global tornou-se um fim em si mesma, vampirizando a produção de riqueza nos demais setores da economia e criando um “mundo do além”, um mundo do além-real. Este universo paralelo, como uma nebulosa em espiral, segue crescendo em sua fantasia des-vairada e insana, afastando-se sempre mais da economia real e das condições concretas de vida das pessoas.

Todavia, o mundo das empresas e do mercado financeiro, com toda sua metafísica, seus humores, seus espíritos apavorantes ou apaziguado-res, seus gurus e sacerdotes, seus rituais de purificação e sua teologia altamente dogmatizada, não é ele mesmo totalmente racional. No fundo é imprevisível, não controlável, louco. Suas crises trazem enorme desgraça para grande parte da humanidade, enquanto apenas uns poucos lucram somas imensas. A desgraça do outro passa a ser buscada como fim para o próprio funcionamento do sistema. A demissão em massa faz elevar o valor das ações das empresas. Até que ponto essa lógica destrutiva e inimiga da humanidade pode continuar sem destruir as bases da própria convivência social? Sem destruir o próprio projeto moderno de sociedade democrática, que se queria apoiar em valores como igualdade, liberdade e solidariedade?

Assistimos portanto ao que Franz Hinkelamment chamou de “triunfo do irracional racionalizado”, do irracional erigido em cúmulo do desen-volvimento da humanidade. Diante do poder cooptador e destrui-dor desta “idolatria” e de seus deuses, qualquer outro culto religioso, por mais “bárbaro”, se tornou inofensivo.

Se tal constatação tem algum lastro na realidade, nos próximos anos não vamos mais poder falar simplesmente de Sociologia da(s) Religiões ao abordar o fenômeno religioso. O seu objeto se deslocou. A

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logia da religião já não basta para explicar a religião. O que parece estar fazendo falta aguda é uma boa Teoria Social onde caibam e se reencaixem todos esses aspectos; uma teoria que aborde experiência pessoal, subjetividade e instituições religiosas, campo religioso e bus-ca por hegemonia, legitimação e luta pelo poder, mas também o reli-gioso funcionalizado ou embutido no que não se chama de relireli-gioso, a mutação econômica do religioso e a mutação religiosa do econômi-co. A descrição enigmática que Benjamin faz do capitalismo como religião foge à classificação normal das ciências da religião. Segundo Deutschmann (2001), a sociologia da religião está muito distante de haver desenvolvido um conceito convincente acerca do seu objeto. Se não apenas a explicitação dos interesses políticos, mas também dos

dese-jos, pressupostos e expectativas do pesquisador social devem ser in-corporados ao seu trabalho, que nunca é apenas teórico, creio que é legítimo incluir uma expectativa de que os estudos da religião não sejam apenas aquilo no que o positivismo latente os transformaram. Pois há pesquisadores que de forma ora mais ora menos “neutra” querem apenas “descrever” o estado atual da religião sob condições capitalis-tas (e isso já não é pouco); mas há outros que, além descrever e ana-lisar estão interessados em procurar nas formas religiosas possíveis potenciais de resistência. E isto pode fazer uma grande diferença.

Notas

3 Cf. Bruce (2006) e Gérard (2001).

2 Stark e Bainbridge são autores de dois importantes livros: The future of religion

(1985) e A theory of religion (1996). Roger Finke e Rodney Stark publicaram The churching of America - 1776-1990: Winners and losers in our religious economy (1992). Em 1997, Lawrence A. Young organizou o livro Rational choice theory and religion: summary and assessment, contendo as principais perspecti-vas teóricas desses pesquisadores, além de artigos que as criticam.

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