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Patrimônio Imaterial, Memória E História E Sua Relação Com O Centro De Interpretação Do Pampa / Intangible Heritage, Memory and History and Their Relationship with the Pampa Interpretation Center

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Academic year: 2020

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Patrimônio Imaterial, Memória E História E Sua Relação Com O Centro De

Interpretação Do Pampa

Intangible Heritage, Memory and History and Their Relationship with the

Pampa Interpretation Center

DOI:10.34117/bjdv6n6-004

Recebimento dos originais: 08/05/2020 Aceitação para publicação: 01/06/2020

Alexandre dos Santos Villas Bôas

Formação acadêmica: Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Instituição: Universidade Federal do Pampa

Endereço: Rua Conselheiro Diana, s/n Bairro Kennedy Jaguarão/RS, Brasil e-mail: alexandreboas@unipampa.edu.br

RESUMO

Este artigo tem por escopo analisar a relação entre patrimônio imaterial, memória e história com o projeto do Centro de Interpretação do Pampa (CIP) localizado na cidade de Jaguarão, no extremo sul do Brasil. Este projeto foi concebido para revitalizar às ruínas de uma antiga enfermaria militar em ruínas, a qual foi tombada como patrimônio histórico nas esferas estadual e federal, servindo de base para um espaço que congregaria às funções de museu, centro educativo e cultural dedicado a temática do Bioma do Pampa. Estas ruínas foram derivadas de um edifício de estilo neoclássico construído pelo Exército Brasileiro em 1883, que funcionou como instalação de saúde para os militares até a década de 1960, sendo que posteriormente foi utilizado para outras funções, como escola e também como lugar de detenção e tortura de presos políticos da ditadura militar brasileira iniciada em 1964. Abandonado pelo Exército Brasileiro após este período foi depredado no início da década de 1970, constituindo uma estrutura em ruínas que serviu de inspiração para a criação de uma memória em torno de seus usos ao longo de sua história. Após um longo interregno e tentativas de dar uma destinação de uso para as ruínas, em 2009 foi contratado o projeto de revitalização das ruínas junto ao escritório da Brasil Arquitetura da cidade de São Paulo, o qual realizou um projeto que previa transformar o espaço das ruínas Centro de Interpretação do Pampa com salas de exposições, auditório subterrâneo, anfiteatro a céu aberto, biblioteca, e pátio de esculturas. Dentro da estrutura apresentada somente uma sala foi dedicada a história dos usos que teve o prédio, o que por sua vez poderia denotar um certo tipo de desconhecimento das diversas memórias que persistem nos antigos moradores do entorno e de pessoas que frequentaram o espaço do prédio da antiga enfermaria. Neste sentido, este artigo se propõe discutir às possíveis consequências determinadas pelo projeto do Centro de Interpretação do Pampa em relação ao seu patrimônio imaterial representado pela memória e história e sua indissociabilidade com o patrimônio edificado o poderia levar ao ocultamento da memória dos usos do local ao longo de mais de um século de existência, seja como enfermaria militar, escola, prisão e ruínas.

Palavras-chave: Patrimônio Imaterial. Enfermaria Militar. Memória.História. Jaguarão.

ABSTRACT

This article aims to analyze the relationship between intangible heritage, memory and history with the Pampa Interpretation Center (CIP) project located in the city of Jaguarão, in the extreme south of Brazil. This project was conceived to revitalize the ruins of an old ruined military infirmary, which was declared a historical heritage in the state and federal spheres, serving as a basis for a space that

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would congregate the functions of a museum, an educational and cultural center dedicated to the theme of Pampa biome. These ruins were derived from a neoclassical style building built by the Brazilian Army in 1883, which functioned as a health facility for the military until the 1960s, and was later used for other functions, as a school and also as a place of detention and torture of political prisoners of the Brazilian military dictatorship that began in 1964. Abandoned by the Brazilian Army after this period, it was depredated in the early 1970s, constituting a ruined structure that served as inspiration for the creation of a memory around its uses throughout of its history. After a long break and attempts to allocate the ruins to use, in 2009 the project for the revitalization of the ruins was contracted with the Brasil Arquitetura office in the city of São Paulo, which carried out a project that planned to transform the space of the ruins Pampa Interpretation Center with exhibition rooms, underground auditorium, open air amphitheater, library, and sculpture patio. Within the structure presented, only one room was dedicated to the history of the uses that the building had, which in turn could denote a certain type of ignorance of the diverse memories that persist in the former residents of the surroundings and people who frequented the space of the building. old ward. In this sense, this article aims to discuss the possible consequences determined by the Pampa Interpretation Center project in relation to its immaterial heritage represented by memory and history and its inseparability with the built heritage could lead to the concealment of the memory of the uses of the place to the over more than a century of existence, whether as a military infirmary, school, prison and ruins.

Keywords: Intangible Heritage. Military Infirmary. Memory.History. Jaguarão.

1 INTRODUÇÃO

Localizada no extremo sul do Brasil na fronteira com o Uruguai, às margens do Rio Jaguarão, a cidade de mesmo nome se originou de um acampamento militar no ano de 1802, comandado pelo Coronel Manoel Marques de Souza, que expulsou para a outra margem do rio a guarnição espanhola ali existente1. O estabelecimento destas tropas foi imediatamente seguido por comerciantes que se aproveitaram da posição geográfica da cidade, que possuía ligação fluvial com as cidades de Rio Grande e Pelotas, importantes centros comerciais da Província do Rio Grande do Sul, e com o Uruguai através da outra margem do Rio Jaguarão que por via terrestre se ligava a capital Montevideo. Desta forma a cidade de Jaguarão adquiriu importância considerável entre as cidades da Província do Rio Grande do Sul, no que tange a posição estratégica militar como também pelo comércio ali desenvolvido, características que marcaram seu desenvolvimento, que a partir do final do século XIX na esteira da chamada economia do charque, constituiu um centro urbano com edificações de estilo eclético, em sua maioria de propriedade dos latifundiários e grandes comerciantes da cidade e região, os quais se destacaram na política regional e nacional2.

Neste contexto, sob a influência do político oriundo de Jaguarão, Henrique Francisco d’Ávila, então presidente da Província do Rio Grande do Sul, foi ordenada a construção de um prédio

1 A data aproximada deste acampamento militar que deu origem a cidade de Jaguarão foi entre 04 e 10 de fevereiro de

1802, segundo Franco, Sérgio da Costa. Origens de Jaguarão: 1790-1833. Porto Alegre, 2007.

2A análise desta elite da cidade de Jaguarão com a política do Império Brasileiro pode ser vista em Both, Amanda Chiamenti. A trama que sustentava o Império: mediação entre as elites locais e o Estado Imperial Brasileiro (Jaguarão,

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destinado a servir de instalação de saúde das tropas do Exército Brasileiro aquarteladas na cidade de Jaguarão e região, um hospital militar que ficou popularmente conhecida como Enfermaria Militar de Jaguarão. A construção deste prédio foi dirigida pelo engenheiro militar capitão Carlos Soares entre os anos de 1881 e 1883, com uma área aproximada de 7.000 m2 com uma estrutura interna que comportava uma farmácia, sala de operações, gabinete médico e de enfermagem, leitos para enfermos divididos entre praças e oficiais e estruturas auxiliares como cozinha, capela e necrotério. Sua localização foi escolhida em um dos pontos mais elevados da cidade, a região conhecida como Cerro3 da Pólvora, distante do centro urbano e com uma visão estratégica da fronteira com o Uruguai.

Na figura abaixo, se pode observar sua fachada no formato de “L” que apresentava um conjunto de amplas janelas, tendo uma única entrada através de uma grande porta de madeira encimada por um frontão sustentado com quatro falsas colunas de estilo dórico, tendo a estrutura como embasamento um porão utilizado como depósito e também para a circulação de ar do prédio, denotando a solidez do projeto e austeridade na sua composição. Como estava em uma região isolada do centro urbano, o acesso era dificultado pelo terreno íngreme, com estradas esburacadas que no período chuvoso se tornavam quase intransitáveis, o que pode ter sido um dos fatores que contribuíram para seu abandono como instalação de saúde nos anos 1960. Ainda assim, se constituía em um dos maiores prédios públicos da cidade, e embora fosse destinado ao atendimento de militares, contribuiu para o estabelecimento de uma população de baixa renda no seu entorno, que eventualmente era atendida em suas instalações.

Figura 01 – Antiga Enfermaria Militar de Jaguarão.

Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão.

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2 USOS DO PRÉDIO DA ANTIGA ENFERMARIA MILITAR

Podemos determinar três períodos distintos dos usos deste prédio. O primeiro período – 76 anos - vai desde sua fundação em 1883 até o final da década de 1950, com seu uso exclusivo como organização de saúde. O segundo período – 12 anos- vai desde os anos 1960 até 1972, em que perdera sua função original e teve variados usos, tais como escola primária e prisão política. O terceiro período – 37 anos - vai desde 1972 até 2009, quando houve sua depredação, tornando-se ruína, culminando no lançamento do projeto de revitalização denominado de Centro de Interpretação do Pampa.

Sobre o primeiro período restaram poucos registros escritos e de imagens, por conta de alguns fatores, como a dificuldade de acesso a registros fotográficos em um hospital militar e o custo financeiro para contratar um profissional para este tipo de trabalho, assim como os documentos que narravam seu dia-a-dia como instalação de saúde se perderam quando houve o abandono do prédio pelo exército e a depredação pela população.

A partir da construção do novo quartel próximo do hospital Santa Casa de Jaguarão, houve um progressivo desinteresse do exército em manter uma estrutura tão distante e dispendiosa ao seu erário, ocasionando a destinação do prédio como moradia para alguns militares, assim como parte de suas instalações foi ocupada por uma irmandade religiosa da Igreja Católica, a qual implementou um projeto assistencial a comunidade que se formara no entorno da antiga enfermaria, que era de baixa renda. Este projeto teve duração efêmera, e quando eclodiu o golpe militar no ano de 1964, o prédio serviu de prisão política para aqueles considerados subversivos na cidade de Jaguarão, sendo relatado pelos presos a ocorrência de tortura em suas instalações4.

Após este período de utilização do prédio como prisão política, houve o abandono definitivo pelo exército, o qual também teve sua unidade militar transferida para a cidade de Porto Alegre, o 37º Regimento de Cavalaria General Osório, ficando em seu lugar uma pequena fração de militares, responsáveis pela guarda dos prédios do exército na cidade. Neste momento, início dos anos de 1970, houve a depredação do prédio pela população, motivada pelo abandono dos militares e uma suposta autorização dada por um deles para que fosse permitida a retirada de materiais, o que ocasionou uma frenética corrida em direção ao edifício, sendo que em pouco tempo ficou em estado de ruínas5,

conforme pode ser visualizado na imagem abaixo.

4 Este período na cidade de Jaguarão foi caracterizado com perseguições aos adversários do regime militar, ou quem

assim era considerado pelo governo, conforme pode ser visto em Villas Bôas, Alexandre dos Santos. A Incitação do

Medo: repressão no princípio da ditadura militar de 1964 em Jaguarão-RS. Porto Alegre, 2018.

5 Este relato da autorização para a depredação do prédio foi incorporado ao folclore da cidade, com conotações jocosas

aos militares, conforme pode ser visto em Villas Bôas, Alexandre dos Santos. Centro de Interpretação do Pampa.

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Esta depredação atingiu tanto a estrutura interna como a externa, com a retirada de todas as alvenarias; assoalho de madeira; telhado; elementos decorativos da fachada como as placas de mármore que continham os nomes do construtor e das autoridades responsáveis por sua construção; móveis; documentos e registros de pacientes; piso hidráulico de banheiros e da cozinha. Esta destruição teve um caráter peculiar por ter acontecido em um período de ditadura militar em um prédio do exército, que embora estivesse sem utilização, ainda permanecia sob a guarda de militares. Tal fato levou a quem visitasse o local após a depredação a inferir que se tratava de uma ruína de longo tempo, e uma datação do prédio muito além do que correspondia na realidade, criando um folclore em torno de suas funções, recuando esse imaginário ao período da Guerra do Paraguai na década de 1860.

Figura 02 – Enfermaria militar em ruínas.

Fonte: autor (2008).

O terceiro período de uso do prédio da enfermaria militar de Jaguarão foi caracterizado como sendo a utilização do espaço das ruínas, primeiramente como ponto de encontro dos jovens, os quais deixaram inscrições nas paredes internas, e posteriormente por visitantes ocasionais que passavam pela cidade, pois as ruínas podiam ser observadas do centro urbano, levando ao aguçamento da curiosidade pela história daquela edificação. No ano de 1981 houve a tentativa de venda do prédio pelo Exército Brasileiro sem obter êxito.

Em 1983, dentro do bojo das ações do denominado Projeto Jaguar, que foi um movimento de preservação patrimonial iniciado por dois estudantes de arquitetura da Faculdade Ritter dos Reis de Porto Alegre, Valdo Alves Dutra Nunes e Jorge Arismendi Garcia, o qual em seu início foi concebido

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para fazer o levantamento arquitetônico dos prédios de estilo eclético do século XIX na cidade de Jaguarão, constituídos em sua maioria de propriedades da elite econômica e política, teve a intenção de efetivar uma política de preservação patrimonial que servisse de vetor para o desenvolvimento turístico da cidade de Jaguarão, mas acabou se voltando para as ruínas de uma construção afastada do centro urbano, a antiga Enfermaria Militar.

Na concepção dos coordenadores do Projeto Jaguar, as ruínas serviriam de cenário para apresentações de teatro e música, sendo parte de um parque que abrigaria também um camping e um centro de informações turísticas. Para obter apoio para esse projeto foram organizadas as chamadas vigílias musicais, que eram constituídas de apresentações de artistas locais e também de outras cidades do Rio Grande do Sul e do Uruguai.

Dentro dos objetivos enunciados estava a meta de transformar as ruínas em monumento histórico, categoria esta que estava contida na Carta de Veneza de 1964, a qual ainda determinava as formas de conservação e restauro, conforme pode ser visto na mesma Carta, em seus artigos 1º e 2º:

Artigo 1º - A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou acontecimento histórico. Estende-se não só́ as grandes criações, mas também as obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural.

Artigo 2º - A conservação e a restauração dos monumentos constituem uma disciplina que reclama a colaboração de todas as ciências e técnicas que possam contribuir para o estudo e a salvaguarda do patrimônio monumental (IPHAN..., 2016).

Essa proposta do Projeto Jaguar deixava ao encargo do município a gestão das ruínas, ou seja, que o município efetuasse seu tombamento e realizasse a construção de um parque e sua conservação, não levando em conta a falta de infraestrutura e pessoal técnico capacitado em uma pequena cidade do interior com poucos recursos econômicos.

Em 1986 o curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) efetivou um acordo com a Prefeitura Municipal de Jaguarão, com apoio da então Diretoria Regional do IPHAN, realizando o levantamento e proposta de reutilização das ruínas da antiga enfermaria militar e construção de um parque adjacente.

As propostas resultantes deste estudo foram as seguintes: a) preservação dos visuais tanto da cidade para as ruínas quanto destas para a cidade e parte da região, através da criação de um espaço não-edificável, utilizando o quarteirão em frente ao prédio e estabelecendo um parque neste; consolidação das ruínas efetuando ações que objetivam retardar o processo de deterioração e valorizar os elementos existentes, a exemplo do tratamento dado aos corredores com grama entre os ladrilhos hidráulicos ainda restantes; c) ocupação do pátio central do prédio para o uso em atividades culturais e artísticas, com a colocação de arquibancadas metálicas desmontáveis, dinamizando o espaço e utilizando as

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paredes como cenário, sem a demarcação de espaços estanques como os palcos; d) tratamento paisagístico ao redor das ruínas e no quarteirão em frente; e) definição da altura de massas vegetais e edificáveis dos quarteirões e do entorno, de modo a não prejudicar as visuais.

Na figura seguinte, se visualiza o projeto efetuado pelos membros do Projeto Jaguar da UFPEL das ruínas da antiga Enfermaria Militar. Logo acima das ruínas, se localizaria o Teatro de Verão, em uma antiga pedreira municipal. Logo abaixo das ruínas, se localizaria o parque municipal, constituído de área verde para camping e lazer, com a construção de um lago artificial. No centro, as ruínas consolidadas comportariam arquibancadas para contemplação e sanitários.

Figura 03 - Projeto para revitalização das ruínas da Enfermaria Militar de Jaguarão.

Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão (2016).

Contudo, as ruínas da antiga Enfermaria Militar não eram reconhecidas como patrimônio pelos órgãos institucionais de preservação patrimonial, o que dificultava a captação dessas verbas. Na cidade de Jaguarão apenas um prédio havia sido tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do estado do Rio Grande do Sul (IPHAE), onde funcionou o fórum da Justiça Estadual, sendo inscrito no Livro Tombo Histórico em 17/09/1981. Em 1986, as ruínas da Enfermaria Militar, o Teatro Esperança e o Mercado Público tiveram processos abertos para tombamento, mas somente em 1990 foram tombadas, e inscritos no Livro Tombo Histórico em 1992, o que viria a dificultar o investimento de recursos financeiros para a execução do projeto. Essa situação fez com que a Prefeitura Municipal ficasse encarregada de realizar os investimentos, o que não era exequível com os poucos recursos de que dispunha o erário municipal e a falta de interesse por parte dos investidores privados, que preferiam aplicar esse capital no centro urbano onde obteriam retorno mais rápido e lucrativo. Dessa forma, o projeto não foi executado como planejado, sendo construído um modesto

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parque em memória de um ex-prefeito, com a colocação do seu busto, descaracterizando o contexto histórico das ruínas e indo de encontro ao que emanava a Carta Patrimonial de Veneza em seu artigo 5º:

A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é, portanto, desejável, mas não pode nem deve alterar à disposição ou a decoração dos edifícios. É somente dentro destes limites que se deve conceber e se pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes (IPHAN..., 2016).

Este parque foi inaugurado em 27/01/1991, posteriormente ao tombamento do IPHAE das ruínas da Enfermaria Militar, o que em tese o protegeria de qualquer tentativa de modificação, o que não ocorreu. Em oficio enviado a prefeitura pelo Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, datado de 23/07/1990, o órgão solicitava providências destinadas a proteção das ruínas e seu entorno, para que não houvesse uma intervenção sem ser consultado:

Mandar registrar nas secretarias municipais pertinentes o ato de tombamento, de forma que em qualquer solicitação de intervenção (construção, reforma, demolição, etc.) no bem tombado ou seu entorno a CPHAE seja ouvida; mandar averbar no registro de imóveis local os atos de tombamento; enviar a CPHAE cópia de escritura dos imóveis, com a averbação (PROJETO JAGUAR/UFPEL..., 1990).

No ano de 2009, após um longo interregno de abandono, as ruínas da Enfermaria Militar, novamente, viriam a ser protagonista na área do patrimônio cultural na cidade de Jaguarão, por conta da possibilidade da sua revitalização através de um projeto arquitetônico, uma ideia de transformar o local em um complexo cultural, um centro de interpretação6, tão em voga no meio museológico atual. A concepção deste projeto partiu da Prefeitura Municipal de Jaguarão em parceria com o IPHAN e a adesão posterior da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), conforme nos destaca o jornal A Folha:

[...] Também num segundo momento, firmou-se o convênio entre a UNIPAMPA e a Prefeitura Municipal de Jaguarão, que tem por objetivo dar continuidade ao desenvolvimento do projeto do Centro de Interpretação do Pampa, sendo que ambos se responsabilizaram de cooperar para a implantação e a gestão desse importante espaço cultural que será erguido nas ruínas da Enfermaria Militar (A FOLHA, 2010, pág. 8).

O projeto elegeu o Bioma Pampa7 como elemento norteador da criação de um Centro de Interpretação do Pampa (CIP), onde as ruínas revitalizadas abrigariam um museu de concepção

6 Uma das aplicações da museologia do território é o centro de interpretação. Nascido na América do Norte, sobretudo

nos parques naturais, esse método de valorização do patrimônio desenvolve-se por toda parte como meio de apresentação de um patrimônio de proximidade: sítio natural, arqueológico, histórico, espaço característico de uma paisagem, de um modo de vida, de uma aldeia ou bairro. Não repousa unicamente em coleções ou mesmo em objetos tridimensionais, mas pode utilizar todos os meios modernos de explicação, de ilustração e de demonstração. Aqui, o patrimônio está fora, o comentário está dentro: ele prepara o visitante, o aluno, o pesquisador à atividade que se tornará uma descoberta pessoal à medida que o sítio seja percorrido (VARINE, 2012).

7 O termo Pampa foi cunhado no idioma indígena quéchua, em tempos pré-colombianos, e significa região plana. Essa

denominação estava ligada às paisagens de extensas planícies com topografia suave ou levemente ondulada, cobertas por vegetação baixa, predominante em uma área de clima temperado que se estende a partir da patagônia argentina, em seu limite sul, até as encostas do planalto sul - brasileiro no Rio Grande do Sul, em seu limite norte. No Brasil, o Bioma Pampa possui uma área de 178.243Km2 e está restrito ao Rio Grande do Sul, ocupando cerca de 63% do estado e 2% do Brasil (RIBEIRO; MELO, 2011, pág. 10).

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tecnológica e interativa, assim como equipamentos culturais: auditório conjugado com anfiteatro e prédio de apoio e de exposições temporárias. De acordo com Zorzi (2012), a visão apresentada pelo prefeito de Jaguarão no período, Claudio Martins, do Partido dos Trabalhadores, sobre o entorno do CIP, coadunava a criação do CIP com melhorias a infraestrutura da comunidade que vivia em seu entorno:

De acordo com o prefeito, existe um projeto de “revitalização” do Cerro da Pólvora, incluído no PAC-2. Através do investimento 197 famílias receberão regularização fundiária e esgotamento sanitário individual. Destas famílias, dez serão beneficiadas com moradias realocadas e 86 com moradias reformadas. Ainda é prevista a construção de um espaço de lazer, utilizando a área das pedreiras, com praça (brinquedos, palco para eventos, banheiros e espaço para reuniões da comunidade) e área esportiva, com campos de futebol e quadra de vôlei. Também serão feitas sinalização, drenagem, construção de calçadas e pavimentação (ZORZI, 2012, pág. 93).

A ideia central do projeto, como visto na figura abaixo, era a de transformar às ruínas da antiga Enfermaria Militar como centro de um complexo cultural, que além de revitalizar o prédio, pretendia construir instalações adjacentes, como um anfiteatro a céu aberto, auditório subterrâneo, pátio de esculturas, prédios de apoio técnico, e salas para ensino e pesquisa. O eixo integrador temático do centro cultural seria o Bioma Pampa, região geográfica que abrange não só o Brasil, como o Uruguai e a Argentina. Esta ideia foi apresentada no projeto do CIP pelo escritório Brasil Arquitetura, contratado para realizar o projeto:

O tema central do Museu do Pampa é a singularidade da paisagem física e humana do que se chama Pampa, no quadro da experiência brasileira. Trata-se de um Museu Vivo no qual os visitantes poderão vivenciar a especificidade e a riqueza da natureza, da cultura e da história irrepetível da região. O objetivo maior é fazer com que as pessoas mergulhem no universo do Pampa, através da vivência de experiências afetivas e intelectuais relacionadas aos diferentes âmbitos da vida e da cultura daqui. Que se surpreendam e descubram aspectos da região - bem como da sua importância para a formação do país em que vivem, nos quais nunca haviam pensado antes. Que se espantem ao descobrir que o Pampa tem tantos aspectos ocultos (BRASIL ARQUITETURA, 2010, pág. 11)

Figura 04 – Vista geral do projeto do Centro de Interpretação do Pampa.

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O fato foi que o projeto da construção do Museu do Pampa e da revitalização das ruínas da antiga Enfermaria Militar de Jaguarão propiciou a inserção do IPHAN na política patrimonial do município, haja vista que a verba necessária para a implantação do projeto8 e sua execução demandaria a participação do órgão. Coube a prefeitura a articulação política e a destinação do recurso financeiro inicial para a contratação do projeto executivo, obtendo a necessária aprovação do legislativo municipal e a legitimidade através da participação popular orientada para esta finalidade. Por sua vez, a UNIPAMPA que ficou com a responsabilidade de conduzir a gestão da obra, em uma das suas primeiras providências adotadas foi o cercamento do local com uma grade envolvendo toda a área do CIP. Este cercamento não estava previsto no projeto arquitetônico, o qual previu uma cerca viva com entradas ao longo de seu percurso, compondo uma harmonia com o parque verde projetado para a frente do prédio do CIP. Esta atitude da universidade criou um desconforto entre a comunidade que utilizava a área verde do local para lazer, haja vista a inexistência de espaços deste tipo para a população daquele bairro.

Com o passar do tempo de execução da obra, decisões foram centralizadas na UNIPAMPA, deixando a prefeitura à margem do processo de restauro e sem capacidade de interferir nos usos que se estava destinando ao museu. A crítica ao cercamento com uma grade no entorno do CIP foi a oportunidade de a prefeitura retomar a iniciativa do discurso de idealização do empreendimento perante a UNIPAMPA e a comunidade. Mas, naquele estágio do processo político de construção do CIP a prefeitura não conseguiu mais manter a primazia do discurso sobre o projeto, ficando ainda com o ônus de realizar as obras no entorno que foram prometidas para a comunidade, como saneamento e construção de moradias.

Quando o projeto do CIP foi apresentado em 2010 e iniciarem suas obras em 2012, a universidade não havia delineado a forma de gestão e de onde seria aportada a verba necessária para seu funcionamento. O fato de a UNIPAMPA ser uma universidade recente, com necessidades voltadas a sua implementação, foi um fator que levou a perda da capacidade operativa para a viabilização do projeto. Embora as verbas iniciais tenham sido destinadas para a execução da obra no valor de R$ 7.900.000,00 este valor contemplava somente a primeira etapa do projeto como a estabilização da ruína, construção do complemento moderno das ruínas e dos prédios de apoio. Todo o restante da obra, como a construção do anfiteatro a céu aberto, a estrutura interna de acabamento, os equipamentos da exposição museográfica e demais itens de mobiliário elevariam a o custo da obra

8 O total previsto para o projeto mais a execução da obra, que ficou a cargo do Escritório Brasil Arquitetura foi de

R$ 7.900.000,00, a ser liberado pelo Ministério da Cultural via IPHAN (PAC – Cidades Históricas – Jaguarão). Disponível em www. iphan.gov.br Acessado em 08/10/2018.

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para cerca de R$ 20.000.000,00, conforme consta em notícia do sítio eletrônico da prefeitura municipal de Jaguarão:

O Centro de Interpretação do Pampa é um dos maiores investimentos na área do patrimônio do país com potencial para se tornar uma referência mundial. O espaço abrigará sala de exposições com conteúdo multimídia, salas de pesquisa, auditório subterrâneo, espaço de convivência, anfiteatro e prédios administrativos. Os recursos aplicados são oriundos do Ministério da Educação e Ministério da Cultura e a conclusão da obra terá́ recursos do PAC cidades históricas. A responsabilidade da obra está sob a gestão da UNIPAMPA e o Município faz o acompanhamento de perto do projeto. O investimento total é de cerca de 20 milhões de reais (PREFEITURA MUNICIPAL..., 2014).

Entretanto, dos R$ 20.000.000,00 de reais para que a obra fosse concluída, somente R$ 7.900.000,00 estava previsto no PAC II cidades históricas em 2013, ocasionando a paralização total das obras a partir de 2016, ficando novamente abandonada as ruínas da antiga Enfermaria Militar de Jaguarão, agora acrescida de estruturas do projeto do CIP, o que caracteriza uma super-ruína, ou seja, duas ruínas sobrepostas, levando também a uma sobreposição de memórias nem sempre distinguíveis e dos atores a ela relacionados.

3 PATRIMÔNIO IMATERIAL, MEMÓRIA, HISTÓRIA E O CENTRO DE INTERPRETAÇÃO DO PAMPA

A preservação patrimonial no Brasil nasceu dentro de uma ditadura de cunho nacionalista, o Estado Novo implementado por Getúlio Vargas em 1937, e tendo como inspiração as ditaturas fascistas da Europa, em plena ascensão naquele momento. O viés tomado pelos órgãos de proteção do patrimônio brasileiro ao elegerem a herança colonial, principalmente aquela materializada em igrejas, mudou o foco ao longo das décadas, principalmente pelas críticas de setores ligados aos movimentos populares. Somente em 1961, com a chamada Lei dos Sambaquis (lei 3.924 de 26 de julho de 1961), a qual dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos, começou uma lenta distensão sobre a compreensão de um patrimônio que fosse além do patrimônio edificado, chamado de pedra e cal.

Desta forma, com o surgimento de novas orientações no campo da cultura, a partir da discussão focada nos direitos das minorias, étnicas, sexuais, religiosas, e de uma mudança de olhar, a cultura passou a ser vista também como um direito das minorias, de sua memória e história, não uma prerrogativa da chamada alta cultura. Nesta esteira, o patrimônio cultural também teve seu eixo ampliado, deslocando-se do patrimônio edificado em pedra e cal para integrar também as manifestações culturais imateriais. Neste sentido, esclarece Fonseca (2009):

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Para setores modernos e nacionalistas do governo, era necessário não só modernizar a administração dos bens tombados, como também atualizar a própria composição do patrimônio, considerada limitada a uma vertente formadora da nacionalidade, a luso-brasileira, a determinados períodos históricos, e elitistas na seleção e no trato dos bens culturais, praticamente excluindo as manifestações culturais mais recentes, a partir da segunda metade do século XIX, e também a cultura popular. Essa atualização era a proposta do CNRC (FONSECA, 2009, pág. 143).

A lenta mudança da política de preservação patrimonial, consequente de uma nova visão cultural veio a se consolidar com redemocratização do país na década de 1980, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, recepcionando essas novas ideias no campo da cultura e do patrimônio através dos artigos 5º; 23º; 30º; 129º; 215º e 216º e 2259 e também

9 Art. 5º [...].

LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Art. 23 É competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios: [...]

III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis eos sítios arqueológicos;

IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

Art. 30 Compete aos municípios: [...]

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Art. 129 São funções institucionais do Ministério Público: [...]

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, a ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

[...]

Parágrafo 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

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com a adesão do Brasil às convenções internacionais sobre patrimônio imaterial, notadamente a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003, realizada pela UNESCO, conforme descreve Souza Filho (2010):

A convenção conceitua patrimônio imaterial como “os usos, representações, expressões,

conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhe são inerentes – que as comunidades, os grupos, e em alguns casos os indivíduos reconhecerem como parte integrante de seu patrimônio cultural”. Agrega ainda que ele se

manifesta pelas tradições orais, inclusive o idioma, as artes e espetáculos, os usos sociais, rituais e festivos, conhecimento e usos relacionados com a natureza e as técnicas artesanais tradicionais (SOUZA FILHO, 2011, pág. 141).

No presente caso, da antiga Enfermaria Militar de Jaguarão, este valor imaterial tem grande significado, porque os usos do prédio constituiu uma memória personificada em relatos orais da comunidade, tornando o patrimônio edificado, as ruínas, um modo de expressão das vozes que silenciaram em seu interior, mas continuaram vivas na população. A revitalização das ruínas da antiga enfermaria militar levou a um novo significado ao local, em que suas funções junto à comunidade mudaram significativamente, as quais foram de importância vital para a elaboração do seu discurso simbólico.

Ademais, o prédio em ruínas da antiga Enfermaria Militar, evocava um passado de um prédio distante do centro urbano e com características diversas ao longo do tempo. Quando de sua primeira ativação patrimonial na década de 1980, pelo Projeto Jaguar, foi colocado um projeto abrangente de reutilização do espaço, que levasse ao interesse da comunidade. No projeto do Centro de Interpretação do Pampa, a transformação arquitetônica proposta levaria a uma ruptura com o passado, mas tendo como pressuposto uma valorização econômica, não somente do entorno, como de toda a cidade.

Haveria o risco inerente a este tipo de ativação patrimonial, tendo os gestores e a comunidade a necessidade de um diálogo permanente, principalmente aqueles sobreviventes que ainda guardam histórias relacionadas ao lugar a ser revitalizado. Nesta linha argumenta Rosário (2002):

O termo "recordar" é aqui fundamental. No contexto mítico, recordar significa resgatar um momento originário e torná-lo eterno em contraposição à nossa experiência ordinária do tempo como algo que passa, que escoa e que se perde. A recordação, como resgate do tempo, confere desta forma imortalidade àquilo que ordinariamente estaria perdido de modo irrecuperável sem esta reatualização. Traz de novo a presença dos Deuses, os feitos exemplares que forjam os Heróis e que perseguimos ainda hoje como modelos exemplares, nos coloca novamente em presença das tradições dos Antepassados que nos tornaram o que somos. Assim, como dissemos, o papel da memória não é apenas o de simples reconhecimento de conteúdos passados, mas um efetivo reviver que leva em si todo ou parte deste passado. É o de fazer aparecer novamente as coisas depois que desaparecem. É graças à faculdade de recordar que,

Art. 225 Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

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de algum modo, escapamos da morte que aqui, mais que uma realidade física, deve ser entendida como a realidade simbólica que cria o antagonismo-chave com relação ao nosso tema: o esquecimento. O esquecimento é a impermanência, a mortalidade. E não nos dirá Platão mais tarde que "a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal" (ROSÁRIO, 2002, pág.01).

Então, mais do que a instalação de um complexo cultural, da revitalização de uma ruína, está posta em questão uma volta (ou não) aos usos e sentidos de certa memória da comunidade, que ao ver o seu local de memória esvaziado de sentido, acaba produzindo o esquecimento. A grande chave que poderia dar a este projeto uma relevância para estas memórias seria a valorização daquelas pessoas que utilizaram o espaço em seu cotidiano, nos três períodos explicitados inicialmente. Abstraindo o valor de poder que está em jogo neste projeto, o mais importante seria este recordar, valorizando o processo de reconhecimento, para a partir deste ponto haver uma conexão com as novas gerações que iriam utilizar o espaço revitalizado, mas com outro sentido.

O patrimônio cultural toma forma, em uma sociedade democrática e inclusiva, quando serve, além de vetor econômico e cultural, de desenvolvimento humano; na sua acepção mais primordial, ou seja, de realização, de promoção da autoestima e do sentido de pertencimento. O direito do acesso à cultura passa também pelo patrimônio cultural, principalmente o das camadas mais populares, geralmente desconstituídas de um patrimônio edificado. Quando há a possibilidade de preservação destes locais, desta memória, é imprescindível a valorização destes aspectos nos projetos de revitalização. Para Prats (1998) esta ligação da identidade com ativação patrimonial é essencial:

Por outra parte, a mesma identificação, assimilada por todos, da noção de patrimônio – fundamentalmente do patrimônio artístico-arqueológico, mas ultimamente, também, do patrimônio natural e popular - faz com que a população creia (ou admita) essas mesmas ativações turístico-patrimoniais de acordo com os parâmetros de fixação do todo patrimonial anteriormente exposto. Tudo isto provoca dinâmicas locais de uma extraordinária complexidade nas quais se mesclam as adesões de identidade e os interesses turísticos de uma forma notavelmente emaranhada, e as quais não são alheias ao partidarismo político, os interesses econômicos e inclusive os confrontos pessoais (PRATS, 1998, pág. 71, tradução autor).

Por se tratar da modificação de um patrimônio cultural tombado e de extrema significação simbólica para a comunidade, essa escolha poderia ocasionar um distanciamento da memória da comunidade com os novos usos das ruínas, o que eventualmente ocasionaria uma perda do significado construído pelas gerações passadas. Este processo de salvaguardar a memória de um patrimônio cultural foi descrito por Costa (2002):

Evidentemente que o processo de salvaguardar e de preservar a memória coletiva é um processo de muitos atores sociais trabalhando em conjunto. É necessário que especialistas em patrimônio e membros da coletividade estejam envolvidos em um trabalho de educação permanente no qual os sujeitos se reconheçam como parte do patrimônio global. As bases para esse trabalho conjunto estão na adoção de uma abordagem holística e interdisciplinar que se debruça sobre o uso social do patrimônio (COSTA, 2002, pág. 148).

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O Centro de Interpretação do Pampa poderia ser este local em que a comunidade se apropriasse deste novo espaço revitalizado, dialogando com a memória das ruínas da antiga Enfermaria Militar e o conhecimento do Bioma Pampa ali apresentado, e a partir deste diálogo construir o conhecimento da cultura do local, desenvolvendo um direito de cidadania cultural plena. Assim como ocorreu com seu tombamento pelo seu valor histórico como ruína de um antigo hospital, as memórias evocadas de seus outros usos poderiam ser consideradas como patrimônio imaterial, sendo registradas para a posteridade. Embora a Lei do Patrimônio Imaterial10 tenha um viés mais voltado para as manifestações populares de crenças e festas, se entende que deva ser estendida as outras manifestações da cultura popular como os relatos orais ligados ao patrimônio edificado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo foi abordado o tema dos usos da antiga Enfermaria Militar de Jaguarão construída em 1883 como instalação de saúde do Exército Brasileiro, que foi ao longo de sua existência mudando os usos do seu espaço, primeiramente por conta da própria administração do exército, e posteriormente por setores institucionais e da comunidade, e sua relação com a memória, história e o patrimônio imaterial resultante.

Foram distinguidos três períodos dos usos do prédio; o primeiro período – 76 anos, como hospital militar (1883-1960); o segundo período – 12anos (1960-1972) como escola primária e prisão política; o terceiro período – 37 anos (1972-2009), ruínas e projetos de revitalização. Nestes variados usos do espaço da antiga enfermaria militar houve a constituição de uma memória na comunidade, com variados significados, de acordo com os usos que a antiga enfermaria teve ao longo do tempo. A emergência de projetos de revitalização das ruínas foi alterando a construção destas narrativas na comunidade, o que ficou mais presente pelo projeto do Centro de Interpretação do Pampa, o qual elegeu o Bioma Pampa como temática museológica, destinando um papel menor para as narrativas e memórias da comunidade.

O patrimônio imaterial consubstanciado por estas narrativas teve importância igualmente importante ao do patrimônio edificado das ruínas da antiga enfermaria militar, principalmente por colocar em evidência aspectos não tangíveis ligados a comunidade, e tão significativos, como um local de tortura de presos políticos, os quais não podem ser esquecidos ou substituídos por uma nova narrativa sem conexão com aquele passado. Em certa medida, a implantação de uma política de

10 Em 04.08.2000 foi publicado o Decreto 3.551, que trouxe como ementa “Institui o Registro de Bens Culturais de

Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências”. [...] Deve-se notar que este registro é específico para os chamados bens imateriais sem suporte

e embora tenha sido criado à imagem e semelhança do tombamento, dele difere pelo fato de conceder um título de patrimônio cultural temporário (dez anos), podendo não ser revalidado, enquanto o tombamento tem caráter permanente

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memória no presente caso se faz mais do que necessária, como forma de dar voz a um passado, que embora possa não querer ser lembrado para alguns que estiveram relacionados com estas práticas criminosas, precisa ser lembrado para que a população tenha o direito de construir sua identidade a partir de elementos que não estejam presentes na história oficial narrada pela elite da cidade.

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Imagem

Figura 01 – Antiga Enfermaria Militar de Jaguarão.
Figura 02 – Enfermaria militar em ruínas.
Figura 03 - Projeto para revitalização das ruínas da Enfermaria Militar de Jaguarão.
Figura 04 – Vista geral do projeto do Centro de Interpretação do Pampa.

Referências

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