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A GRAÇA REAL E A HONRA NOBILIÁRQUICA NO PROCESSO DE JACQUES DE ARMAGNAC, DUQUE DE NEMOURS. 1476-1477

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A GRAÇA REAL E A HONRA NOBILIÁRQUICA NO PROCESSO

DE JACQUES DE ARMAGNAC, DUQUE DE NEMOURS.

1476-1477

ROYAL GRACE AND NOBLE HONOR IN THE PROCESS OF JACQUES DE

ARMAGNAC, DUKE OF NEMOURS.1476-1477.

Fabiano Fernandes

Universidade Federal de São Paulo fabfer2005@yahoo.com.br

Resumo: Em fins do século XV, depender da graça

real era, até certo ponto, um elemento de depreciação da honra nobiliárquica. Ao analisar parte do processo do duque de Nemours, temos como ideia central a de que o medo não foi uma técnica utilizada com o intuito à pura e simples dominação/coerção, mas também uma forma eficaz de moldagem das vontades/percepções do acusado. Ao recorrer à graça real, o duque reforçava involuntariamente uma forma de hierarquização de poder, que tinha a pretensão de tornar a monarquia centro exclusivo da legitimação política. A disseminação do medo se tornou um dos instrumentos mais eficazes para a afirmação da soberania real, que deveria ser temida de forma análoga à fúria divina. Todavia, para identificar esse sentimento, torna-se necessária a análise de práticas sociais específicas, tal como a de um processo lesa-majestade. É a atenção aos detalhes dos termos usados no processo judicial que possibilita aferir o uso estratégico da atemorização, a qual, por sua vez, agia sobre a economia psíquica das emoções. Nesse esforço, a utilização da análise de discurso, sob inspiração foucaltiana, se tornou uma metodologia desejável para explorar o fenômeno do exercício do poder.

Palavras-chave: Lesa-Majestade; Nobreza e

poder; Direito Medieval.

Abstract: At the end of the 15th century relying

on royal grace was, to a certain extent, an element of depreciation of noble honour. The centripetal forces organized by royal power to a certain extent domesticaded much o high nobility. Such phenomenon took place through royal use of: The analyzis of the Duke of Nemours process can reveal that fear was not a technique for the purposes of exclusive domination and/or coercion, but it was an effective way of shaping the wills and/or perception. By resorting to royal grace, the duke involuntarily reinforced a form of hierarchy of power, which was intended to make the monarchy the exclusive center of political legitimation. The spread of fear has become one of the most effective instruments for the affirmation of royal sovereignty, which should be feared in a manner analogous to divine fury. However, in order to identify this feeling, it is necessary to analyze specific social practices, such as that of a lèse-majesty process. It is the attention to details of the terms used in the judicial process that makes it possible to assess the strategic use of fear, which, in turn, acted on the psychic economy of emotions. In this effort, the use of discourse analysis, under Foucaltian inspiration, became a desirable methodology to explore the phenomenon of the exercise of power

Keywords: Lese Majesty ; Nobiliarchic Ethos;

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O reinado de Luís XI (1461-1483) é bastante complexo, sendo marcado pelo esforço de estabelecer maior controle sobre a poliarquia principesca.1

Compreendemos por poliarquia uma perspectiva de governo partilhado do reino e, ao mesmo tempo, uma forma de organização coletiva que visava a pressionar o poder real à negociação, tendo como objetivo último limitar a expansão da jurisdição real no âmbito do reino, em geral, e em terras nobiliárquicas, em particular. É nesse sentido que entendemos a organização de ligas nobiliárquicas,2 tal como a da

Revolta do Bem Público,3 em 1465, e a que se esboçou por volta de 1475, a qual foi

agravada por ocorrer simultaneamente com uma incursão inglesa no continente. Aquilo que é tratado pelas fontes régias como violação da paz real ou como abuso nobiliárquico era, na verdade, uma reação de autodefesa dos setores superiores da nobreza que se sentiam, na maioria, ameaçados e desprestigiados por um poder real cada vez mais intrusivo.4

Em 1465, ocorreu a chamada Revolta do Bem Público, derrotada em boa parte por acordos estabelecidos pelo poder real separadamente com membros do extrato superior da nobreza. A intenção da revolta de 1474-75 foi descoberta e, paulatinamente, desmontada por ação de comissões de inquérito e por homens de confiança de Luís XI. Os processos de lesa-majestade foram fundamentais para o controle e a dissuasão de participação em revoltas. Esses processos judiciais contribuíram para uma espécie de governo por meio da atemorização, que deve ser

1 HAMON, Phillipe (Ed.). Les Renaissances. 1453-1559. Histoire de France. Paris: Belin, 2009. p.

16-17.

2 CARON, Marie-Thérese. Noblesse et pouvoir em france. XIIIe-XVIe siécle. Paris: Armand Colin, 1994.

p. 226-227.

3 Em abril de 1465 eclode a chamada Liga do Bem Público, que é extinta em outubro do mesmo ano

pelo tratado de Conflans. A principal bandeira era a abolição de direitos reais considerados abusivos e, em tese, a suspensão de cobrança da maior parte dos impostos, em um retorno idealizado aos bons tempos do rei São Luís, época reputada como aquela em que a realeza vivia apenas com seus próprios recursos. A despeito dos esforços da liga, as principais cidades não aderiram à revolta, em particular Paris, cujo peso político era imenso. Apesar do fracasso da liga, na ocasião de sua eclosão não era evidente que a revolta seria dissolvida, o que ocorreu mais por meio da negociação de bens e pensões do que por meio de ação militar. A ameaça à realeza era grande, uma larga coalizão, unindo importantes casas principescas e alto-nobiliárquicas em 1465, agiu com apoio dos ducados de Borgonha e Bretanha e tentou impor o governo colegiado do reino e a tutela sobre o rei, como condição de reformar as práticas de governo em nome do bem comum, ou seja, o bem público, como alardeavam os seus participantes. FAVIER, Jean. Louis XI. Paris: Fayard, 2012. p. 473-510.

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entendido dentro de uma racionalidade própria, não sendo sinônimo de triunfo do irracional ou obscurantismo. A disseminação do medo aqui é entendida como uma técnica de governo dos homens e do reino, exercida principalmente por comissários que recebiam da realeza poderes extraordinários.

Ao contrário da atitude contemporânea de certa repulsa com relação ao medo, tratando-o como algo indesejável, a ser reduzido ou superado, na Idade Média muitos teóricos parecem ter lidado com esse sentimento com menos desconforto.5

Logo, ao contrário de nossa época, o medo era considerado algo a ser cultivado, aproveitado, sondado e explorado. Ele era valorizado devido às lições espirituais que poderia ensinar, à fé que poderia inspirar e ao papel que poderia desempenhar nas modificações culturais e políticas.6 Esse sentimento foi partícipe da construção

do poder soberano à medida que era instrumentalizado e cultivado pelo poder real e seu oficialato. Assim, a despeito da dificuldade que temos de mensurar um fenômeno cultural tão complexo quanto o medo, é possível, a partir de uma apreciação qualitativa, identificá-lo.7 É viável detectar o medo ao realizarmos uma

análise intensiva do discurso registrado pelos inquiridores enfatizando, por exemplo, as contradições entre os termos, o que é visivelmente silenciado, e a recorrência de certas sentenças.

Em uma apreciação mais imediata, é possível conceber que a emoção deriva de uma estrutura cognitiva e moral, em cuja organização a ascendência da cultura é muito importante, seja nas transmissões, aprendizados, na moldagem dos sentimentos dos indivíduos, segundo o tempo e o ambiente das comunidades e sociedades humanas.8 Mas as emoções também são delineadas segundo as técnicas

de governo que incidem sobre a economia psíquica de indivíduos e comunidades.

5 SCOTT, Anne; KOSSO, Cyntia (Ed.). Fear and its representations in the Middle Ages and Renaissance.

Brepols: Turnholt, 2002. p. xii.

6 Ibidem.

7 Cf. Concordamos também em boa parte com o posicionamento de Boquet e Nagy ao afirmarem que:

“Loin d’être des parasites de la rationalité, les émotions en sont les sentinelles : elles nous renseignent sur ce qui est conforme à nos valeurs et aux attendus sociaux. On parle à juste titre d’un changement épistémologique majeur pour qualifier cette reconnaissance nouvelle de la qualité cognitive et de la rationalité morale des émotions, (...)”. BOQUET, Damien; NAGY, Pirosca. Une histoire des émotions incarnées. Médiévales, v. 61, 2011: 12. Cf. ELSTER, Jon. Alchemies of the Mind: Rationality and the Emotions. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

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A ênfase da atemorização como instrumento de governo é bastante destacada no governo de Luís XI, dentre outras estratégias, pela proliferação significativa de processos de lesa-majestade que acentuava o temor em setores da nobreza.9 Nesse contexto turbulento, a figura de Jacques de Armagnac, duque de

Nemours, tem certa importância. Nascido por volta de 1433, a partir de 1465 passaria a ser um dos favoritos reais, tornando-se alvo, a partir de 1476, de um dos processos de lesa-majestade mais importantes para o entendimento da cultura jurídica da época.10

O duque de Nemours foi inicialmente um dos favoritos de Luís XI, relação que muda de figura quando, em 1468, participou ativamente de diversas intrigas principescas. No combate a essas conspirações, o estabelecimento do medo generalizado era recorrente, como sugere Herrs.11 Mas o que consideramos mais

relevante, parcialmente inspirados no referido autor, é que esse medo não era o triunfo do irracional sobre o racional. Compreendemos que a imposição do medo tinha uma racionalidade própria, constituindo mesmo uma espécie de técnica de governo, de disciplinarização dos corpos e concomitantemente de governo das almas.12 O medo não era uma técnica com fins à pura e simples dominação/coerção,

mas era também uma forma eficaz de moldagem das vontades/percepções. Nesse sentido, o discurso sobre a majestade real e sobre a traição eram duas faces da mesma moeda. A disseminação do medo se tornou um dos instrumentos mais eficazes para a afirmação da soberania real, que deveria ser temida de forma análoga à fúria divina. A disseminação do medo por vários meios - dentre eles os processos de lesa-majestade13 - foi um dos principais instrumentos de subordinação da 9 FERNANDES, Fabiano. Por entre as arestas do inquérito: a circulação de informações na prisão e o

interrogatório de Henri Pòmpignac, c. 1476-1477. História [online]. 2020, v. 39, e2020011. Epub June 10, 2020. ISSN 1980-4369. <https://doi.org/10.1590/1980-4369e2020011>.

10 FERNANDES, Fabiano. Monarquia e poliarquia na França Tardo-medieva: o crime de

lesa-majestade em Aurillac, segundo o processo do duque de Nemours. C. 1474 -c. 1476. Locus - Revista de História, v. 22 n. 1. p.93-116. 2016.

11 Cf. HEERS, Jacques. Louis XI. Paris: Tempus, 2003.

12 Cf. SENELART, Michel. As artes de Governar. Do regimen medieval ao conceito de governo. São

Paulo: Editora 34, 2004.

13 Os processos de lesa-majestade fazem parte desse conjunto de instrumentos de atemorização, mas

também contribuem para delinear o limite para além do qual a fidelidade feudal, as solidariedades horizontais e as relações de patronato se tornavam um crime de traição para com a realeza, crime que se aproximava da heresia e do sacrilégio. Cf. SORIA, Myriam; BILLORÈ Maïte (0rg). La trahison

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poliarquia principesca ao poder real.

No contexto da poliarquia, os valores afetivos entre os envolvidos cumpriam um papel importante, como elementos que contribuíam para soldar as relações entre os grupos e indivíduos. As expectativas do cumprimento do serviço, do lado do senhor, e da proteção e auxílio, por parte do dependente - na maioria das vezes saldadas por pagamentos em dinheiro à época - desempenhavam um papel crucial. Logo, as relações não eram apenas guiadas pelo cálculo puro e simples de interesse. Também eram importantes por valores de adesão, impulsionados pelas noções de honra e fidelidade, recorrentes nas atitudes dos que gravitavam, por exemplo, em torno da casa senhorial de Nemours.

A perspectiva de poliarquia a qual nos pautamos tem sua orientação teórica na releitura de certos aspectos do historiador Otto Brunner.14 A influência de

Brunner na historiografia política do pós-guerra foi fundamental, destacando-se a ênfase no estudo das relações de clientela, de domesticidade, das obrigações morais de ajuda recíproca, da disciplina informal das casas senhoriais e das relações afetivas intranobiliárquicas, dentre outras questões.

Como nos sugere Hespanha,15 a perspectiva de Brunner colocou em

discussão vários elementos que extrapolam o imaginário do Estado contemporâneo que propõe a separação entre interesse público e privado. Brunner, no seu estudo sobre terra e senhorio na Áustria Medieval, refletiu sobre a questão da paz, da amizade e da vingança e nos pareceu adequado para entender também a reação nobiliárquica no contexto de 1460-1480. A amizade - à época um sentimento fluido de reciprocidade por um tempo determinado - seria um dos elementos fundadores da paz nas ligas nobiliárquicas: aqueles que estivessem incluídos nesse campo de alianças estabeleciam mutuamente obrigações morais que os tornavam solidários,

au Moyen Âge. De la monstruosité au crime politique. Rennes, Press Universitaires de Rennes, 2009. Cf. MARTIN, Fréderic F. Justice et Legislation sous le règne de Louis XI. Le norme juridique royale à la veille des temps modernes. Órleans: L.G.D.J, 2009

14 BRUNNER, Otto. Land and lordship. Structures of governance in medieval Austria. Philadelphia:

University of Pennsylvania Press, 1992. p. 1-94.

15 HESPANHA, Antonio Manuel. Historiadores do direito e historiadores. In: COELHO, Maria Helena

da Cruz; HOMEM, Armando Luís de Varvalho (Org.) A Génese do Estado Moderno no Portugal Tardo-Medieval (séculos XIII-XV). Lisboa: UAL, 1997. p. 53-76.

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relações muitas vezes firmadas por meio de acordos escritos, selados pelas armas dos envolvidos. No caso em que os grandes vassalos sentiam sua justiça denegada, a insurreição era de partida considerada legítima por eles. A rebelião era uma das estratégias escolhidas para pressionar à negociação em termos considerados mais justos.16

O entrelaçar dos micropoderes17 das casas nobiliárquicas passava por

relações de sociabilidade e parentesco, que muitas vezes só podemos perceber de forma indireta ou marginal na estrutura do processo aqui enfocado,18 mas esse

entrelaçar estava lá, ajudando a reafirmar ou contrariar hierarquias, favorecendo cumplicidades mútuas ou estabelecendo relações de competição por bens e prestígio.

Mas o eixo de valores, tais como honra e serviço, também nutria as relações entre o rei e o Duque de Nemours. E o fato de supostamente ter servido o rei tão fielmente, como alegado pelo processado, justificaria em sua ótica ao menos a concessão da graça real.

E aqui apontamos o paradoxo na tentativa de defesa de Nemours: requisitar a permanência na graça régia é implicitamente reconhecer o direito real de condenar quem quer que fosse. Não se trata exatamente de admissão da culpa de lesa-majestade por parte do processado, de fato, mas do reconhecimento oficial segundo o qual o poder régio tem a singularidade de poder julgar a quem quer que seja. O rei, ao julgar, reforça simbolicamente as relações da sua majestade com a majestade divina. De uma maneira geral, observa-se nesses séculos a “regalização” de Deus, que torna os reis não apenas detentores do poder da “graça”, mas também

16 BRUNNER, Op. Cit., p. 1-94.

17 Na utilização da noção de micropoderes nos inspiramos parcialmente em certos posicionamentos

de Foucault, em particular no que se refere à atenção ao acoplamento das memórias locais (do campo social), que permite a constituição de um conhecimento histórico das lutas por meio da atenção que se deve dar às táticas sociais. Cf. FOUCAULT, Michel. Micro-física do poder. Rj: Graal, 1998.

18 O processo de lesa-majestade do duque de Nemours é um compósito bastante longo, ocupando, no

manuscrito que serviu de base para edição crítica que utilizamos, 484 fólios, totalizando 635 junto com o aparato crítico, baseado principalmente no chamado manuscrito 2.000 da biblioteca de Saint-Geneviève. O processo arrola principalmente inquirições, cartas reais, cartas de juramento de supostos conspiradores, testemunhos e denúncias. Utilizaremos aqui a edição crítica de BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques d’Armagnac. Genève: Libraire Droz, 2012. Daqui por diante nos referiremos ao processo por “Processo duque de Nemours”, seguido de vírgula e página da edição.

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uma espécie de reflexo de Deus sobre a terra. Logo, de forma análoga à imagem divina, o caráter justiceiro19 e a graça fazem parte de um mesmo plano de

sacralização da monarquia.20

Na cultura jurídica da época, agraciar guarda parentescos intrínsecos com o discurso do sagrado cristão, um dos discursos organizadores mais importantes da configuração jurídica da época.21

A seguir, faremos uma breve reflexão sobre o que entendemos por nobreza na época enfocada, posteriormente discutiremos a noção de graça real à época e, por fim, analisaremos a entrega da fortaleza ducal de Carlat aos homens do rei por ocasião da prisão do duque de Nemours.

II. Breves reflexões sobre o significado social da nobreza no reino de França na Idade Média Tardia.

Durante muito tempo, o severo colapso das rendas dos calamitosos anos de 1350-1450 foi frequentemente visto como essencial para o desenvolvimento da nobreza. Logo, teria sido especialmente por meio do direito a fazer a guerra, que a autoridade nobiliárquica pôde ser reproduzida, em uma crescente relação de dependência para com o poder real. Esta variava da cumplicidade e serviço até ao conflito aberto.22 A relativa fragilidade econômica da nobreza teria permitido,

todavia, que outros grupos sociais se emancipassem, possibilitando à coroa erguer um sistema de taxação permanente o qual, por sua vez, fortaleceria o Estado monárquico.23

Uma outra perspectiva, tal como a de Perroy, vê a nobreza como componente

19 Como sugere Martin Luís XI é mais ligado à tradição dos reis justiceiros medievais do que à ideia

de um rei legislador, tal como no caso de seus imediatos sucessores. MARTIN, F. Justice et législation sous le règne de Louis XI. La norme juridique royale à la veille des temps modernes. Paris, L.C.D.J., 2008. p. 5-118.

20 Quando empregamos o termo monarquia, temos em mente a ideia de concentração legítima do

poder nas mãos de uma só pessoa, física ou moral, rei, príncipe ou mesmo uma senhoria comunal. Os tratados que se multiplicaram ao longo dos séculos XIV e XV frequentemente designavam o monarca como “príncipe”. MORSEL, Joseph. L’aristocracie médiévale. Ve-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 1994. p. 266.

21 FOULCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora NAU: 2002. p.53-79. 22 Cf. ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1984.

23 POTTER, David. A History of France, 1460-1560. London: Palgrave Macmillan, 1995. p. 166; Cf.

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central na estruturação do Estado Monárquico. Os problemas econômicos teriam levado esses grupos nobiliárquicos a aceitar uma política central mais autoritária, tendo em vista seu objetivo generalizado em obter favores e privilégios como forma de restaurar as próprias fortunas prejudicadas, dentre outras coisas, pela maior emancipação do campesinato de seu controle estrito, sobretudo na segunda metade do século XV.24

Segundo Potter, é errôneo conceber a nobreza da segunda metade do século XV e primeira do XVI como um grupo fechado, seguindo uma perspectiva a qual só faz certo sentido ao pensarmos no século XVIII. Pois, se comparado ao período de 1250-1350, o que se inicia por volta de 1460 assiste a uma aceleração na expansão dos que ascendiam à nobreza, na medida também que a monarquia buscava ampliar esse acesso.25 O próprio marcador social do que era ser ou não um nobre estava

sujeito a um conjunto de variáveis, muitas vezes bastante subjetivas. A posse de terras era um dos marcadores mais objetivos, mas isso não encerrava a complexidade da definição de ser nobre.

A exposição de um conjunto de privilégios e restrições pode ajudar a precisar um pouco esses fluidos limites entre nobres e não nobres. Um dos limites teóricos era a restrição da participação de nobres no comércio que, todavia, foi oficialmente relativizada pelo próprio Luís XI, o qual, em 1463, autorizou, por exemplo, aos nobres do Languedoc, o engajamento em comércio sem derrogação de sua condição.26 Luís XII (rei de 1498 a 1515), em outro exemplo, concedeu cartas de

nobreza para Pierre Briçonet de Angers, mencionando o seu engajamento no comércio como benefício para o bem público. E, por fim, a nobreza de Marselha é

24 POTTER, Op. Cit.,1995, p.166.

25 Em 1328 existiam por volta de 200.000 nobres em cerca de 40.000 a 50.000 famílias, algo em torno

de um por cento da população, constituindo, em tese, mais de uma família nobre por paróquia. Em 1470 outra estimativa dava cerca de 30.000 a 40.000 famílias nobres, em uma população de cerca de 10 a 12 milhões de pessoas, uma redução que ao fim e ao cabo não parece ser muito significativa na proporção de famílias nobres no contexto de um quadro demográfico que ainda sentia os efeitos de crise dos séculos XIV e XV. Contudo, deve-se levar em conta a grande variação regional, com alta densidade de nobres na região oeste da Bretanha, Anjou e Maine; média no Poitou e Saintonge; e baixa na Borgonha e Champanhe. Estima-se que em fins do século XV existiam ao menos 1000 pessoas reputadas como cavaleiros. Na virada do século XV para o XVI, a massa da nobreza de race era constituída por escudeiros que possuíam um ou mais feudos, usualmente em um pequeno pays. Ibidem, p. 167, 170 e 177.

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reconhecida por lei, em 1566, como tendo oficialmente direito ao exercício do comércio.27 É evidente que existiam restrições e condenações a tais concessões, mas

indicam que nem mesmo o comércio pode ser tomado como um marcador estanque entre nobres e não nobres. Inclusive, o gerenciamento de certos ofícios ditos mecânicos, tal como o da fabricação de vidro, poderia, em alguns casos, ser exercido por nobres, sem prejuízo para o seu prestígio social.28

Em acréscimo, ocorreu, em certas condições, a nobilitação em massa. Tal como no caso dos conselheiros das municipalidades normandas em 1470, a despeito de, nesse caso, permanecer um enraizado preconceito quanto ao exercício do comércio como marcador de uma situação não nobre.29

Um outro marcador importante era o privilégio fiscal, mas esse também apresentava certa fluidez. Por convenção, considerava-se que um nobre não poderia cultivar, ele mesmo, um número superior a quatro charruas de terra, a despeito dessa prescrição permanecer vaga.30 Sobretudo no caso de pequenos cavaleiros e

escudeiros de província, essa norma era com relativa frequência quebrada.31

Nobres, com mais frequência, eram vistos administrando os bens de suas florestas, levando à frente empresas de fabricação de vidro, metalurgia, mineração. Todas essas atividades eram consideradas compatíveis com as condições de um nobre, na medida que estavam ligadas à sua senhoria.32 No condado de Comminges, por

exemplo, muitas das indústrias de material de construção pertenciam a nobres. Logo, o absoluto desdém pelos ofícios mecânicos é uma grosseira simplificação da autoimagem da nobreza na segunda metade do XV e na primeira do século XVI.33

Outros privilégios também são importantes para ajudar a configurar o marcador social de ser nobre, tal como dispor de armorial próprio, a posse de francos-feudos sem pagamento de taxa, conforme pago pelos camponeses possuidores de feudos, e o fato de viver nobremente. Essa última assertiva merece

27 Ibidem. 28 Ibidem. 29 Ibidem. 30 Ibidem.

31 HAMON, Phillipe. Les Renaissances. 1453-1559. Histoire de France. Paris: Belin, 2009. p. 151-158. 32 POTTER. Op. Cit., p. 168

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alguns comentários.

Viver nobremente envolvia a guerra, a caça, bem como honestos passatempos relacionados à prática de certos jogos ditos nobres, dentre eles o jogo de palmas ou mesmo o de cartas.34 Isso sem mencionar o nobilitamento por parte

da coroa, questão que se tornou ainda mais complexa no século XVI, na medida em que aumentava a aquisição de feudos nobres por não nobres. O que, de certa forma, levou, a partir da segunda metade do século XVI, a uma melhor precisão da distinção entre os de nobre race e os nobilitados.35

E, por fim, vale ressaltar, como afirma Constant36 - cuja posição

concordamos- é um equívoco afirmar que existia propriamente uma nobreza francesa, na medida em que a distância entre duques e presidentes dos parlamentos ou príncipes e escudeiros era, de fato, enorme. O que tinham, ao fim e a ao cabo, em comum era a aspiração algo subjetiva de viver nobremente.37

Em tese, se existia certa preocupação partilhada pela sociedade e pela realeza em preservar os privilégios da nobreza, isto seria ainda mais forte em um nobre de sangue de alta linhagem, como Jacques de Nemours. Todavia, do ponto de vista do poder real, consolidar a sua majestade e reformular as relações hierárquicas com relação à nobreza eram questões ainda mais importantes. Logo, Luís XI utilizou-se das leis relativas à traição e lesa-majestade como um terrível meio de pressão. Os grandes senhores sabiam que as acusações poderiam, após devido processo, os condenar, que as provas eram relativamente fáceis de serem encontradas/forjadas ou extraídas mediante inquérito ou mesmo tortura. Dessa forma, corriam o risco de perder a vida e os bens, ocasionando a ruína de sua casa senhorial ou mesmo de sua linhagem.38 A desonra e/ou a ruína completa eram alguns dos maiores temores 34 Ibidem.

35 Na nobreza de race do século XVI, a principal distinção era entre cavaleiros e escudeiros. Entre

1450 e 1550, assistese ao desenvolvimento de títulos de nobreza. No Auvergne, por exemplo, o número de nobres que não clamavam serem senhores eram 166, por volta de 1488. Em 1551, existiam apenas 11 não senhores entre 140 que requisitavam ser nobres de antiga race. Em meados do XVI, tecnicamente um conde deveria ter ao menos duas baronias e três castelanías com poderes de justiça. Logo, tornou-se frequente a criação de novos condados e ducados por parte da coroa, justificados com base na proximidade da linhagem real. Ibidem, p. 170.

36Cf. CONSTANT, J-M. Nobles et paysans beaucerons aux XVe et XVIe siècles. Thesis, Lille, 1981. 37 POTTER. Op. Cit., p. 176.

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nobiliárquicos, mesmo no caso das linhagens mais poderosas.

A seguir, discutiremos alguns sentidos da noção de graça real no contexto medieval. Posteriormente, analisaremos, na carta de entrega de Carlat, as relações complexas entre e honra nobiliárquica e a expectativa da graça real.

III. A graça e a punição: o modus operandi da justiça política e criminal real.

Qual seria o campo semântico da palavra graça no terceiro quartel do século XV? Torna-se, portanto, inicialmente necessária uma breve exploração dos significados, ao longo do tempo, ostentados por esse termo. Derivada da expressão latina gratia,39 grace teria surgida na língua vernácula na segunda metade do século

X40 e correspondia, principalmente, às ideias de perdão, indulgência, gratidão,

agradecer a Deus as graças ou favor concedido a alguém.41 Mas se o termo não

39 Um dos sentidos implícitos da palavra gratia, que de certa forma resvala também para a palavra

vernáculo grace, é o de privilégio. Mediae Latinitatis lexicon minus. Boston: Brill, 2002. p. 274.

40 Étymol. et Hist. 1. a) 2emoitié xes. gratia «bienveillance, faveur» (St Léger, éd. J. Linskill,

46); b) ca 1050 «faveur de Dieu» par la Deu grace (Alexis, éd. Chr. Storey, 362); 2. 1135 «remerciement» rendre graces (Wace, Vie Ste Marguerite, éd. E.A. Francis, 355); 3. a) mil. xiies.

«agrément, charme d'une chose» (Jeu Adam, éd. W. Noomen, 249); fin xiies. «id. d'une personne»

(Richeut, éd. I.C. Lecompte, 760); b) 1611 avoir bonne grace de (Cotgr.); 4.1174-76 «pardon, remise bénévole d'une peine encourue» la grace... encontrer (G. de Pont-Ste-Maxence, St Thomas, éd. E. Walberg, 1267); 1642 interj. grâce! (Corneille, Polyeucte, V, 1); 5. 1564 loc. prép. grâce à (Indice et recueil universel de tous les mots principaux des livres de la Bible, Paris, p. 158). Empr. au lat. class.gratia «faveur, complaisance; reconnaissance; bonnes grâces; agrément, charme» .DMF Capturado In <http://www.cnrtl.fr/definition/dmf/GR%C3%82CE>, dia 16 de junho de 2016.

41 No dicionário DMF graça aparece como: GRACE, subst. fém. FEW IV gratia

[T-L : grace ; GDC : grace ; DEAF, G1109 : grâce ; AND : grace1gracedeu ; DÉCT : grace ; FEW IV, 245b : gratia ; TLF IX, 383b : grâce]

I. - "Bienveillance qui se manifeste par des faveurs, par le pardon accordé ; reconnaissance pour ces faveurs"

A. - "Ce qui est accordé par la bienveillance de qqn" 1. "Faveur accordée à qqn ; réputation faite à qqn" 2. "Bonté de Dieu, faveur, assistance accordée par Dieu" 3. - "Cause à laquelle est attribuée une situation favorable"

4. [À propos d'une chose] Estre de sa grace. "Ne pas dépendre de qqc., être autonme" B. - "Pardon, indulgence"

1. "Pardon de pers. à pers."

2. "Remise accordée par l'Église de la peine temporelle due aux péchés" 3. DR.

C. - "Action de reconnaître un bienfait reçu, remerciements" 1. Vertu de grace. "Gratitude"

2. "Prière dite après le repas afin de remercier Dieu, les grâces "

3. Donner/rendre graces (à Dieu, à qqn) (de qqc.). "Remercier (Dieu, qqn) pour qqc." D. - [Calque de lat. causa (à l'ablatif) "pour l'amour de, à cause de, en vue de"] II. - "Agrément"

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apresenta grande diversidade do ponto de vista etimológico, em relação à sua genealogia, deve necessariamente ser revisitada o que dele fala certa historiografia da história do direito. Aqui não estamos buscando a origem, mas os elementos que contribuíram para a proveniência de certo discurso, que funciona como organizador da percepção da realidade, pois de algum modo o discurso é forte componente da própria realidade.42

Existe uma relação genealógica entre as noções de absolvição e de graça. Ambas entram na constituição do campo do discurso jurídico sobre a graça real, compartilhado, inclusive, por aqueles que eram objeto de coerção por meio do processo. No âmbito da configuração da positividade do discurso jurídico, a graça é um termo de natureza essencialmente estratégica. É preciso buscar a explicação dos fatores que interferem na emergência desse discurso da graça real, sua permanência e adequação ao campo jurídico.43 A noção de graça real era estruturadora da

expectativa de perdão por parte de Nemours, atuando como um elemento que organizava, também implicitamente, parte das estratégias dos envolvidos, tais como os comissionados, que buscavam a condenação do prisioneiro e, ao mesmo tempo, advertiam sobre a importância da confissão do que ocorreu de fato, como base da verdade. A confissão do crime, neste caso, avizinhava-se da noção de confissão do pecado e era condição sine qua non para eventual concessão da graça real, ao menos do ponto de vista desse último poder.

A verdade construída pelo processo era fruto tanto de uma interação especifica dos envolvidos, quanto do aproveitamento de uma cultura jurídico-religiosa enquanto norma, que por sua vez é tributária de valores que transcendem a situação especifica aqui narrada.

Segundo Blanchard, o termo graça estaria também associado à ideia de indignação. Ao desconhecer os limites de suas atitudes diante da afirmação da soberania régia, um nobre poderia então cair em má-graça, na medida em que a

Capturado In <http://www.cnrtl.fr/definition/dmf/GR%C3%82CE>, dia 16 de junho de 2016.

42 Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, Pronunciada em

2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

43 FAÉ, Rogério. A genealogia em Foucault. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 3, p. 409-416,

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noção de súdito exigia uma total submissão ao poder real. Aqui, a indignação régia deve, segundo o referido autor, ser ligada à tradição bíblica, mais especificamente à cólera e à fúria divina. Entre os pais da Igreja, o termo assumia o sentido mais preciso de cólera interior, ou ainda de desprezo e nos registros médicos o sentido de “irritação”.44

Na perspectiva de Blanchard, o termo indignação era corrente na chancelaria real, recolhido do direito romano, e significava um sentimento vago, associado à cólera e à impaciência. A sua utilização inexata permitia que se evitasse uma definição muito clara do que se desejava dizer,45 o que aumentava, por conseguinte,

o seu raio de aplicação a situações específicas. A indignação seria alegada, assim, de forma quase que automática em certas situações, tais como a demora do parlamento em interinar cartas régias; com relação a questões militares; por ocasião do atraso no cumprimento do ban;46 e em outras questões que envolviam demora e

contrariedade do poder real quanto ao cumprimento de ordens especificas.

A indignação, mais do que uma ameaça, era um estado de espírito e, para Blanchard, existe diferença entre indignação propriamente dita e má graça. A indignação emanaria propriamente do rei e resultaria da reação a certos comportamentos considerados pelo mesmo como inadmissíveis. A indignação régia geraria o sentimento de má-graça, um amargo desprazer entre aqueles que seriam mal amados pelo rei.47 Segundo o referido autor, a indignação régia, no limite,

derivava da desobediência, da transgressão da norma e estaria ligada a aspectos mais formais, mais institucionais. Já a má-graça se referiria a um certo sentimento nos que sofriam as consequências da indignação real.48

A reaproximação entre rei e vassalos seria então possível com a entrega de uma “seureté”, de uma carta de segurança, uma garantia formal de que o nobre em questão não sofreria, de forma instantânea, as consequências da fúria real e, dessa

44 BLANCHARD, Joel. Louis XI. Paris: Perrin, 2015. p. 73-75. 45 Ibidem.

46 Ibidem. 47 Ibidem. 48 Ibidem.

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forma, poderia jurar pessoalmente inocência diante do rei.49

A expectativa de permanecer na boa graça do rei era, por vezes, uma questão de sobrevivência física e social, tal como no caso dos que eram submetidos ao processo de lesa-majestade. Nos costumes da corte, os pares de França, tal como Nemours, tinham direito ao julgamento por seus pares, algo que o próprio duque abriu mão em juramento de reconciliação com o rei em 1469, caso fosse novamente acusado de traição. Todavia, ser julgado como par de França é algo várias vezes solicitado pelo processado. Essa queixa aparece no preâmbulo dos interrogatórios e nos juramentos que precederam os testemunhos do duque no processo.50 Além de

provar sua inocência, a esperança do acusado em um processo de lesa-majestade era fugir do reino ou alcançar a graça real.

Segundo Gauvard, a noção de graça real é bem antiga e sofreu diversas reinterpretações no decorrer do tempo. Já na república romana, os sacerdotes das vestais dispunham da indulgência quando participavam da festa das lectisternia. Essa indulgência era parte integrante do imperium.51

E com o advento do império e o desenvolvimento do culto imperial, caberia ao imperador exercer a indulgentia, retirando a pena sem remover a infâmia. Por sua vez, com a disseminação do cristianismo, o recurso à graça se tornou uma espécie de obrigação moral, revisitada em festas solenes, particularmente na páscoa. Mas, de uma maneira geral, a perspectiva cristã exaltava sobretudo a clemência.52

49 Ibidem.

50 Podemos tomar, como exemplo, um relato do processo atribuído a 6 de novembro de 1476. Na

ocasião, diante dos protestos de Nemours, é dito pelo chanceler ser costume, antes de cada testemunho, que se procedesse ao juramento. Justamente por já ter feito juramento ao rei em 1469, em um acordo, Nemours, segundo relato do processo, afirma que não deveria proceder de novo a nenhum juramento. Reivindica a solenidade e os privilégios de par de França, já que desejavam proceder contra ele em forma de processo. No decorrer de outros interrogatórios, é comum o protesto do mesmo privilégio, o qual Nemours faz questão que ficasse registrado por escrito. “(..) aulquel monseigneur de Nemoux, mondict seigneur chancelier a remosntré et autres comme le plaisir du roy est qu’il dit la verité des choses (...) et pource qu’il est accoustumé faire serement em tel cas anat estré interrogue (...) A quoy monseigneur de Nemoux a respondu que’il pusieurfois [fais] serement au roy encor derreniement em faisant son appoinctement (...) Et pour ce qu’il veoit qu’on vouloit besoigner a luy par forme de procés, a dit et remosntré a meisseigneurs les chancellier et autres comissaires que’il estoi per de france(...)”. Processo Duque de Nemours, p. 359-360.

51 GAUVARD, Claude. De grace especial. Crime, État et Socété em france à la fin du Moyen Âge. 2e

édititon. Paris: Publications de la Sorbonne. p. 95-934.

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Logo, a perspectiva da época romana é muito importante, na medida em que a partir do século XIV, segundo Gauvard, ela foi assiduamente revisitada pelos teóricos do direito. Em larga medida, a noção de graça ligava o poder real à esfera do sagrado.53

A graça real, em finais da Idade Média, era sobretudo derivada da indulgência imperial. A Igreja no Baixo Império não conhecia o termo técnico correspondente para as penas canônicas. As reflexões dos padres da Igreja grassavam mais sobre a penitência e o perdão do que sobre a indulgência, cujo exercício era deixado ao poder político propriamente dito, durante as festas cristãs. Mas foi principalmente no âmbito do modelo episcopal que se desenvolveu, de forma mais estruturada, o poder de perdoar e punir. Toda remissão era acompanhada, em geral, da probatio interior, mas também exterior, na qual a cerimônia pública jogava um papel essencial, pois ela estava destinada a atrair a misericórdia divina por intermédio dos padres e dos irmãos de fé.54

Os poderes eclesiásticos mantinham o direito de graça, indicado em fontes hagiográficas tais como o Epitome Aegidii, o Epitome Monachi e o Epitome

Lugdunensis.55 Esses textos, elaborados entre os séculos VII e VIII, demonstram que,

nos séculos referidos, a abolição pascal teria permanecido, sendo a graça concedida aos culpados involuntários de homicídios, como também àqueles cometidos por necessidade. E, em certa medida, a graça se tornou também um meio de governo dos reis da Alta Idade Média.56

No advento dos carolíngios, a ligação entre graça e política foi bem marcada. Os termos se tornaram mais precisos e a prática se afirmou. O imperador se reserva o direito de agraciar através da “misericórdia inspirante” e a palavra “justiça”, frequentemente, aparece associada à ideia de “clemência”, como herança do direito romano. Com a relativa pulverização do poder na era feudal, o fenômeno se acentuou, pois a graça se dispersa por entre os poderes condais, episcopais e

53 Ibidem. 54 Ibidem. 55 Ibidem. 56 Ibidem.

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comunais.57

A partir do século XI, a graça se desenvolveu no contexto romano-canônico. A partir do referido século, as indulgências não cessaram de crescer e se disseminar, ao ponto que, no concilio de Latrão IV (1215), é denunciado o abuso de recursos com essa finalidade. E com Alberto, o grande (1193/1206-1280), a indulgência não era mais apenas concebida como uma elementar comutação de penas, mas sim uma remissão pura e simples das penas relativas ao pecado já perdoado. A ideia fundamental é a existência do tesouro dos méritos, da solidariedade do corpo místico que supre a fraqueza dos indivíduos.58 Outrossim, desde a primeira metade

do século XIV, o papa João XXII (1316-1324) pôde conceder ao confessor, em particular ao confessor real, a faculdade de perdoar inteiramente as penas por ocasião do perigo de morte.59

As noções de corpo místico solidário e remissão dos pecados são alguns dos elementos constitutivos mais importantes para a reflexão política sobre a graça real, entre os últimos capetíngios e os primeiros valois. Efetivamente, os limites entre a graça real e a graça divina permaneceram estrategicamente vagos, mesmo após uma releitura intensiva do direito romano dos séculos XIII a XV. É devido à relativa indefinição de limites, que se tornou possível sustentar a majestade real como mimética da majestade divina. Logo, essa indefinição de limites contribuiu para reforçar os laços invisíveis entre Cristo, cabeça do corpo da Igreja, e o rei, como cabeça do corpo místico da sociedade.

É interessante observarmos que, nos séculos XIII e XIV, a reflexão sobre a graça real ocorreu em paralelo às diversas reflexões sobre a soberania régia e sobre os crimes de lesa-majestade. Desde ao menos o início do século XIV, a díade justiça/misericórdia foi um dos componentes essenciais para a ação do poder real. A partir de meados desse mesmo século, esboçou-se, por meio do movimento reformador político do poder real, o desejo de reduzir o lugar acordado à misericórdia. O problema se colocou de forma bem concreta, em uma época em que

57 Ibidem.

58 McGRATH, Alister E. Iustitia Dei. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 55-207. 59 GAUVARD, Op. Cit., p. 95-934

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a justiça era exercida, mais frequentemente, em nome do soberano por oficiais, inclusive em áreas que não estavam sob controle direto da realeza.

Esta é também uma época na qual, paradoxalmente, proliferam as cartas de perdão, as quais, muitas vezes, simplesmente revogam decisões tomadas por oficiais em nome do rei. Logo, tornou-se evidente, em certos meios, a ideia segundo a qual conceder a graça poderia ser uma forma de romper com a equidade esperada da justiça, na medida que beneficiaria mais facilmente os possuidores de mais recursos ou aqueles bem relacionados junto ao poder real. Perspectiva que, para alguns, se tornou criticável, tendo em vista a recorrência com que a chancelaria real nos século XIII e XIV diz preferir a misericórdia ao “rigor da justiça”.60

A despeito de importantes avanços do que seria considerado pertencente ao foro do crime de lesa-majestade, ao longo do século XV, a ideia de graça real era algo bem arraigado na cultura política da época. E se, até inícios do século XV, havia uma certa tendência de manutenção do equilíbrio no díptico perdão-punição, a partir de meados do século XV, no que se refere às ofensas à majestade régia, tende-se muito mais ao rigor da justiça do que ao perdão.

Ao fim e ao cabo, a despeito de certos tipos de crimes serem, desde o século XIV, considerados como não passíveis da graça real (por exemplo, em ordenança de reforma de 3 de março de 1357, são considerados fora da graça real os crimes de desordem pública, crimes de lesa-majestade, morte com premeditação, incêndio, sacrilégios, violação/estupro);61 na prática, ela poderia se estender a todos os

crimes, ainda que fosse comumente considerado que algum tipo de castigo deveria ser imposto.62 Era comum exigir alguma reparação material, moral ou simbólica e

nos casos de traição, complô, lesa-majestade, aborto e infanticídio,63 o perdão era

bem mais raramente concedido do que em relação aos crimes mais comuns. Pois, se por um lado, o bebê representava a base à reprodução da própria vida, tornando o aborto um crime à época particularmente odioso, junto com o assassinato de

60 Ibidem.

61 BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale.

VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012. p. 196-197.

62 Ibidem, p.201. 63 Ibidem, p. ?.

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mulheres grávidas e, por consequência, a execução de mulheres grávidas pela justiça era postergada,64 os crimes de traição e lesa-majestade ameaçavam a própria ordem

da sociedade, logo eram perdoados também com pouca frequência.65

No processo de lesa-majestade, a condição para a concessão da graça, no limite, passava pelo reconhecimento da culpa. E, nesse aspecto, teria sido lembrado muitas vezes a Nemours a necessidade de que fosse dita a “verdade”. Exigia-se não apenas um relato verossímil dos fatos, mas uma narrativa que se ajustasse ao que era produzido pela formalidade do processo e, para conduzir à confissão, o uso da violência física não estava descartado. Nesse contexto, teria afirmado Nemours:

Disse em acréscimo que via bem que desejavam prosseguir contra ele por forma de processo e após pediu aos meus ditos senhores o chanceler e a outros presentes com ele que o tratassem docemente e que considerassem o seu caso levando em conta a dignidade de par (...) e disse que estava deliberado de apelar diante do rei para fazer decidir o seu caso (...) suplicou além que por não ser homem bem sábio e como ele não conhecia o processo, que ele pudesse ter alguém para o aconselhar o que fazer, afim que pudesse sempre melhor se guiar, segundo a intenção e o bom prazer do rei (...) E sobre essa questão o senhor chanceler disse ao dito Nemours que ele sabe bem que o rei não deseja fazer nenhum mal a ele, mas sim fazer guardar a justiça e a razão de forma que era adequado (...) e o dito Nemours respondeu que ele estava com a intenção de obedecer ao rei e aos meus ditos senhores rogando a eles que tivessem bem o seu caso (...) e que eles o tratassem docemente.66

O que dizer dessa cena relatada na versão final do processo? Ao alegar não ser sábio (sage), Nemours afirmava que carecia de ajuda de quem fosse especialista em direito (algo cabalmente negado em caso de processo de lesa-majestade)? Ou apenas era uma atitude retórica, para alegar sua inocência de partida, dessa forma,

64 Cf. GAUVARD, Op. Cit., 2010.

65 BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON. Op. Cit., p. 200-201.

66 “A dit em oultre qu’il veoit bien qu’on vouloit proceder contre luy par forme de procés et que puis que

ainsi estoit il a prié a mesdicts seigneurs les chancelier et autres presens avec lui qu’on le traictast doulcement et que l’on considerast son cas et diginité de parrye (...) qu’il estoit delibere d’en apeller devant le roy e de faire decider son cas (...) a supplié em oultre que, pour ce qu’il n’estoit pas homme bien saige et qu’il ne se congnoissoit em procés, que’il ait du conseil pour luy conseiller ce que’il avoit faire, affin que’il peus tousjours de mieulx soy gouverner selon l’intencion et bon plaisir du roy (...) Et sur ce mondit seigneur le chacelier a dit audict de Nemoux que’il savoit bien que le roy n’estoit pas pour luy fart tort em riens, mais lui faire garder la justice et raison telle que’il appartenoit (...) A quoy ledict de nemoux a respondu qu’il estoit prest d’y aller et de obeyr au roy et a mesdicts seigneurs en leur priant que’ilz eussent son cas (..) et qu’ilz le tractssent doulcement.” . Processo Nemours, p. 357 e 358.

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afirmando implicitamente que o rei desejava prejudicá-lo (algo sutilmente negado pela preocupação dos comissionados em afirmar abertamente que o rei não o desejava prejudicar)? Como em muitas passagens do processo, existem para nós, do século XXI, mais perguntas e lacunas do que respostas. Mas, pode-se identificar que, solicitando ser tratado doulcement, nessa floresta de palavras formais, o espectro do medo rondava o duque.

Embora, em tese, um dos privilégios da nobreza, sobretudo de sua camada mais alta, era não ser torturado em justiça, é provocativo imaginar em que medida a ameaça de assim proceder não foi sutilmente apontada nos bastidores do processo pelos comissionados e/ou seus auxiliares. O fato é que a estrutura da narrativa do processo nos oferece certas informações importantes, mas oblitera as sutilezas do que não se desejou perpetuar por escrito O termo de época doulcement poderia significar, no contexto, algo feito de forma suave, sem precipitação, com precaução, com gentileza, com delicadeza, agradavelmente67 e, no âmbito judicial, significa agir

sem tortura.

A despeito de não se ter certeza sobre a exequibilidade da tortura em alguém de tal posição, existiram, ao que tudo indica, outras formas de pressão por meio de mal-estar físico. Nemours chega a apresentar os maus tratos como argumento para alegar que não tinha memória sobre certas situações. No interrogatório datado de 8 de novembro de 1476, Nemours teria afirmado sua dificuldade de memória, pois apesar de ter pensado em respostas para perguntas anteriormente feitas, diz que de nada lembrava devido às “melancolias e pensamentos”, pois em torno de oito meses anteriores ao referido interrogatório narrado, quando esteve no castelo de Pierre

67 DOUCEMENT, adv. FEW III dulcis

[T-L : douz (doucement) ; GDC : dolcement ; AND : ducement ; DÉCT : doucement ; FEW III, 174b : dulcis ; TLF VII, 458b : doucement]

A. - [Domaine concr.]

1. "Sans faire de bruit, discrètement"

2. [Avec un verbe de mouvement] "Sans précipitation, sans brusquerie, avec précaution" 3. "Sans désagrément"

B. - Au fig. [Dans les rapports humains]

1. "Sans brusquerie, avec bienveillance, avec ménagement" 2. "Avec gentillesse, avec délicatesse"

3. "Agréablement"

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Assise, perto de Lyon, na câmara onde teria sido aprisionado, havia muito frio, causando-lhe doenças, como também àqueles que estavam consigo. Logo, Nemours alega ter mesmo ficado doente da cabeça e que o somatório disso o deixara de cabelos brancos.68 A despeito da possível estratégia de vitimização, é interessante

observar que na prisão, obviamente, além da pressão psicológica constante, ocorria também todo um desgaste físico, tornando a declaração de Nemours, se não real, ao menos verossímil para os contemporâneos.

As ameaças de tortura a Nemours possivelmente foram sutis, mas com membros de estratos sociais mais modestos os comissionados talvez não tenham sido tão sutis assim, ao menos na memória que perpetuaram por escrito. E, eventualmente, quando os enviados do rei pareciam afrouxar a pressão, o rei, por sua vez, exibia grande insatisfação com os seus comissionados.

Em uma carta datada de primeiro de outubro de 1476, o rei determinou que Nemours não deveria frequentar missa, nem manter contato com mulheres, assim como não deveria ter liberdade de andar fora da gaiola (literalmente), que em tese garantia que o prisioneiro não fugiria. É determinado ainda que os guardas de Nemours não deveriam ser mal pagos ou não pagos, para evitar que algum suborno facilitasse a fuga.69 Em que medida os comissionados teriam se arriscado a sofrer a

cólera régia, aliviando a pressão sobre o duque? É difícil dimensionar isso. Mas o que se pode afirmar é que o rei atuava para que o duque fosse constantemente pressionado ou mesmo torturado (gehener).Em Luís XI, o medo era uma técnica de

68 “Aprés lequel interrogatoire fait, mondict seigneur de Nemoux dit que, s’il plaisoit a mesdicts

seigneurs qu’il diroit ung mot ou deux avant que entres em ces matieres. Et ce fait, a dit que l’on peut pencer qu’il a eu plusieurs merencolies et pencements; aussi a este huit moys ou environ arreste et quanti l fut ou chastel de Pierre Assise pres de Lyon, pour ce que la chambre ou il fut mis, qui estoit baisse, estoit bien froide et pluvoit et ventoit, il u print de la frodure dont luy et ceulx qui estoient avec luy em furent mallades et mesment de la tete, dont encores il s’en sent et luy em sont devenuz les cheveux tous blanc (...) A cause de quoy il ne peut pas bien avoir si clere souvenance des choses advenues comme il eust par avant (...).” Processo Nemours, p. 366.

69 O rei é cabal quanto a manifestar sua insatisfação em uma carta datada de primeiro de outubro de

1476. Ao dizer: “Monseigneur de Saint Pierre, je ne suis pas contente de ce que ne me avez averti qu’on lui a osté les fers des jambés et que l’on le fait aler en une autre chambre pour besongner avec lui, et que l’on l’oste fors de la cage, et aussi que l’on le meyne ouyr la messe lá òu les femmes vont, et que on lui a laissé les gardes qui se palignoient de payment (...) et que l’on ne le mecte jamais dehors, si ce n’est pour le gehener en sa chambre.” VAESEN, Joseph (Ed.). Lettres de Louis XI, roi de France. V. VI. Paris: Publiées d'après les originaux pour la Société de l'histoire de France, 1898. p. 90.

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governo, uma pressão que se fazia contínua, inclusive sobre seu oficialato. Uma pressão que também foi exercida sobre os dependentes do duque, durante o processo.

Podemos tomar, como exemplo, o caso do escudeiro Jacques Balsant e as ameaças de tortura ao mesmo durante interrogatório, conforme relatado no processo. O referido escudeiro teria servido a Nemours por toda a sua vida, da mesma forma que seu pai fez com os predecessores de Nemours. Inclusive afirma em interrogatório ter servido Nemours na guerra, sendo o seu pagamento uma pensão de 60 francos, muito provavelmente anuais, e que após ficar doente de gota teria permanecido na cidade de Murat, recebendo dois cavalos e mais três auxiliares.70 Várias questões são colocadas para ele, sempre com a preocupação de

precisar o seu grau de envolvimento em conspirações, o que, por sua vez, mesmo de forma indireta, colocaria Nemours em situação delicada, devido à proximidade evidenciada entre ambos.

Podemos listar algumas das questões mencionadas no decorrer de sucessivos interrogatórios de Balsant, tais como: se Nemours ordenou que aprovisionasse a fortaleza de Carlat, como meio de resistência ao poder real; se o interrogado esteve envolvido por ordem de Nemours ou do irmão deste, o bispo de Castres, na prisão do apoiante real em Aurillac Jehan Le Broe;71 foi interrogado,

ainda, se Nemours atuou para fechar as passagens e guardá-las, de forma que ninguém pudesse portar víveres, nem outros bem para Aurillac, teria afirmado que sim;72 é indagado se teria tomado provisões dos que entravam e saíam da referida

vila, por ordem de Brezons, então governador do Carladais por Nemours, teria

70 Processo Nemours, p. 144 e 145.

71 O aprisionado Le Broe foi presidente do consulado de Aurillac - obviamente de família muito

importante em Aurillac - teria sido inclusive ameaçado de morte pelos partidários de Nemours na referida localidade, inclusive ele e seus herdeiros teriam ajudado o comissionado Le Viste em inquérito na região no ano de 1476. A sua prisão teria sido ordenada por Nemours, seus herdeiros teriam sido banidos e seus bens confiscados, após a partida do comissionado Le Viste. Sua prisão foi ordenada por Nemours e pelo Parlamento de Toulouse e teria sido conduzido até o castelo de Saint- Ethienne. Ibidem. p. 50, 51, 68, 69, 70 e 159.

72 Disse o interrogado que isso ocorreu pois os da vila, em grande número, seguiram para prender

um servidor de Nemours. E, dessa forma, ele não deixou nenhuma de suas gentes entrar no interior da vila. E que os partidários de Nemours precisavam falar ao próprio. Processo Nemours, p.160.

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afirmado que sim;73 foi interrogado se Nemours teria ordenado a cobrança de talha

à revelia do rei, respondeu que não;74 e respondeu diversas questões que, a despeito

de certas negativas, garantiam aos comissionados que o interrogado tinha uma posição de extrema proximidade com o duque.

O fato é que de forma relativamente frequente, tal como no caso da usurpação da talha real, o interrogado negava a ciência de Nemours sobre os acontecimentos. Em uma terça-feira, 28 de outubro de 1476, estavam reunidos, segundo listagem que chegou até nossos dias,75 o chanceler, o senhor de Montagu, o de São Pedro, o mestre

Bouffile de Juge, Jehan du Mas (Senhor de Lisle), Jehan Baillet, Thimbault Baille, Jehan Avin, mestre Jehan Feugerais, Jehan Le viste, Jehan Pellieu, Aubert Le viste (que outrora havia sido encarregado do inquérito em Aurillac).76 Os comissionados

teriam dito, para Balsant, que ele sabia e podia saber as vias de justiça as quais eram de costume para aqueles que negavam a verdade contra eles provada.77 Logo, na

linguagem corrente dos processos, um dos sinônimos para tortura era “proceder” com justiça, o oposto era proceder “docemente”.

De fato, frequentemente a ameaça de tortura78 era o suficiente para que

inquiridores chegassem à verdade jurídica,79 produto das formalidades do processo,

73 Reponde que sim, justificando que os de Aurillac estavam saindo em grande número para prender

um dos servidores de Nemours, algo que recaía exclusivamente sobre os homens de Nemours, segundo o interrogado “dit que pour ce que ceulx dudict lieu d’Aurillac estoient sailiz em grant nombre de gens pour prendre ung des serviteurs dudict Nemoux et aussi que’ilz ne laissoient entrer em ladicte ville aucuns de ses gens, ladicte deffense fut faicte” . Ibidem. p.160.

74 Processo Nemours, p. 163 e 164.

75 Efetivamente, nada garante que estes estivessem todos de fato presentes, ou que o recurso a certos

nomes fosse apenas para reforçar a autoridade do documento lavrado na versão final do processo. Também não podemos ter certeza, embora seja muito verossímil, que outros de importância social mais modesta podem ter assistido aos interrogatórios. Mas devido à sua posição social ser considerada irrelevante, podem ter sido omitidos na listagem. O texto final do processo é um relato altamente modelado e ordenado. Até porque, certamente, existiram outras tantas informações consideradas pelo chanceler Pierre d’Oriole como irrelevantes ou não desejáveis para a compilação final de documentos.

76 Processo Nemours, p. 172.

77 “(...) autrement il savoit et pouvoit savoir les voyes de justice accostumees a ceulx denyans verité

contre eulx prouvee”. Ibidem.

78 Podemos tomar, como breve exemplo, o caso datado de 7 de janeiro de 1477. No caso Gillebert

Tierry, pelletier, nativo de Dieppe de cerca de 36 anos, suspeito de entregar cartas ao rei da Inglaterra pelo marechal Joaquim ou por algum outro. Interrogado nega tudo. Mas logo inquiridores o ameaçam de tortura para obter a confissão. Processo Nemours, p. 343.

79 Quando nos referimos à verdade jurídica, estamos nos remetendo à verdade produzida pelo

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mas também uma verdade alcançada por forte pela pressão régia. Tanto o rei, como parte dos inquiridores julgavam de partida que algo era bastante certo: praticamente todos os servidores de Nemours, de uma forma ou de outra, estavam envolvidos na conspiração. Mas a confrontação de testemunhos era também uma estratégia eficiente, na medida em que muitas informações já tivessem sido previamente levantadas.

Na antípoda da tortura, ato tecnicamente brutal, estava a graça, mas a atitude alto- nobiliárquica não era meramente passiva diante das escolhas régias. A ação de Nemours foi também propositiva, ao reafirmar sua honra em uma carta e ao defender sua inocência e a de seus homens. Nessa carta transcrita, Nemours se referia a certos valores feudais e monárquicos como estratégia discursiva. Na visão nobiliárquica, o recurso à graça real não era o prioritário, a honra nobre deveria ser por si o garante de sobrevivência física e social. Mas em uma situação tão assimétrica quanto a de um cerco militar, seguido em breve de prisão, o recurso à graça real se impunha como tentativa desesperada de sobrevivência. Mas também resultava em uma sinalização formal de adesão incondicional aos valores monárquicos. Nesse aspecto, a análise de uma carta especifica poder ser útil para evidenciar certos pontos de vista deste texto.

IV. A carta de entrega de Carlat e o esforço de manutenção da honra por parte de Nemours.

A partir de 7 de agosto de 1476, homens do rei, tal como Doriole (chanceler), Gaucort e Blosset, começam a recolher testemunhos e provas contra o duque de Nemours. Ao perceber essa movimentação, Nemours fez repetidos apelos para se justificar junto à corte dos pares, o que não demove o rei de prosseguir com a abertura de um processo de lesa-majestade. O próprio chanceler chega a contactar o parlamento a respeito do duque, ação que foi alvo de críticas por parte do rei. O poder real deseja ter controle de todas as fases do processo por meio de seus oficiais e sem intervenção de outros poderes.80 A justiça deveria ser de exceção e oferecer

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um exemplo aos demais nobres do reino.

A ordem real era clara: o duque deveria ser colocado em uma gaiola de ferro, preso por correntes e, se necessário, deveria ser torturado, como já aludido nesse texto no item anterior; ou seja, toda a honra de par de França do duque era para ser cabalmente ignorada. O fato é que em 13 de janeiro de 1477 o caso, conduzido pela comissão de homens do rei, já estava praticamente encerrado. Em sua fase final, o processo foi levado ao Parlamento de Paris e, sob pressão real, a instituição acabou por interinar a condenação. Em 4 de agosto de 1477 o duque foi decapitado em Paris. Diante das indicações de que seria preso em inícios de 1476, o duque havia buscado refúgio em sua fortaleza de Carlat, local para o qual o Senescal do Auvergne se dirigiu para executar a prisão. Contudo, apenas após envio de tropas, o impasse de meses foi rompido por Pierre Beajeau (Bourbon), genro do rei, que negociou os termos de rendição. O acordo de rendição foi compilado no interior do processo e procederemos aqui a análise dessa versão da carta.81

Mesmo ao ser politicamente derrotado pela entrega de Carlat, que possuía uma das principais fortalezas do duque de Nemours, existiu, no plano das narrativas, um esforço, por parte do duque e seus homens, de manterem sua honra diante de capitulação. A análise mais pormenorizada das cartas trocadas por ocasião da rendição da referida praça forte nos permitirá discutir quais valores estavam em conflito e, em parte, quais as perspectivas e percepções em jogo. Carlat, sede do viscondado do mesmo nome, terra senhorial de Nemours, tornou-se, nos anos que precederam a prisão do duque, uma espécie de quartel da conspiração na parte central do reino. Dependente em termos de justiça do bailio do Alto-Auvergne, era um ponto focal dos afrontamentos entre as jurisdições régia e de Nemours.

Em 15 de janeiro de 1477, os comissionados decidem que as cartas do acordo entre Pierre Bourbon de Beajeau - genro e homem de confiança do rei - e Nemours, com respeito à entrega do castelo de Carlat, seriam lidas diante do processado, que seria indagado de detalhes do conteúdo de cada uma das cartas.82 A carta lida por

ocasião do processo foi reportada como ostentando selo com cera vermelha, com as

81 Processo Nemours, p. 498 82 Ibidem. p. 498.

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armas de Beajeau e Nemours, assinada por ambos e escrita em pergaminho. Vale ressaltar que esse suporte era bem durável, em uma época na qual o papel era corrente para diversos documentos oficiais, o que nos indica a intenção de perpetuidade do escrito por parte dos envolvidos.83 Na carta, existe o esforço de

Nemours em construir uma memória de fidelidade e serviço, que o mesmo teria demonstrado para com a realeza, o que, de certa forma, colocaria em xeque a própria entrega do castelo, pois se efetivamente não teria ocorrido por parte de Nemours um ato de traição, a atitude régia seria passível de ser taxada de tirania. Logo, no limite, poderia ser alegado, implicitamente pelo duque, como legítima a resistência armada por parte de um vassalo injustiçado, segundo a perspectiva poliárquica. Na carta apresentada em juízo Nemours argumenta que:

(...) desde sua tenra idade ele foi nutrido [criado] na casa do rei Carlos, que Deus o absolva, no serviço do qual e em suas conquistas, tal como a da Normandia ele empreendeu de todo seu coração sem nada poupar, e até o advento do rei que é presente, ao serviço do qual de forma semelhante ele fez o melhor que foi possível, tanto em Castillon, bem como em outros lugares, e que seu prazer [do rei] era a ele [Nemours] comandar e ordenar, sem fazer nenhuma falta até a maldita e danosa empresa e conspiração chamada de bem público. Mas na falta sua o rei usou com relação ao senhor de Nemours e aos outros mais a graça e misericórdia que o rigor da

justiça (...) de bom coração e após o perdoou, a despeito dele não

deter mais a boa graça que tinha antes (....) por esta causa, para ter e recuperar [a graça], enviou ao rei sucessivas embaixadas para lhe mostrar a boa vontade que ele tinha de lhe servir como nas diversas vezes ele viu e conheceu (...).84

83 Ibidem. p. 500.

84 “(...) des son jenne aage, il a este nourry em la Maison du roy Charles, que Dieu absolle, au servisse

duquel et mesme a ses conquestes de Noemendie et Guienne il c’est employé de tout son cuer sans riens espargner, et jusques L’advenement du roy qui est a presente, au servisse duquel pareillement il a fait du mieulx que possible luy a este, tant em Casteloingne que ailleurs ou son palisir a este de lui commander et ordonner, sans avoir fait aucune faulte jusques a celee mauldite et dampnable entrepreise et conspiracion apellé Bien publique; laquelle faulte le roy voulant vers mondict seigneur de Nemoux et les autres user de grace et misericordie que de rigueur de justice (...) de bon cuer [o rei] de puys le luys [o perdoou] et obstant ce qu’il n’ait en as bonne grace, ainsi que’il estoit paravant (...) a cesté cause, pour icelle avoir e recovrir, a envoyé par diverses fois devers ledict seigneur plusieurs ambassades pour lui remonstrer le bon vooloir que’il avoit de le servir toutes et quantes foiz que’il a veu e cogneu (...”). Processo Nemours, p. 501. Expressões sublinhadas são nossas, bem como termos explicativos entre colchetes.

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