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A DEFINIÇÃO DE ZENÃO DA PHANTASIA KATALEPTIKE 1

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A DEFINIÇÃO DE ZENÃO DA PHANTASIA KATALEPTIKE

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DAVID SEDLEY Phd in Philosophy Christ's College/ Cambridge Tradução: Rodrigo Pinto de Brito e Valter Duarte

ABSTRACT: Zeno of Citium, the founder of Stoicism, introduced as a criterion of truth the cognitive impression (phantasia kataleptike), defined as 'from what is.' This 'from' came to be interpreted by later Stoics as causal, but it is argued here that Zeno himself intended it rather in a 'representational' sense.

KEYWORDS: Phantasia kataleptike. Zeno of Citium. Antiochus.

RESUMO: Zenão de Cítio, o fundador do Estoicismo, introduziu como critério de verdade a impressão cognitiva (phantasia kataleptike), definida como “a partir do que é”. Esse “a partir” veio a ser interpretado por estoicos posteriores como causal, mas argumenta-se aqui que o próprio Zenão concebeu-o antes em um sentido “representacional”.

PALAVRAS-CHAVE: Phantasia kataleptike. Zenão de Cítio. Antíoco.

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PROMETEUS - Ano 7 - Número 15 – Janeiro-Junho/2014 - E-ISSN: 2176-5960

148 epistemologia de Zenão foi provavelmente sua inovação filosófica mais radical. Seu crítico, Antíoco, que interpretou a maior parte da filosofia de Zenão como derivada do trabalho da primeira Academia, concedeu que sua teoria da katalepsis representou um rompimento claro com a postura antiempirista dos plantonistas (Cic., Ac.I, 40-2). Foi muito plausivelmente argumentado por outros2 que, mesmo nesse caso, a meditação de Zenão sobre um texto de Platão, o

Teeteto, desempenhou de fato um papel significante no desenvolvimento de sua teoria.

Mas ele bem deve ter valorizado o Teeteto menos como uma afirmação dos pontos de vista de Platão do que como um guia para a epistemologia de Sócrates, para a qual, nesse caso, ele defendia um retorno.

É amplamente atestado que a comumente citada definição tripartida de fantasia

kataleptike pertence a Zenão. Uma impressão infalível ou ‘cognitiva’ é aquela que:

(a) ἀπὸ ὑπάρχοντος – “daquilo que é”;

(b) κατ' αὐτὸτὸ ὑπάρχονἐναπομεμαγμένη καὶ ἐναπεσφραγισμένη – “moldada e estampada de acordo com aquela própria coisa que é”;

(c) ὁποία οὐκἂνγένοιτο ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος – “de um tipo que não poderia surgir do que não é”.

Espero que não seja mais que uma simplificação dizer que o seguinte tipo de interpretação atualmente predomina. A teoria de Zenão não é apenas empirista, mas de fato identifica seu critério fundamental de verdade, a impressão cognitiva, com um tipo de percepção sensorial. Além disso, a teoria da percepção sensorial em questão é causal. Nossas impressões sensoriais diretas, ou antes, um subconjunto privilegiado delas, obtêm sua apreensão infalível do mundo porque são diretamente causadas por ( ἀπὸ – ‘a partir de’) coisas externas das quais são impressões.

Há, é verdade, evidências antigas muito boas de que, no tempo de Crisipo, a epistemologia de Zenão estava sendo interpretada e promovida através dessas linhas. Em particular, Aécio3 atribui a Crisipo uma descrição da phantasia como uma experiência perceptiva que revela tanto a si mesma quanto ‘aquilo que a causou’ (πεποιηκός ou κινοῦν). E essa relação causal entre o objeto e a impressão é associada à

2Ioppolo (1990); Long (2002). 3Aécio IV 12.1-5.

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149 mesma preposição, ἀπὸ, como características na definição de Zenão. Assim, um φανταστόν ou ‘impressor’ é o objeto externo que causa a impressão, enquanto que um φανταστικόν ou ‘imaginação’ é uma atração vazia (διάκενοςἑλκυσμός) que surge na alma ‘através de nenhum impressor’ (ἀπ' οὐδενὸς φανταστοῦ γινόμενον). Apesar de não estar explícito, a maioria dos leitores razoavelmente assume que ἀπὸ está funcionando como uma preposição causal.

Contudo, razoável como pode parecer essa interpretação, passou-se muito tempo despercebido que ela nos confronta com um enorme problema exegético ao interpretarmos a definição de Zenão da fantasia kataleptike. Assumamos que o ὑπάρχον mencionado nessa definição seja de fato o objeto externo, ou estado de coisas. Desse modo, pela primeira cláusula, a impressão cognitiva deve ser causada por algo externo e, pela segunda, ela deve, como nós pudemos colocar, retratar graficamente essa coisa externa. Até aí tudo bem, mas por que Zenão continuou a estipular, declaradamente sob pressão de seu crítico Acadêmico, Arcesilao (Cic. Ac. II 77-8), sua terceira cláusula, de que deve haver também4 uma impressão ‘de um tipo que não pode surgir do que não é’? Isso, de acordo com a mesma linha de interpretação, teria de significar ‘de um tipo que não poderia ser causado por um objeto (ou estado de coisas) não-existente’.

Mas isso não poderia ser o que Zenão queria dizer, por duas razões. Primeira, o estoicismo sustenta que apenas os corpos existem e que apenas os corpos podem ser causas. Segue-se trivialmente que nada, seja o que for, pode ser causado por algo não-existente. Consequentemente, longe da impressão cognitiva ser discernida pela sua inabilidade de ser assim causada, nada pode ser causado por algo não-existente. À primeira vista, a terceira cláusula de Zenão não acrescenta coisa alguma que já não fosse óbvio. Alguém pode responder insistindo que a cláusula significa que a impressão não pode falhar em ter uma causa externamente existente. Mas então, nós podemos esperar que Zenão tivesse escrito ὁποία οὐκ ἂν γένοιτο μὴ ἀπὸ ὑπάρχοντος,‘de um tipo que não pode surgir sem vir de algo que existe externamente’. Ter posto a mesma ideia com sua formulação atual, ‘de um tipo que não pode surgir ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος’ seria decididamente estranho. Poderia algum grego ter entendido ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος como

4Por ‘também’ eu não quero dizer mais além de que isso, como as outras duas cláusulas, é verdadeiro

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150 significando ‘daquilo que não é algo externo’? Assumamos momentaneamente que eles pudessem. A solução ainda deixaria intocada a outra principal dificuldade, que se segue.

A primeira cláusula, na leitura que venho criticando, deveria ser esperada como meramente estabelecendo a correta relação causal entre o objeto externo e a impressão, e deveria ser deixado para a segunda cláusula estabelecer a veracidade completa da impressão (bem como sua clareza). Em princípio, eu poderia ter uma impressão que é causada por algo externo, mas que é falsa (naquilo que ela representa mal uma ou mais características da coisa) e a fortiori não cataléptica. Os estoicos estavam plenamente familiarizados com tais exemplos. Orestes, em sua loucura, viu Electra, ou seja, teve uma impressão causada por ela, mas achou que ela era uma Fúria, ou seja, teve uma impressão que não a retratava precisamente como ela era (SE M VII 170, 249). Do mesmo modo, todas as ilusões óticas familiarmente citadas, tais como o remo sem curvatura, que é visto na água como dobrado, satisfazem a primeira condição, mas não a segunda. Eles são ‘daquilo que é’, em sentido causal, mas falham em ser ‘moldados e estampados de acordo com a exata coisa que é’. Muitas de nossas fontes para a epistemologia estoica analisam tais casos exatamente desse modo. Em nosso mais completo relato, preservado por Sexto Empírico em M VII 248-52, a segunda condição da definição é posta a serviço de tal interpretação5, mesmo na medida da separação em duas metades: a impressão deve ser a) de acordo com o seu objeto, e b) em acréscimo, deve ser moldada e estampada. Aqui, a primeira metade da segunda condição, de modo não ambíguo, é destacada como capturando a veracidade da impressão. Mas o problema é o seguinte. Se é correto posicionar a veracidade da impressão na segunda cláusula da definição, por que Zenão adiciona em sua terceira cláusula que a impressão em questão não é de um tipo que ‘não poderia surgir do que não é’? Isso significa que a impressão cognitiva é de um tipo tal que não apenas satisfaz a primeira e a segunda cláusulas simultaneamente, mas, ademais, não poderia falhar em satisfazer a primeira cláusula. Mas como isso ajudaria? Mesmo uma impressão que é tal que não pudesse falhar em ser causada por algo externo — ou seja, que não pudesse falhar em satisfazer a primeira condição — pode ser uma que ou represente mal, ou pelo menos poderia representar mal aquele objeto externo ou estado de coisas, ou seja, falhar em satisfazer a segunda condição. Por exemplo, nessa interpretação, a terceira condição de Zenão estaria perfeitamente bem satisfeita por uma impressão desperta, cuja qualidade, diferente

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151 daquela de um sonho, garante que eu definitivamente estou vendo algum objeto externo, mas onde eu identifico mal aquela coisa, ou identifico-a corretamente, mas conjecturalmente. Tal impressão, sendo falível, ou mesmo falsa, dificilmente pode ser cataléptica quanto a qualquer entendimento possível do que os Estoicos quiseram dizer por esse termo.

Essa dificuldade é problemática o suficiente para qualquer interpretação da teoria, mas para Crisipo está além dos limites. Ele distingue, de acordo com Aécio (loc. cit., n.2), uma phantasia de um phantastikon, ou “imaginação”, definindo a phantasia como tendo uma causa externa, enquanto o phantastikon não tem nenhuma. Consequentemente, a partir desse ponto de vista, a terceira cláusula de Zenão, ao invés de fornecer o indicador de legitimidade de uma phantasia cognitiva, não pode fazer mais que garantir que a phantasia realmente é uma phantasia.

Crisipo não era estúpido e, dada sua leitura explicitamente causal da teoria, deve ter tido algum modo crível de explicar a terceira condição de Zenão. (Eu digo ‘explicar’ porque foi prática de Crisipo não contradizer Zenão, mas lidar com qualquer dificuldade na filosofia de Zenão interpretando suas ipsissima verba; isso incluía, no presente contexto, sua reinterpretação do que Zenão deve ter querido dizer ao chamar a

phantasia de uma ‘impressão’ (τύπωσις) na alma, S.E. M VII 228-231). Pelo menos

duas tentativas posteriores de lidar com o problema da interpretação da terceira condição de Zenão sobreviveram, e uma ou ambas devem ser crisipeanas em origem.

Uma vem de um fragmento6 de um papiro recentemente publicado que nomeia o estoico Antipáter de Tarso, líder da escola uma geração posterior a Crisipo; ele contém uma classificação das phantasiai falsas que pode bem refletir o próprio trabalho de Antípater. O autor classifica algumas impressões como ἀπό τινος, ‘de alguma coisa’, outras como οὐκ ἀπό τινος, ‘não sendo de alguma coisa’, e parece significar com as últimas aquelas impressões alucinatórias associadas aos sonhos e à insanidade, sem qualquer impressor externo. Parece um bom palpite que essa expressão seja sua tentativa de dar sentido à categoria de Zenão ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος: não ‘causada por algo não-existente’, mas ‘não causada por algo (ou seja, por algo existente)’. É sugerido por Diógenes Laércio (VII, 46) que a interpretação carregava algum peso na escola, onde ela parece repousar por traz de uma pequena, mas significativa, nova redação da

6PBerol. Inv. 16545, publicado por M. Szymanski, Journal of Juristic Papyrology 20 (1990), p. 139-41.

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152 formulação canônica: uma fantasia que falha em ser cataléptica por ser alucinatória é lá descrita não como ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος, mas como μὴ ἀπὸ ὑπάρχοντος.

Tal nova redação da terminologia de Zenão iria, se aceita, lidar melhor com minha primeira dificuldade listada — a objeção de que a incapacidade de ser causada por algo não existente não é exclusiva das impressões cognitivas, mas igualmente aplicável a tudo. Isso, contudo, deixaria incólume minha segunda dificuldade, qual seja, que mesmo uma impressão de um tipo que não pudesse falhar em ter uma causa externa poderia ainda, em termos estoicos, ser não-cataléptica.

Essa dificuldade e a necessidade de enredá-la são presumivelmente o que subjaz a uma exegese alternativa da terceira cláusula de Zenão, que é preservada no

Academica, de Cícero. O falante de Cícero, Lúculo, às vezes mostra sua consciência de

que a terceira condição deve, com efeito, especificar o seguinte: uma impressão cognitiva é tal que não apenas é verdadeira, mas nem ela e nem qualquer impressão exatamente igual a ela pode ser uma impressão falsa (por exemplo: Ac. II 18,34,42, 57; compare com SE M VII 152). E isso talvez seja de modo de mostrar como a terceira cláusula poderia equivaler ao que Lúculo parafraseia como segue em Ac. II 18: ‘... se ela [uma impressão cognitiva] fosse tal como Zenão a definiu, [...] uma impressão estampada e moldada a partir do que ela veio, de um tipo que não poderia ser do que

não era’ (‘impressum effictum que exeo unde esset, quale esse non posset exeo unde

non esset’).7

Assim, a terceira cláusula de Zenão, ‘de um tipo que não poderia surgir ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος’, é lida como se significasse ‘de um tipo que não poderia ter sido advinda de qualquer coisa senão daquela coisa específica a partir da qual ela de fato

adveio’. Esse modo de ler a condição tem ganho, na esteira de Cícero, um amplo apoio

entre os intérpretes modernos do estoicismo.

Essa interpretação da impressão cognitiva pode ser sumarizada como segue. Se você tem uma impressão de que a coisa diante de você é X (onde X pode ser de um tipo ou símbolo), essa impressão é uma impressão cognitiva se, e apenas se, (i) estiver sendo causada por X, (ii) a impressão retrata precisa e graficamente X como X, e (iii) nem essa impressão nem qualquer impressão exatamente como ela foi causada por Y,Z, ou qualquer outro objeto diferente de X. Naturalmente suficiente, o conteúdo proposicional normal para tal impressão seria tipicamente da forma ‘isso é X’ uma vez que esse é o

7É importante notar que isso é em parte uma interpretação, não uma tradução direta. Cícero tinha à sua

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153 reconhecimento real de X como X, que não se pode alegadamente estar errado a respeito — ao invés de alguma proposição mais complexa acerca de X.

Isso é provável o suficiente para representar a explicação de Crisipo da definição de Zenão, e não vejo nada filosoficamente incoerente quanto a ela. Note, por exemplo, que ela é bem-sucedida em se deslocar veridicamente para a primeira cláusula, da qual ela faz parte se a terceira cláusula faz o sentido adequado. E ela aponta para o uso característico da teoria como a encontramos no debate estoico-acadêmico, no qual a identificação bem-sucedida de um ou mais indivíduos é de fato o tipo padrão de exemplo invocado — distinguindo entre ovos, cobras ou gêmeos, a falha de Admeto em reconhecer sua própria esposa Alceste e assim por diante8. Mas, ao mesmo tempo, não posso crer que ela capture o que o próprio Zenão intencionou com sua terceira condição. Se ele quis dizer ‘de um tipo que não poderia ser causada por qualquer objeto (ou estado de coisas) outro que aquele que a está causando de fato’, ele facilmente poderia ter assim dito, mas sua real escolha de palavras, ‘de um tipo que não poderia vir ‘ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος’, não é de todo um modo plausível de dizê-lo9

. Há uma alternativa melhor, creio eu, para a qual me volto agora.

Tanto quanto eu sei, passou despercebido que na epistemologia helenística existe outro sentido, não causal, para ἀπό. Quando Orestes erroneamente percebeu Electra como uma Fúria, sua impressão é descrita em nossas fontes estoicas como sendo ‘de Electra’ (SE M VII170). Mas em outras ocasiões ela é tratada como uma absoluta alucinação, não uma percepção errônea de Electra, e nesse caso ela é descrita como ‘das Fúrias’ (SE M VIII 67). Esse último uso de ἀπό é claramente não causal, já que não há Fúrias lá para fazer a causação. Ao invés disso, é o que eu gostaria de chamar de um uso

8 Veja especialmente S.E. M VII 401-410 e Cícero, Ac. II 83-90, onde os argumentos da academia

carnedeana contra o estoicismo (presumivelmente crisipeano) se volta ou sobre (a) os sonhos e alucinações, ou (b) o erro na identificação de indivíduos, sem quaisquer casos óbvios de (c) erros de descrição. Sem dúvida ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος está sendo assumido para equivaler a ‘causado por nenhum objeto externo’ em (a) e a ‘causado pelo que não é aquele objeto externo’ em (b). Ver Rist (1969), p. 136-138. Striker (1997) usa principalmente a formulação identificatória ciceroniana ‘tal que não poderia surgir do que não é aquela coisa existente’ (p. 265-270), mas também ‘tal que não poderia surgir do que assim não é’ (p. 260). As palavras que enfatizei — se tomadas para significar (a) ‘daquilo que não é como descrito’, ou simplesmente (b) ‘daquilo que não é o caso’ — claramente estenderia as impressões catalépticas para além dos casos identificatórios, mas nos traria de volta a uma ou outra de minhas dificuldades. (a) não seria expressa muito naturalmente por ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος e, quanto a (b), o que significa para qualquer impressão ser causada ‘pelo que não é o caso’?

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154 ‘representacional’ da preposição ἀπό. A impressão foi uma que representou as Fúrias. É nesse uso não causal de ἀπό para significar ‘representar’ que eu quero focar a atenção.

Aqui está um exemplo suplementar Estoico (SE M VII 244-245):

Impressões que são verdadeiras e falsas são como aquela que ocorreu a Orestes, em sua loucura, de (ἀπό) Electra. Na medida em que ela ocorreu a ele vindo de algo existente (ὡς ἀπὸ ὑπάρχοντόςτινος) fosse verdadeira, uma vez que Electra existia, mas na medida em que ocorreu a ele como de uma Fúria (ὡς ἀπὸ Ἐρινύος), era falsa, já que ela não era uma Fúria. Outro exemplo é se alguém sonhar, de Dion, que está vivo (ἀπὸ Δίωνοςζῶντος), sonha uma atração falsa e vazia [ψευδῆ καὶ διάκενονἑλκυσμόν — a expressão técnica Estoica para um engano] como de alguém diante dele.

O contraste entre os dois casos discutidos é instrutivo. O primeiro, aquele de Orestes, segue a versão da história onde ele viu Electra como uma Fúria. Daí seu uso de ἀπὸ ser causal, como podemos ver por meio da paráfrase seguinte. A impressão foi

causada por Electra. Na medida em que ela pareceu ser causada por algo existente (ὡς

ἀπὸ ὑπάρχοντόςτινος), foi uma impressão verdadeira. Mas, na medida em que ela pareceu ser causada por uma Fúria (ὡς ἀπὸ Ἐρινύος), ela foi falsa. Nessa série de locuções, ἀπό funciona como um termo causal, e o conteúdo representacional da impressão é fornecido, ao invés disso, pela conjunção ὡς.

Contraste agora o segundo caso. Dion — que, devemos supor, eu acreditei estar morto — está de fato vivo. Eu sonho, contudo, não meramente que ele está vivo, mas também que ele está em pé diante de mim. A minha impressão, no sonho, é verdadeira ou falsa? É ambas as coisas, de acordo com a classificação estoica, já que ela implica simultaneamente a proposição verdadeira de que Dion está vivo e a proposição falsa de que ele está em pé diante de mim. A impressão de que Dion está vivo é expressa como ‘de Dion que está vivo’. Nesse momento o ‘de’ possivelmente não é capaz de ser causal, já que a teoria estoica do sonho difere da epicurista precisamente em classificar os sonhos entre os enganos vazios, que, como alucinações de um louco, são desprovidas de qualquer causação externa por seus objetos putativos10. Assim, em termos de suas origens causais, a impressão, no sonho, de Dion é diretamente comparável à versão da história de Orestes, que eu considerei rapidamente antes, onde a impressão de Orestes das Fúrias foi uma absoluta alucinação (como distinta da versão onde ele viu Electra

10Para o significado técnico de ψευδῆ καὶ διάκενονἑλκυσμόν como uma impressão alucinatória sem

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como uma Fúria). Aqui também, então, como no caso do engano de Orestes, a locução

prepositiva ‘a partir de’i em ‘a partir de Dion que está vivo’ não significa que a impressão é causada pelo Dion vivo, mas que ela representa Dion vivo, ou, ao invés disso, talvez, mais explicitamente, que ela representa o Dion vivo como vivendo.

A impressão ‘a partir de Dion que está vivo’ é ulteriormente descrita como sendo ‘como de alguém de pé ao lado’ do sonhador. A simetria aparente com a parte precedente da passagem pode enganar.

Lá, como vimos, ἀπό indicava a origem causal da impressão, e ὡς ἀπό adicionou o conteúdo representacional, algo dele verdadeiro, algo falso. No caso de Dion, contudo, ἀπό já introduz em si mesmo o conteúdo representacional verdadeiro — de outro modo, o conteúdo representacional verdadeiro falharia em ser de qualquer modo mencionado — e a locução ὡς ἀπό adiciona o conteúdo representacional falso suplementar.

Essa discrepância é grosseira e deve provavelmente permanecer assim em qualquer interpretação da passagem. Mas eu acho que podemos ver como ela surgiu. Se a impressão, no sonho, tivesse sido descrita meramente como ἀπὸ Δίωνος, isso teria permitido a possibilidade de que esse conteúdo representacional fosse falso — Dion deve ter sido uma figura puramente imaginária, como as Fúrias da alucinação de Orestes. Mas a expressão escolhida, ἀπὸ Δίωνος ζῶντος, serve de algum modo para informar-nos de que o conteúdo representacional da impressão é verdadeiro, assim, deixando a locução suplementar ὡς ἀπό para adicionar meramente o falso ‘como se’ conteúdo da impressão. E se perguntarmos como as palavras ἀπὸ Δίωνος ζῶντος transmitem a verdade da impressão, a resposta certamente deveria ser que elas foram formuladas como uma aplicação específica do conceito genérico de ἀπὸ ὑπάρχοντός. Isto é, uma impressão ἀπὸ Δίωνος ζῶντος é um membro específico da classe das impressões que são ἀπὸ ὑπάρχοντός.

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156 como segue. Se eu percebo X como Y, minha impressão será normalmente descrita como ‘a partir de X’, num sentido fundamentalmente causal. Se, por outro lado, eu tenho uma impressão de Y, onde nenhuma atenção está sendo prestada à causa direta da impressão, mas meramente à sua fenomenologia, então é perfeitamente aceitável chamar isso de uma impressão ‘de Y’. Assim, se eu ouço um sino tocando, seria normal chamar minha impressão ‘a partir de’ um sino. Mas se eu simplesmente ouço um som de campainha, minha impressão auditiva é propriamente descrita como ‘de’ algo soando, independentemente de se a causa real é um sino, uma condição médica, ou um estado de sonho.

Aqui está um exemplo adicional do ἀπό, dessa vez não estoico. Os cirenaicos, como reportado por Sexto, defendem a reserva de nossas sensações, fazendo a distinção entre o nosso ter nomes comuns para sensíveis e o nosso ter pathe comuns. A partir do fato de que você e eu utilizamos o nome ‘branco’, disso não se segue que minha experiência sensorial , que me incita a usar a palavra, é a mesma que te incita a usar a palavra. Assim, nós lemos (M VII 196-197):

Pois todos em comum chamam algo ‘branco’ e ‘doce’, mas eles não têm algo branco ou doce em comum. Pois cada pessoa tem sua própria experiência, mas se essa experiência surge nele e em seu vizinho a partir de (aquilo que é) branco (ἀπὸ λευκοῦ), nem ele mesmo pode dizer, já que não registra a experiência de seu vizinho, nem pode o vizinho dizer, já que ele não registra a experiência daquela pessoa. E já que nenhuma experiência ocorre em nós em comum, é precipitado dizer que assim aparece para mim, assim aparece também para o meu vizinho. Pois talvez eu seja assim constituído para ser branqueado pelo objeto que me afeta de fora, enquanto alguma outra pessoa tem seu equipamento sensorial estruturado para estar em uma condição diferente.

Se fôssemos insistir na interpretação causal de ἀπό, as palavras que enfatizei iriam significar que não posso dizer se o objeto externo que causa a experiência para a qual eu aplico a palavra ‘branco’ e também causa a experiência para a qual meu vizinho aplica a palavra ‘branco’ seja ela mesma branca. Mas essa questão está completamente aquém do ponto nesse paragrafo, tendo já sido completamente tratada anteriormente (ib. 191-5), com um vocabulário diferente para relação causal da experiência dos objetos externos (ὑπό mais genitivo, τὸ ἐμποιητικόν / ποιητικὸντοῦ πάθους, mas não ἀπό).11 No presente contexto, o ponto é que, apesar do fato de você e eu concordarmos verbalmente que (por exemplo) a neve é branca, nó não temos critérios para estabelecer que, quando

11 Na sequencia (198), por outro lado, o ἀπό causal põe em uma aparência. Mais uma vez isso ilustra a

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157 olharmos para a neve, estamos ambos experimentando a mesma coisa, brancura — ou, no modo cirenaico característico de falar que emerge na última sentença, de que ambos estamos sendo ‘branqueados’ por ela. É a inverificável situação de estarmos ambos experimentando-a como branca que é transmitida pela locução ἀπό. Uma experiência compartilhada ‘a partir do que é branco’ significa uma experiência compartilhada que

representa a coisa como branca12.

Esses usos não causais de ἀπό para significar, grosso modo, ‘representar’, bem devem ecoar um uso que foi corrente no início do século III a.C., um tempo em que Zenão estava forjando a teoria estoica da cognição e quando a epistemologia cirenaica desfrutava sua fase final, antes do desaparecimento da escola. Pois esse é, certamente, o sentido de ἀπό que nós precisamos reconhecer na definição de fantasia kataleptiké de Zenão.

Retornemos às três condições dessa definição. Uma impressão cognitiva é, primeiro, ἀπὸ ὑπάρχοντος. Isto é, sobre a reinterpretação proposta, ela representa o que ὑπάρχει. O que isso significa? Como foi frequentemente notado, o verbo ὑπάρχειν não é usado em nossas fontes estoicas como um mero sinônimo de εἶναι, o ‘ser’ ou ‘a existência’, que apenas o corpo possui. Mesmo os predicados incorpóreos são ditos ὑπάρχειν, meramente porque eles realmente são instanciados em algo, e o presente é dito ὑπάρχειν não porque é um corpo, mas porque, diferente do passado e do futuro, é real (SVF II 509). Assim, ὑπάρχειν transmite o tipo de realidade que pode pertencer não apenas a corpos que existem atualmente, mas também a predicações e estados de casos atuais. Se uma impressão cognitiva representa o que é real, isso pode, em diferentes casos, significar que ela transmite um objeto que realmente existe (por exemplo, Dion), ou um estado de coisas completo que realmente obtêm-se no mundo, consistindo na atualização de predicados específicos de um ou mais objetos (por exemplo, o fato complexo de que Dion está andando e de que Téon está sentado).

Se adicionarmos o sentido representacional de ἀπό e assim tomarmos ἀπὸ ὑπάρχοντος para significar ‘representando o que é real’, ele ganha um significado bem mais rico que o da leitura causal. Uma impressão que satisfaz essa descrição não é necessariamente uma causada por um objeto externo ou estado de coisas (embora geralmente ela seja assim causada), mas uma que representa como ele é, e assim já vale

12 Para um exame acurado dessa passagem (incorporando minha sugestão atual sobre como o ἀπό é

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158 como verdadeira13. Nós já encontramos um exemplo de tal impressão. Uma impressão ‘a partir de Dion, que está vivo’, apesar de nem mesmo causada por Dion, representa um ὑπάρχον, precisamente o fato de que Dion está realmente vivo.

Por que, se assim for, a primeira condição de Zenão simplesmente não especificou que a impressão cognitiva deve ser ‘verdadeira’? Porque a ‘verdade’ é, de acordo com o estoicismo, primariamente uma propriedade de proposições, uma que é, na melhor das hipóteses, derivativamente ou vagamente aplicável a impressões que transmitem aquelas proposições (compare com S.E. M VIII 10). Estritamente falando, o que uma impressão tem, ou ao que aspira, em seu direito próprio não deve ser a ‘verdade’, mas a correspondência com a realidade. Há evidência (S.E. M VII 154) de que Arcesilao, em seus debates com Zenão, insistiu especialmente nessa restrição da verdade para proposições, e o frasear cauteloso de Zenão pode refletir, em alguma medida, aquele contexto adverso.

Eu continuarei, no entanto, por conveniência, talvez um pouco vagamente, a usar o termo ‘veridicalidade’ para descrever essa correspondência com os modos como as coisas são.

Se, como estou argumentando, a primeira condição já estabelece a veridicalidade da impressão cognitiva, sua representação do modo como as coisas são, o que é acrescentado pela segunda cláusula, que deve agora ser traduzida ‘moldada e estampada de acordo com aquela coisa que é real’? Não devemos mais esperar situar nessa condição a veridicalidade da impressão. Ao invés disso, ela limita a si mesma à descrição das qualidades gráficas com as quais a representação da impressão cognitiva de como as coisas são é executada. Ela não apenas transmite, em um esboço mais simples, como as coisas são, mas retrata vividamente a coisa ou a situação em detalhe panorâmico. Zenão está tentando capturar a riqueza e a absoluta claridade que distingue uma impressão totalmente confiável de uma impressão indistinta e, portanto inconfiável.

Até aqui eu simplesmente supus o sentido representacional de ἀπό, de modo a mostrar seus resultados na interpretação das duas primeiras cláusulas de Zenão. Mas é sua aplicação à terceira cláusula que, creio eu, confirma que ela tem toda a chance de ser o significado que Zenão intencionou. Já vimos as graves dificuldades que o sentido

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159 causal de ἀπό gera na interpretação da terceira condição. Por contraste, o sentido representacional é prontamente e não problematicamente inteligível lá. A condição ‘de um tipo que não poderia surgir ἀπὸ μὴ ὑπάρχοντος’ irá significar, nessa descrição, simplesmente ‘de um tipo que não poderia representar o que não é real’. Se a primeira condição já estipula que a impressão deve ser verídica, a terceira acrescenta que ela deve ser o tipo de impressão que não pode falhar em ser verídica.

Há uma excelente evidência de que é exatamente esse o modo como Zenão entendia em seu tempo. Seu crítico contemporâneo, Arcesilao, reportou a fantasia

kataleptike como sendo uma que não era apenas verdadeira, mas também ‘de um tipo

que não poderia se tornar falsa’ (τοιαύτη οἵα οὐκἂνγένοιτοψευδής, S.E. M VII 152). Ou, para expressar mais precisamente essa exigência de infalibilidade (de acordo com a própria insistência de Arcesilao de que a verdade e a falsidade deveriam pertencer a proposições, não às phantasiai): se eu tenho uma impressão cognitiva de que Dion está andando, a estipulação na terceira cláusula é que ela deve ser uma impressão tal que seu conteúdo representacional, precisamente aquele de Dion andando, não poderia falhar em corresponder a um estado de coisas real no qual Dion está andando.

Uma dificuldade óbvia permanece para essa interpretação. Se Zenão designou seu ἀπό para significar ‘representar’, por que ele não encontrou uma locução menos enganadora para expressar a ideia? Confesso que não posso pensar em nenhum antecedente crível para seu uso representacional do termo, e mesmo seus próprios seguidores na escola tenderam a confundi-lo com um uso casual. Não posso oferecer mais que um palpite.

Cícero (Ac. II 76-78) parece crer que a definição de Zenão consistia originalmente apenas das duas primeiras condições quando esteve sob pressão de Arcesilao. Arcesilao não se tornou cabeça da academia até poucos anos antes da morte do próprio Zenão (em algum momento nos anos 268-264; Zenão morreu em 262-261). Não há necessidade de duvidar que o debate sobre a questão poderia ter precedido a liderança de Arcesilao, talvez por muitos anos, mas suas respectivas idades, com Zenão cerca de uns 18 anos, ainda torna plausível que a original formulação bicondicionada de Zenão estivesse em circulação algum tempo antes de ele ter encontrado Arcesilao, e foi forçado a refiná-la acrescentando a terceira condição.

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160 Zenão estava parcialmente tirando suas ideias do Teeteto, é mais provável que ele, como o Sócrates de Platão, tenha se focado nos casos perceptivos de cognição e que tomou o modelo da impressão de cera, o qual pegou emprestado como um tipo obviamente causal, de acordo com o qual a forma do objeto externo é impressa na alma14, mais ou menos literalmente.

Se assim é, devemos concluir que, de qualquer maneira, durante o tempo em que ele foi desafiado por Arcesilao e decidiu acrescentar a terceira condição, mudou para um sentido primariamente representacional de ἀπό, e que foi esse sentido que, em consequência, ele supôs na formulação de sua terceira condição. Claro que, mesmo quando continua a funcionar causalmente, ἀπό já dever ter possuído algumas conotações representacionais, já que o objeto externo ‘a partir’ do qual surge uma

fantasia era suposto não apenas de um modo qualquer (por exemplo, do modo que a

pessoa apertando a campainha é a causa de eu ouvi-la soar), mas especialmente por transmitir suas próprias propriedades perceptivas para a phantasia. Visto sob essa luz, o novo movimento de Zenão não foi para introduzir essas propriedades representacionais, mas para enfatizá-las em detrimento das propriedades causais15.

O que deve ter o impelido a tal mudança se tornara então uma questão urgente. Uma possibilidade atraente é que, tendo originalmente concebido a impressão cognitiva como direta e exclusivamente perceptiva (compare com Cícero Ac. I 40-41), ele teve tempo de ver um papel indispensável para as impressões cognitivas não perceptivas.

A existência de deus e a providência — doutrinas às quais Zenão devotou vários de seus argumentos — são explicitamente citadas nos relatos de Diógenes Laércio (VII52) da epistemologia estoica como sendo objetos de katalepsis não sensoriais. Não devemos saltar muito rapidamente para as suposições de que as cognições em questão são efeitos de phantasiai kataleptikai não perceptivas. Elas devem ser consideradas pelos estoicos, como foi sugerido, como adequadamente fundadas em impressões cognitivas perceptivas acerca do funcionamento do mundo e adquirir seu status como cognições desse jeito16. Contudo, os argumentos de Zenão registrados sobre esse tema17

14De fato, o modelo do Teeteto inclui impressões puramente conceituais na cera (191d5), mas nem

Sócrates nos diálogos nem os interpretes de Platão (ver Alcino, Didaskalikos 154.40-155.13 Whittaker-Louis) já parece fazer muito com elas.

15Excluo a alternativa de deixar o uso revisado de ἀπό reter simultaneamente os sentidos causal e

representacional. Se assim fosse, a terceira condição significaria ‘de um tipo que não poderia (a) ser causada por e (b) representar uma coisa ou estado de coisas não real’, e que deixaria intocada a dificuldade original: graças à inclusão de (a), a condição seria satisfeita por qualquer phantasia, qualquer que fosse ela.

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161 dificilmente podem ser ditos como convidando a tal análise, e é difícil acreditar que ele tenha considerado suas conclusões ‘cognitivas’ sem atribuir o mesmo status a tais premissas notáveis como ‘o racional é superior ao irracional’, e ‘nada carente de sensação pode ter uma parte senciente’18 — premissas que não são facilmente redutíveis a ou mesmo derivadas de dados diretos da experiência sensorial.

Novamente, Zenão definiu uma τέχνη como ‘um sistema de cognições (καταλήψεις) unificado pela prática para algumas metas vantajosas na vida’ (Olymp.In

Gorg. 12.1), e essas cognições eram elas mesmas padronizadamente identificadas com

os teoremas que constituíam a arte. Zenão dificilmente teve a intenção de insistir no conteúdo exclusivamente perceptivo dos teoremas. Mais uma vez é possível replicar que ele, no entanto, as viu como completamente baseadas pelas phantasiai kataleptikai perceptivas passadas. Mas não temos razão para atribuirmos a ele uma concepção de

techne tão empobrecida, especialmente quando temos em mente que pelo menos

algumas virtudes são technai e que seus ‘teoremas’ incluem, ou devem ser, princípios morais.19 Zenão é bem conhecido por ter argumentado silogisticamente acerca dos princípios morais e claramente não pensava que eles eram fundados exclusivamente na percepção sensível.

Finalmente, o que acontece com a cognição das leis fundamentais de pensamento? Considere tais cognições — algumas fundamentais para o estoicismo— como que todo evento tem uma causa e que toda grandeza é infinitamente divisível. Cognições como essas dificilmente poderiam ser pensadas ou serem causadas pelos fatos que elas registram, ou, por essa dificuldade, ser adequadamente derivadas de séries passadas de phantasiai kataleptikai diretamente sensoriais.

Os estoicos posteriores, de todo modo, os da época de Crisipo, sem dúvida teriam procurado apresentar essas intuições e similares como o conteúdo das ‘concepções comuns’ (frequentemente tratadas como equivalentes às prolepseis), que vem a funcionar como um critério de verdade independente ao lado da fantasia

kataleptike; mas a identificação dessas como critério de verdade é explicitamente

associada a Crisipo em nossas fontes20, e não sei de nenhuma evidência que justificasse

17Para o teológico ou outros silogismos de Zenão veja especialmente Schofield (1983) e K. Ierodiakonou

(2002).

18Veja M IX 104; Cícero ND II 22 19Compare com SVF III 280. 20

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162 remontarmos a teoria à geração de Zenão. Quando as fontes atribuem um critério de verdade a Zenão e sua geração, eles falam exclusivamente da katalepsis21.

Há então razão para se pensar que Zenão supôs a katalepsis como incluindo uma variedade de cognições fundamentalmente não sensoriais. Disso se segue que também existam phantasiai kataleptikai correspondentes a essas? Provavelmente sim. Embora não tenhamos nenhum registro formal da definição estoica de katalepsis, Arcesilao a relatou como ‘assentir a uma fantasia kataleptike’ (SE M VII 151-3). Se essa definição se tornou ou não canônica22, Arcesilao pelo menos fornece uma forte evidência de como um crítico contemporâneo entendeu como o próprio Zenão usava o termo. E se ele estiver correto, é difícil ver como a fantasia kataleptike, para qual uma katalepsis não sensorial é um assentimento, pode ela mesma ser do tipo não sensorial. De fato, é um uso estoico bem estabelecido falar de uma classe de phantasiai não sensoriais, e de

phantasiai que são de incorpóreos, apesar do fato de que elas não podem ser causadas

por aqueles incorpóreos23. Não há razão para duvidar que essas poderiam incluir

phantasiai catalépticas.

Se essa reconstrução estiver correta, Zenão deve ter aceitado que o entendimento filosófico depende, pelo menos em parte, das phantasiai kataleptikai. Supondo mais adiante que, a essa altura, pelo menos duas primeiras cláusulas da sua famosa definição de fantasia kataleptike já foram estabelecidas, talvez mesmo o assunto do debate entre as escolas, ele tinha uma boa razão para apresentar essa definição como uma que não intencionasse ser interpretada num sentido estritamente causal ou perceptivo: a relação ἀπό é uma que expressa uma representação precisa da realidade, sem necessariamente implicar em cada caso uma derivação causal a partir da realidade.

Minha sugestão então é a de que foi no curso da evolução de sua teoria para além do modelo cru oferecido pelo Teeteto que Zenão se viu tratando a relação ἀπό menos como uma derivação causal do que como uma derivação representacional. Na medida em que ele estava consciente de sua mudança semântica, ele deve ter imaginado

21S.E. M VII 152; Cic. Ac. I 42, onde a katalepsis é ‘norma scientiae’, enquanto que as concepções (que

devem incluir prolepseis) têm um status diferente, aparentemente derivativo.

22

Striker (1974) é provavelmente sábia ao tratar com cautela as outras passagens onde essa equivalência é atribuída aos estoicos. Contudo, se estou correto, uma alternativa ao seu modo de descrição para aquelas passagens deve jazer sobre os escritos do próprio Zenão.

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163 como a justificando pela reflexão de que o elemento ἀπό presente em sua segunda cláusula, ἐν ἀπομεμαγμένην καὶ ἐν ἀπεσφραγισμένην, já servira para transferir esse aspecto da impressão: ela está, então, moldada e estampada na cera mental para

representar seu objeto com precisão. Seja como for, um resultado dessa nova

concepção era que a primeira cláusula, ao invés da segunda, veio, no próprio uso de Zenão, a ser um guia para transmitir a precisão representativa básica da impressão cognitiva — sua veracidade. Quando, consequentemente, o debate com Arcesilao finalmente veio à tona, era natural que a condição de infalibilidade de Zenão, recentemente especificada, deveria tomar emprestado seus componentes dessa primeira condição.

Se essa sugestão estiver correta, os sucessores de Zenão, lendo seus escritos como um corpo único, ao invés de diacronicamente, devem ter falhado em reconhecer seu afastamento de uma descrição causal de cognição. Consequentemente, eles foram impelidos àquelas impressões cognitivas cuja derivação jazia de fato na ação causal direta do objeto sobre o sujeito que a percebe. Isso foi o que se tornou, em todo caso, a teoria estoica da fantasia kataleptike. Mas nós não deveríamos estar tão confiantes de que a teoria do total empirismo capture completamente as próprias intenções maduras de Zenão24.

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24A tese básica desse artigo, acerca do significado das três condições de Zenão, é uma que eu já esbocei

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