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EIXO 09 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS COMO PRÁTICA DA LIBERDADE : POSSIBILIDADES DE DECOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS ESCOLARES

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EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS “COMO PRÁTICA DA LIBERDADE”: POSSIBILIDADES DE DECOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS

ESCOLARES

Michele Guerreiro Ferreira1 Janssen Felipe da Silva2

RESUMO: Este trabalho toma as contribuições do pensamento freireano para analisar as possibilidades de decolonização dos currículos escolares através das lutas dos movimentos sociais negros pelo estabelecimento de uma política curricular que contemple a história e a cultura afro-brasileira e africana. Para tanto, elencamos como objetivos deste trabalho: a) analisar a herança colonial que perpassa os currículos escolares e; b) analisar as possibilidades de decolonização dos currículos pela construção da Educação das Relações Étnico-Raciais. Este é um estudo bibliográfico traçado com base no diálogo entre os Estudos Pós-Coloniais da vertente Latino- Americana (QUIJANO, 2005, 2007; MALDONADO-TORRES, 2007; MIGNOLO, 2005, 2011; WALSH, 2010) e o Pensamento Freireano (2002, 2005, 2011).

Percebemos que as lutas dos movimentos sociais pela inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, e também Indígena, nos currículos da educação básica brasileira (Lei nº 9.394/96, Art. 26A), é uma atitude decolonial. Tais lutas são assim entendidas por expressarem uma possibilidade de desnaturalizar a subalternização a que povos negros e indígenas foram submetidos e por estar fundada na humanização e na libertação da condição opressora, pautada na construção de um projeto de sociedade outro. As análises mostram que a construção de uma educação das relações étnico- raciais, antirracista e intercultural, através de um currículo decolonial vai se fazendo nas tensões societais, pois a decolonialidade, a humanização e a libertação não se fazem apenas a partir dos sujeitos negros, indígenas, subalternizados, mas a partir do questionamento, do desvelamento e do combate à colonialidade que afeta a todos, sejam oprimidos, sejam opressores.

PALAVRAS-CHAVE: Educação das Relações Étnico-Raciais; Pensamento Freireano;

Estudos Pós-Coloniais; Currículo.

1Mestra em Educação Contemporânea pelo Núcleo de Formação de Professores e Práticas Pedagógicas do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco – CAA/UFPE. Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru – FAFICA e Professora da Educação Básica da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco – SEDUC/PE. E-mail: mguerreirof@hotmail.com.

2 Mestre e Doutor em Educação pelo Núcleo de Pesquisa de Formação de Professores e Prática Pedagógica – UFPE. Professor Adjunto do Centro Acadêmico do Agreste no Núcleo de Formação Docente – UFPE e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE. Membro do Núcleo de Formação Continuada Didático-Pedagógica (Nufope) da UFPE. E-mail: janssenfelipe@hotmail.com

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INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto de um estudo bibliográfico traçado através do diálogo entre os Estudos Pós-Coloniais da vertente Latino-Americana (QUIJANO, 2005, 2007;

MALDONADO-TORRES, 2007; MIGNOLO, 2005, 2011; WALSH, 2010) e o pensamento freireano (2002, 2005, 2011) para analisar a educação das relações étnico- raciais “como prática da liberdade”: possibilidades de decolonização dos currículos escolares. Temos como problema a ser discutido neste artigo a seguinte questão: quais as contribuições do pensamento freireano para a decolonização dos currículos escolares em diálogo com os Estudos Pós-Coloniais?

A questão em tela está pautada no imperativo de pensar uma Pedagogia Decolonial, que para Walsh (2010), representa uma práxis baseada na criação e na construção de novas condições sociais, políticas, culturais e de pensamento. Isto é, na construção de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão de saber, a qual concebe a pedagogia como política cultural.

A construção do conceito de Pedagogia Decolonial está profundamente arraigada às formulações e práticas educacionais de Freire (2005, 2011), especialmente, por meio da relação que o autor estabelece entre a necessidade de humanização e de libertação dos povos subalternizados, ou em suas palavras, do oprimido.

Para tratarmos dessa questão elencamos como objetivos deste trabalho: a) analisar a herança colonial que perpassa os currículos escolares e; b) analisar as possibilidades de decolonização dos currículos pela construção da Educação das Relações Étnico-Raciais a partir das contribuições freireanas em diálogo com os Estudos Pós-Coloniais.

Organizamos o trabalho em três seções: a) Herança Colonial nos currículos escolares e o protagonismo dos Movimentos Sociais Negros na construção de políticas de promoção da igualdade racial no âmbito educacional; b) possibilidades abertas pela promulgação da Lei nº 10.639/2003 e sua contribuição para a decolonização dos currículos escolares e para a promoção da Educação das Relações Étnico-Raciais; c) considerações finais. A partir da estrutura proposta vamos realizando as análises a partir do diálogo entre os Estudos Pós-Coloniais Latino-Americanos e o Pensamento Freireano.

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A HERANÇA COLONIAL COMO INSTRUMENTO DE OPRESSÃO E O PROTAGONISMO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS COMO ATITUDE DE LIBERTAÇÃO ATRAVÉS DO OPRIMIDO

Na América Latina, a colonialidade3 é um problema estrutural. Ou seja, o padrão de poder enraizado na racialização, na racionalização, no eurocentrismo e na inferiorização de identidades, cosmologias, modos de vida que orienta as instituições sociais, os esquemas mentais e a vida cotidiana, mantém as estruturas sociais sob a égide da herança colonial. A herança colonial a qual nos referimos é tudo aquilo que herdamos do “processo civilizador” constituído/imposto no âmbito da Modernidade. A herança colonial produziu os oprimidos de nossa terra e os naturalizou nessa condição na mesma medida em que institucionalizou o opressor ultrajado de superior.

Para Quijano (2005), a Modernidade se sustenta basicamente em dois pilares: a hierarquização social baseada na construção de identidades raciais (racialização) e a divisão do conhecimento pelo trabalho (racionalização). Por meio da retórica da Modernidade (isto é, da colonialidade – enquanto face oculta de tal retórica), é instituída a justificativa plausível para a hierarquização da sociedade atrelada ao estabelecimento do lugar social de cada raça, produzindo-se a inferiorização/subalternização dos modos de saber, fazer, ser, viver distintos do padrão eurocentrado. Assim, os modos de vida (cultura) das classes-grupos sociais oprimidos historicamente são deslegitimados e desqualificados.

Para garantir o sucesso do imaginário do Sistema-Mundo Moderno, fez-se necessário subalternizar os povos conquistados em nome de um discurso que proclamava a civilização e o desenvolvimento aos moldes europeizados, assim instituindo os oprimidos como um fato natural. Mesmo com o fim do colonialismo, o padrão de poder que buscava “converter” as visões de mundo dos povos nativos e dos sequestrados do continente africano ao eurocentrismo, se mantém vivo até os dias atuais. Dessa forma, os currículos monoculturais sustentam a herança colonial nos padrões que valorizam uma única forma de ser, de saber e de viver, a eurocêntrica e desqualifica a forma de ser, saber e de viver que foram, ao longo da história da América Latina, colocado impositivamente na condição de oprimido.

3Consolida um padrão de poder que não se restringe às relações formais de dominação de um povo sobre outro como ocorrera no início do colonialismo, mas intenciona firmar os pilares da racialização e da racionalização ao estabelecer e universalizar a hierarquização dos sujeitos, dos conhecimentos e das relações de trabalho para responder ao mercado capitalista global.

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Dessa forma, a malvadeza da modernidade/colonialidade é instituir impositivamente uma estrutura de mundo baseada na Europa hegemônica com o objetivo estratégico de desumanizar e de destituir quaisquer cosmovisões que representassem as expressões daqueles e daquelas que serviram historicamente como mão de obra. E como mão de obra para o capitalismo, esses sujeitos passam por processos perversos de desumanização e de incorporação da condição de sujeito sem direito, ou de não sujeito. Por isso, esses não sujeitos eram e são considerados desprovidos de conhecimentos válidos e sem a aptidão para adquirir conhecimentos ditos mais elevados. O que esses não sujeitos devem aprender é a servir os que são considerados historicamente sujeitos de direitos.

Serrano e Waldman (2008) endossam essa afirmação ao destacar que, no caso africano, era em nome da “civilização” que o continente foi conquistado, porém nenhuma transferência de conhecimento científico ou tecnológico foi assegurada.

Quando ocorria a implantação de escolas, no contexto de colonização das terras africanas, os currículos buscavam “colonizar mental e espiritualmente o homem africano” (Ibid., p. 229), por meio do direcionamento eurocêntrico da visão de mundo.

A presença do eurocentrismo nos currículos escolares, ou seja, a herança colonial (educação bancária) ultrapassa o período do colonialismo e chega aos nossos dias como “história universal” e verdadeira. Além de contar apenas uma versão da história, silenciando tantas outras, busca-se negar as diferenças, cristalizar identidades e manter a hegemonia de um único padrão civilizatório estabelecido como “normal”, verdadeiro: o branco, o masculino, o heterossexual, o cristão, o urbano, o científico. Na educação bancária somente há uma história e uma forma de dizer as coisas: a forma do opressor, que se faz hegemônica.

Freire4 ao criticar o currículo escolar através do conceito de educação bancária (FREIRE, 2005, 2011) denunciava, por assim dizer, a colonialidade presente no currículo tradicional, o qual se afastava da situação existencial das pessoas que fazem parte do processo de conhecer. Nessa visão desinstituidora do outro, para este outro

"não pode haver conhecimento, pois os educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador" (FREIRE, 1987, p. 69). No currículo eurocentrado não há espaços para narrativas outras. Aos negros e aos índios, por exemplo, não é requerido a eles nem um ato cognoscitivo (FREIRE, 1987) a não ser de

4 Freire não se autointitulava como pós-colonialista, mas sua obra nos remete a elementos das teorizações dos Estudos Pós-Coloniais.

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saber memorizar e repetir as narrativas prescritas no currículo embranquecido. Aos negros e índios cabe repetir narrativas que os oprimem na intencionalidade de sacramentar sua condição de inferior, ou seja, de materializar por meio das aprendizagens escolares a colonialidade do ser.

De acordo com o autor, tal educação bancária é desumanizadora porque nega o direito de pronunciar o mundo já que “ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais” (FREIRE, 2005, p. 90-1). Percebemos na obra do autor que a humanização e a libertação se fazem na assunção do protagonismo histórico construído pelos próprios sujeitos desprovidos de poder, ou melhor, impedidos historicamente de se reconhecer como sujeitos de direito, assumindo, dessa forma, a condição de subalternos.

Entendemos este ato de se assumir como sujeitos históricos, capazes de modificar a realidade opressora como uma atitude decolonial. Ou seja, decolonizar-se é uma forma de desaprender tudo o que foi imposto pela colonialidade e pela desumanização para reaprender a ser mulheres e homens, em suas mais variadas condições racial, social, de gênero, sexual, religiosa, territorial, enfim. Podemos dizer que se assumir como sujeitos históricos é tomar consciência de si e do mundo, isto é, realizar um processo de decolonialidade do ser e de humanizar-se na perspectiva freireana. Humanizar-se humanizando o mundo, nessa ótica, decolonizar-se não pode ser um ato meramente individual, ninguém se humaniza sozinho, a humanização, na perspectiva freireana, se faz em comunhão.

Para tanto, é necessário um processo de "radicalização [que] é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta" (FREIRE, 1987, p. 25), portanto, libertadora. O processo de humanizar-se nas perspectivas freireana e decolonial é dizer-se e não aceitar ser dito por outro. É fazer-se na história e não ser feito pela história de outro.

Mas tanto dizer-se como fazer-se não ocorre de forma isolada, é na relação consigo e com o outro que nós humanizamos e libertamos. Assim, a decolonialidade é uma dinâmica radicalmente dialógica entre diferentes e iguais na construção de cenários interculturais e sujeitos de direitos.

A Pedagogia do Oprimido, entendida não como uma das obras de Freire, mas como representação de seu pensamento no conjunto de sua obra, direciona nosso olhar aos movimentos sociais, nas lutas pela mudança e transformação dos padrões de dominação hegemônicos, inclusive através da educação. Nesse sentido, percebemos a atitude decolonial nas lutas dos Movimentos Sociais Negros ao impulsionar a política

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curricular nacional a garantir espaços para saberes que reivindicam seu lugar dentro de um contexto marcado pela crítica à subalternização dos conhecimentos, tais como, a História e Cultura dos Afro-Brasileiros e Africanos. Tais saberes foram silenciados pelo eurocentrismo nos últimos cinco séculos, ou subalternizados nos currículos colonizados das escolas brasileiras, pois a colonialidade define uma geopolítica do conhecimento através da imposição do saber, do poder, da cultura e inclusive das línguas europeias (MIGNOLO, 2011), ignorando as outras epistemologias e suas expressões políticas, culturais.

Por isso que a pedagogia do opressor faz uso da educação bancária. Uma educação que silencia, que nega a condição de ser do outro, na qual não há diálogo, mas faz do monólogo sua principal forma de comunicação. A pedagogia do opressor é a expressão na educação da relação entre a colonialidade do poder e do saber com o objetivo de impor ao oprimido a colonialidade do ser, a condição de não sujeito de direito.

As lutas dos movimentos sociais pela inclusão da História e Cultura Afro- Brasileira e Africana, e também Indígena, nos currículos da educação básica brasileira (Lei nº 9.394/96, Art. 26A), é uma possibilidade de desnaturalizar a subalternização a que esses povos foram submetidos. Notamos que tais lutas estão fundadas na humanização e na libertação da condição opressora e pautadas na construção de um projeto de sociedade outro, que expresse os anseios dos oprimidos. Para tanto, é fundamental nos assumirmos enquanto "sujeitos éticos" (FREIRE, 2000) que defendem a vida digna para todos, independente de raça e etnia.

Destacamos que a promulgação da referida Lei é fruto da resistência dos movimentos sociais, que abriram espaço para o debate nacional sobre a questão do negro no país, em virtude do racismo velado e explícito que opera através da herança colonial. Na medida em que a discussão sobre a importância do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana ultrapassa os discursos dos movimentos sociais e são materializados em componentes curriculares obrigatórios, percebemos a conquista de um dos aspectos que Freire (2005) trata como imprescindível à libertação dos oprimidos, que é o diálogo:

não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados desse direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito,

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proibindo que esse assalto desumanizante continue (Ibid., p. 91.

Grifo nosso).

Consideramos esta conquista de possibilidade de “dizer a palavra” dos afro- brasileiros e africanos, apesar da forte presença da herança colonial, alicerça-se em uma ruptura com a geopolítica do conhecimento e em uma compreensão da história como

"tempo de possibilidade e não de determinismo” (FREIRE, 2000, p. 21). A seguir analisamos as possibilidades de decolonização dos currículos através dessa conquista.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS “COMO PRÁTICA DA LIBERDADE”

O currículo só pode ser compreendido inserido no contexto em que se configura e observando as condições nas quais se desenvolve (GIMENO SACRISTÁN, 2000), o que ratifica sua condição histórica e social. Assim, entendemos que a herança colonial presente nos currículos monoculturais e eurocêntricos, que oprimem e desumanizam o outro que não se enquadra ao padrão hegemônico estabelecido, só pode ser decolonizado quando colocado em xeque pelos que foram subalternizados, como afirma Freire (2011, p. 138), “o opressor não liberta nem se liberta. É por isso que, libertando- se, na e pela luta necessária e justa, o oprimido, como indivíduo e como classe, liberta o opressor, pelo fato simplesmente de proibi-lo de continuar oprimindo”. Nesse sentido, faz-se necessário conhecer a Lei nº 10.639/2003 juntamente com suas diretrizes:

• o Parecer CNE/CP nº 03/2004, que teve como relatora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e foi aprovado em 10 de março de 2004. Esse Parecer, de acordo com Gomes (2008), foi construído mediante consulta pública a militantes, intelectuais e legisladores, representando um avanço no âmbito da legislação educacional e correspondendo, em certa medida, aos anseios de diversos setores da sociedade e dos Movimentos Negros.

• a Resolução CNE/CP nº 01, de 17 de março de 2004, lançada com o objetivo de regulamentar a Lei nº 10.639/2003, instituindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana.

Tais DCN rompem com o eurocentrismo ao estabelecer o ensino da História e da Cultura dos que foram silenciados e invisibilizados durante toda a história da educação no país, ou apontados como sem-história. Percebemos que constituir uma seleção curricular representa as tensões, as lutas e os anseios de diversos setores da sociedade e

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dos Movimentos Negros para ver o negro retratado no currículo escolar de forma positiva, isto é, através de uma opção decolonial:

Assim, é preciso que a opção descolonial fique clara neste contexto.

Descolonial significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade (MIGNOLO, 2008, p. 304 – Grifo nosso).

De acordo com a compreensão da opção decolonial, a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana não se restringe a incluir novos conteúdos ao currículo. Significa colocar esses conteúdos vis-à-vis com os conteúdos hegemônicos em função do combate ao racismo e à discriminação étnico-racial em função de um projeto de sociedade outro. Assim, sua intenção é apresentar esses componentes curriculares articulados com a promoção da Educação das Relações Étnico-raciais. Nesse sentido, estão implícitas as tensões de exterioridade/interioridade a que Mignolo (2011) se refere, uma vez que as relações raciais em nosso país se constituem no âmbito da colonialidade de forma hierarquizadora das raças que são forjadas naquele contexto do colonialismo. Para Escobar (2003, p. 63),

La noción de exterioridad no implica un afuera ontológico, sino que refiere a un afuera que es precisamente constituido como diferencia por el discurso hegemónico. Esta noción de exterioridad surge principalmente por el pensamiento sobre el Otro desde la perspectiva ética y epistemológica de la filosofía de la liberación: el Otro como oprimido, como mujer, como racialmente marcado, como excluido, como pobre, como naturaleza.

Dessa forma, entendemos que construir uma educação das relações étnico- raciais significa horizontalizar tais relações, superando os discursos que criaram o outro para subalternizá-lo e valorizando a participação de todos na construção da História. A educação das relações étnico-raciais tem como um dos seus princípios o diálogo entre etnias, que não se pauta em relações de hierarquização, mas busque dialogicamente superar a colonialidade do poder.

Para tanto, é imprescindível a compreensão de que Ensinar não se esgota no

"tratamento" do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível (FREIRE, 2000, p.

29). A educação das relações étnico-raciais não é possível a não ser na criticidade radical materializada na prática educativa decolonial. Esta se tece na inquietude, na indignação de quem educa e de quem é educado mutuamente.

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As referidas diretrizes consideram que para haver uma educação das relações étnico-raciais se fazem necessárias “aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime” (BRASIL, 2004a). As diretrizes apontam para uma educação dialógica que se faz na comunhão entre os povos como indica o pensamento freireano.

A obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana não se restringe a incluir novos conteúdos ao currículo, como já mencionamos, sua intenção é apresentar esses componentes curriculares articulados com a promoção da Educação das Relações Étnico-raciais. Para Oliveira e Candau (2010, p. 32), tais diretrizes provocam a reflexão sobre a construção de uma pedagogia antirracista:

Entre os objetivos, estão a garantia do igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira e a afirmação de que os conteúdos propostos devem conduzir à reeducação das relações étnico-raciais por meio da valorização da história e da cultura dos afro-brasileiros e dos africanos.

Alcançar essa educação antirracista impõe à escola o imperativo de construir Pedagogias de combate ao racismo, libertando a sociedade brasileira dessa mazela e possibilitando a humanização das relações étnico-raciais e sociais de uma maneira ampla. A educação das relações étnico-raciais é pautada na pedagogia esperançosa que exige uma pedagogia da autonomia dos povos, das etnias no direito de dizer sua palavra, sua visão de mundo, seu modo de estar no mundo em interação com outras formas de dizer a palavra, a visão de mundo e modo de estar no mundo. Por isso, é libertadora.

Por fim, a educação das relações étnico-raciais ainda é mais um projeto em desenvolvimento do que um projeto efetivado. Essa educação ainda depende de grandes esforços de ativistas dos movimentos sociais, principalmente os ligados às questões da negritude. Digamos, assim, que a educação das relações é uma esperança freireana que

"precisa da prática para tornar-se concretude histórica" (FREIRE, 1997, p. 11). A educação das relações étnico-raciais também é o "ainda não" que vem se tornando lugar e tempo outros pelas mãos negras que não se deixam intimidar pelo embranquecimento silenciador da sociedade colonial-moderna.

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CONSIDERAÇÕES

A educação das relações étnico-raciais como prática da liberdade, parafraseando Freire, é uma ação política que nos remete a compreensão de Walsh (2008) sobre a Interculturalidade, ou seja, estratégia e princípio que orienta a construção do pensamento outro, através de pensamentos, ações e enfoques epistêmicos distintos do eurocentrismo. Nesse sentido, a Interculturalidade seria um projeto social, cultural, educacional, político, ético, estético, epistêmico que conduz à decolonização e à transformação dos padrões estabelecidos pela herança colonial.

As formas de conceber o mundo, o conhecimento e a vida dos povos africanos e afro-brasileiros sendo contemplados nos currículos escolares é uma maneira de libertação da herança colonial e de humanização das relações sociais. E ser contemplados no currículo não significa nem o seu reconhecimento e nem apenas a garantia de um determinado lugar no tempo-espaço curricular, significa rompimento com as estruturas epistêmicas e de poder presentes no currículo e na escola como um todo.

A construção de uma educação das relações étnico-raciais, antirracista e intercultural, através de um currículo decolonial vai se fazendo nas tensões societais, pois a decolonialidade, a humanização e a libertação não se fazem apenas a partir dos sujeitos negros, indígenas, subalternizados, mas a partir do questionamento, do desvelamento e do combate à colonialidade que afeta a todos, sejam oprimidos, sejam opressores.

Chegamos à conclusão de que a Colonialidade não pode se materializar plenamente, principalmente a Colonialidade do Ser. A condição inconclusa, incompleta e dialógica do ser humano (FREIRE, 1987) o impulsiona para a busca ontológica e existencial de ser mais. A Colonialidade do Ser é uma agressão à natureza existencial do ser humano. Por isso, a condição inconclusa não deixa a Colonialidade do Ser torna- se uma sentença definitiva para os oprimidos. A condição da incompletude conduz ao rompimento com a Colonialidade do Ser pela luta incessante dos considerados outros em atos solidários entre si de desobediência civil e epistêmica fundada na conscientização e na opção decolonial. A dialogicidade faz com que os denominados outros ou oprimidos na sua inconclusão, incompletude travem diálogos entre si na tecelagem de projetos outros de sociedade. E um dos caminhos da construção de projetos outros de sociedade é a educação das relações étnico-raciais.

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Enfim, percebemos um diálogo entre os Estudos Pós-Coloniais e o Pensamento Freireano. Arriscamo-nos a afirmar que determinados conceitos do pensamento freireano servem de base para a construção dos Estudos Pós-Coloniais, devido à íntima relação que identificamos entre humanização e decolonização. Desobediente epistemicamente, através da condição de dizer o mundo – que é um processo de libertação – o sujeito oprimido é capaz de transformar a história.

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