OS LUGARES DE MEMÓRIA E A SÃO PAULO DA DÉCADA DE XX: UMA ANÁLISE SOBRE PAULICEIA DESVAIRADA DE MÁRIO DE ANDRADE
Raniere de Araújo Marques34
Resumo
Este trabalho analisará as representações poéticas do livro Pauliceia desvairada de Mário de Andrade, a partir do conceito de “lugares de memória” de Pierre Nora (1981). Sendo assim, procuraremos pensar as imagens e referências presentes no livro, ora como elementos de confirmação da necessidade de preservação de uma memória local e conseguintemente nacional, ora como confirmação de declínio da memória, em seu sentido clássico. Além disto, debateremos as implicações destas questões no próprio conceito memória, literatura e história.
Palavras-chave
Memória. Poesia. História.
Abstract
This work will examine the poetic representations of Mário de Andrade‟s book
Pauliceia desvairada, from the concept of "places of memory" of Pierre Nora (1981). So we try to think the images and references present in the book, either as confirmation of the need to preserve local and national memory elements, or as memory decline confirmation, in its classical sense. In addition, we will discuss the implications of these issues in the very concept of memory, literature and history.
Keywords
Memory. Poetry. History.
Este trabalho analisará os lugares de memória presentes no livro Pauliceia
desvairada de Mário de Andrade. Para isso, utilizaremos os conceitos de Pierre Nora
em seu texto “Entre memória e história: o problema dos lugares”. Faremos também uma
discussão acerca do conceito de história e de tempo. Por isso, imprescindíveis serão as
leituras de Mircea Eliade, em seu livro O sagrado e o profano, sobretudo as discussões
acercado conceito de tempo cíclico (Áion) e sua relação com os lugares de memória,
uma vez que tais espaços serão reservados para manter, recolocar o passado na ordem
do discurso de forma simbólica, como resistência a uma história linear (Kronos) e
poética em reagir à modernidade a partir de locais de memória já existentes na cidade de
São Paulo e criados poeticamente, como se manifesta, tal processo, na linguagem dos
poemas.
Pierre Nora dirá: “A memória, com efeito, só conheceu duas formas de
legitimidade: histórica ou literária. Elas foram, aliás, exercidas paralelamente, mas até
hoje separadamente”. Ao comentário de Nora acrescentaria que memória e história são
dialéticas, a relação de apagamento de uma vem em benefício da outra. Por isso, para
Nora, são “paralelas” e “separadas”. O literário entra como registro (legitimação) da
memória, na medida em que a literatura seja entendida como uma prática cultural,
“registro da memória”. Veremos as implicações deste termo que aparentemente soa
contraditório. Para Pierre Nora, as sociedades modernas, com o fim do mundo rural
(final de século XIX), enfrentaram o auge da crise de memória. Para nós, essa crise se
iniciaria com o período da dessacralização na Grécia e com o surgimento da História,
com Heródoto.
Voltando a Nora, memória e História diferenciam-se da seguinte forma:
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que uma opõe a outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento [...]. A história é uma reconstrução problemática e incompleta do que não existe mais [...]. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivo no eterno presente; a história uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a conforta, ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas [...]. A história, porque, operação intelectual e laicizante demanda análise e discurso crítico (NORA, 1993, p.9).
Portanto, a memória estaria mais próxima do conceito de verdade que os
gregos chamariam de “alethéa” e a história mais próxima da verdade enquanto
“etymon”. Tal diferença é fundamental, pois, enquanto esta está preocupada em provar a
veracidade dos fatos, e, em uma perspectiva mais moderna, em questionar
racionalmente a prática historiográfica, aquela seria fundamentada pelo eterno presente,
que representaria o retorno constante das coisas, para a memória, ela em si já é verdade
e, portanto, prescinde de comprovação lógico-científica. A escrita fora fundamental na
instalação da História e na “suplantação” da memória.
O auge na crise da memória levará as sociedades a tentativas de preservá-la,
e, como busca identitária, as sociedades modernas forjarão conceitos como nação, para
falar de nossas origens. Mas só o faz porque algo se perdeu, portanto, as tentativas de
preservação da memória seriam nada mais, nada menos do que um congelamento
artificial daquilo que antes era natural: a memória. Vejamos:
Memória espelho, dir-se-ia, se os espelhos não refletissem a própria imagem, quando ao contrário, é a diferença que procuramos aí descobrir; e no espetáculo desta diferença, o brilhar repentino de uma identidade impossível de ser encontrada. Não mais uma gênese, mas o deciframento do que somos à luz do que não somos.(NORA,1993, pg.20)
Por isso construímos museus, monumentos, fazemos festas comemorativas,
datas de aniversário, marcamos no calendário um dia especial. Por isto registramos os
nomes das ruas e de nós mesmo em cartas, bilhetes, poemas. Para que não esqueçamos
que esquecemos. Esta atividade de lembrar, antes tão natural, tornou-se uma prática
disciplinada, quase metodológica; precisamos de marcos físicos e simbólicos para não
nos perdermos no completo esquecimento. E todas estas construções citadas acima
constituem o que Pierre Nora chamou de “lugares de memória”. Que servem para “parar
o tempo e bloquear o trabalho de esquecimento” (NORA,p.22).
Mircea Eliade, em seu livro O sagrado e o profano, fará um estudo sobre a
noção de tempo do homem primitivo. Para ele, o tempo do homem primitivo é marcado
pelo sagrado, pelo aspecto cíclico e, portanto, pelo constante retorno. Sua noção está
fortemente marcada pelo presente ligado ao eterno. Este homem, ao contrário do
moderno,está totalmente mergulhado na memória e separado do “Kronos”, tão caro à
História tradicional, pois
este comportamento em relação ao tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não religioso. O primeiro recusa-se unicamente a viver no que, em termos modernos, chamamos de presente histórico, esforça-se por voltar a unir-se a um tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode ser equiparado à “eternidade”(ELIADE, 1992, p.39).
Estamos nos referindo exatamente a este homem religioso, que, como
aponta Eliade, procura afastar-se do tempo da história. Sua relação com o tempo é a
base do “Áion”. Por isto esse homem está mais propenso à memória, pois ela é em si
realidade, fato consumado. Este homem “religioso” buscava aproximar-se dos deuses, o
símbolo o ligava ao universal: “Ao imitar os deuses, o homem religioso passa a viver no
tempo da origem, o tempo mítico. Em outras palavras, „sai‟ da duração profana para
sua temporaridade drasticamente afetada, o homem religioso sabe, o não-religioso
duvida, e, portanto, está mais propenso a não encontrar respostas satisfatórias.
A razão socrática, aristotélica e depois científica teve que pagar o preço de
afastar-se da memória em detrimento da História. O documento escrito e a verdade que
precisa de comprovação (etymon) levaram o homem a questionar-se sobre as
transformações irrecuperáveis das coisas, o registro levou este mesmo homem à
fragilização da memória. Trocamos o eterno pelo efêmero, o divino pelo profano, a
verdade pela dúvida.
Mas nem tudo se perdeu, as sociedades modernas, vendo o agravar deste
processo, tentaram criar formas de ressignificar a memória através de registros, uma vez
que a oralidade e a lembrança já não prescindem do registro. É aí que surgirão os
lugares de memória definidos por Pierre Nora.
O objetivo deste trabalho é mostrar como a memória “reaparece” na ordem
do discurso, exatamente no momento de sua crise mais aguda. Estudaremos o contexto
específico de São Paulo, no início da década de 20, procurando demonstrar a relação
entre os lugares de memória, sua explosão na capital paulista deste período, e a tentativa
de usá-los para recuperar certa unidade identitária que já não existia mais, devido à
modernidade, e, sobretudo, ao aumento vertiginoso da população, em especial dos
imigrantes. Por isso, São Paulo, inclusive, enquanto política pública, recorrerá às
construções de lugares que remetam à “identidade” paulista.
Mostraremos ainda como estes lugares de memória, sobretudo as chamadas
fontes indiretas de que fala Pierre Nora, e que explicaremos com detalhe mais adiante,
estão presentes no livro Pauliceia desvairada de Mário de Andrade, e mais, como esses
lugares convivem com a explosão imigrante que dilacerou qualquer tentativa de
identidade única.
Nossa proposta metodológica consistirá em analisar os poemas sob a luz das
informações históricas, mas sempre remetendo ao texto e se possível à estrutura interna
dos poemas e aos recursos poéticos utilizados pelo eu-lírico, entendendo este como um
flâneur35deslocado de tempo e espaço e que também, poética e simbolicamente,
35
Figura simbólica que sai pelas ruas em busca do passageiro, marcada pela conquista parcial do efêmero, esse sujeito caracteriza-se por ser em geral deslocado de tempo e espaço e por conviver com o passado, o presente e o futuro de modo agonístico. Ver melhor em: BENJAMIM, Walter.Obras
procura delinear seus lugares de memória. Sendo estes, nos poemas, não apenas marcas
de uma coletividade, mas também rastros de um sujeito em busca de lembranças de sua
cidade e que trava um conflito com a linguagem para descrevê-la, conflito típico de uma
experiência traumatizante.
A escolha do livro deu-se por sua produção em um momento histórico
propício à multiplicação dos lugares de memória, pelos motivos já comentados. E
também por sua intensa e constante tentativa de impor à linguagem os conflitos
enfrentados pela voz poética.
Antes de citar os poemas, gostaríamos de frisar que este trabalho priorizará
o que Pierre Nora, a partir da historiografia mais antiga,chamará de “fontes indiretas”,
que são “testemunhos deixados por uma época sem duvidar de sua utilização futura
pelos historiadores” (NORA, 1993, p.22). A obra analisada será encarada como um
testemunho lírico de uma época.
Comecemos então pela análise dos três primeiros poemas: “Inspiração”, “O
trovador” e “Os cortejos”. O primeiro poema do livro, “Inspiração”, remete à cidade, e
o título sugere que São Paulo é de fato a musa inspiradora da voz poética. Vejamos:
São Paulo! Comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!...Traje de losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma...Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... Perfumes de Paris...Anys!
Bofetadas líricas no Trianon...Algodoal!...
São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América! (ANDRADE, 1982).
O poeta, portanto, opta por cantar São Paulo, porém ao cantar a cidade ele
parece carregar consigo uma carga de nostalgia. A busca de recuperar São Paulo vem
exatamente pelos espaços que remetem a sua lembrança. Este flâneur passeia pelo
parque Trianon, percebe-se que este espaço é o primeiro do livro a aparecer. O Trianon
era um clube localizado onde hoje se encontra o Museu de Arte de São Paulo.Clube que
a aristocracia costumava frequentar, assim como o Parque de mesmo nome, e que
representou um local de encontro e de troca de ideias entre os intelectuais da época.
Entendemos este relato como uma fonte indireta de memória. As marcas
denominação de poeta futurista36, pois seu livro é marcado pelo constante embate entre
passado e futuro. O antigo clube Trianon convive na memória do poeta com os
“Perfumes de Paris”e os “galicismos” advindos da cultura imigrante, a voz poética
choca-se com estes extremos, sua memória é obrigada a conviver com o presente da
cidade, e ambas são antagônicas, antitéticas, por isso o uso constante de antíteses (luz e
bruma/ forno e inverno morno). Como símbolo desta nostalgia aparece a fantasia do
Arlequim, aqui adjetivada. A quem ele se refere? À cidade ou à voz poética? Às duas,
seus “trajes de losango” remetem às calçadas da capital paulista, sua melancolia, ao
sentimento de deslocamento da voz poética. Com relação à estrutura sintática, notamos
períodos incompletos, citações soltas, reticências que marcam um certo ritmo e a
ausência de organização de pensamento, a memória do poeta está fragmentada, dispersa
pelas ruas paulistas, parece ter perdido a unidade essencial que liga a memória ao
eterno, a linguagem à comunicação, e tudo passa ser alusão, ausência, incompletude.
Esta falta é que marca as lembranças do poeta sobre sua São Paulo, que o comove.
Vejamos outro exemplo, “O trovador”:
Sentimentos em mim do asperamente dos homens das primeiras eras... As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal... Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde! (ANDRADE, 1982).
O segundo poema fala sobre o eu-lírico. O crítico Willi Bolle (1989), em
seu texto “A cidade sem nenhum carácter”, observa que há nesta obra de Mário de
Andrade um rompimento com relação à noção de primitivo, não apenas visto como algo
local, mas também como algo íntimo e universal. Entendemos, a partir disto, a
referência aos “homens das primeiras eras”. Podemos deduzir destes dois primeiros
versos que o poeta busca uma relação de pertencimento em relação à sua cidade, são
estes os sentimentos ásperos de que fala, e aí, entendemos, ao contrário de Willi Bolle,
que o primitivo refere-se também a uma cultura nacional (tomando “nacional” na
36
Ver: BRITO, Mário da Silva. Meu poeta futurista. In: História do modernismo brasileiro – antecedentes da semana de arte moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Conferir também: BRITO, Mário da Silva. Futurista? In: História do modernismo brasileiro – antecedentes da semana de arte moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
perspectiva paulista do movimento de 22), a uma identidade que procura negociação
para sobreviver, neste sentido o último verso é emblemático, o tupi refere-se não só a
este homem primitivo, mas também ao índio, símbolo discursivo de uma identidade
nacional, já o alaúde refere-se à cultura erudita europeia. O “som redondo” pode ser
entendido como o som dos tambores típicos dos índios, em particular dos tupiniquins.
Percebe-se que o poema é construído carregado de aliterações com o fonema [m], estas
remetem ao som de tambores, como se pudéssemos ouvir o som de tambores na leitura
em voz alta do poema, como se este som simbolizasse uma espécie de trilha sonora do
poema. O poeta parece buscar uma conciliação com os elementos europeus, sua
memória é fundamental para conservar certa unidade identitária.Óbvio que na
metrópole paulista raramente se verá um Tupi, mas eles surgem para marcar um
determinado lugar de memória que remetem às nossas “origens”.Sem estes lugares, a
metrópole poderia perder-se completamente na mistura, em um país subdesenvolvido,
que buscava afirmação internacional, que começara a ter consciência deste
subdesenvolvimento. Entregar-se completamente à mistura seria arriscado e poderia pôr
a perder todas as conquistas que se iniciara no Arcadismo com relação à busca de uma
identidade nacional pela Literatura. Era preciso, então, recorrer à memória.
O próximo exemplo inclui na discussão outro elemento: as multidões. Elas
são fundamentais no estudo da modernidade e representavam a crise da memória na
medida em que simbolizavam a explosão do individualismo e a perda do sentimento de
coletividade, tão caro à memória. O poema chama-se “Os cortejos”:
Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bon Giorno, caro."
Horríveis as cidades! Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria! Oh! os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes; e os jorros dentre a língua trissulca de pus e de mais pus de distinção... Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Estes homens de São Paulo, todos iguais e desiguais,
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
O título logo remete a uma multidão em movimento, ela é marcada pelas
“vaidades e mais vaidades”,o advérbio no plural “sempres” remete à repetição da passagem desta multidão.Neste poema, a memória está carregada do presente (em
relação ao tempo da enunciação), e aí, “horríveis as cidades!/vaidades e mais
vaidades”, alguém poderia então perguntar: “Cadê os locais de memória neste poema?”,
ou ainda “porque escolher um poema onde não há referências a lugares de memória,
localizado no passado do tempo da enunciação?”. Neste caso, escolhemos este poema
para ilustrar dialeticamente a importância da memória de um passado para a voz
poética; é esta ausência, no poema, que faz o eu-lírico intensificar o tom de melancolia e
revolta (nada de alegria/nada de poesia). O lirismo é marcante e revela que a posição
de reprovação vem confessadamente da voz poética (quando vivem dentro dos meus
olhos tão ricos), impossível neste caso separar enunciador de enunciado, pois é nosso
flâneur quem reclama da atualidade paulista de sua época, daí palavras fortes e de tom
negativo como: pus, horríveis, fracos, vaidades, macacos. Estas palavras colocam o
poema em um campo semântico negativo e pessimista, não há nele a resistência de um
lugar memória, e esta ausência é significativa e marca o tom do poema. A comparação
com os “macacos” serve de ironia a uma caricatura do brasileiro, a este a voz poética
parece dirigir suas críticas, exatamente a exaltação que se fazia à modernidade como se
comemorássemos nossa ruína. As reticências marcam o próprio movimento das
multidões, internalizado pelo movimento do sentido, este marcado pelas repetições. É,
enfim, a falência da experiência única tão essencial para a transmissão da memória37.
Tudo se tornou “monotonias” na retina do poeta.
Para finalizar, analisaremos o poema “Tietê”.Optamos por ele porque
expressa lugares de memória específicos, remetendo ao passado e às origens de São
Paulo e ao mesmo tempo à São Paulo da década de XX:
Era uma vez um rio...
Porém os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais esperiamente! Havias nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição... E as gigânteas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho... Arroubos... Lutas... Setas... cantigas... Povoar!...
Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte! Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...
37
BENJAMIN, Walter.Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994.
–Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso? –Io! Mai!... (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.) Vado a pranzere con la Ruth. (ANDRADE, 1982).
O poema começa com o “Era uma vez” das histórias que não tinham um
tempo cronológico. Mas, à parte ironias de Mário, o verso seguinte deixa claro a
referência: trata-se dos Bandeirantes, estes simbolizaram a independência paulista com
relação a Portugal, como bem observou Sergio Buarque de Holanda:
A expansão dos pioneers paulistas não tinha suas raízes do outro lado do oceano, podia dispensar o estímulo da metrópole e fazia-se frequentemente contra a vontade e contra os interesses imediatos desta. Mais ainda esses audaciosos caçadores de índios, farejadores e exploradores de riqueza, foram, antes do mais, puros aventureiros – só quando as circunstâncias o forçavam, é que se faziam colonos. (HOLANDA, 1995, p. 102).
Portanto, o início do poema marca um lugar de memória contrário à situação
atual de São Paulo, as aventuras dos Bandeirantes são marcas da identidade paulista
separada de seu cordão umbilical, Portugal. Porém, a visão de Mário de Andrade, um
sujeito moderno, carregado de valores humanísticos, não poderia apenas exaltar os
Bandeirantes, daí certa ambiguidade que marca essa figura na visão da voz poética, ao
mesmo tempo em que representa a identidade paulista e sua independência com relação
à metrópole (Portugal), também representa uma ação violenta contra outro elemento da
identidade nacional, o índio. Daí as “monções de ambição” que levaram a um “abismal
descaminho”, as “santificações da morte”, essa ambivalência marca a figura do Bandeirante na visão da voz poética, um libertário e um assassino. Sobre o trecho que
diz: “Ritmos de Brecheret...”observamos que remete a Victor Brecheret, que nasceu e
viveu boa parte de sua vida na Itália, o que lhe possibilitou a alcunha de ítalo-brasileiro.
Como havia a proposta modernista de condensação do significante, ou seja,
fazer com que possamos explorar o máximo de significado do mínimo de significante,
podemos afirmar que a referência a Brecheret condensa ainda outro significado: foi este
escultor o autor da obra Monumento às Bandeiras, que faz referência aos bandeirantes e
às populações que ajudaram a construir São Paulo. Tal obra ficou pronta em 1953,
entretanto, o projeto foi idealizado em 1920, sendo que o próprio Mário de Andrade
teve acesso à maquete, pois Brecheret era seu amigo, e foi um dos responsáveis
indiretos pela escrita de Pauliceia desvairada, pois, de acordo com Mário, a obra de
discussão com a família e saísse indignado de casa, começando a escrever, sob efeito da
raiva, o livro estudado neste artigo. O Monumento às Bandeiras é um local de memória
claro, produto de uma política de construção de monumentos que fez parte da cidade de
São Paulo no início da década de 20, e sobre isto Nicolau Sevcenko dirá:
Em meio a essa atmosfera eufórica, várias entidades ou segmentos da população concorrem entre si para deixarem a sua marca ou seu símbolo coletivo de distinção, fixando sua própria perspectiva como marco de referência que viesse a se tornar um traço indelével de qualquer possível identidade da cidade. (...) O escultor modernista Victor Brecheret projeta esta peça arquitetônica chave, que é um autêntico manifesto urbano do ideário modernista, O monumento às Bandeiras. (SEVCENKO, 2009, p. 98).
Interessante observar como, no decorrer no poema, na medida em que São
Paulo vai se atualizando, vai se tornando mais híbrida. Por exemplo, no último verso os
imigrantes italianos tomam conta da cidade, mais uma vez, novo e velho, antigo e novo
se entrelaçam no livro se encararmos o poema como um todo. Portanto, o movimento
indicado dos “Cortejos” é internalizado no poema, sendo também um movimento
temporal de passado e presente (sempre tomando como referencial o tempo da
enunciação), espécie de caminhar no poema. Este (presente) marcado pelos falares dos
imigrantes italianos, aquele (passado) simbolizado pela presença dos Bandeirantes.
Os poemas estudados revelam a resistência da voz poética perante uma
sociedade que perdera parcialmente a capacidade de guardar na memória. Os lugares de
memória, observados nos poemas, são marcas flagrantes desta resistência, resistência
esta necessária em uma São Paulo invadida por imigrantes, condenada à modernidade e
que enfrentava com isto uma ameaça de dispersão identitária.
Em um período em que as questões relacionadas à identidade eram tão
presentes em São Paulo, a voz poética encontrou nos lugares de memória uma tentativa de
“preservar” certa unidade identitária. Embora possamos provar a veracidade histórica das
informações contidas nos poemas, não foi este nosso objetivo, o que o nosso flâneur diz é
“verdade”, é produto de sua memória afetiva, se ela já não é uma memória coletiva, como
no homem primitivo, se já não representa o sagrado, pelo menos simboliza um relato de
alguém que vivenciou uma experiência de choque38. Não há aqui questionamentos sobre a
pertinência histórica do que diz a voz poética, porque isto já
38
BENJAMIN, Walter.Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994.
seria história. Podemos então propor uma reflexão. Seria então a memória mais próxima
da literatura e a história da ciência? Ou a história também seria um pouco literatura?
Assim como Proust, não estaria nosso poeta em busca de um tempo perdido? O que
podemos afirmar, sobre o livro estudado, é que o eu-lírico buscou enfrentar conflitos
que a própria São Paulo da época enfrentava. O antigo e o novo, a memória e o fato
foram guias da voz poética nesse itinerário pela capital paulista. Mais que isso,
ajudaram-na a construir a própria estrutura dos poemas, reverberando no modo como
escreveu nosso poeta e como tais conflitos instalaram-se também na linguagem.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário; De Paulicéia desvairada à café (Poesias Completas). São Paulo,Círculo do Livro, 1982.
BENJAMIN, Walter.Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representação da história em
Walter Benjamin.2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
ELIADE, Mircea; O sagrado e o profano; São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Histórico demográfico da prefeitura de São Paulo. Disponível em: <http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/1900.php> . Acesso em: 10 set. 2011.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NORA, Pierre. Entre história e memória: A problemática dos lugares de memória; tradução: Yara Aun Khoury, In: PROJETO HISTÓRIA: Revista do programa de História de estudos pós-graduados em História e do departamento de História da PUC-SP, (Pontificia Universidade Católica de São Paulo), São Paulo, SP – Brasil, 1981.
SEVCENKO, Nicolau.Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos XX.São Paulo: Companhia das letras, 1992.